Distinção entre Texto e Norma e a Necessária Aplicação da Regra da Anterioridade à Hipótese de Revogação de Isenção de ICMS

Distinction between Normative Text and Legal Norm and the Necessary Application of Anteriority in Case of Repeal of ICMS Exemption

Augusto Fiel Jorge D’Oliveira

Advogado. Bacharel em Direito (UERJ). Mestre em Direito (LL.M.) pela Northwestern University, Chicago, EUA. Especializado em Administração de Empresas pela Kellogg School of Management, Chicago, EUA. Mestrando em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento (UERJ). EX-Conselheiro Titular da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. E-mail: augustofiel@fieladvogados.com.

Recebido em: 23-01-2019

Aprovado em: 10-05-2019

Resumo

A jurisprudência firmada em nossos Tribunais nas últimas décadas é pela não aplicação da regra da anterioridade à hipótese de revogação de isenção de ICMS, a partir de entendimento sobre a natureza jurídica da isenção, no sentido de que o fato isento se encontra no campo da incidência. Todavia, a partir da distinção entre texto e norma, está superada a doutrina contemporânea à edição do CTN que defendia a isenção no campo da incidência, devendo-se entendê-la como inserida no campo da não incidência. Em decorrência, conclui-se que é plenamente aplicável a regra da anterioridade à hipótese de revogação de isenção de ICMS, com base no disposto no art. 104, III, do CTN, e que a Súmula STF n. 615 merece ser revogada.

Palavras-chave: ICMS, revogação, isenção/benefício fiscal, anterioridade, art. 104 do CTN, Súmula STF n. 615.

Abstract

In the last decades, Courts have ruled for the non-application of anteriority in case of repeal of ICMS exemption, based on the understanding of the legal nature of the exemption, in the sense that the exempt fact is in the field of incidence. However, from the distinction between normative text and legal norm, the doctrine contemporary to the enactment of the CTN that advocated exemption in the field of incidence has been overcome, and exemption must be understood as being inserted in the field of non-incidence. As a result, it is concluded that the anteriority is fully applicable to the hypothesis of repeal of ICMS exemption, based on the provisions of art. 104, III, of the CTN, and that Supreme Court Understanding n. 615 should be repealed.

Keywords: ICMS, repeal, exemption/tax benefit, anteriority rule, art. 104, CTN, Supreme Court Understanding n. 615.

I – Introdução

Na seção que trata das limitações do poder de tributar, a Carta de República prevê em seu art. 150, inciso III, alíneas b e c, as regras da anterioridade e da anterioridade nonagesimal, nos seguintes termos:

“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] III – cobrar tributos: b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b.”

Por sua vez, o Código Tributário Nacional (CTN) estabelece a regra da anterioridade no seu art. 104, inciso III, in verbis:

“Art. 104. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda: I – que instituem ou majoram tais impostos; II – que definem novas hipóteses de incidência; III – que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178.” (Destaques nossos)

As normas que se extraem desses dispositivos são normas de estrutura ou de produção normativa, ou seja, voltadas a regular a conduta do legislador, no caso, de forma negativa, no que diz respeito ao termo inicial não apenas de vigência mas também de validade das normas editadas para, de uma maneira geral, majorar o ônus fiscal do contribuinte e garantir a ele um mínimo de previsibilidade e planejamento na condução de sua vida e de seus negócios.

Nas sempre precisas palavras de Queiroz1,

“o principio da anterioridade é um complemento condicionante do aspecto material do antecedente da norma constitucional de produção normativa, que afeta o elemento de declaração prescritiva, submetendo-o à ocorrência de um evento futuro e certo (termo) – o início do exercício financeiro seguinte àquele em que houver sido publicada a lei relativa à criação ou modificação aumentativa (que implique aumento do valor a ser entregue ao Estado a título de tributo) de norma tributária, ou seja, a norma tributária somente passará a integrar o sistema jurídico (ser válida, ter fundamento constitucional de validade) a partir do exercício financeiro seguinte àquele em que houver sido publicada a lei relativa à criação ou aumento do tributo (a ocorrência do termo).” (Destaque nosso)

Diante desse quadro normativo, a questão que se coloca é se a regra da anterioridade, geral e nonagesimal, prevista na Constituição, deve ser aplicada à hipótese de revogação de isenção de imposto sobre circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços (ICMS).

A jurisprudência que se firmou nos Tribunais Superiores nas últimas décadas responde a essa questão de forma negativa, ou seja, afirma que o legislador estadual pode editar a qualquer tempo uma lei que revogue certa isenção de ICMS, com previsão de vigência imediata, e, desse modo, volte a exigir o imposto antes isento já no momento seguinte à edição da lei, sem a observação de qualquer prazo de transição entre o período de não exigência e o período de exigência do imposto.

O principal fundamento apontado é a natureza jurídica da isenção, entendida pelos tribunais como uma hipótese de incidência somada a uma dispensa do pagamento ou a um favor legal de dispensa do pagamento. Assim, considerando que na revogação de isenção ficaria afastada apenas a dispensa do pagamento e que a situação já estaria enquadrada na hipótese de incidência do imposto, não haveria que se falar em aplicação da regra da anterioridade. São apontados ainda, em reforço a esse fundamento, o art. 104 do CTN, em razão de sua ressalva aos impostos sobre o patrimônio e a renda, e a Súmula STF n. 615, pela qual “O princípio constitucional da anualidade (§ 29 do art. 153 da Constituição Federal) não se aplica à revogação de isenção do ICM.”

