O Critério Espacial da Regra-Matriz do ISSQN: uma Análise da Incidência Tributária à Luz da Doutrina do Construtivismo Lógico-Semântico de Paulo de Barros Carvalho

The Spatial Criterion of the Matrix Rule of ISSQN: an Analysis of Taxation Incidence in Light of the Doctrine of the Logical-Semantic Constructivism of Paulo de Barros Carvalho

Cynthia Esteves de Andrade

Pós-graduada em Gestão do Transporte Marítimo e Portos pela UNDB. Pós-graduanda em Direito de Família, da Infância e Juventude (UNDB). Presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM/MA. Membro do Grupo de Apoio à Adoção AME/MA. Chefe de Gabinete de Procurador de Justiça – PGJ – MP/MA. Advogada. E-mail: cynthiaesteves@msn.com.

Mariana Costa Heluy

Pós-graduanda em Direito Eleitoral pela Universidade Federal do Estado do Maranhão (UFMA). Membro da Comissão de Advocacia Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Maranhão. Advogada. E-mail: mcheluy@gmail.com.

Recebido em: 20-02-2019

Aprovado em: 08-03-2020

Resumo

O presente trabalho pretende analisar o critério espacial da hipótese de incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, buscando entendê-lo sob a ótica da doutrina de Paulo de Barros Carvalho. Pretende-se verificar os parâmetros do critério espacial da hipótese de incidência da norma tributária, identificando, a partir do fato jurídico escolhido, inicialmente, os critérios material, temporal e espacial do ISS, com ênfase neste último. Em seguida, analisar-se-á o referido tributo à luz do princípio da territorialidade e do âmbito de vigência territorial da norma para enfrentar o problema da possível inconstitucionalidade na cobrança do ISS pelo município onde se encontra a sede da empresa geradora do tributo, quando o serviço foi realizado em município diverso, trazendo posições jurisprudenciais relevantes para o caso.

Palavras-chave: Hipótese de Incidência; ISS; Critério Espacial; Princípio da Territorialidade.

Abstract

This paper aims to analyze the spatial criterion of the hypothesis of the Tax on Services of Any Nature – ISSQN, seeking to understand it from the point of view of the doctrine of Paulo de Barros Carvalho. It is intended to verify the parameters of the spatial criterion of the hypothesis of incidence of the tax norm, identifying, from the juridical fact initially chosen, the material, temporal and spatial criteria of the ISS, with emphasis on the latter. Then will be to analyze this tax under the principle of territoriality and the territorial validity of the norm to deal with the problem of the possible unconstitutionality in the collection of ISS by the Municipality where the company that generates the tax is located when the service was carried out in a diverse municipality, bringing jurisprudential positions relevant to the case.

Keywords: Incidence hypothesis; ISS; Spatial Criterion; Territoriality Principle.

1. Introdução

A tributação, embora seja um poder estatal legítimo, está sujeita a uma série de limitações constitucionais e legais. Este estudo tem como finalidade analisar, sob a ótica da regra-matriz de incidência tributária, o critério espacial no Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN ou ISS. A busca por maiores esclarecimentos nesta seara reveste-se de relevância suficiente que justifique a escolha e delimitação do tema a ser abordado neste trabalho diante da significativa contribuição do ISS no quadro nacional das receitas tributárias, notadamente, no âmbito municipal.

O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, tal como prevê o inciso III do art. 156 da Carta Magna, é de competência dos municípios e tem sua definição em Lei Complementar, qual seja a LC n. 116/2003. De acordo com o diploma legal, o tributo será devido no local do estabelecimento prestador ou no local do domicílio do prestador (com exceção das hipóteses previstas em seus vinte e dois incisos). Ao se considerar devido o imposto no local da efetiva prestação do serviço, surge na doutrina nacional o seguinte questionamento: o critério espacial de incidência do ISS seria do local do estabelecimento prestador ou o local de prestação do serviço?

Tal situação acaba por gerar considerável insegurança jurídica aos sujeitos passivos da obrigação tributária, uma vez que, na maioria das legislações municipais, tem-se optado por combinar os dois critérios, o que por sua vez só vem a fomentar o fenômeno do excesso da carga tributária, que, há anos, acarreta reflexos negativos na experiência econômica do país.

