O Sistema Tributário Constitucional e os Crimes Fiscais: Circunstâncias Impeditivas da Persecução Penal

The Constitutional Tax System and the Fiscal Crimes: Impeditive Circumstances of the Criminal Prosecution

Nacle Safar Aziz Antônio

Bacharel, especialista e mestrando pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Advogado (Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados) com endereço profissional em Minas Gerais. E-mail: nacle.antonio@sachacalmon.com.br.

Fernando Daniel de Moura Fonseca

Bacharel em Direito pelas Faculdades Milton Campos e em Ciências Contábeis pela Universidade Cândido Mendes. Mestre e Doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. LLM em International Taxation pela New York University of Law. Professor das Faculdades Milton Campos (graduação e especialização) e do IBMEC (LLM). Advogado (Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados) com endereço profissional em Minas Gerais. E-mail: fernando.moura@sachacalmon.com.br.

Recebido em: 12-05-2019

Aprovado em: 27-01-2020

Resumo

Neste trabalho, foram desenvolvidas reflexões acerca dos crimes fiscais, da perspectiva das balizas estruturantes do Sistema Constitucional Tributário. Buscou-se abordar aspectos legislativos e jurisprudenciais pertinentes, culminando, ao final, em conclusões consideradas relevantes para o objetivo de manter a estabilidade na forma de operação do Sistema Tributário e o equilíbrio na relação jurídica havida entre Fisco e contribuinte. Buscou-se criticar a normalização da imputação de condutas delituosas a contribuintes com objetivo arrecadatório. Por fim, cotejando as considerações desenvolvidas ao longo do trabalho, sustentou-se a impossibilidade da persecução penal contra indivíduo que ostente regularidade fiscal, bem como a inexistência de crime em relação a fatos regular e espontaneamente denunciados.

Palavras-chave: sistema constitucional tributário, crimes contra a ordem tributária, regularidade fiscal, denúncia espontânea.

Abstract

In this work, reflections were developed about fiscal crimes, from the perspective of the structural bases of the Constitutional Tax System. Significant legislative and jurisprudential issues related to tax crimes were approached, culminating in conclusions considered relevant to maintain the stability of the way that the Tax System operates and also the balance in the legal relationship between tax authorities and taxpayers. Furthermore, the aim was to criticize the normalization of imputing criminal conducts to taxpayers, as a way of increasing tax collection. Lastly, the impossibility of prosecuting a person who has fiscal regularity (not having a definite tax credit against themselves) was upheld, as well as the inexistence of tax crimes related to facts that are regularly and spontaneously denounced.

Keywords: constitutional tax system, crimes against the tax order, fiscal regularity, voluntary disclosure.

1. Introdução

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil (1988), que completou sua terceira década, apresenta características marcantes e que se evidenciam de forma abrangente ao longo do seu texto. Quer-se dizer, com isso, que o constituinte, ao elaborar o texto da Carta Magna, adotou preceitos aplicados de forma ampla, relacionados a uma gama variada de assuntos.

Há Estados, no entanto, em que se opta pela utilização de texto constitucional conciso e de abrangência limitada, o que doutrinariamente se costuma denominar de constituição sintética, em classificação que varia em razão da extensão do espectro de alcance das normas tidas por constitucionais. Por constituição sintética se entende aquela que tem objeto limitado, comumente voltado a aspectos de organização estatal. Em contraponto, nos casos em que o texto constitucional assume feições mais amplas, costuma-se denominá-lo de constituição analítica, em cujo bojo não há restrição à organização estatal, mas regulação própria e prévia de assuntos tidos como relevantes no momento em que elaborado o texto pelo constituinte originário1.

Sem pretender maiores incursões acerca das teorias doutrinárias relativas à classificação das constituições, basta mencionar, para os restritos objetivos deste trabalho, que se diferenciam, também, as constituições dogmáticas das históricas (classificação quanto ao modo de elaboração) e as constituições materiais das formais (classificação quanto ao conteúdo)2.

É consenso na doutrina que a Constituição Federal de 1988 se classifica, nos específicos aspectos aqui destacados, como analítica – por não se limitar à definição organizacional do Estado, incursionando, como se sabe, na quase totalidade dos assuntos que assumem alguma relevância jurídica –, dogmática/escrita – por seguir a lógica ocidental do civil law, em que predomina sistema jurídico baseado em normas formalmente positivadas, conforme processos burocráticos e organizados de criação normativa – e formal – por terem natureza constitucional todas as normas abrangidas em seu texto, e não apenas aquelas consideradas materialmente constitucionais (organização estatal e direitos fundamentais)3.

Esse panorama é pertinente à demonstração de que a Constituição Federal de 1988 tem como característica marcante a sua grande abrangência normativa. De se considerar o caráter progressista do modelo constitucional brasileiro, que contém a previsão constitucional de diversos direitos sociais, bem como de direitos e garantias fundamentais. Buscou-se, com essa Constituição, que é marca da redemocratização brasileira, definir de forma ampla os fundamentos e objetivos do Estado, com a prévia definição das diretrizes a serem adotadas em cada ponto da estrutura estatal4.

A mesma lógica de amplitude foi adotada no Sistema Constitucional Tributário previsto na Carta Magna. O que se pretende abordar é que o Sistema Tributário brasileiro tem matriz normativa notadamente constitucional. Poderia o constituinte ter se limitado a breves referências à tributação, apenas a mencionando enquanto elemento estruturante da organização estatal. Não o fez, contudo, optando por ir muito além.

Com base na doutrina da teoria dos tributos vinculados e não vinculados5, a Constituição Federal se ocupa de prever as espécies tributárias existentes, além de definir, em claríssima evidência, a repartição de competência entre os entes, com vistas a atribuir a autonomia necessária à consolidação do federalismo previsto no caput do art. 1º do texto e considerado cláusula pétrea – sendo, portanto, imodificável –, conforme previsto no art. 60, § 4º, inciso I. Ademais, consta do texto constitucional previsão de garantias outorgadas ao contribuinte, notadamente aquelas relativas à limitação ao poder arrecadatório estatal. Preocupou-se o constituinte, inclusive, em fazer incursões acerca da repartição de receitas tributárias, norteando, novamente, o direcionamento dos recursos auferidos pelo Estado por via do poder a ele atribuído de buscar no cidadão a fonte para sua manutenção.

Note-se que não há, diante desse panorama, discricionariedade considerável na regulamentação e na gestão do Sistema Tributário, cujas diretrizes são preestabelecidas pela Constituição. O funcionamento do Sistema Constitucional Tributário deve, sempre e necessariamente, pautar-se pelos princípios insculpidos na Constituição, asseguradas invariavelmente as garantias concedidas ao cidadão contribuinte. É que, não se pode negar, há limitações constitucionais ao poder de tributar, limitações estas que não comportam restrições, já que objetivadas pelo próprio constituinte, a quem se atribuiu a incumbência de delinear a estrutura do Estado, conforme os preceitos estipulados no texto então positivado e posteriormente adequado segundo o devido processo legislativo.

Tem-se verificado, contudo, a normalização de práticas notadamente viciadas, por serem dotadas de arbitrariedade, as quais acabam por desvirtuar o bom funcionamento do Sistema Tributário constitucionalmente estruturado. Dentre essas práticas, vem se tornando cada vez mais comum a indevida imputação de condutas criminosas a contribuintes (nem sempre) devedores, especialmente com objetivo arrecadatório. Lança mão o setor fazendário da atuação do setor punitivo estatal (Ministério Público) para obter, diante dos naturais constrangimentos ínsitos à persecução penal, melhores resultados arrecadatórios6.

Não se pode deixar de abordar, em todos os seus aspectos, o problema ora levantado, dada sua influência para a manutenção – ou não – da estabilidade nas relações jurídicas estabelecidas em âmbito tributário. Não se pode admitir, após 30 (trinta) anos de vigência de uma Constituição Federal que se pretenda minimamente garantista em matéria tributária – e em matéria penal7 –, que se torne pacificamente aceitável o desvirtuamento do sistema mediante influências externas, indevidas e desproporcionais no âmbito da relação jurídico-tributária estabelecida entre contribuinte e Fazenda Pública.

O tema assume especial relevância diante dos recentes pronunciamentos dos tribunais superiores a respeito da criminalização do inadimplemento de ICMS declarado, notadamente no âmbito do HC n. 399.109/SC, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, e do RHC n. 163.334/SC, em julgamento no Plenário do Supremo Tribunal Federal (pendente a apreciação dos embargos de declaração).

Considerando a expressiva abrangência do tema, e o escopo limitado deste trabalho, foram definidos como objetos específicos de análise: (i) a relação entre a existência de dívida tributária e a possibilidade (ou não) de imputação de crime fiscal ao contribuinte; e (ii) as repercussões da denúncia espontânea em matéria penal, no âmbito dos crimes contra a ordem tributária. Questiona-se: é possível que haja crime contra a ordem tributária em relação a débito regular e espontaneamente denunciado? Indo mais além: é possível persecução penal relativa a crime fiscal contra indivíduo que não possua débitos regular e definitivamente constituídos contra si (ou seja, contra indivíduo que goza de regularidade fiscal)?

Para se obter satisfatória conclusão, far-se-á brevíssima remontagem histórica acerca da criminalização de condutas vinculadas ao Sistema Tributário e de sua regulamentação no Estado brasileiro. Posteriormente, serão analisados entendimentos jurisprudenciais relevantes acerca da matéria, especialmente o contido na Súmula Vinculante n. 24 do STF. Por fim, referidos entendimentos serão cotejados para analisar as específicas situações aqui propostas.

2. Breve remontagem histórica da criminalização de condutas relacionadas à tributação

Embora não se pretenda, nesta oportunidade, abordar de forma profunda os contornos históricos da matéria – de cuja importância não se olvida –, mostra-se relevante, para os fins a que se destina este trabalho, fazer brevíssima remontagem para contextualizar o tema proposto, com enfoque na evolução legislativa dos ditos crimes tributários.