Para ilustrar, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça já afirmou que

“3. A revogação da isenção e do benefício da redução da base de cálculo do imposto pode-se ocorrer a qualquer tempo, exceto se concedidos por prazo certo e em função de determinadas condições (art. 178 c/c 104, III do CTN). 4. Correção do acórdão que entendeu possível a supressão do benefício fiscal sem observância do princípio da anterioridade.”2

Mais recentemente, em 2012, a Segunda Turma reafirmou essa orientação, ao expor que o entendimento ali firmado está em linha e

“encontra amparo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, em caso envolvendo tributo cobrado por Estado-membro, reiterou a orientação no sentido de que ‘a revisão ou revogação de benefício fiscal, por se tratar de questão vinculada à política econômica que pode ser revista pelo Estado a qualquer momento, não está adstrita à observância das regras de anterioridade tributária previstas na Constituição’ (AgRg no RE 562.669/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 19.5.2011).”3

Realmente o Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência antiga no mesmo sentido.

No julgamento da ADI n. 4.0164, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que se discutiu a aplicação da regra de anterioridade a um caso de revogação de desconto para pagamento do IPVA, o Plenário do STF, vencido o Ministro Cezar Peluso, teve a oportunidade de reafirmar jurisprudência da Corte, firmada no julgamento do RE n. 204.062, de relatoria do Ministro Carlos Velloso, de 27 de setembro de 1996, pela qual: “Revogada a isenção, o tributo torna-se imediatamente exigível. Em caso assim, não há que se observar o princípio da anterioridade, dado que o tributo já é existente.” Assim, fixada essa baliza, a Corte rechaçou a aplicação da regra da anterioridade, com as seguintes considerações:

“Se até mesmo a revogação de isenção não tem sido equiparada pelo Tribunal à instituição de tributo – ou seja, não se considera válida a assertiva segundo a qual a revogação de isenção equivale à edição de norma de incidência tributária –, parece certo, seguindo essa lógica, que a redução ou a extinção de um desconto para pagamento do tributo sob determinadas condições previstas em lei, como o pagamento antecipado em parcela única (à vista), não pode ser equiparada à majoração do tributo em questão, no caso, o IPVA.”

No ano de 2014, em julgamento de Turma, o Ministro Marco Aurélio conduziu a maioria que se formou por um entendimento divergente sobre a matéria, pela aplicação da regra da anterioridade à revogação de benefício fiscal de ICMS, em acórdão que tem a seguinte ementa: “[...] Promovido aumento indireto do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS por meio da revogação de benefício fiscal, surge o dever de observância ao princípio da anterioridade, geral e nonagesimal, constante das alíneas ‘b’ e ‘c’ do inciso III do artigo 150, da Carta.”5

Nesse julgamento, o Ministro Marco Aurélio foi acompanhado pelos Ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. Porém, o motivo exposto para a aplicação da regra da anterioridade não é ligado à discussão da natureza jurídica da isenção, mas sim a uma interpretação teleológica da regra da anterioridade, de modo a expressar a máxima garantia ao contribuinte. Nesse sentido, o Ministro Luís Roberto Barroso pondera que:

“a ocasião é oportuna para revisitar a jurisprudência da Corte, que foi muito bem retratada pela divergência. A concepção de anterioridade que me parece mais adequada é aquela afeta ao conteúdo teleológico da garantia. O princípio busca assegurar a previsibilidade da relação fiscal ao não permitir que o contribuinte seja surpreendido com um aumento súbito do encargo, confirmando o direito inafastável ao planejamento de suas finanças. O prévio conhecimento da carga tributária tem como fundamento a segurança jurídica e como conteúdo a garantia da certeza do direito.

Deve ser entendida como majoração do tributo toda alteração ocorrida nos critérios quantitativos do consequente da regra-matriz de incidência. Sob tal perspectiva, um aumento de alíquota ou uma redução de benefício relacionada a base econômica apontam para o mesmo resultado: agravamento do encargo. O que não é a diminuição da redução da base de cálculo senão seu próprio aumento com relação à situação anterior.”

Por sua vez, o Ministro Luiz Fux, apesar de demonstrar preocupação com a existência da Súmula STF n. 615, não revogada até o momento, reconhece que a revogação da isenção ou a majoração da base de cálculo geram uma surpresa fiscal, que deveria ser mitigada com a aplicação da regra da anterioridade.