Como forma de solucionar a indagação levantada, far-se-á um estudo acerca da regra-matriz de incidência desenvolvida pelo professor Paulo de Barros Carvalho, a qual serve como instrumento de interpretação da norma tributária. Ao apresentar uma análise minuciosa dos vetores que orientam os comportamentos humanos, o referido método pretende atingir a meta da regra jurídica tributária: uma conduta verificável no mundo do ser que espelhe a conduta desejável no mundo do dever ser.

Esta pesquisa terá como base teórica subsidiária, portanto, a proposta epistemológica do supracitado citado mestre, a qual procura explicar a incidência da norma tributária sob o viés da semiótica e da linguagem, com atenção aos critérios material, temporal e espacial, especialmente este último, que se subdivide em pontual, regional, territorial e universal. Dentro desse recorte, abordar-se-á o princípio da territorialidade do critério espacial e noções acerca do âmbito de vigência territorial da norma. Para isso, a metodologia empregada dar-se-á por meio de pesquisa bibliográfica, que permite a ampla elucidação do assunto abordado, tendo em vista a posição doutrinária elegida.

Por fim, o trabalho encerra-se com as Considerações Finais, nas quais são apresentados o entendimento jurisprudencial atual, bem como os pontos conclusivos dentro das limitações existentes para a produção deste estudo, frisando-se que, embora não sejam exaustivas, tais considerações apresentam-se como um estímulo para a continuidade dos estudos e reflexões em relação ao problema apresentado.

2. A regra-matriz tributária

Num primeiro momento, far-se-á uma apresentação, ainda que de forma bastante resumida dada a limitação do artigo e a complexidade da dita estrutura teórica, do “esquema lógico-semântico” construído pelo professor Paulo de Barros Carvalho, cuja base remonta aos ensinamentos de Augusto Becker e Geraldo Ataliba, com atenção aos conceitos ali permeados de linguagem, realidade, teoria dos sistemas, semiótica, lógica, e norma jurídica1.

Para Paulo de Barros Carvalho, o direito é uma linguagem, enquanto “veículo de expressão” que manifesta normas jurídicas, que incide sobre a linguagem social da realidade em que vivemos. É, portanto, o direito uma sobrelinguagem, que prescreve condutas e fatos juridicamente relevantes que, em ocorrendo no mundo fenomênico, no âmbito da linguagem social de base, deverão desencadear efeitos no mundo jurídico. Percebe-se que a linguagem jurídica, como toda linguagem, “é redutora do mundo sobre o qual incide”2, ou seja, incidirá apenas naqueles aspectos da realidade social julgados relevantes pelo legislador ao criar a norma posta. Sobre essa seleção, pondera Aurora Tomazini de Carvalho:

“O legislador ao escolher os acontecimentos que lhe interessam como causa para o desencadeamento de efeitos jurídicos e as relações que se estabelecerão juridicamente como tais efeitos, seleciona propriedades do fato e da relação [...] Todo conceito é seletor de propriedades, isto quer dizer que, nenhum enunciado capta o objeto referente na infinita riqueza de seus predicados, captura apenas algumas de suas propriedades, aquelas eleitas pelo observador como relevantes para identificá-lo”3.

Neste sentido, a hipótese da incidência normativa é aquela conduta ou fato que tem o condão de autorizar “o desencadeamento de efeitos jurídicos” a que a supracitada autora se refere. Verificada sua ocorrência na situação fática, dá-se o nome de consequente4. Destarte, tais especificações ou escolhas de acontecimentos, que requerem uma atividade prévia do legislador, cujo resultado são “proposições hipotético-implicacionais”5 estão no campo do dever ser, que é a seara do direito posto, e passarão a integrar o mundo do ser a partir da verificação prática real dessas hipóteses e seus consequentes.