Mesmo antes da existência de um Estado formal, já era possível identificar a prestação de parcelas do patrimônio individual em prol de objetivos coletivos maiores. Em outros termos, é possível afirmar que o tributo precede ao próprio Estado8. Com a formação dos Estados, os quais, desde sua origem, não possuíam, por si mesmos, economia própria suficiente à realização de seus fins, tornou-se mais evidente o exercício da busca, no patrimônio privado, das fontes de custeio da máquina pública9.

É remota a relação que se identifica entre o objetivo arrecadatório estatal, alcançado (ou buscado) mediante o poder de tributar, e o poder sancionatório estatal, praticado mediante o poder de punir. Não é nova a pretensão de intimidar o cidadão com o risco da punição pessoal corpórea, traduzida essencialmente na privação da liberdade, para desestimular condutas que possam comprometer a efetiva composição das receitas do Estado.

Busca-se, como buscou-se outrora, complementar a solidariedade em que se baseia o Sistema Tributário com o receio de penalidades que vão além da mera busca pela satisfação patrimonial da obrigação tributária.

Maximiliano Führer10 faz interessante remontagem acerca dos aspectos relacionados ao que chamou Direito Penal Tributário ao longo das fases históricas da humanidade. Relata que, na Roma Antiga, o indivíduo que deixasse de prestar as exatas informações ao censor acerca do que se poderia tomar como sendo sua capacidade contributiva11 seria apenado, podendo sofrer sanções físicas, inclusive pena de morte.

Na Idade Média, marcada pelo sistema feudal e por uma intensa carga tributária – especialmente para manter o poder do clero e o luxo da nobreza –, assumiram destaque as penalidades de cunho moral, especialmente as espirituais.

Relata Führer que, após a Idade Média, houve aparente afastamento do Direito Penal como reprimenda às práticas danosas ao objetivo arrecadatório estatal, época em que as punições assumiram feições cíveis e administrativas12.

A utilização do Direito Penal Tributário, contudo, volta a ser percebida à medida que o Estado se torna mais intervencionista13.

Especificamente no Brasil, e considerando seu panorama legislativo, interessa mencionar que o descaminho é a primeira conduta criminosa ligada ao Sistema Tributário de que se tem notícia, o que se deu, originariamente, com o Código Criminal do Império (1830). Análoga reprimenda foi inserta no Código Penal da República (1890) e na versão originária do vigente Código Penal (1940). Apenas houve substancial modificação a partir da chamada Lei da Sonegação Fiscal (Lei n. 4.729/1965). Posteriormente, foi editada a Lei n. 8.137/1990, que instituiu os chamados crimes contra a ordem tributária, inaugurando mudança essencial no sistema dos crimes fiscais brasileiros, ao torná-los crimes de resultado, sendo certo que, na lei anterior, eram crimes de mera conduta14.

Nota-se, então, que no Brasil houve evolução gradativa da criminalização de condutas voltadas à tributação, com relativa influência dos preceitos que nortearam a matéria em âmbito global.

Há aspectos doutrinários e jurisprudenciais que assumem especial importância quanto ao tema. Abordar-se-ão, a seguir, alguns desses entendimentos, propondo-se, em seguida, sua interpretação sistêmica para viabilizar reflexão acerca do recorte temático proposto neste trabalho, qual seja: a análise da possibilidade ou não de se pretender punir penalmente o contribuinte que espontaneamente denuncia tributo inadimplido, como também o contribuinte que esteja em situação regular junto ao Fisco, inclusive com certidão negativa de débitos, não tendo contra si qualquer crédito tributário devidamente constituído.

Ao final, tratar-se-á de introduzir incursões relativas à criminalização, por assim dizer, do inadimplemento de ICMS declarado, concentradas, especialmente, no HC n. 399.109/SC julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, e no RHC n. 163.334/SC, pendente de julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

3. A(s) responsabilidade(s) no direito brasileiro: a autonomia de instâncias e suas repercussões para os crimes fiscais

Vigora, no sistema jurídico brasileiro, a chamada autonomia das instâncias no que se refere à responsabilização pela prática de ilícitos. A variar conforme as disposições legislativas regedoras das responsabilidades civil, administrativa e criminal, um mesmo ato pode vir a ser considerado triplamente ilícito e passível de punição. A diferenciação, em verdade, não é do ilícito em si, mas da responsabilidade do indivíduo que pratica atos com repercussão jurídica. Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma ser possível “praticar atos ilícitos no âmbito cível, penal e administrativo”, mencionando, ainda, a responsabilidade “por atos de improbidade administrativa” e, especialmente para agentes políticos, a “responsabilidade política”15-16.

O Direito se presta, em última instância, à busca pela harmonização das relações sociais, mediante a conformação dos interesses de cada indivíduo, em benefício da boa convivência. Trata-se de tarefa hercúlea, especialmente pela pluralidade dos interesses cuja conformação se almeja, numa sociedade dinâmica que se desenvolve e se modifica em velocidade incompatível com a estrutura que a pretende regulamentar, formada pelo ordenamento jurídico em si e pela organização estatal burocrática, responsável última pela reafirmação da vigência e da eficácia das normas componentes do ordenamento.

Ao conviver em sociedade, ainda que não pretenda, o indivíduo está inserto numa rede comunicativa17 no bojo da qual se relaciona mutuamente com os demais indivíduos. Por se desenvolverem essas relações em ambiente de Direito – já que é o Brasil um Estado (Democrático) de Direito –, não pode o indivíduo pretender agir sem se submeter às suas responsabilidades pessoais. Disso decorre que, ao praticar ato contrário ao direito – e, portanto, considerado ilícito –, está o cidadão sujeito a ser demandado e sancionado, na proporção da gravidade do ilícito cometido e do prejuízo causado em consequência dele.

O sistema jurídico brasileiro poderia ter se baseado na atribuição, a cada relação jurídica, de determinada natureza de responsabilidade, do que decorreria a estipulação de uma única punição a eventual ilícito cometido pelo sujeito, cuja natureza variaria conforme a natureza da responsabilidade atribuída.

De modo diverso, contudo, no sistema brasileiro adotou-se a independência das instâncias, não havendo definição prévia e estanque do âmbito no qual haverá responsabilização. Nos limites estreitos desta abordagem, basta dizer que é possível distinguir as responsabilidades civil, administrativa, criminal e, especificamente nas relações jurídicas que aqui interessam, tributária.

A responsabilidade civil normalmente vincula-se a aspectos patrimoniais18. A administrativa, por seu turno, diz respeito às relações burocráticas estabelecidas entre Estado e cidadão19. A responsabilidade tributária pode ser concebida como uma congregação das duas anteriores, na medida em que aborda obrigação de cunho notadamente patrimonial (o pagamento de uma prestação pecuniária) pelo cidadão ao Estado (sendo, portanto, relação burocrática estabelecida entre particular e Estado). A responsabilidade penal20, considerada a mais gravosa, tem por objetivo a proteção dos bens jurídicos considerados mais relevantes. Note-se que apenas ela pode vir a subtrair do indivíduo o seu direito de liberdade21, além de que será sempre e necessariamente aferida pelo Poder Judiciário.

Neste ponto, algumas observações são relevantes.

Considerando a gravidade da imputação de responsabilidade penal, decorrente da aplicação de penas privativas de liberdade como consequência legalmente estabelecida, esta gera, via de regra, repercussões em âmbito cível e administrativo. Em primeiro lugar, não é possível haver ilícito penal que não seja ilícito civil ou administrativo22. Um ato punível penalmente não pode ser considerado lícito de outra perspectiva sem que haja completa incongruência sistêmica, já que a instância penal é a mais gravosa, capaz de suprimir do indivíduo seu direito mais essencial – a liberdade. Por essa mesma razão é que, em segundo lugar, deve-se destacar que os fatos tidos como comprovados em processo penal consideram-se automaticamente comprovados para efeitos civis e administrativos.

A matéria assume pertinência quando se está a tratar dos crimes contra a ordem tributária, em razão do fato de que se evidencia a abordagem de situações em que condutas vinculadas à relação jurídico-tributária estabelecida entre contribuinte e Fisco, a princípio lastreadas unicamente pela responsabilidade administrativo-tributária, passam a assumir feições relativas a outra instância de responsabilidade: a criminal. Dada sua importância, notadamente pelas graves repercussões dela decorrentes, não se pode deixar de refletir criticamente as posições assumidas a seu respeito.

Embora haja respeitáveis críticas doutrinárias à adoção da autonomia das instâncias, que é tida por Hugo de Brito Machado como ideia totalitarista e que ofende o princípio do ne bis in idem23, não há maiores controvérsias acerca de sua aplicabilidade24. Assim, é certo que há a possibilidade de incriminação de condutas voltadas à tributação (ou à fuga da tributação), desde que previamente estipulados os elementos configuradores no tipo penal pertinente.

Contudo, necessário distinguir, com cautela, o que configura ilícito tributário do que configura ilícito penal, bem como tratar da íntima relação de dependência e complementaridade entre ambas as instâncias, no que se refere aos crimes contra a ordem tributária. Dessa análise decorrerão as reflexões pretendidas, relacionadas à verificação da possibilidade ou não de incriminação de indivíduos insertos em determinadas circunstâncias (quais sejam: inexistência de débito e débito espontaneamente denunciado).

4. A relação entre a existência de débito e a existência de crime:
(im)possibilidade de persecução penal em caso de regularidade fiscal

Tratou-se, no tópico antecedente, das responsabilidades existentes no direito brasileiro, bem como das consequências que delas advêm. Verificou-se que, embora não esteja exonerada de críticas, a autonomia de instâncias tem prevalecido no sistema legislativo e jurisprudencial que se apresenta, havendo independência entre as responsabilidades (e, naturalmente, entre as penalidades) civil, administrativa, tributária e penal. Passa-se, diante desse panorama, a abordar alguns aspectos cruciais para o tema proposto neste ensaio, que trata essencialmente das relações havidas entre a responsabilidade tributária e a responsabilidade penal e de suas consequências da perspectiva da penalização do ilícito.

4.1. A impossibilidade de incriminação do mero inadimplemento

Inicialmente, cumpre abordar, ainda que brevemente, a distinção entre o ilícito tributário e o ilícito penal, da qual decorre, como se verá, a impossibilidade de aplicação de sanções penais ao mero inadimplemento tributário, relevantíssima às reflexões pretendidas.