Naquela ocasião, o Ministro Dias Toffoli e a Ministra Rosa Weber mantiveram-se alinhados à jurisprudência consolidada do Tribunal sobre a matéria, muito bem sintetizada em Voto-Vista do Ministro Dias Toffoli, nos termos a seguir:

“A meu sentir, a jurisprudência desta Corte tem andado em sentido diametralmente oposto ao entendimento adotado pelo eminente Relator. Antigos julgados desta Corte, proferidos sob a égide da Carta anterior, apontavam que a isenção fiscal cingia-se ao regime da legislação ordinária e que o instituto retratava a dispensa de pagamento de tributo devido e não hipótese de não incidência. Assim, com a revogação da isenção, entendia-se não haver instituição ou majoração de tributo (ou extensão de sua incidência), uma vez que a exação já existia e persistia, embora com a dispensa legal de pagamento. [...] Essa orientação tem sido mantida sob a atual Constituição Federal. [...] O presente caso se enquadra perfeitamente nessas orientações. Se a revogação pura e simples de isenção não está submetida ao princípio da anterioridade, com igual razão também não estará a revisão do benefício fiscal de redução de base de cálculo, caracterizada, no entendimento da Corte, como uma isenção parcial. Não vejo maiores razões para alterar a jurisprudência desta Corte.”

De qualquer maneira, esse julgado parece ter contribuído para uma reavaliação da orientação da Corte sobre a matéria. Em recentíssimos julgados, em casos em que se discutiu a aplicação da regra da anterioridade à majoração da alíquota no contexto de benefícios fiscais outorgados aos contribuintes, casos, portanto, em que não havia os ingredientes da discussão sobre a revogação de isenção de ICMS, tanto a Primeira quanto a Segunda Turma, com base no que restou decidido no Recurso Extraordinário n. 564.225, afirmaram, de forma unânime, que a regra da anterioridade se aplica à revogação de benefícios fiscais por força de um entendimento mais amplo dessa regra da anterioridade6-7, o que sinaliza uma possível mudança no entendimento firmado nas últimas décadas no que toca também à revogação de isenção de ICMS.

De todo modo, a jurisprudência antiga dos Tribunais Superiores ainda é refletida nos Tribunais Regionais Federais e nos Tribunais de Justiça. A título de ilustração, pode-se recordar que, no início de 2017, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro afastou a alegação de inconstitucionalidade por violação à regra da anterioridade, do Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal, que fora instituído pela Lei n. 7.428/2016 para revogar parcialmente benefícios fiscais e isenções de ICMS anteriormente concedidas aos contribuintes localizados no Estado do Rio de Janeiro, mediante a exigência de um depósito de 10% (dez por cento) do ICMS desonerado. Os fundamentos foram os seguintes:

“Ora, e na linha da jurisprudência do STF, cuidando-se de isenção parcial, a aplicação da norma legal dar-se-á sobre tributo já existente. Por isso, revogado o favor legal, ou simplesmente reduzido, força é concluir que um novo tributo não foi criado, senão que houve apenas a restauração do direito de cobrar o tributo.

É nesse sentido, aliás, a jurisprudência majoritária do STF: RE 204.026, 2ª Turma, relator ministro Maurício Correia, de 27/8/1996; RE 204.062, 2ª Turma, relator ministro Carlos Velloso, de 27/9/1996; RE 97.482, 1ª Turma, relator ministro Soares Muñoz, de 26/10/1982; RE 102.993-5, 2ª Turma, relator ministro Aldir Passarinho, de 19/4/1985; MC na ADI 4.016, Tribunal Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, de 1º/8/2008; AgRg no RE 562.669, 1ª Turma, relator ministro Ricardo Lewandowski, de 3/5/2011.”8

Nesse quadro, de jurisprudência sedimentada ao longo das décadas e julgado de Turma do STF pela sua superação, é oportuna a reflexão sobre a aplicação da regra da anterioridade à revogação de isenção de ICMS, pois não apenas a interpretação finalística da regra da anterioridade apontada pelo Ministro Marco Aurélio e pelo Ministro Luís Roberto Barroso justificam a sua aplicação, mas a própria natureza jurídica da isenção.

Isso porque, há muito, não há como se conceber a isenção como uma hipótese de incidência somada a uma dispensa de pagamento, devendo ser enxergada como uma verdadeira hipótese de não incidência que, uma vez revogada, atrai para o campo da incidência situações de fato que antes estavam no campo da não incidência. Em decorrência, é mandatória a aplicação da regra da anterioridade, pois configura típico caso de instituição de tributos, na revogação total de isenção, e de majoração, na revogação parcial.

II – Natureza jurídica da isenção na doutrina contemporânea à edição do CTN

Como já mencionado, o principal fundamento para aqueles que defendem a impossibilidade de revogação de isenção de ICMS é a própria natureza jurídica da isenção, no sentido de que configura uma hipótese de incidência. Logo, uma vez que determinada situação já estava dentro do campo de incidência e, dessa maneira, o imposto estadual já era devido, porém, não exigido, em razão da dispensa de pagamento, não caberia se falar em aplicação da regra da anterioridade, destinada a proteger o contribuinte contra a instituição ou majoração de tributos e não contra tributos já devidamente instituídos.

Essa posição a respeito da natureza jurídica da isenção é a que foi defendida por parte da doutrina contemporânea à edição do Código Tributário Nacional, portanto, na década de 60 do século passado, e teve como grande expoente Rubens Gomes de Sousa9.