O acontecimento da hipótese, por óbvio, deverá ser ao menos genericamente identificado, como será mais detalhadamente visto no item 2.1 adiante, pelo seu aspecto material ou “propriedades da ação nuclear deste acontecimento”6, bem como pelos critérios temporal e local (espacial). Já o consequente requer sejam delineados os sujeitos e o objeto da relação, ou seja, a obrigação, proibição ou permissão que é imposta a um dos sujeitos em relação ao outro. Tanto a hipótese quanto o consequente, construídos a partir da delimitação dos “elementos significativos”, anteriormente mencionados, são “normas de incidência” e “normas produzidas como resultado da incidência”, respectivamente, sendo que as primeiras refletem normas gerais e abstratas e as segundas normas concretas e individuais, haja vista a subjetivação do objeto, tal como previamente explanado7.

Ressalta-se que todos os aspectos e conceitos até aqui mencionados podem ser usados não só na seara do Direito Tributário, como também na interpretação de todos os ramos do Direito.

A regra-matriz de incidência tributária, enquanto “norma padrão de incidência”8 é, portanto, uma norma geral e abstrata que prevê acontecimentos genericamente delimitados no âmbito do dever ser, que, ao se concretizarem no mundo do ser, sofrerão as consequências da operação lógica de subsunção realizada pelo intérprete para, então, verificar-se, como resultado, a norma concreta e individual, que traz consigo “a descrição de um evento especificamente determinado”9. Ressalte-se que necessária é a subsunção, realizada pelo intérprete da norma, para que esta possa incidir juridicamente, provocando os resultados que lhe são previstos. Explica-nos, com a facilidade que lhe é peculiar, o autor de Direito Tributário fundamentos jurídicos da incidência:

“Admitamos que um comerciante venda mercadorias, numa operação sujeita à incidência do ICMS. Não emite nota fiscal ou qualquer outro documento que possa atestar, lingüisticamente [sic], o evento. Digamos, também, que, ao comparecer ao estabelecimento daquele comerciante, o fiscal de rendas do Estado não tenha elementos (de linguagem) para certificar aquela operação. A conclusão é fulminante: juridicamente não aconteceu o fato e, portanto, nenhuma obrigação tributária se instalou”10.

Outrossim, a análise da expressão “regra-matriz de incidência” revela o seguinte entendimento mediante a qualificação dos termos que a compõem: regra refere-se à norma jurídica que é construída a partir do Direito posto por meio da atuação do intérprete. Por outro lado, matriz diz respeito à configuração de um “modelo padrão” na construção e aplicação da norma concreta e individual. Já o termo incidência implica a previsão intrínseca de aplicação que consta dessa norma posta11.

Integram a regra-matriz de incidência (RMI), portanto, conforme já visto, os critérios material, espacial e temporal que identificam a hipótese, bem como as delimitações pessoais dos sujeitos da relação e, ainda, a obrigação ou prestação obrigacional que se impõe a um desses sujeitos em relação ao outro. Dada a dificuldade de visualização de tantos termos abstratos, recorremos aos efeitos ilustrativos, dispostos na tese de Aurora Tomazini de Carvalho, que melhor esboçam a tese do professor Paulo de Barros Carvalho:

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Figura 1: Regra-matriz de incidência tributária12.

Respeitando a delimitação a que se propõe este trabalho, far-se-á um estudo mais aprofundado apenas acerca dos critérios da hipótese no esquema lógico da regra-matriz de incidência, conforme o item que se segue.

2.1. Critérios da hipótese

Cumpre lembrar, primeiramente, que os critérios da hipótese visam servir de sinalização ao intérprete a fim de que este consiga identificar quando da ocorrência de um acontecimento juridicamente relevante, para que possa nele incidir os efeitos predeterminados em normas jurídicas vigentes no ordenamento. Imbuídos nesta finalidade, os critérios de determinação da hipótese idealizados por Paulo Barros de Carvalho desenham contornos da ação ocorrida bem como suas coordenadas temporais e espaciais.