Verifica-se, da comparação entre o art. 136 do CTN e o art. 1º da Lei n. 8.137/1990, que se aplica, em âmbito tributário, a responsabilidade objetiva25, enquanto em âmbito penal se aplica a responsabilidade subjetiva.

Disso decorre que, para que se aperfeiçoe o ilícito tributário, basta que haja o não recolhimento (ou o recolhimento a menor) do tributo ou o não atendimento de obrigações acessórias definidas na legislação. Para que se aperfeiçoe o ilícito penal, por seu turno, necessária a demonstração do elemento subjetivo do crime. Anote-se que a melhor doutrina, ao tratar do tema, defende que os crimes contra a ordem tributária são necessariamente dolosos, não se admitindo sua configuração culposa26.

É pertinente a adoção da posição segundo a qual a fraude se apresenta como elemento básico de distinção entre o ilícito meramente fiscal e o ilícito que assume feições penais. Não basta que haja a supressão do tributo – que é, sim, necessária à configuração do crime, especialmente após o advento da Lei n. 8.137/1990, que abandonou o modelo anterior que previa a sonegação fiscal como crime de mera conduta, tornando-a crime de resultado –, sendo necessário que a supressão se dê por meio fraudulento. É preciso que o contribuinte, de forma consciente (dolosa, como visto), pratique conduta que configure fraude. Disso decorrem algumas conclusões naturais: (i) não é possível a incriminação do simples inadimplemento, que se configura como mero ilícito tributário27, sem repercussões penais, que apenas existem em caso de fraude dolosamente cometida; e (ii) nos casos de débitos de pessoas jurídicas, para que se pretenda a persecução penal dos sócios-administradores, necessariamente deve haver prévia perquirição acerca dos requisitos previstos no art. 135 do CTN.

A impossibilidade de incriminação do simples inadimplemento é amplamente reconhecida pela doutrina especializada, bem como pelos Tribunais Superiores28:

“Convém advertir que, inadimplir uma prestação tributária não é crime, portanto, o intérprete deve agir com cautela para não admitir a prisão civil por dívida, sendo que, no tipo penal do inciso II, a omissão dolosa deverá ser contemplada com manobras desleais realizadas pelo contribuinte, como por exemplo, a falsificação no conteúdo da declaração de imposto de renda retido na fonte, cuja entrega é um dever instrumental do empregador para com a Administração Tributária, e em consequência, deixar de repassar os tributos descontados e devidos efetivamente de seus empregados”29.

Relevante observar que, além dessa conclusão já percebida de ser inviável a incriminação pelo simples inadimplemento, já largamente abordada na doutrina e jurisprudência, é igualmente impossível a incriminação quando não houver inadimplemento.

Em outros termos, não há como vislumbrar responsabilidade penal quando não houver responsabilidade tributária. Por questões lógicas, essa ideia, que assume centralidade neste trabalho, será retomada adiante, após tratada a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo suprimido e a inexistência de crime material contra a ordem tributária antes do lançamento do tributo, conforme previsto na Súmula Vinculante n. 24 (STF).

4.2. A extinção da punibilidade pelo pagamento: evolução legislativa

Conforme já delineado neste trabalho, não se pode cogitar a existência de ilícito penal, no âmbito dos crimes contra a ordem tributária, em razão do simples inadimplemento da obrigação tributária30, sob pena de afronta à máxima, há muito consolidada, de que não se aplica prisão por dívida. É que, embora se trate de relação jurídica de direito público – havida entre Estado e contribuinte –, sendo, ainda, obrigação ex legis, não se afasta a constatação de que o inadimplemento configura ilícito apenas tributário, somente assumindo feições penais se decorrente de fraude dolosamente cometida e previamente tipificada.

Afirmou-se, ademais, que também não se pode cogitar a existência de ilícito penal caso inexistente qualquer inadimplemento. O que se pretende defender é que, não sendo o indivíduo devedor de tributo, o que equivale a não ter, contra ele, crédito tributário definitivamente constituído, inviável que se cogite a existência de ilícito penal (constatação a fortiori: se o só inadimplemento não pode ser punido penalmente, com ainda mais razão não se pode punir penalmente aquele que nem mesmo é inadimplente, já que o ilícito penal pressupõe, necessariamente, o ilícito tributário).

Uma das razões para tanto reside no fato de que, na atual conformação legislativa e jurisprudencial brasileira, o pagamento do crédito tributário possui o condão de extinguir a punibilidade pelo eventual crime contra a ordem tributária.

Contudo, nem sempre foi assim. A questão é intrincada na doutrina, tendo sido objeto de diversas controvérsias e oscilações legislativas. Hugo de Brito Machado atribui a mencionada instabilidade ao embate de duas linhas doutrinárias, que assim resume:

“Essa instabilidade legislativa explica-se pela disputa entre duas correntes de pensamento jurídico penal em nosso País. Uma, a sustentar que a pena há de ter sempre um fundamento ético, e que admitir a extinção da punibilidade pelo pagamento dos tributos devidos seria criar um inadmissível privilégio em favor dos abastados, os quais poderiam sempre escapar da punição e diante dessa possibilidade apostariam na hipótese de não serem apanhados. A outra, a sustentar o caráter utilitarista da pena, que teria por finalidade coagir o contribuinte ao pagamento”31.

Em síntese, tem-se que a Lei n. 4.729/1965 definiu que seria extinta a punibilidade nos casos em que fosse quitada a dívida em momento anterior ao início da “ação fiscal própria” (regra semelhante àquela adotada pelo CTN em seu art. 138, ao tratar da denúncia espontânea).

Posteriormente, o Decreto-lei n. 157/1967 definiu que a extinção da punibilidade pelo pagamento poderia ocorrer mesmo depois de iniciada a ação fiscal, desde que acrescido ao valor do tributo o das multas devidas.

A situação foi mantida até o advento da Lei n. 8.137/1990, que instituiu os chamados crimes contra a ordem tributária. Quanto à extinção da punibilidade, definiu o legislador como marco temporal limite para o pagamento, na versão originária do texto, o do recebimento da denúncia.

Seus efeitos foram obstados com a superveniência da Lei n. 8.383/1991, que implantou o chamado terrorismo fiscal32: suprimiu-se qualquer possibilidade de extinção de punibilidade em razão do pagamento.

Em agosto de 1993, estipulou-se, com a Lei n. 8.696/1993, a extinção da punibilidade pelo pagamento, desde que realizado antes de encerrado o respectivo procedimento administrativo e acrescido dos acessórios legalmente estabelecidos. O dispositivo, contudo, foi vetado pelo Poder Executivo, apenas vindo a norma a ser de fato implementada em 1995, com a edição da Lei n. 9.249/1995, em cujo art. 34 foi prevista a extinção da punibilidade pelo pagamento, retomando-se o recebimento da denúncia como marco temporal.

Durante a vigência dessa regra – que adotava o recebimento da denúncia como momento limítrofe para a realização do pagamento extintivo de punibilidade –, o STF já admitia, embora com controvérsias, os mesmos efeitos quando quitada a dívida durante o curso da ação penal. Esse entendimento foi formalizado com o advento da Lei n. 10.684/2003, após o que restou pacificada a matéria33.

Anote-se que o STJ, em recente oportunidade, reiterou esse entendimento, dispondo expressamente que “o adimplemento do débito tributário, a qualquer tempo, até mesmo após o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é causa de extinção da punibilidade do acusado”34.

Conclui-se, portanto, que embora tenha havido oscilações acerca dos efeitos do pagamento para fins penais, no âmbito dos crimes contra a ordem tributária, certo é que, no cenário que ora se apresenta, pode-se tomar como premissa que, independentemente do momento em que efetuado, é o pagamento causa extintiva da punibilidade, constituindo-se como verdadeira limitação ao exercício do poder punitivo estatal35. Anote-se, por oportuno, que as demais circunstâncias que extinguem o crédito tributário (art. 156, CTN) também possuem, em geral, o mesmo efeito extintivo da punibilidade, por aplicação analógica em benefício do réu, admitida no Direito Penal36.

Conforme aventado neste tópico, a percepção de que o pagamento (ou, em termos mais amplos, a extinção) do tributo se constitui como impedimento à manutenção da pretensão punitiva estatal, por suprimir a punibilidade necessária à aplicação de sanções penais, é indicativa de uma das conclusões a que se pretende chegar neste trabalho: é inviável a persecução penal contra indivíduo que não tenha, contra si, crédito tributário devidamente constituído. Ora, se com a extinção do tributo extingue-se a punibilidade, a fortiori esta não se configura quando inexistente o débito, ou quando este nem sequer chegou a existir.

Neste ponto, crucial que se analise, mesmo que de forma sintética, a exigência, para a configuração de crime contra a ordem tributária, de lançamento definitivo do tributo.

4.3. O lançamento tributário formal como pressuposto para a existência de crime (Súmula Vinculante n. 24): a necessária dupla tipicidade para o aperfeiçoamento de crime contra a ordem tributária

Trabalhou-se, nesta oportunidade, a diferenciação entre as responsabilidades existentes no modelo jurídico-sancionatório brasileiro, que adota a chamada autonomia de instâncias. Viu-se que, em razão disso, viável que um mesmo ato configure ilícito civil, penal, administrativo e tributário. Demonstrou-se que é inviável cogitar a existência de ato considerado ilícito penal, sem que o seja na seara cível/administrativa/tributária, em razão da maior gravosidade que afeta as condutas tipicamente tidas como criminosas.

O que se pretende abordar, neste ponto, é que, nos crimes fiscais, existe íntima e necessária relação entre as esferas penal e tributária. Dito de outro modo, tem-se como conditio sine qua non para a existência de ilícito penal que o mesmo fato seja tido como ilícito tributário.

Com efeito, considerando que se está a tratar de crimes de resultado, não se pode conceber a sua configuração sem que tenha havido a supressão de tributo, considerada, objetivamente, como transgressão à lei tributária. Por isso é que o indivíduo que não é devedor de tributo não pode, em hipótese alguma, ter praticado crime material contra a ordem tributária, sob pena de se estar tachando de sonegador – ou seja, infrator em âmbito penal – aquele de quem jamais se exigiu qualquer obrigação – em âmbito cível e administrativo.