Rubens Gomes de Sousa afirmava que a isenção pressupõe a incidência e, dessa maneira, pressupõe o nascimento da obrigação tributária, porém, com a dispensa do pagamento do tributo em dada hipótese. Sua orientação baseava-se na doutrina italiana de Giannini, que, segundo Rubens Gomes de Sousa, diferenciava a não incidência da isenção, nos seguintes termos: enquanto na não incidência o tributo não é devido por uma razão inerente à sua própria estrutura jurídica, seguindo a lei que determina o seu campo de incidência, na isenção, o tributo é devido, mas a lei dispensa o seu pagamento em determinadas hipóteses, por razões estranhas à estrutura jurídica do tributo.

No mesmo sentido era a doutrina de Amílcar de Araújo Falcão, que deixava claro que a isenção seria diferente da hipótese de não incidência, pois na isenção “há incidência, ocorre o fato gerador”, mas o legislador, por razões relacionadas à avaliação da capacidade contributiva do contribuinte ou razões extrafiscais, determinava a inexigibilidade do débito tributário, que é o equivalente à expressão de Rubens Gomes de Sousa de “dispensa do pagamento do tributo devido”10.

Em parecer sobre o tema, Rubens Gomes de Sousa ainda expõe que o seu posicionamento, à época, já não era plenamente aceito pela doutrina nacional e cita, a título de ilustração, o entendimento de Bilac Pinto, que defendia que a norma de isenção neutraliza a definição legal do fato gerador, de modo a excluir a incidência do tributo e a impedir o próprio nascimento da obrigação tributária. Tanto no Anteprojeto de Código Tributário Nacional (art. 220), como no Projeto de Código Tributário Nacional (art. 141), constou proposta de dispositivo com a seguinte redação: “Isenção é a dispensa legal do pagamento do tributo devido.” Contudo, talvez por conta da divergência doutrinária sobre a matéria existente à época, como reconhece o próprio Rubens Gomes de Sousa, “a Lei nº 5.172, que regula o Sistema Tributário Nacional [...] não tomou partido nessa controvérsia doutrinária, limitando-se a dispor, no art. 175, I, que a isenção exclui o crédito tributário”, acrescentando ainda que tal dispositivo poderia abrir duas leituras, a primeira, no sentido de que “inexiste a própria obrigação tributária, de vez que o crédito é simples decorrência daquela (art. 139)”, a segunda, a “significar que a obrigação existe mas é incobrável, porquanto a obrigação de pagar é inexigível quando inexista o crédito correspondente”.

Importante notar que, quando essa corrente distingue a não incidência da isenção, adota como referencial os dispositivos ou enunciados legais que tratam da hipótese de incidência e da isenção.

Assim, quando essa corrente afirma que, na não incidência, o tributo não é devido por uma razão inerente à sua própria estrutura jurídica, ela quer dizer que o tributo não é devido, considerando os dispositivos legais que definem seu campo de incidência e, de forma expressa ou por exclusão, o campo de não incidência do tributo. Do mesmo modo, quando essa corrente afirma que na isenção há tributo devido mas com dispensa de pagamento, ela quer dizer que o tributo é devido, considerando os dispositivos legais que colocam aquela determinada situação no campo de incidência, mas, ao mesmo tempo, dispensando o pagamento por razões estranhas à estrutura jurídica do tributo, ou seja, considerando não os primeiros dispositivos citados, mas o dispositivo legal que prevê a isenção.

Com isso, na isenção, quando se afirma que a situação está no campo de incidência mas com dispensa do pagamento, a ideia por trás dessa afirmação é que existe determinado dispositivo ou enunciado legal que prevê a incidência do imposto em determinada hipótese, e existe outro dispositivo ou enunciado legal que prevê a isenção do imposto em determinada hipótese, com determinado sujeito passivo e/ou em determinado local e/ou em determinado período de tempo.

Para chegar à conclusão a que chegou essa corrente, o referencial deve ser necessariamente o dispositivo legal e não a norma.

III – Distinção entre texto e norma

Contudo, se àquela época não se encontrava ainda muito clara a ideia de que o aplicador do Direito trabalha com a norma jurídica e não com o dispositivo legal ou o seu enunciado, nos dias de hoje, com todos os estudos desenvolvidos sobre o tema ao longo dessas décadas, essa afirmação não é objeto de disputa.

Apesar disso, ainda hoje, Guastini11 observa que o vocábulo “norma” é usado na doutrina, no Judiciário e no Legislativo, para fazer referência a dois objetos radicalmente distintos: (i) algumas vezes é chamado de “norma” um dispositivo ou enunciado legal pertencente a um documento normativo, a uma fonte de direito; (ii) outras vezes, denomina-se “norma” o conteúdo ou o significado de um dispositivo ou enunciado legal, tal como resulta de sua interpretação. Como exemplo, o autor lembra que as expressões “interpretação de normas” e “aplicação de normas” são comumente encontradas no discurso jurídico, utilizadas por advogados e juízes, mas certamente não têm o mesmo sentido. Enquanto na primeira expressão o vocábulo “norma”, na realidade, refere-se a um dispositivo ou enunciado legal, pois a atividade de interpretação realiza-se sobre textos, na segunda expressão, o vocábulo “norma” refere-se justamente ao conteúdo ou significado de um dispositivo ou enunciado legal, determinado após a sua interpretação, tendo em conta que nenhum texto normativo pode ser aplicado sem uma apropriada interpretação.