O elemento material da RMI é representado por um verbo, no tempo passado, um complemento e um agente que realizou a ação, operando mudanças no campo da realidade, sendo, portanto, um acontecimento no mundo fenomênico. A principal mensagem que passa esse elemento é “a alteração que o enunciado proclama como tendo havido no campo dos objetos da experiência”13 de tal forma, que podemos observar, já especificamente na seara do Direito Tributário, os seguintes exemplos:

“[...] fulano de tal prestou serviços tributáveis no Município, certa companhia industrializou produtos (IPI), a empresa X realizou operações relativas à circulação de mercadorias, a empresa Y importou produtos do exterior, a instituição Z praticou operações financeiras, o Estado E exercitou seu poder de polícia”14.

Trata-se da descrição de um “proceder humano [...] condicionado no tempo e no espaço” relevante ao ponto de ser “promovido à categoria de fato jurídico”15, sendo o núcleo delimitador da hipótese da regra-matriz de incidência.

Já o critério temporal é o “feixe de informações”, disponível explícita ou implicitamente, que possibilita a identificação do exato momento em que se deu a atuação do agente no mundo fenomênico. Paulo Barros de Carvalho prevê a existência de dois tempos diversos: o tempo do fato e o tempo no fato. O tempo no fato, referente a uma data cronologicamente anterior, representa o momento da “ocorrência concreta de um evento”, como por exemplo: “no dia 1º de janeiro de 1996, realizou-se o fato de alguém ser proprietário de bem imóvel”16. O tempo do fato configurar-se-á, com relação ao exemplo citado, quando ocorrer o respectivo “lançamento tributário, celebrado por agente competente da Fazenda Pública e devidamente notificado o sujeito passivo”17. Percebe-se que este último aspecto do elemento temporal está diretamente ligado com a inscrição da norma concreta individual no ordenamento do direito posto, enquanto o primeiro subentende a norma geral e abstrata.

O critério espacial, a que este trabalho se dedica, da mesma forma que o elemento temporal, conforme visto, será encontrado explícita ou implicitamente e representará, com exatidão, o local em que ocorreu a ação realizada pelo agente do núcleo da hipótese normativa na RMI. E, assim como no elemento temporal, há o lugar no fato e o lugar do fato, sendo o primeiro o local em que se dá a ocorrência da ação do verbo apontado na hipótese, enquanto o segundo refere-se à “localidade em que se expediu o enunciado jurídico-prescritivo”, o qual compreende a norma concreta individual ingressando no ordenamento do direito posto18. A diferença é que no caso do elemento espacial esses dois locais podem coincidir, pois que “em muitas oportunidades, a produção do fato acontecerá no mesmo local apontado como tendo ocorrido o evento”19.

Ainda sobre as coordenadas espaciais, pode-se dividir esse critério em quatro âmbitos distintos: pontual, regional, territorial e universal. Enquanto o âmbito pontual refere-se a uma coordenada específica que aponta um “determinado local para a ocorrência do fato”, o regional traz informações que levam o intérprete a procurar apenas por acontecimentos ocorridos dentro de uma determinada delimitação geográfica. Não obstante, o territorial é uma delimitação mais genérica “onde todo e qualquer fato, que suceda sob o mato [sic] da vigência territorial da lei, estará apto a desencadear seus efeitos peculiares”20. Por fim, o universal extrapola os limites da competência legislativa uma vez que “alude a qualquer lugar, mesmo que fora do âmbito territorial em que a regra está apta a produzir efeitos jurídicos”21.

Mister ressaltar que uma teoria formulada, a exemplo da proposta epistemológica do professor Paulo de Barros Carvalho, no âmbito do Direito importa sobremaneira aos operadores do direito que pretendam entender, ou “conhecer” a realidade jurídica, lembrando que a “teoria explica a prática e a prática confirma ou infirma a teoria”22. Desta forma, passemos a uma verificação da teoria até então explanada, ainda que de maneira sucinta, para, de fato, analisarmos a aplicação da regra-matriz de incidência tributária considerando o critério espacial do Imposto Sobre Serviços – ISS.