É condição, então, para a existência de crime que haja crédito tributário, sendo igualmente necessário que o agente responsável pelo crime seja o mesmo de quem se exija o tributo. É o que lecionam Cezar Roberto Bittencourt e Luciana de Oliveira Monteiro:

“Caso contrário, poderemos chegar à hipótese em que a sentença penal condene o ‘sonegador’ a uma pena determinada (pena de prisão, por exemplo), que, no entanto, não terá eficácia alguma na jurisdição extrapenal (fiscal/tributária), ante a impossibilidade de expropriar os bens do devedor, em razão da inexistência do débito fiscal em relação ao Fisco. Com efeito, o suposto ‘sonegador’ seria devedor de uma sanção penal, mas não devedor de tributos. Em outros termos, é impossível existir crime tributário de qualquer espécie sem que, simultaneamente, configure transgressão de dever tributário (ilícito fiscal). Contudo, a recíproca não é verdadeira: poderá haver infringência de norma tributária (não pagamento de tributo, ou pagamento insuficiente), configurando a antijuridicidade tributária, sem que se configure, ao mesmo tempo, fato delituoso. O ilícito tributário é pressuposto do ilícito penal! Dito de outra forma, a configuração de crime resta excluída se a conduta do agente estiver autorizada pelo Direito Tributário, pois a antijuridicidade penal decorre da antijuridicidade tributária: realmente, não havendo o ilícito tributário, não se pode falar em ilícito penal”37.

Seguindo essa linha, o Supremo Tribunal Federal editou a importantíssima Súmula Vinculante n. 24, que reconhece a impossibilidade de que haja crime antes do lançamento definitivo do tributo. É ver seu teor, in verbis:

“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei n. 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.

Em termos técnicos, definiu a Suprema Corte que o lançamento definitivo do tributo é condição objetiva de punibilidade38 (ou elemento normativo do tipo39), pois não se pode suprimir tributo sem que se tenha definido quem é, de fato, o responsável pela obrigação tributária relacionada ao crime fiscal.

Essa definição é feita pela autoridade administrativa, mediante processo administrativo sob a perspectiva do contraditório. Se é assim, não se poderia, mesmo, imputar crime sem que o indivíduo tivesse encerrado o exercício de seu direito de defesa administrativa, por meio do qual se questiona a própria atribuição de responsabilidade pessoal sobre o tributo. Em suma, se é necessário que o réu em ação penal seja devedor em âmbito fiscal, e se o débito só se configura com a conclusão do processo administrativo, apenas nesse momento é possível cogitar a existência de crime. Essa é a inteligência da Súmula.

Indo além em sua interpretação, decorre da lógica que, se não há crime antes de encerrado o processo administrativo, tampouco haverá se não houver qualquer lançamento – ou seja, se não houver, contra o sujeito, a lavratura de qualquer auto de infração do qual possa se defender (ou sua eventual inclusão como coobrigado em débito de pessoa jurídica).

É que, como visto, apenas com o lançamento tributário em desfavor especificamente do sujeito contra o qual se pretende efetuar denúncia penal, resta-lhe garantida a oportunidade de defesa administrativa, tida pelo STF como direito fundamental do contribuinte. Finda essa etapa, com a confirmação do débito e, sendo o caso de responsabilidade pessoal por débito de pessoa jurídica, da vulneração ao art. 135 do CTN (prática de ilícito justificadora da responsabilização pessoal), aí sim seria admissível a denúncia contra o indivíduo.

Não fosse assim, serviria a ação penal apenas para o censurável fim de constranger o contribuinte a pagar tributo muitas vezes considerado indevido, o que, inclusive, é práxis que vem se tornando cada vez mais comum, mas que merece críticas. E essa crítica encontra apoio nas opiniões externadas pelos Ministros Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim e Cezar Peluso, ao votarem no HC n. 81.611/DF, acórdão que serviu de base à edição da Súmula Vinculante n. 24:

Sepúlveda Pertence:

À incriminação e à efetiva repressão penal dos crimes contra a ordem tributária, na lei vigente, não se podem atribuir inspirações éticas, na medida mesma em que se admite a extinção de sua punibilidade pela satisfação do tributo devido: a construção da sanção penal tem, assim, no contexto, o significado moralmente neutro de técnica auxiliar da arrecadação.

Vá lá que se admita esse verdadeiro abuso da incriminação penal.

O que, no entanto – como já longamente se demonstrou, em particular, no voto do Ministro Jobim – princípios e garantias constitucionais eminentes decididamente não permitem é que, pela antecipada instauração da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia de questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório a que se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal.

Nelson Jobim:

¿Um cidadão vai ser compelido a pagar por estar sob pressão do Ministério Público, que deseja fazê-lo?

Ora, estamos suprimindo um direito constitucional da defesa na esfera administrativa.

Não se pode se defender nessa esfera, porque corre-se o risco do processo penal, não permitindo certidão negativa para qualquer outro tipo de situação.

Não se pode fazer concurso público, não se pode fazer nada.

A pessoa fica sem direitos, congelada, porque o Ministério Público resolveu denunciá-la.

Cezar Peluso:

E isso me recorda frase muito expressiva de CLAUS ROXIN: o Direito Penal é um mal necessário e, quando se transpõem os limites da necessidade, resta apenas o mal. Acho que é este o caso com que nos defrontamos, Sr. Presidente. Não há como nem por onde convalidar interpretação que, com o devido respeito, permita o uso de remédio de caráter penal, para obter resultado tributário que é impossível de ser logrado na via civil. E, aliás, em postura de todo em todo contrária à tradição desta Corte, que, em, pelo menos, três súmulas, reafirmou a inadmissibilidade jurídica de expedientes, como o da hipótese, com que o Fisco costuma, vez por outra, valer-se para arrecadar tributo (súmulas 70, 323 e 547)”.

Parece evidente, assim, a inviabilidade de persecução penal em face de indivíduo que não tenha, contra si, crédito tributário devidamente constituído (em outras palavras, contra o qual não haja lançamento definitivo, nos termos da Súmula Vinculante n. 24).

Ocorre, contudo, que sob o pretexto de abarcar todos os indivíduos eventualmente envolvidos em práticas consideradas ilícitas – muitas vezes, diga-se, não o sendo, ao menos da ótica do Direito Penal –, as denúncias têm sido formuladas com a inclusão mesmo de indivíduos que ostentam essa regularidade fiscal, incompatível com a imputação de crime de sonegação. Essa prática, claramente arbitrária e potencialmente danosa ao Sistema Tributário Constitucional, deve ser avaliada criticamente, por desvirtuar o regular desenvolvimento das relações jurídicas havidas entre Fisco e contribuinte.

Para ilustrar, cite-se o recorrente caso, aqui já mencionado, de se incluir, no polo passivo da ação penal, sócios-administradores da pessoa jurídica devedora de tributo. Nesses casos, há dívida tributária, eventualmente até mesmo há lançamento definitivo. Contudo, não há perfeita coincidência entre o sujeito passivo da ação fiscal e o sujeito passivo da ação penal (sujeito ativo da conduta delituosa).

Ocorre que, das premissas aqui delineadas, infere-se que essa coincidência é pressuposto da própria existência do ilícito penal – e, ainda mais, da ação penal –, o qual não pode existir caso não haja, em relação ao mesmo indivíduo, constatação formal do cometimento de ilícito administrativo-tributário.

Veja-se que o ilícito tributário, sem o qual não há que se cogitar em persecução penal, não é apurado pela autoridade judiciária, muito menos por aquela cuja competência material restringe-se a questões penais. É, de modo diverso, apurada em processo administrativo próprio, respeitada a ampla defesa e o contraditório, conforme garantido pela Constituição Federal40. Se é assim, e se há exigência cogente de que o ilícito penal seja, antes, ilícito fiscal, evidente que, a menos que haja lançamento definitivo contra determinado indivíduo, ele não pode ser submetido às angústias de uma ação penal.

No caso de débitos de pessoas jurídicas, a inclusão de outro sujeito passivo, na qualidade de responsável (tributário), depende da demonstração dos pressupostos próprios da responsabilidade, previstos, no caso destacado, no art. 135 do CTN41.

Referido dispositivo exige, para fins de extensão da responsabilidade tributária, que o agente tenha atuado com excesso de poderes ou infração de lei. O mero inadimplemento tributário, além de não gerar responsabilidade penal, também não é suficiente a configurar responsabilidade solidária do sócio-gerente, conforme definido na Súmula n. 430 do STJ.

Congregando as considerações até aqui desenvolvidas, tem-se que, para que seja réu em ação penal pessoa física, em virtude de um débito cujo contribuinte é pessoa jurídica, necessário que haja lançamento administrativo efetuado contra a pessoa física, para que se apure a existência, ou não, das circunstâncias previstas no art. 135 do CTN. Isso é que o se chamou, acima, de apuração do ilícito pela autoridade administrativa, a única competente para tanto (art. 142, CTN).

A doutrina segue a mesma linha.

Cezar Bitencourt e Luciana Monteiro lecionam que, nos crimes fiscais, apenas se pode cogitar a existência de responsabilidade do administrador ou sócio nas hipóteses do art. 135 do CTN, caso em que apesar de “não serem, a priori, solidariamente responsáveis pelo pagamento dos débitos da pessoa jurídica, podem figurar como sujeito ativo dos crimes contra a ordem tributária”42.

O que se faz ao atuar sem observar essa lógica de submissão da responsabilidade penal à previa apuração administrativa do ilícito tributário é afrontar os atributos básicos do Direito Penal, como o de operar como ultima ratio no sistema jurídico.

Ademais, se há exigência, para a configuração do crime, de que haja fraude na conduta do agente, e sendo a fraude também elemento motivador da extensão da responsabilidade tributária, caso o próprio Fisco entenda não ser o caso de estendê-la, tampouco deveria fazê-lo o Ministério Público, especialmente por tratar de responsabilidade ainda mais gravosa: a penal.