Em seguida, Guastini afirma que podemos chamar de dispositivo ou enunciado todo texto pertencente a uma fonte de direito, e de norma o conteúdo significativo do dispositivo ou enunciado, que depende da interpretação. Assim, conclui o autor que o dispositivo ou enunciado constitui o objeto da atividade de interpretação e que a norma é o resultado dessa interpretação.

Segundo Guastini, a diferenciação entre dispositivo ou enunciado ou, ainda, texto e norma, em muitos casos, é irrelevante e pode ser ignorada sem causar problema. Porém, em outros contextos, essa distinção é essencial e de importância fundamental para a resolução de conflitos jurídicos, tendo em vista que nem sempre se verifica uma exata correspondência entre determinado dispositivo ou enunciado ou texto e determinada norma, e esse fenômeno pode ocorrer pelas seguintes razões: (i) um único dispositivo pode corresponder a uma multiplicidade de normas jurídicas (“dispositivos complexos”); (ii) todo dispositivo é mais ou menos vago e ambíguo, de maneira que tolera atribuições de significado diversas e em conflito, portanto, um único dispositivo pode corresponder a uma multiplicidade de normas conflitantes (“dispositivos ambíguos”); (iii) pode acontecer também que dois dispositivos sejam idênticos, uma mera reprodução um do outro, nesse caso, a dois dispositivos pode corresponder uma única norma (“dispositivos redundantes”); (iv) e pode ocorrer ainda de existir uma norma jurídica sem um dispositivo correspondente, seja porque determinada norma não é extraída de uma dispositivo especifico, mas de uma pluralidade de dispositivos combinados entre si, seja porque é uma norma implícita do ordenamento jurídico (“normas sem dispositivo”).

Atento a essa diferenciação, o Ministro Eros Grau assevera que

“a interpretação [...] é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser – a interpretação – uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas. [...] as normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto de disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete.”12

Portanto, não há como se confundir o dispositivo ou o enunciado ou o texto legal com a norma.

IV – Natureza jurídica da isenção na doutrina atual

Dessa maneira, quando se avalia a natureza jurídica da isenção sob essa ótica, a conclusão é diversa da que propunha a parte da doutrina antes citada, contemporânea à edição do CTN, na década de 60, e que acabou prevalecendo, em sede jurisprudencial, nas décadas seguintes.

É o caso da existência de textos jurídicos que, lidos e interpretados em conjunto pelo intérprete, resultarão em uma única norma. Assim, quando o intérprete examina o texto jurídico que prevê a incidência de determinado tributo na ocorrência de determinada hipótese e outro texto jurídico que prevê a isenção desse mesmo determinado tributo na ocorrência da mesma hipótese, em relação a uma mercadoria específica, ele chega à conclusão de que a norma é de não incidência do tributo na ocorrência daquela hipótese para aquela mercadoria.

Não há que se falar em uma norma de incidência e em uma norma de dispensa de pagamento que convivam e coexistam harmonicamente no ordenamento jurídico, porque, uma vez cotejadas essas duas normas hipotéticas pelo intérprete, ele verificará que uma é norma geral e a outra é específica, existindo, na realidade, no ordenamento jurídico, uma única norma pela não incidência do tributo para aquela determinada mercadoria. Desse modo, na hipótese de isenção, verifica-se que o que existe são dois textos legais, um que prevê a incidência geral e outro que prevê a dispensa do pagamento para determinado caso, mas uma única norma, pela não incidência em determinado caso. A existência de duas normas só é concebível no plano anterior à atividade de interpretação dos textos legais.

Por esse motivo, Alfredo Augusto Becker já afirmava que: “a lógica desta definição estará certa apenas no plano pré-jurídico da política fiscal quando o legislador raciocina para criar a regra jurídica da isenção”. Para Becker, a isenção

“consiste na formulação negativa da regra jurídica que estabelece a tributação. A realização da hipótese de incidência da regra jurídica de isenção, faz com que esta regra jurídica incida justamente para negar a existência de relação jurídica tributária. Por sua vez, as hipóteses não enquadráveis dentro da hipótese de incidência da regra jurídica explícita de isenção tributária são precisamente as hipóteses de incidência de regras jurídicas implícitas de tributação.”13

Também pela isenção no campo da não incidência manifesta-se José Souto Maior Borges, que produziu alentada e importante monografia sobre a tema das isenções. Souto Maior Borges critica a doutrina clássica por ter transplantado para análise do sistema jurídico nacional ensinamentos de doutrina estrangeira sem maior esforço de análise crítica, afirmando que o raciocínio da corrente clássica não se sustentava por implicar em converter o fato gerador, “por uma espécie de transubstanciação legal”, em fato isento. Se tal fenômeno fosse possível, explica Souto Maior Borges, teríamos que admitir duas proposições normativas contraditórias e válidas, o que é contrário ao princípio jurídico da contradição. Para ele, a isenção é hipótese de não incidência legalmente qualificada, em contraposição à imunidade, hipótese de não incidência constitucionalmente qualificada14.

Nos dias de hoje, a doutrina nacional é amplamente majoritária ao defender que a isenção se encontra no campo da não incidência e, dessa maneira, também amplamente majoritária ao defender a aplicação da regra da anterioridade à sua revogação.