3. Critério espacial do Imposto Sobre Serviços – ISS

O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN ou ISS) surgiu por meio da Emenda Constitucional n. 18, de 01.12.1965, com previsão específica em seu art. 15, e substituiu o Imposto sobre Indústrias e Profissões (IIP)23. A mudança, entretanto, deu-se em aspectos outros além da nomenclatura. O antigo IIP, que teve sua competência inicialmente estatal alterada para municipal, com a Constituição Federal de 1946, previa a tributação sobre o “efetivo exercício de qualquer profissão lucrativa”, enquanto o atual ISS apresenta como elemento material da hipótese de incidência a “efetiva prestação de serviços”24.

A versão inicial do art. 156 previa, em seu inciso IV, a competência tributária municipal no que se refere aos serviços de qualquer natureza, excetuando-se os dispostos no art. 155, inciso I, alínea b, ou seja, serviços de transporte intermunicipal e de comunicação25. Entretanto, o aludido art. 156 sofreu alterações por meio das Emendas Constitucionais n. 3, de 13.03.1993, e n. 37, de 12.06.2002, e hoje está assim definido na Carta Magna:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre [...]

III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. [...]

§ 3º Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:

I – fixar as suas alíquotas máximas e mínimas;

II – excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior;

III – regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”.

Percebe-se, dessa forma, que, por imposição constitucional, “estão fora do campo de incidência do ISS os serviços cuja prestação é contemplada como hipótese de incidência de taxas, instituídas por qualquer das pessoas políticas, bem como do ICMS, de competência dos Estados”26.

Outrossim, o ISS é um imposto municipal, que, embora dependa de lei ordinária, tinha, até 2003, sua “estrutura normativa” regulamentada pelo Decreto-lei n. 406/196827. Conforme o art. 12 do citado Decreto-lei, “considera-se local da prestação do serviço: a) o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador”, excetuando-se os casos de construção civil, nos quais a alínea b deste mesmo artigo prevê ser “o local onde se efetuar a prestação”. Entretanto, por força de decisões reiteradas, o Superior Tribunal de Justiça consolidou, por muito tempo, a exceção como sendo a regra ao estabelecer o local da prestação de serviços como delimitação do critério espacial do ISS28. Notória é a insegurança jurídica advinda da abertura na norma abstrata geral proposta pelo art. 12 do Decreto-lei citado, mais ainda quando o entendimento jurisprudencial inverte as orientações precipuamente dispostas.

Buscando pacificar “os conflitos desencadeados” envolvendo a incerteza de delimitação do aspecto espacial do ISS29, a Lei Complementar n. 116, de 31.07.2003, “fixou a competência do município de acordo com o território em que se situa o estabelecimento prestador – princípio da origem”, ratificando o disposto no art. 12 do Decreto-lei n. 406/196830, entretanto ampliou as exceções a essa regra ao elencar vinte hipóteses em que o serviço “deverá ser considerado como prestado no local onde é executado”. Sílvia Helena Gomes Piva bem delimita o problema a ser enfrentado:

“[...] a utilização de todas essas regras em conjunto, sem que fosse estabelecido um equacionamento entre elas, também tem gerado a guerra fiscal, desta vez porque uma mesma prestação de serviços pode vir a ser tributada mais de uma vez, seja porque um município entende que o ISSQN deverá ser pago no local do estabelecimento, seja porque outro município pretenderá cobrar todos os serviços ocorridos dentro de seus limites territoriais, ainda que o prestador lá não se estabeleça, seja porque os tomadores poderão ser eleitos como responsáveis pelo pagamento do tributo sobre qualquer tipo de prestação de serviços e efetuarão a retenção deste, já recolhido no local do estabelecimento do prestador”31.

Obviamente, as dúvidas acerca do critério espacial do ISS não cessaram, e aos intérpretes do direito cabe buscar meios de responder à questão recorrente: Qual seria o critério espacial de incidência do ISS: o local do estabelecimento prestador ou o local de prestação do serviço32?

3.1. Princípio da territorialidade ou âmbito de vigência territorial da norma

Neste ponto, será conduzida uma análise do fundamento da possível inconstitucionalidade na cobrança do ISS, buscando decidir se seria um caso de extraterritorialidade da norma ou de “confusão doutrinária entre o critério espacial e o âmbito de vigência territorial da norma”, como sugere Aurora Tomazini de Carvalho33.