Portanto, o que se conclui é que, não sendo o indivíduo devedor de crédito tributário definitivamente constituído, não há que se cogitar a existência de crime contra a ordem tributária por ele cometido, sendo arbitrário e ilegal que se submeta à persecução penal em casos tais, pois, como amplamente reconhecido, a própria existência da ação penal já representa constrangimento repugnável.

5. A denúncia espontânea e os crimes contra a ordem tributária

Do que se apresentou até aqui, e de forma a introduzir este tópico, altamente relevante para os objetivos pretendidos, importa retomar as seguintes passagens, tidas como premissas: (i) embora não esteja a salvo de críticas, adota-se, no Brasil, o sistema da autonomia ou independência de instâncias, sendo passível o sujeito de submissão a sanções cíveis, administrativas, tributárias e penais em razão de um mesmo ato/fato; (ii) para que haja aplicação de sanção penal é necessário, contudo, que a conduta se enquadre no tipo penal, em todos os seus elementos; (iii) em linhas gerais, distingue-se o ilícito penal do tributário pela necessária ocorrência de fraude dolosamente cometida; (iv) não é possível cogitar a persecução penal pelo inadimplemento tributário, mas é igualmente inviável cogitá-la sem que haja inadimplemento (em outros termos: é impossível haver crime fiscal se inexistir ilícito fiscal apurado administrativamente); e (v) na atual configuração legal e jurisprudencial, o pagamento do tributo gera a extinção da punibilidade pelo eventual crime contra a ordem tributária.

Abordar-se-á, neste ponto, o instituto da denúncia espontânea, bem como suas repercussões para fins sancionatórios.

Demonstrar-se-á que, por se tratar de instituto que tem por efeito a exclusão do ilícito tributário, torna-se naturalmente impossível a configuração de ilícito penal quanto a fato regularmente denunciado, em razão da dupla tipicidade necessária para a configuração dos crimes contra a ordem tributária.

5.1. A denúncia espontânea, seus fundamentos e seus efeitos

A denúncia espontânea tem previsão no art. 138 do Código Tributário Nacional43, diploma normativo que, como se sabe, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com status de lei complementar. Trata-se, portanto, de instituto típico de Direito Tributário, com objetivos preestipulados, sendo sua utilização, exatamente em razão de sua previsão expressa, direito subjetivo do contribuinte, desde que observados os seus requisitos, inexistindo campo de discricionariedade fiscal para sua efetivação.

Presta-se a denúncia espontânea a possibilitar que o contribuinte que tenha deixado de cumprir determinada obrigação tributária possa se redimir com o Fisco, autodenunciando-se e promovendo o respectivo pagamento, se for o caso44. O benefício concedido ao denunciante é a exclusão das penalidades decorrentes de seu ato, notadamente as multas provenientes do inadimplemento, critério objetivo que configura o ilícito tributário45.

Os requisitos para que se configure a denúncia espontânea – cuja observância é apreciada pelo ente público destinatário mediante processo administrativo – são a confissão: (i) ofertada pelo contribuinte, acompanhada, sendo o caso, do pagamento integral do tributo, acrescido de correção monetária e juros moratórios; (ii) efetuada em momento que anteceda a qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização que guarde relação com a infração denunciada.

A lógica que justifica a denúncia espontânea é a recuperação, pelo Estado, de valores subtraídos de sua arrecadação por negligência ou por dolo do sujeito passivo.

O instituto viabiliza que o contribuinte opte por se redimir da equivocada escolha que fizera, entregando ao credor a quantia dele suprimida, devidamente corrigida e acrescida de juros de mora. Viabiliza, ainda, a regularização da situação do contribuinte que, sem intenção, deixou de observar determinada obrigação, o que é amplamente factível, especialmente considerando a complexidade do burocrático sistema tributário brasileiro.

Por um lado, ganha o Estado, que recupera receitas antes suprimidas, por iniciativa do próprio contribuinte, não havendo necessidade da utilização de todo o aparato estatal na busca pelo adimplemento tributário. É certo que considerável parcela dos tributos inadimplidos não é recuperada pelas vias ordinárias (lançamento administrativo e posterior execução fiscal), por diversas razões. Possibilitar a devolução voluntária por parte do contribuinte, de forma a recuperar receita incerta sem incorrer em gastos adicionais, é algo positivo à administração tributária.

Por outro lado, ganha o contribuinte, que tem a possibilidade de regularizar sua situação fiscal, seja pelo arrependimento de ato praticado voluntariamente, seja pela percepção de erro cometido por negligência. Com a denúncia espontânea, evita-se o lançamento tributário, no qual haveria a imputação das penalidades legalmente previstas para a infração cometida46.

Vê-se que a denúncia espontânea, no direito brasileiro, tem o condão de excluir do ato sua ilicitude, excluindo, por isso mesmo, a responsabilidade do contribuinte inadimplente pelas penalidades decorrentes do ilícito tributário. É o que leciona Aliomar Baleeiro:

Libera-se o contribuinte ou o responsável e, ainda mais, representante de qualquer deles, pela denúncia espontânea da infração acompanhada, se couber no caso, do pagamento do tributo e juros moratórios, devendo segurar o Fisco com depósito arbitrado pela autoridade se o quantum da obrigação fiscal ainda depender de apuração.

Há, nessa hipótese, confissão e, ao mesmo tempo, desistência do proveito da infração.

A disposição, até certo ponto, equipara-se ao art. 13 do CP: ‘o agente que, voluntariamente, desiste da consumação do crime ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados’.

A cláusula ‘voluntariamente’ do CP é mais benigna do que a ‘espontaneamente’ do CTN, que no parágrafo único desse art. 138 esclarece só ser espontânea a confissão oferecida antes do início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionada com a infração.

A contrario sensu, prevalece a exoneração se houve procedimento ou medida no processo sem conexão com a infração: benigna amplianda”47.

Na mesma linha é a doutrina de Sacha Calmon Navarro Coêlho, que assim discorre ao tratar dos efeitos da denúncia espontânea em face da natureza das multas tributárias:

“Destarte, para os fins do art. 138, não faz mais sentido distinguir entre multas moratórias (não-punitivas) e multas propriamente ditas e, pois, irrecusavelmente punitivas. Todo dever tributário, seja de dar (pagar tributo), seja de fazer ou não fazer (deveres acessórios), uma vez descumprido, acarreta a aplicação de uma sanção. Ora, se o infrator se adianta, denunciando-se e pedindo perdão, a responsabilidade fica elidida, premiados, assim, os que se arrependem ou os que, tendo sido negligentes, procuram espontaneamente reparar as infrações cometidas, sanando-as, a bem da Fazenda Pública”48.

Natural a conclusão de que, uma vez realizada regularmente a denúncia espontânea, resta elidida a responsabilidade do contribuinte pelo ato ilícito anteriormente praticado, o que decorre de expressa previsão de lei complementar.

Por se tratar de instituto de Direito Tributário, regulado pelo CTN, está-se tratando da responsabilidade tributária (ou, em outros termos, da responsabilidade decorrente de ilícito tributário).

Considerando ser instituto típico, legalmente previsto, importa perquirir, para os objetivos do presente trabalho, se a denúncia espontânea, ao excluir a ilicitude tributária, repercute na seara penal, e em que medida se efetiva a eventual repercussão. Questiona-se: a denúncia espontânea, excludente da responsabilidade pelo ilícito tributário, inviabiliza a persecução penal relativa à infração a que diz respeito?

A resposta positiva (no sentido da inviabilidade da persecução penal em casos tais) – embora contrária à parte da jurisprudência pátria –, baseia-se em dois fundamentos básicos, a serem desenvolvidos a seguir: (i) sendo o ilícito penal dependente da existência de ilícito tributário (dupla tipicidade intrínseca aos crimes contra a ordem tributária), deixa de existir em razão dos efeitos da denúncia espontânea, que é excludente da ilicitude tributária; e (ii) por se tratar de débito não contencioso, não há lançamento tributário, o que inviabiliza a configuração de crime material contra a ordem tributária (Súmula Vinculante n. 24).

5.2. A exclusão do ilícito não penal e a consequente exclusão do ilícito penal: relação de necessária complementaridade e dependência

Ao longo deste trabalho, foi demonstrado que, no direito brasileiro, vigora a chamada autonomia de instâncias, sendo a responsabilidade do indivíduo auferida em diferentes perspectivas. Há ilícitos considerados cíveis, outros administrativos, outros tributários e outros penais. Em cada situação, a variar conforme as normas de regência, aplicam-se as penalidades respectivas. Em razão da independência entre as responsabilidades, é possível que um só ato dê ensejo a penalidades cumulativas.

Viu-se que a responsabilidade penal é tida como a mais grave, especialmente por estar relacionada aos bens jurídicos mais caros à sociedade, os quais acabam recebendo a proteção da jurisdição penal: a única capaz de retirar do indivíduo sua liberdade.

Os crimes contra a ordem tributária se configuram por condutas atinentes à relação jurídica estabelecida entre Fisco e contribuinte, mas com gravidade tal, da perspectiva do legislador contemporâneo, que torna justificável a aplicação de sanções não apenas administrativas, mas também penais (com a eventual privação da liberdade do sujeito ativo da conduta delituosa).

Demonstrou-se também a íntima relação existente entre a ilicitude tributária e a ilicitude penal atinente aos crimes fiscais, relação esta que decorre da necessária supressão de tributo para que se materializem os tipos penais insculpidos no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, os quais são crimes de resultado. O que se tem, em última instância, é a impossibilidade de que haja crime contra a ordem tributária sem que a conduta do agente configure ilícito tributário49.

Verificou-se que a denúncia espontânea, instituto de Direito Tributário, tem como efeito a exclusão da ilicitude fiscal, em razão da qual fica o contribuinte liberado das penalidades dela decorrentes. Nesta hipótese, o indivíduo, que antes estava submetido às consequências do ilícito tributário cometido (que se configura, como visto, pelo simples inadimplemento50), dele liberta-se, assumindo posição de integral regularidade para com o Fisco. Exclui-se, em todos os seus termos, o ilícito tributário, por expressa previsão contida em texto de lei complementar (art. 138 do CTN).