Luciano Amaro critica a doutrina citada, contemporânea à edição do CTN, e destaca que ela supõe que o fato isento é tributado e, no mesmo instante, o tributo correspondente é dispensado pela lei, o que nunca poderia ser admitido, pois tal raciocínio ilógico, na visão do ilustre doutrinador, da mesma forma que destacou Souto Maior Borges, ofenderia o princípio da não contraditoriedade das normas jurídicas: um fato não pode ser, ao mesmo tempo, tributado e não tributado. Além disso, defende que a diferença entre a não incidência pura e a isenção é apenas de técnica legislativa, portanto, apenas formal, e afirma:

“O que há aqui é uma técnica peculiar utilizada no processo de definição do campo de incidência. Suponhamos que o legislador possa, num universo de cem espécies, tributar noventa (porque as outras dez são imunes e, portanto, ficaram fora do campo onde a competência tributária pode ser exercida). Se o legislador ordinário não tributar essas noventa espécies, total ou parcialmente, teremos a situação que referimos no parágrafo anterior (não incidência pura e simples). Mas pode ocorrer que o legislador, pretendendo tributar parte das noventa espécies, decida, em vez de relacionar as espécies que efetivamente queira gravar, optar pela técnica da isenção que consiste em estabelecer, em regra, a tributação do universo, e, por exceção, as espécies que ficaram fora da incidência, ou seja, continuaram não tributáveis.”15

Por sua vez, Paulo de Barros Carvalho relata que a doutrina citada, contemporânea à edição do CTN, não resistiu aos primeiros ataques que lhe foram dirigidos, e critica essa teoria, que se traduziria em “uma cadeia de expedientes imaginativos, para amparar uma inferência absurda e contrária à dinâmica normativa”, impossível de ser realizada, pois “não há cronologia na atuação de normas vigorantes num dado sistema”. Reconhece as inestimáveis contribuições ao tema dadas por Becker e depois por Souto Maior Borges, porém, não concorda integralmente com tais visões, preferindo enxergar o fenômeno da isenção a partir de sua qualificação como uma norma de estrutura, como uma norma que, guardando sua autonomia, investe contra um ou mais dos critérios da norma padrão de incidência, mutilando-os parcialmente. Nas palavras desse cientista do Direito, o fenômeno da isenção se dá pelo “encontro de duas normas jurídicas, sendo uma a regra-matriz de incidência tributária e outra a regra de isenção, com seu caráter supressor da área de abrangência de qualquer dos critérios da hipótese ou da consequência da primeira (regra-matriz)”16.

A mesma linha de entendimento é a que defende Luís Eduardo Schoueri, que afirma que não parece sustentável a existência de uma obrigação em caso de isenção, eis que inexiste qualquer vínculo entre Estado e contribuinte, nem pretensão por parte do Estado, na hipótese de prática pelo contribuinte de fato isento. Como muito bem captado por Schoueri,

“na verdade, a necessidade de se diferenciarem os momentos da incidência e da isenção é fruto de pensamento que não percebe que a norma jurídica não se confunde com o enunciado legal. O fato de um texto prever uma incidência e outro versar sobre a isenção não implica a existência de duas normas, com incidências distintas; mais adequado é contemplar-se ali, uma única norma, fruto da combinação de todos os mandamentos legais. A norma de incidência surgirá, pois, como um resultado do esforço do aplicador da lei.”17

Por conseguinte, pode-se concluir que, no fenômeno da isenção, a partir da leitura dos textos legais que preveem a incidência de determinado tributo na ocorrência de determinada materialidade e a isenção de determinado tributo na ocorrência de determinada materialidade com determinado sujeito e/ou coisa, e/ou local, e/ou período de tempo e/ou outro aspecto da hipótese de incidência em abstrato, a norma jurídica resultante é pela inserção do fato isento no campo da não incidência, a ensejar a aplicação da regra da anterioridade.

V – Art. 104, inciso III, do CTN e Súmula STF n. 615

É de se destacar que o art. 104, inciso III, do CTN, longe de afastar a aplicação da regra da anterioridade à revogação de isenção de ICMS, na realidade, é mais um fundamento para a sua aplicação.

De acordo com o art. 104, inciso III, do CTN:

“Art. 104. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda: I – que instituem ou majoram tais impostos; II – que definem novas hipóteses de incidência; III – que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178.” (Destaques nossos)

Como esse dispositivo faz referência exclusiva aos impostos sobre o patrimônio ou a renda contida no caput do art. 104, alguns defendem que a norma que dele se extrai seria pela impossibilidade de aplicação da regra de anterioridade ao ICMS.

À época de sua edição, essa afirmativa era verdadeira, pois deve-se lembrar que o dispositivo foi editado na vigência da Emenda n. 18/1965, que reformou o sistema tributário à época e previu a regra da anterioridade nos seguintes termos: “Art. 2º É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] II – cobrar impôsto sôbre o patrimônio e a renda, com base em lei posterior à data inicial do exercício financeiro a que corresponda” (destaques nossos).