Explica-nos Baptista, que a territorialidade é “o dado que permite traçar os limites do exercício da competência tributária entre os municípios”34. Para esse autor, o critério material apenas incide na distinção da competência tributária de serviços no âmbito dos estados e municípios.

Já na divisão de competências municipais o aspecto relevante repousa justamente sobre o critério espacial da hipótese normativa do ISS, ou seja, a partir da determinação de “incomunicabilidade territorial” entre municípios35. Continua sua análise acerca do polêmico caso do ISS, estudado neste artigo, para concluir que o equívoco foi do legislador complementar (LC n. 116/2003) ao considerar o local do estabelecimento ou do domicílio do prestador como sendo o local da prestação, uma vez que estaria extrapolando os limites, ainda que implícitos, abalizados pela Constituição Federal, que, no seu entendimento, seria conforme as palavras de Geraldo Ataliba e Aires Fernandino Barreto: “o aspecto espacial da hipótese de incidência é implicitamente extraível do Texto Constitucional. Se o arquétipo é a prestação de serviços, o aspecto espacial só pode ser reduzido ao local onde se efetua a prestação”36.

Mesmo entendimento apresentam Kossar e Somma37, ao considerarem que a territorialidade, enquanto princípio constitucional, deve orientar os conflitos existentes acerca da delimitação do critério espacial do ISS no sentido de que prevaleça o local da prestação do serviço e não o domicílio do prestador, como determina a Lei Complementar n. 116/2003.

Neste ponto, é importante repisar que o local no fato, conforme visto no item 2.1, refere-se diretamente à “delimitação feita pelo critério espacial”, enquanto o local do fato representa o “âmbito espacial de vigência da norma, como a delimitação territorial onde a regra está apta a produzir efeitos jurídicos”38. E é justamente esse o cerne da questão, conforme aponta Carvalho, para quem, no caso específico analisado – qual seja o ISS, cujo critério de delimitação espacial da hipótese de incidência apresenta o subcritério universal, abordado no item 2.1 –, haveria uma recorrente “confusão doutrinária” visto que muito autores consideram inconstitucional “a cobrança do tributo pelo município do local do estabelecimento comercial (LC n. 116/2003), quando a efetiva prestação do serviço (fato jurídico tributário) se dá em outro município”39.

Para a supracitada autora o equívoco tem origem no fato de a maioria das vezes o critério espacial coincidir com o plano de vigência da norma (critério espacial territorial), e, portanto, quando o serviço a ser tributado pelo ISS ocorre noutro município, para esses equivocados doutrinadores, data vênia, seria o caso de inconstitucionalidade da norma tributária devido à extraterritorialidade; quando, na realidade, a resposta residiria no critério pessoal do consequente normativo. Sobre a alegada imposição constitucional de territorialidade, Fortes lembra que “a Constituição é fundada na livre-iniciativa tem por objetivos reduzir as desigualdades e não garantir a territorialidade das leis”40.

Respeitadas as opiniões divergentes, Piva destaca que a lei posta no ordenamento vigente deve ser observada, portanto a LC n. 116/2003, apesar de carecer de certos ajustes, orienta o intérprete no sentido de considerar o estabelecimento prestador como abalizador do critério espacial da hipótese de incidência do ISS, essa sendo, portanto, a regra geral. Percebe-se, outrossim, que o critério material também importa na definição do critério espacial do ISS41. E é nesse exato sentido o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme julgamento do Recurso Especial n. 1.117.121, em 14.10.2009, observado no voto da Relatora Ministra Eliana Clamon (grifo nosso):

“[...] a partir da LC 116/2003, temos as seguintes regras: 1ª) como regra geral, o imposto é devido no local do estabelecimento prestador, compreendendo-se como tal o local onde a empresa que é o contribuinte desenvolve a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação, contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas; 2ª) na falta de estabelecimento do prestador, no local do domicílio do prestador. Assim, o imposto somente será devido no domicílio do prestador se no local onde o serviço for prestado não houver estabelecimento do prestador (sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação); 3ª) nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, acima transcritos, mesmo que não haja local do estabelecimento prestador, ou local do domicílio do prestador, o imposto será devido nos locais indicados nas regras de exceção”.