Se é assim, e se o ilícito penal pressupõe, necessariamente, o ilícito tributário, então a denúncia espontânea tem repercussões em seara penal, por tornar as hipóteses de delitos fiscais crimes impossíveis, já que não podem se materializar sem que haja infração à legislação tributária.

Em outros termos, tem-se que a autodenúncia praticada pelo contribuinte lhe gera a exoneração tanto em relação às penalidades tributárias (multas previstas na legislação) quanto às penais (inclusive privação da liberdade), justamente em razão da dupla tipicidade intrínseca aos crimes contra a ordem tributária, cuja configuração se impossibilita pelos efeitos da denúncia espontânea.

Essa posição, embora encontre obstáculos na jurisprudência51, conta com apoio na melhor doutrina.

Relevantíssima a menção às lições de Misabel Derzi, que, após evidenciar a fraude como elemento constitutivo dos crimes fiscais e explicar a relevância de se apreciar a ilicitude da ótica da legislação tributária – que trata, materialmente, do assunto pertinente a essa espécie de crime –, assim discorre:

“Então, a conduta típica – apropriar-se de coisa alheia – só é penalmente relevante se for antijurídica, contrária ao Direito. Se a apropriação estiver autorizada em outro ramo jurídico (exercício regular de direito, estado de necessidade etc.), não poderá trazer consequências penais. Igualmente, os delitos contra a ordem tributária supõem não só a realização das condutas “típicas”, descritas na lei penal, como ainda, necessariamente, a infringência dos deveres tributários. Se o Direito Tributário autoriza o comportamento, ou exclui a responsabilidade tributária, automaticamente não mais se configura o crime. Por isso é que, excluindo o art. 138 do CTN, em face da denúncia espontânea, a responsabilidade tributária por infração, elidida fica a responsabilidade criminal”52.

Também esta foi a posição adotada por Geraldo Ataliba em parecer ofertado à diretoria da empresa Pau Brasil Engenharia e Montagens Ltda.53:

“A lei penal tributária tem sua inteligência e aplicação dependentes da lei tributária. – A lei penal ‘reforça’ as obrigações e deveres tributários. – O ilícito tributário, no caso, é ilícito penal; substancialmente são a mesma coisa. – O desaparecimento do ilícito tributário, pela espontaneidade, extinguiu a pretensão punitiva penal. – Lei ordinária não revoga lei complementar. – Persiste vigente e eficaz o art. 138 do CTN. – Interpretação que lhe retira a eficácia equivale a dá-lo por revogado. – Não é lícito ao aplicador esvaziar a eficácia do art. 138 do CTN. – A autodenúncia extingue a responsabilidade penal”54.

Eis, então, a posição que se defende: a denúncia espontânea, ao retirar a ilicitude tributária do ato praticado pelo contribuinte denunciante, retira-lhe, também, a ilicitude penal, visto que esta pressupõe, necessariamente, aquela, em razão da dupla tipicidade ínsita aos crimes contra a ordem tributária.

Assim, não se pode cogitar a persecução penal em razão de fato regularmente denunciado, por ser inviável imputar ao indivíduo responsabilidade penal quando a legislação não lhe imputa, ao mesmo tempo, responsabilidade tributária. A denúncia espontânea é, frise-se, instituto típico de Direito Tributário, cujo efeito é tornar livre de ilicitude (e, portanto, de penalidade) o ato denunciado (art. 138, CTN).

Há, ainda, um segundo fundamento, este pouco abordado na doutrina e na jurisprudência, que também leva à mesma conclusão: a inexistência de pretensão punitiva, em âmbito criminal, de fatos denunciados espontaneamente, em razão da inexistência de lançamento tributário, tido como elemento essencial à configuração do tipo penal. Passa-se, adiante, a abordá-lo de forma individualizada.

5.3. O caráter não contencioso do débito denunciado espontaneamente: inexistência de lançamento a consubstanciar crime contra a ordem tributária

Demonstrou-se, no tópico anterior, a inexistência de pretensão punitiva estatal nos casos de denúncia espontânea, em razão da necessária dupla tipicidade para a configuração de crimes contra a ordem tributária. Havendo a exclusão da responsabilidade tributária, igualmente se vê excluída a penal, já que não há crime fiscal que não importe em ilícito tributário. Essa conclusão corrobora-se por outro fundamento, do qual se passa a tratar.

Viu-se, neste ensaio, que, exatamente em razão da relação íntima existente entre o crime fiscal e o ilícito tributário, é impossível a configuração de crime sem que tenha havido a regular constituição do crédito tributário em processo administrativo próprio.

Uma vez praticada a supressão de tributo, incumbe à autoridade administrativa proceder com o respectivo lançamento tributário (art. 142, CTN), o qual poderá ser objeto de defesa por parte do contribuinte. Concluída a fase de contencioso administrativo, torna-se definitivamente constituído o crédito tributário, que será inscrito em dívida ativa e, eventualmente, exigido pela via judicial da execução fiscal. Como não há crime fiscal sem ilícito fiscal, e considerando que esse ilícito é apurado exatamente pelo processo administrativo, não há que se cogitar na oferta de denúncia antes de sua conclusão, o que restou assentado pelo STF na Súmula Vinculante n. 24. Nessa linha, evidencia-se ser o lançamento condição de existência do tipo penal. Tudo isso já foi abordado em tópicos anteriores.

O que se pretende, ao retomar essas ideias, é demonstrar a impossibilidade de que fatos regularmente noticiados em denúncia espontânea configurem crime fiscal.

Com efeito, o tributo suprimido, posteriormente identificado e lançado pelo Fisco, ostenta caráter contencioso. Em outros termos, o contribuinte deliberadamente (por negligência ou por dolo) deixa de pagar o tributo, demonstrando pretensão supressiva, enquanto o Fisco pretende seja adotada a conduta inversa (o respectivo recolhimento), demonstrando pretensão arrecadatória.

Por isso é que, identificado o inadimplemento, promove o Fisco o lançamento tributário formal, instaurando a fase de contencioso administrativo, em que poderá ser questionada, pelo contribuinte, a própria existência da dívida.

Reitere-se que a Súmula Vinculante n. 24 não permite denúncia anterior à conclusão desse processo administrativo, já que o ilícito penal pressupõe o ilícito tributário, que será nele perquirido. Evidencia-se, então, que se trata de débito contencioso, em relação ao qual paira dúvida, havendo embate entre as pretensões opostas de Fisco e contribuinte, as quais serão apuradas administrativamente. Confirmada a existência do débito, e confirmado que a supressão se deu por fraude dolosamente cometida, submete-se o sujeito à imputação de crime.

Nada disso ocorre, contudo, quando há denúncia espontânea.

É que o débito denunciado pelo contribuinte, e eventualmente recolhido em sua integralidade, ostenta natureza não contenciosa. Não há qualquer controvérsia quanto à sua existência, tampouco quanto aos seus elementos. Por isso mesmo é que não existe qualquer lançamento tributário a seu respeito por parte do Fisco. O próprio contribuinte é que se autodenuncia, constituindo, nesse ato, o crédito tributário, que jamais será submetido ao denominado contencioso administrativo. Esse ato, além de retirar da conduta a própria ilicitude – conforme visto no tópico antecedente –, impede que seja formalizado qualquer lançamento tributário, pois se está a tratar de débito declarado e confessado, o qual não demanda constituição mediante lançamento.

Assim, sendo certo que não se tipifica crime material contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do tributo (Súmula Vinculante n. 24, STF), a fortiori não se tipifica a mesma espécie de crime quando não há qualquer lançamento – ou melhor, quando jamais haverá qualquer lançamento, em razão do caráter não contencioso do débito denunciado.

A autodenúncia é incompatível com o elemento fraude, necessário à configuração de crime. O contribuinte que informa ao Fisco a existência de irregularidade, e promove a sua correção, demonstra boa-fé incompatível com a persecução penal, salvo se eventualmente omitir, com dolo, determinada circunstância relacionada ao fato – ato que pode, autônoma e eventualmente, configurar crime.

Portanto, a natureza não contenciosa do débito denunciado espontaneamente é incompatível com a persecução penal por crime contra a ordem tributária, haja vista que, por ostentar tal condição, os fatos a ele atinentes jamais serão objeto de lançamento tributário, o qual é, à luz da Súmula Vinculante n. 24, condição de existência do tipo penal, verdadeira condição objetiva de punibilidade.

6. Da apropriação indébita tributária nos tribunais superiores: incursões introdutórias

Embora não esteja a apropriação indébita tributária (art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/1990) inserta no escopo central deste trabalho, faz-se indispensável a menção, ainda que breve, à recentíssima discussão instaurada no âmbito dos tribunais superiores a seu respeito. Justifica-se a menção pelo fato de que a matéria tangencia de forma muito próxima as questões enfrentadas nesta oportunidade, pelo que das conclusões a que se chegar naquela seara serão, certamente, extraídos elementos relevantes para todo o contexto relacionado aos crimes contra a ordem tributária.

A despeito de se reconhecer a existência de precedentes anteriores ao caso tomado como paradigma, verifica-se que o objetivo almejado tanto pelo STJ quanto pelo STF é a uniformização da jurisprudência, que oscilava claramente ao tratar da matéria.

No STJ, em que já foi concluída a discussão, o julgamento foi remetido à 3ª Seção, por iniciativa do relator, Ministro Rogerio Schietti Cruz, por ter ele reconhecido a divergência explícita entre o posicionamento da 5ª Turma, da qual faz parte, e o da 6ª Turma do Tribunal da Cidadania. De forma semelhante, o Ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, entendeu pertinente remeter o caso ao Plenário da Corte, considerando a sensibilidade da matéria, as enormes repercussões que decorrerão do posicionamento adotado, bem como o fato de ter o STJ decidido em julgamento relativamente pareado (oito votos desfavoráveis aos pacientes, e cinco votos favoráveis).

Sem muito aprofundar nos detalhes da espécie, para evitar a desvirtuação do tema central deste trabalho, o caso apreciado se originou da impetração de habeas corpus destinado a combater os efeitos de acórdão proferido pelo TJSC, apontado como ato coator, que proveu apelação do Ministério Público para anular sentença de absolvição sumária, determinando o prosseguimento da ação penal proposta com vistas a punir os pacientes pela suposta prática da chamada apropriação indébita tributária, crime previsto no art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/199055.