Posteriormente, a Constituição de 1967, reproduzindo regra da Constituição Federal de 1946, restaurou o princípio da anualidade sem quaisquer ressalvas em relação aos tributos sobre produção e circulação18. Portanto, essa garantia foi ampliada, não por força do princípio da anterioridade mas por força do princípio da anualidade. A Emenda n. 01/1969, porém, aboliu o princípio da anualidade e voltou a prever o princípio da anterioridade, que teve uma ampliação das suas ressalvas por força da Emenda n. 8/197719. Nos dias de hoje, como afirmado acima, a regra é da anterioridade e não há qualquer ressalva ou distinção decorrente da natureza do imposto (sobre patrimônio, renda ou consumo).

Diante disso, se, antes das alterações constitucionais, a norma que se extraía do art. 104 do CTN era pela aplicação da regra da anterioridade aos impostos sobre patrimônio e renda, com a exclusão de impostos de outra natureza, após as alterações constitucionais, para a recepção e a conformação desse dispositivo pré-constitucional ao atual ordenamento jurídico nacional, pelo menos, duas leituras seriam possíveis.

Uma primeira leitura que se pode fazer é no sentido de que a norma afirma a aplicação da regra da anterioridade aos impostos sobre patrimônio e renda, sem a exclusão dos impostos de outra natureza. É dizer, esse dispositivo traz uma regra de estrutura para impostos sobre patrimônio e renda, mas não disciplina a aplicação ou não da regra da anterioridade aos impostos de outra natureza, sendo neutro em relação a eles.

Impende, porém, observar que o dispositivo não apenas determina a aplicação da regra da anterioridade aos impostos sobre patrimônio e renda, mas também detalha, regulamenta, esmiúça, faz uma verdadeira interpretação do preceito da anterioridade previsto na Constituição, ao expor e determinar o verdadeiro alcance da norma constitucional, de modo que a instituição ou majoração de tributos, tal como colocada na Constituição e repetida em seu inciso I, abrange também novas hipóteses de incidência (inciso II) e a extinção ou redução de isenções (inciso III). Portanto, seria o caso de um texto legal que veicula mais de uma norma – a primeira desvenda o objeto de aplicação da regra da anterioridade (imposto sobre patrimônio ou renda) ou o destinatário dessa garantia (o contribuinte do imposto sobre patrimônio ou renda), a segunda desvenda a forma de aplicação da regra da anterioridade.

Dessa maneira, devidamente exposto o motivo da referência aos impostos sobre o patrimônio e sobre a renda, na redação do art. 104, caput, do CTN, e, considerando que no atual cenário constitucional não há motivos para se distinguir a aplicação da regra da anterioridade aos impostos sobre patrimônio e renda da aplicação aos impostos sobre consumo, não há empecilho para, na ausência de determinação expressa em relação aos impostos sobre consumo, adotar, por força do art. 108, inciso I, do CTN, a norma quanto à forma de aplicação da regra de anterioridade veiculada no art. 104 do CTN também aos impostos sobre consumo.

Assim, essa segunda leitura das normas que resultam da leitura do art. 104 do CTN parece ser a que melhor se compatibiliza com o texto constitucional.

Por esse motivo, é possível afirmar que, na realidade, esse dispositivo opera em favor dos contribuintes e é aplicável a qualquer tributo, com a ressalva, por óbvio, daqueles excepcionados pela própria Carta da República, pois esclarece que não apenas a instituição ou a majoração de tributos devem ser protegidas pela anterioridade, mas a extinção ou redução de isenção, como expressamente previsto em seu texto.

Dessa maneira, é a própria legislação complementar que reconhece que a extinção ou a redução de isenção equivalem a um aumento da carga tributária, nos exatos termos previstos no texto constitucional, a merecerem a proteção da aplicação da regra da anterioridade.

Por último, deve-se enfrentar a Súmula STF n. 615, ainda não revogada, que determina o seguinte: “O princípio constitucional da anualidade (§ 29 do art. 153 da Constituição Federal) não se aplica à revogação de isenção do ICM”. Apesar de todo o exposto, o entendimento jurisprudencial nela veiculado ainda seria capaz, na atualidade, de afastar a aplicação da regra da anterioridade à hipótese de revogação de isenção de ICMS?

Percebam que a Súmula faz expressa referência ao art. 153, § 29, da Constituição de 1967, portanto, é posterior ao período em que o ordenamento determinava a aplicação da regra da anterioridade somente a impostos sobre patrimônio e renda.

Ao se examinar o Voto do Ministro Moreira Alves no julgamento do Recurso Extraordinário n. 97.455-5/RS, realizado pela Segunda Turma no dia 10 de dezembro de 1982, verifica-se que os fundamentos para essa conclusão foram os seguintes: (i) a doutrina e a jurisprudência dominantes à época eram no sentido de que a natureza jurídica da isenção era de hipótese de incidência com a dispensa do pagamento; (ii) “a regra da anualidade para a instituição ou para o aumento do tributo não abarca a isenção, uma vez que esta é concebida, em nosso direito, como simples dispensa legal do pagamento do imposto devido”; (iii) o entendimento exposto no item ii, acima, era o entendimento do STF sob a égide da Constituição de 1946 e, mesmo com a Constituição de 1967, o alargamento do princípio da anualidade não só aos impostos sobre patrimônio e renda não implicou a extensão do art. 104, inciso III, a todos os tributos alcançados pelo princípio constitucional da anterioridade; (iv) assim,

“com relação à observância do princípio da anualidade pelas leis revogadoras de isenção, a situação continuou inalterada: o princípio constitucional da anualidade não as alcançava, de sorte que a regra do inciso III, do artigo 104 do CTN continuava a persistir por força própria (nada impede que a lei declare que à isenção se aplique a observância da anualidade), mas nos limites por ela mesmo estabelecidos: isenção quanto a impostos sobre o patrimônio e a renda”.