Os tribunais pátrios vêm adotando a regra matriz de incidência tributária para solucionar os casos que envolvam do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN como forma de uniformizar a jurisprudência. É o caso da incidência, ou não, do ISSQN sobre a importação de serviços prestados no exterior (grifos nossos):

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DE LIMINAR. COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS LEGAIS. ISS. IMPORTAÇÃO DE SERVIÇOS. ART. 1, § 1º, DA LC 116/03. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI BRASILEIRA. EXTENSÃO INDEVIDA DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA. ASPECTO ANTECEDENTE ESPACIAL. FUNDAMENTO RELEVANTE. SUSCITADO INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE PELA 1ª CÂMARA CÍVEL DESTA CORTE. URGÊNCIA. INADIMPLEMENTO DA EXAÇÃO QUE IMPEDE A EMISSÃO DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. DECISÃO REFORMADA. A discussão travada nos autos do mandado de segurança diz, essencialmente, com a incidência, ou não, do ISSQN sobre a importação de serviços prestados no exterior, bem como com a inconstitucionalidade do § 1º do art. 1º da Lei Complementar n. 116/2003, arguida pelo impetrante e reiterada nas razões recursais – Acerca do tema, em 18 de dezembro de 2018, apreciando a Apelação Cível n. 70079536884, a 1ª Câmara Cível desta Corte suscitou incidente de inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, sob o fundamento de que, não obstante a LC 116/2006 determine a incidência do tributo sobre o serviço proveniente do exterior do país, o dispositivo não encontra amparo constitucional, violando o princípio da territorialidade da lei brasileira, afigurando-se inviável que lei municipal alcance fatos geradores ocorridos fora dos limites do país, pois somente a Constituição Federal poderia conferir maior alcance à regra matriz do referido tributo – Caso em que a impetrante contrata empresas com sede na França, as quais prestam seus serviços integralmente no exterior, de modo que, em princípio, a tributação relativa ao ISSQN, que encontra fundamento legal na norma do art. 1º, § 1º, da Lei Complementar n. 116/2003 não se enquadra na regra matriz de incidência tributária estabelecida pela Constituição Federal, notadamente no que diz com o aspecto antecedente espacial, o que demonstra a relevância dos fundamentos trazidos no mandado de segurança – Configurado está, também, o risco de grave dano, considerando que eventual inadimplemento da exação impedirá a expedição de certidão de regularidade fiscal, circunstância que poderá comprometer o desenvolvimento das atividades da agravante. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. (TJ-RS. AI 70080798895/RS, Vigésima Segunda Câmara Cível, Relator Marilene Bonzanini, j. 13.06.2019, DJ 18.06.2019)”

Por fim, houve uma alteração substancial da jurisprudência do STJ, pela qual pode-se afirmar que hoje o local da prestação dos serviços seria, portanto, regra de exceção indicada nos incisos I a XXII do art. 3º da LC n. 116/2003, prevalecendo o local do estabelecimento prestador como regra geral. Observa-se, destarte, o caráter universal do critério espacial da hipótese de incidência normativa do ISS, extrapolando os limites do âmbito de vigência da norma, ao ser desenhado pelos contornos do critério material “prestar serviços”, cuja análise remonta ao critério pessoal “quem presta os serviços” – o estabelecimento prestador.

4. Considerações finais

Tratou-se aqui, de tema de pertinência atual que possui uma inquestionável relevância jurídico-social, pelo qual foram apresentados aportes para novas discussões e abordagens, dentro do âmbito do Direito Tributário, em especial, do critério espacial do Imposto Sobre Serviços (ISS) dentro da regra-matriz de incidência tributária, sob a ótica do construtivismo lógico-semântico. Nessa conjuntura, algumas conclusões se formaram.