O objeto da discussão de fundo que permeia o caso é a infração relacionada ao não recolhimento de ICMS declarado ao Fisco, nos casos em que: (i) transferido o encargo do tributo em operações próprias; ou (ii) retido o valor do tributo em operações nas quais figure a empresa enquanto substituta tributária. Entende o Ministério Público, com o apoio do Fisco, que se “descontado ou cobrado”56 (art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/1990) o valor do tributo por parte da empresa, seu não recolhimento configuraria apropriação indébita, haja vista que se estaria aproveitando da incumbência atribuída pela legislação tributária para acoplar ao patrimônio da empresa recursos alheios (de propriedade do Fisco).

Conforme relatado, justificou-se a submissão do caso, no STJ, ao crivo da Corte Especial, em razão da divergência havida entre os pronunciamentos da Quinta e da Sexta Turmas. Enquanto a Quinta Turma vinha entendendo que, independentemente de se tratar de operação própria ou enquanto substituta, o não recolhimento do ICMS retido ou com transferência de encargo configuraria apropriação indébita, caso demonstrado o elemento subjetivo (sempre doloso). A Sexta Turma, de forma distinta, vinha diferenciando as situações e dando, a cada uma, solução específica: nos casos de operações próprias, estar-se-ia tratando de mero inadimplemento; no caso de substituição tributária, estaria configurado o crime. Como o caso analisado tratava da primeira situação (operações próprias), havia precedentes em ambos os sentidos, o que justificou a submissão da questão à Corte Especial.

Ao apreciar o caso, o Relator, Ministro Rogério Schietti Cruz, estabeleceu “quatro aspectos essenciais” para que se configure a apropriação indébita tributária, os quais podem ser assim sintetizados: (i) não pressupondo o tipo a existência da clandestinidade, o registro e a declaração do débito não retira o caráter criminoso da conduta; (ii) o sujeito ativo deve ostentar a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, o que pode se dar tanto com o contribuinte, quanto com o responsável por substituição; (iii) o elemento subjetivo do tipo sempre será o dolo, que consiste na “consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo”, sendo irrelevante, contudo, a motivação do agente; e (iv) só pode o crime ser praticado por aqueles que “descontam” ou “cobram” o tributo ou contribuição. Considerando que, da perspectiva da dogmática penal, distinta, no entender do Relator, da ótica tributária, o tipo abrangeria tanto os casos de operações próprias (tributo “cobrado”), quanto os casos de responsabilidade por substituição (tributo “descontado”), concluiu-se ser inviável a absolvição sumária sob o fundamento da atipicidade, devendo-se apurar a existência de dolo com a instrução criminal. Nesses termos, restou denegada a ordem de habeas corpus por maioria, tendo sido o Relator seguido pelos Ministros Felix Fischer, Antônio Saldanha Palheiro, Joel Ilan Paciornik e Reynaldo Soares da Fonseca, vencidos a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, que inaugurou a divergência, e os Ministros Jorge Mussi e Sebastião Reis Júnior, que a acompanharam.

Contra o acórdão, foi interposto Recurso em Habeas Corpus, autuado no STF sob o n. 163.334/SC e distribuído ao Ministro Luís Roberto Barroso. Considerando a controvérsia do tema, a votação acirrada havida no STJ, a inexistência de manifestação expressa das Turmas do STF a seu respeito e a relevância prática da matéria, entendeu o Relator por remeter o caso ao Plenário da Corte, nos termos do art. 21, inciso XI, do Regimento Interno. Determinou-se que não fosse cumprida qualquer pena contra os pacientes até final julgamento pelo STF, embora pudesse ter regular prosseguimento a ação penal. Foram admitidas diversas instituições enquanto amicus curiae, e designada reunião para fins de entrega de memoriais e debate, ficando esclarecido o interesse da Relatoria não apenas na (a)tipicidade da conduta, mas também no “impacto da criminalização ou não sobre a realidade fática, criminal e tributária”. O caso foi levado a julgamento na sessão do dia 18 de dezembro de 2019, tendo a Suprema Corte concluído por negar provimento ao recurso ordinário e cassar a liminar anteriormente deferida, fixando a tese de que “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990”. A votação se concluiu por maioria, prevalecendo o voto do relator, tendo sido vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. O acórdão está pendente de formalização e publicação, sendo certo, como já se anuncia desde o julgamento, que a discussão se prolongará.

Por não ser o específico objeto deste ensaio, bem como pela necessidade de se avaliar o teor do acórdão para compreender o exato sentido da posição assumida pelo STF, reservam-se os autores a apresentar suas considerações críticas a respeito do tema em ocasião futura.

7. Conclusão

O ordenamento jurídico brasileiro tem sua estruturação normativa baseada, de maneira fulcral, na Constituição Federal de 1988. Embora não se possa sustentar que tenha o texto magno se mantido estável desde a sua promulgação – haja vista as mais de 100 (cem) emendas já aprovadas pelo Congresso brasileiro, mediante quórum qualificado –, certo é que foram instituídos determinados preceitos que se aplicam amplamente.

O Sistema Tributário foi largamente tratado na Constituição, tendo merecido capítulo próprio. Disso decorre a relativa limitação que possui o legislador – e mesmo o intérprete – quanto à sua forma de operação. Definidos constitucionalmente os parâmetros básicos nos quais se deve pautar o exercício do poder de tributar do Estado, este deve se ater rigidamente às limitações impostas contra si (e em favor do contribuinte). Desta ótica é que se devem analisar, criticamente, condutas que representem afastamento dos preceitos constitucionais, especialmente quando se tornam cada vez mais comuns no cotidiano da relação jurídico-tributária havida entre Fisco e contribuinte.

Parece evidente que a intervenção indevida de terceiros nessa relação – como o é o Ministério Público, diga-se –, notadamente em descompasso com as normas constitucionais e legais que regem o Sistema Tributário, tem por consequência a quebra do equilíbrio e da harmonia que se apresentam como fins centrais do próprio ordenamento.

Buscou-se, por tal razão, desenvolver reflexão crítica sobre a indevida normalização da imputação criminosa a contribuintes que praticam atos incapazes de atingir a instância do ilícito penal, restringindo-se tão somente à tributária (ou, por vezes, nem mesmo a ela).

Adotando-se como premissa a inconstitucionalidade de se incriminar mero inadimplemento, bem como a dupla tipicidade intrínseca aos crimes fiscais (validada pela Súmula Vinculante n. 24 do STF), e do cotejo de entendimentos jurisprudenciais e doutrinários acerca da matéria, concluiu-se que é inviável que se cogite a persecução penal contra contribuinte em situação de regularidade fiscal (ou, em outros termos, que não tenha, contra si, crédito tributário definitivamente constituído em processo administrativo próprio), bem como de que a denúncia espontânea torna impossível a efetivação de crime material contra a ordem tributária.

8. Referências bibliográficas

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1 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 80-92.

2 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 31-32.

3 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33. ed. rev. e atual. até a EC 95, de 15 de dezembro de 2016. São Paulo: Atlas, 2017. p. 28-31.

4 AGRA, Walber de Moura. Apresentação. In: BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura (coords. científicos); PINTO FILHO, Francisco Bilac; RODRIGUES JR., Otávio Luiz (coords. editoriais). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 18-22.

5 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O controle de constitucionalidade das leis e o poder de tributar na CF/1988. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 226-227.

6 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 20-22.

7 Cite-se, a esse respeito, o art. 5º, incisos III, XXXVII, XXXVIII, XXXIX, XL, XLV, XLVI, XLVII, XLVIII, XLIX, L, LIII, LIV, LVI, LVII, LX, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVIII (em matéria penal e processual penal) e os arts. 150, 151 e 152 (em matéria tributária), todos da Constituição Federal de 1988.

8 SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 21.

9 PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário completo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 13-17.

10 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Curso de Direito Penal Tributário brasileiro. São Paulo: Malheiros. 2010. p. 25-37.

11 O cargo de Censor, criado no século V a.C., tinha como função primordial o controle da moral pública (daí o nome, que advém da ideia de censura). No entanto, acabou por assumir responsabilidades atinentes às finanças públicas, dentre as quais a de revelar o patrimônio de cada cidadão, o que servia para subsidiar a exigência dos tributos então existentes, os quais eram cobrados dos proprietários (deceuma), dos donos de rebanhos (scriptaura) e dos comerciantes internacionais – importadores e exportadores (portarium).

12 Trata-se de panorama geral, que não se verificou na totalidade dos Estados então constituídos. Houve Estados em que foi mantida a lógica de punição pessoal em razão de fraudes fiscais, inclusive mediante pena de morte. O que sustenta o autor é que, durante a Idade Moderna, especialmente em razão dos preceitos norteadores da Revolução Francesa (igualdade, liberdade e fraternidade), com a centralização da figura do indivíduo enquanto paradigma valorativo, a liberdade individual assumiu destaque superior ao objetivo social de manutenção do Estado. Com isso, foram mitigadas as punições de cunho não patrimonial, em proteção ao cidadão e ao seu livre arbítrio.

13 Neste ponto, ver: GALVÃO, Fernando. Direito Penal Tributário: imputação objetiva do crime contra a ordem tributária. Belo Horizonte: D’Plácido, 2015. p. 27-48. O autor faz interessante análise histórico-doutrinária do Direito Penal Tributário e de sua evolução, adotando como parâmetro a evolução dimensional dos direitos humanos.

14 Vale mencionar que houve alterações legislativas posteriores quanto aos crimes tributários relativos às contribuições sociais, por meio da Lei n. 8.212/1991 e, posteriormente, por meio da Lei n. 9.983/2000, que incutiu a apropriação indébita previdenciária no Código Penal.

15 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 1217.