O raciocínio tem como pilar fundamental a natureza jurídica da isenção. Como se tratava de hipótese de incidência com dispensa de pagamento, na hipótese de sua revogação, não se aplicava o princípio da anualidade constitucional. Mas também não seria vedado à lei permitir a aplicação desse princípio, ao que parece indicar o julgado dentro da possibilidade conferida à lei de estipular o prazo de duração da isenção, nos termos do art. 176 do CTN.

Contudo, uma vez demonstrado que o fato isento se encontra no campo da não incidência, cai por terra a linha de argumentação que sustenta a Súmula STF n. 615, pois a observação da anterioridade geral e nonagesimal na revogação da isenção não poderá mais ser encarada como uma característica de determinado caso de isenção quando o legislador assim dispuser, mas sim como uma verdadeira decorrência dessa regra constitucional de garantia, para evitar a surpresa do contribuinte e garantir a segurança jurídica nas relações entre particular e Estado, aplicável, portanto, a regra da anterioridade a todas as hipóteses de revogação de isenção, incluindo a de ICMS.

VI – Conclusão

Já caminhando para o final desse breve estudo, pode-se concluir que, com a diferenciação entre texto e norma, a doutrina de Rubens Gomes de Sousa restou ultrapassada, sendo amplamente majoritário na doutrina nacional atual que o fato isento se encontra no campo da não incidência, merecendo o amparo da aplicação da regra da anterioridade geral e nonagesimal a hipótese de revogação de isenção de ICMS.

Ademais, o art. 104, inciso III, do CTN, não é contrário a esse entendimento, mas aclara que a regra de anterioridade deve ser aplicada não apenas à instituição ou majoração de tributos, mas também à extinção ou modificação das isenções.

Diante disso, a jurisprudência do STF, que já está revisitando a matéria, deve se firmar pela aplicação da regra em comento, com base não apenas na interpretação teleológica da Constituição, mas também em razão da natureza jurídica da isenção, com a consequente revogação da Súmula STF n. 615.

Referências bibliográficas

AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007.

BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

FALCÃO, Amilcar de Araújo. Imunidade e isenção tributária – instituição de assistência social. Revista de Direito Administrativo v. 66, Rio de Janeiro, mai. 1961. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/22348/21112>. Acesso em: 14 mai. 2019. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rda.v66.1961.22348.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo – estudios de teoría y metateoría del derecho. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

QUEIROZ, Luís Cezar Souza de. Sujeição passiva tributária. 3. ed. Rio de Janeiro: LML Mundo Jurídico, 2016.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

SOUSA, Rubens Gomes de. Isenções fiscais – substituição de tributos – Emenda Constitucional nº 18 – Ato Complementar nº 27 – Impôsto de vendas e consignações – Impôsto sôbre circulação de mercadorias. Revista de Direito Administrativo v. 88, Rio de Janeiro, jul. 1967. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/30082/28927>. Acesso em: 14 mai. 2019. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rda.v88.1967.30082.

1 QUEIROZ, Luís Cezar Souza de. Sujeição passiva tributária. 3. ed. Rio de Janeiro: LML Mundo Jurídico, 2016, p. 153.

2 REsp n. 762.754/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 20.09.2007.

3 RMS n. 26.138/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 07.08.2012, DJe 14.08.2012.

4 Julgada em 01.08.2008.

5 RE n. 564.225 AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 02.09.2014.

6 RE n. 983.821 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 03.04.2018.

7 RE n. 1.081.068 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 06.03.2018.

8 Acórdão de 22 de fevereiro de 2017, proferido nos autos da Representação de Inconstitucionalidade n. 0063240- 02.2016.8.19.0000, ajuizada pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Rio de Janeiro (FECOMÉRCIO RJ).

9 SOUSA, Rubens Gomes de. Isenções fiscais – substituição de tributos – Emenda Constitucional nº 18 – Ato Complementar nº 27 – Impôsto de vendas e consignações – Impôsto sôbre circulação de mercadorias. Revista de Direito Administrativo v. 88. Rio de Janeiro, jul. 1967. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/30082/28927>. Acesso em: 14 mai. 2019. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rda.v88.1967.30082.

10 FALCÃO, Amilcar de Araújo. Imunidade e isenção tributária – instituição de assistência social. Revista de Direito Administrativo v. 66. Rio de Janeiro, mai. 1961. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/22348/21112>. Acesso em: 14 mai. 2019. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rda.v66.1961.22348.

11 GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo – estudios de teoría y metateoría del derecho. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999, p. 100 e seguintes.

12 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 85.

13 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 324-325.

14 BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 161-164.

15 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 280.

16 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 524-529.

17 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 683.

18 “Art. 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 29 – Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra.”

19 Conforme histórico constitucional dos princípios da anualidade e da anterioridade exposto por Hugo de Brito Machado, em MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 95.