Cumpre-se a proposta inicialmente lançada, foi realizada uma pesquisa exploratória acerca do problema da suposta inconstitucionalidade de tributação do Imposto Sobre Serviços – ISS, considerando a dúvida recorrente sobre qual seria o critério espacial de incidência do ISS: o local do estabelecimento prestador ou o local de prestação do serviço. Para tanto, foi conduzido um estudo esclarecedor, ainda que resumido, da proposta epistemológica do professor Paulo de Barros Carvalho, no que concerne à regra-matriz de incidência tributária, analisando os aspectos de delimitação dos critérios da hipótese, em especial o critério espacial, mais relevante para a pesquisa levantada.

Observou-se, no decorrer da construção deste artigo, a discussão na doutrina quanto à aplicação da competência municipal do ISS de acordo com o critério do estabelecimento prestador, primeiramente orientada pelo art. 12 do Decreto-lei n. 406/1968 e depois ratificada pela LC n. 116/2003, considerando o entendimento jurisprudencial do STJ até então, que tornava a exceção (local da prestação do serviço) a regra, bem como a questão envolvendo o princípio constitucional da territorialidade das leis, dada a possibilidade de tributação pelo município fora do âmbito de vigência da norma.

Considerando, como pressuposto inicial, a importante distinção entre critério espacial e âmbito de vigência territorial da norma, bem como o caráter universal do critério espacial da hipótese de incidência do ISS, que extrapola os limites territoriais do âmbito de vigência da norma sem implicar na extraterritorialidade desta, dada a autorização constitucional para tanto – considerando ainda a evolução jurisprudencial do STJ, que passa a entender ser a regra o local do estabelecimento prestador e a exceção o local da prestação do serviço, como preceitua a citada lei complementar – pode-se apontar como uma possível solução para a correta delimitação do caráter espacial da hipótese de incidência do ISS a verificação subsidiária dos critérios pessoal e material da norma tributária, debelando, dessa forma, a insegurança jurídica até então observada.

Referências bibliográficas

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1 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 21.

2 Idem. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 13.

3 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Teoria Geral do Direito: o construtivismo lógico-semântico. São Paulo, 2009. p. 281.

4 Ibidem.

5 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 88-89.

6 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 282.

7 Ibidem.

8 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 284.

9 CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 96.

10 Ibidem, p. 97.

11 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 284.

12 Ibidem, p. 285.

13 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 148.

14 Ibidem.

15 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 281.

16 CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 150.

17 Ibidem.

18 Ibidem, p. 151.

19 Ibidem.

20 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 294.

21 Ibidem, p. 196.

22 Ibidem, p. 197.

23 SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 1014.

24 ARANHA, Luiz Ricardo Gomes. Direito Tributário: aprendendo. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 283.

25 BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 163.

26 Ibidem, p. 178.

27 SABBAG, Eduardo. Op. Cit., p. 1016.

28 DERZI, Misabel Abreu Machado. “O aspecto espacial do Imposto Municipal sobre Serviços”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (org). Imposto sobre serviços – ISS na Lei complementar 116/2003 e na Constituição. Barueri: Manole, 2004. p. 58.

29 Ibidem, p. 61.

30 Ibidem, p. 65.

31 PIVA, Sílvia Helena Gomes. “A determinação do local de incidência tributária do ISS”. Jornal Carta Forense, São Paulo, 2012. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-determinacao-do-local-da-incidencia-tributaria-do-iss/9497>. Acesso em: 29 ago. 2013

32 Vide CARVALHO Aurora Tomazini, 2009; FORTES, 2009; KOSSAR e SOMMA, 2008.

33 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 297.

34 BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 519.

35 Op. Cit., p. 520.

36 ATALIBA, Geraldo e BARRETO, Aires Fernandino (1984) apud BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 525.

37 KOSSAR, Lorena Mainardes; SOMMA, Rafaela Mattioli. Aplicação do princípio da territorialidade ao critério espacial do imposto sobre serviço – ISS. Revista de Direito Público, v. 3, n. 1, Londrina, p. 89-90, jan.-abr./2008.

38 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Op. Cit., p. 295.

39 Ibidem, p. 297.

40 FORTES, Maurício C. Araújo. A regra-matriz de incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2009. p. 14.

41 PIVA, Sílvia Helena Gomes. Op. Cit., p. 3.