16 Edmir Netto de Araújo explica que a responsabilidade guarda relação com a imputação a alguém da obrigação de restabelecer o equilíbrio por ele afetado “na ordem natural das coisas”. Essa circunstância pode ser vislumbrada da perspectiva civil ou patrimonial, “que significa a obrigatoriedade do restabelecimento do equilíbrio econômico entre os patrimônios envolvidos na ação ou omissão que causou o desequilíbrio na ordem natural patrimonial”, e da perspectiva penal, segundo a qual “o comportamento do agente se enquadra no tipo descrito pela lei penal” (ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 853).

17 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 76-79.

18 Segundo leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a responsabilidade civil “é de ordem patrimonial e decorre do artigo 186 do Código Civil, que consagra a regra, aceita universalmente, segundo a qual todo aquele que causa dano a outrem é obrigado a repará-lo” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 1219).

19 Novamente nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a responsabilidade administrativa apresenta os mesmos elementos básicos da civil, quais sejam: ação ou omissão contrária à lei, culpa ou dolo e dano. Indica que a infração, desta ótica, é apurada pela própria administração pública, em procedimento especificamente voltado a essa finalidade, observados o contraditório e a ampla defesa (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 1223).

20 Seguindo a mesma linha de abordagem teórica, volta-se a mencionar Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que especifica as peculiaridades do ilícito penal, quando comparado ao civil e ao administrativo: a tipicidade (definição do modelo de conduta que se imputa como crime ou contravenção); a necessária existência de dolo ou culpa, inexistindo responsabilização objetiva; relação de causalidade; e a existência de dano ou mesmo perigo de dano (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 1226).

21 Ressalve-se, aqui, a possibilidade, ainda admitida, de prisão civil por inadimplemento de pensão alimentícia.

22 A recíproca não é verdadeira. É perfeitamente plausível que haja ilícito civil – ou mesmo administrativo – que não se enquadre enquanto ilícito penal. Aliás, esta é a regra. A maioria das condutas ilícitas civil ou administrativamente não o serão da perspectiva penal. Apenas há que se falar em responsabilidade penal quando prevista a conduta, em todos os seus contornos, em tipo penal (lei incriminadora) previsto em momento antecedente à sua prática, em aplicação dos princípios penais da legalidade e da anterioridade. Quanto às semelhanças e interfaces existentes entre o Direito Penal e o Direito Tributário, ver: DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e tipo. 2. ed. São Paulo: RT, 2007.

23 MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 27-35.

24 Válido, neste ponto, mencionar a posição da Prof.ª Misabel Derzi, também crítica da autonomia de instâncias, por defender a existência de um “critério único do injusto”, com base na doutrina de Adolf Merkel. Mesmo com esse entendimento, contudo, a autora reconhece sua aplicabilidade, ao tratar das diferentes (e eventualmente cumulativas) penalidades decorrentes da prática de atos considerados ilícitos de óticas jurídicas diversas. (BALEEIRO, Aliomar; e DERZI, Misabel Abreu Machado (atualizadora). Direito Tributário brasileiro. 14. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 1161-1167)

25 É de se pontuar a notável posição assumida por Luis Eduardo Schoueri. Embora reconheça o autor que é comum a referência ao art. 136 do CTN “para que se afirme que, em matéria de infração tributária, a responsabilidade seria objetiva”, interpreta a norma de forma distinta, entendendo que apenas excluiu “a necessidade de que se constate a presença do elemento doloso para a configuração da responsabilidade”, mas que em momento algum o legislador teria dispensado o elemento culposo. Por tal razão, defende ser subjetiva a responsabilidade tributária, distinguindo-a da penal pelo fato de que, enquanto esta exige, via de regra, a existência de dolo (art. 18, Código Penal), para aquela (tributária) bastaria a culpa (SCHOUERI, Luís Eduardo. Op. cit., p. 818).

26 BALEEIRO, Aliomar; e DERZI, Misabel Abreu Machado (atualizadora). Op. cit., p. 1161-1662.

27 A impossibilidade de incriminação do simples inadimplemento decorre, inclusive, da proibição de prisão civil por dívida. O que se faz, ao incriminar o mero não recolhimento de tributo, é pretender punir penalmente o indivíduo inadimplente, o que, como sabido, não é inviável no ordenamento brasileiro.

28 AgRg no REsp n. 1.158.834/ES, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, j. 19.02.2013, DJe 01.03.2013.

29 WALKER JR., James; e FRAGOSO, Alexandre. Direito Penal Tributário. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 82.

30 Há que se mencionar a existência de iniciativas legislativas atuais tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado no sentido de buscar a racionalização da forma de tratamento do devedor contumaz de tributos, trazendo eficiência ao sistema e minimizando os deletérios efeitos que a reiterada supressão de tributos por determinados atores causa aos contribuintes em geral (Projeto de Lei n. 1.646/2019 na Câmara dos Deputados e Projeto do Senado n. 284/2017).

31 MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 382-383.

32 MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 384.

33 Embora tenha havido, com o tratamento que deu a Lei n. 12.350/2010 à representação fiscal para fins penais, certo receio de que fosse novamente discutido o momento até o qual se pode efetuar o pagamento com a pretensão de que se extinga a punibilidade.

34 HC n. 362.478/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, j. 14.09.2017, DJe 20.09.2017.

35 Esta constatação, por vezes, é tida como uma evidente demonstração de que a criminalização tem como única finalidade o auxílio no objetivo arrecadatório, o que é analisado criticamente por parte da doutrina. Hugo de Brito Machado suscita possível inconstitucionalidade da própria criminalização do ilícito tributário, justamente em razão dessa característica. Ora, sendo inócua a imputação penal caso quitado o tributo, então a persecução seria simples sanção política, vedada no Sistema Tributário Constitucional vigente. O autor, contudo, conclui pela inexistência da mencionada inconstitucionalidade, desde que não se afaste o elemento fraude como necessário à configuração da conduta penalmente sancionável. (MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 390)

36 Ressalve-se, neste ponto, o entendimento que vem se consolidando no STJ de que a prescrição, extintiva do crédito tributário, não gera a extinção da punibilidade em âmbito penal.

37 BITENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 56.

38 STF, HC n. 81.611.

39 STF, HC n. 83.414.

40 Constituição Federal de 1988: art. 5º, inciso LV.

41 PAULSEN, Leandro. Responsabilidade tributária: seu pressuposto de fato específico e as exigências para o redirecionamento da execução fiscal. Revista de Estudos Tributários n. 68, jul./ago. 2009. IOB/IET.

42 BITENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Op. cit., p. 118.

43 “Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.

Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.”

44 Eventualmente pode haver, em legislação esparsa, previsão que possibilite o parcelamento do tributo denunciado. Veja-se que não há, no CTN (norma geral), qualquer restrição a tanto. Com efeito, pode o ente tributante se valer dessa possibilidade para motivar o devedor a revelar dívida não conhecida pelo Fisco, otimizando a eficácia do instituto.

45 Sobre o tema, ver as considerações de Sacha Calmon Navarro Coêlho, que faz profundas incursões acerca da natureza das multas aplicadas em razão do inadimplemento tributário (tanto de obrigações principais quanto acessórias), concluindo serem todas de caráter sancionatório, não havendo que se falar em multa indenizatória (no caso das multas de mora, que, na opinião de alguns, apenas serviria para recompor a quantia inadimplida, o que, leciona o professor, seria função unicamente da correção monetária). Sustenta Sacha Calmon, nesta linha, que a denúncia espontânea, ao retirar a própria ilicitude do ato – sendo este seu efeito precípuo –, exclui incontinenti qualquer espécie de multa, devendo o contribuinte realizar o pagamento do tributo, acrescido apenas de correção monetária e juros moratórios. (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentário ao artigo 138. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.); MARTINS, Ives Gandra da Silva et al. Comentários Ao Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172, de 25.10.1996). Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 344-349)

46 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., 2008, p. 346-347.

47 BALEEIRO, Aliomar; e DERZI, Misabel Abreu Machado (atualizadora). Op. cit., p. 1161.

48 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., 2008, p. 344-349.

49 BITENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Op. cit., 2013, p. 51.

50 Código Tributário Nacional (Lei Federal n. 5.172, de 25 de outubro de 1966): art. 136.

51 Ver, a título de exemplo, que o TRF-3, no julgamento do Habeas Corpus n. 95.03.062545-9/SP, denegou a ordem por considerar que “a denúncia espontânea não exclui a responsabilidade penal”. (TRF 3ª Região, Segunda Turma, HC – Habeas Corpus n. 4658 - 0062545-63.1995.4.03.0000, Rel. Juíza Convocada em Auxílio Eva Regina, j. 31.10.1995, DJ 22.11.1995, p. 80808)

52 BALEEIRO, Aliomar; DERZI, Misabel Abreu Machado (atualizadora). Op. cit., p. 1161-1167. Ver também as considerações de Leandro Paulsen, que faz interessante reflexão acerca da deslealdade que se evidenciaria caso pudesse haver a imputação de crime a fato denunciado espontaneamente. (PAULSEN, Leandro. Direito tributário, Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 697)

53 Anote-se que, à época em que lavrado o parecer, outro era o regramento legislativo dos crimes contra a ordem tributária, o que, em nosso sentir, em nada afeta as conclusões a que chegou Ataliba. O que importa, para esta análise, é menos a regulamentação dos crimes e mais a regulamentação da denúncia espontânea, a qual mesmo àquele tempo já se centrava no art. 138 do CTN, que desde sua origem é excludente da responsabilidade do indivíduo pelo ilícito tributário cometido.

54 ATALIBA, Geraldo. Denúncia espontânea e exclusão de responsabilidade penal (parecer). Revista de Informação Legislativa v. 32, n. 125, p. 241-251, jan./mar. 1995. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/176309>. Acesso em: 6 ago. 2018.

55 Conforme relatado ao longo do trabalho, embora a abordagem proposta trate, em certa medida, dos crimes contra a ordem tributária de maneira geral, volta-se com mais clareza aos tipos penais contidos no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, pelo que algumas das considerações postas podem, eventualmente, não se aplicar à análise da apropriação indébita tributária, o que será objeto de reflexões e estudos mais aprofundados a serem materializados em trabalho próprio.

56 A terminologia utilizada pela legislação não está a salvo de críticas, já que o particular não efetua, propriamente, a cobrança ou o desconto do tributo, mas apenas sua retenção, conforme pontuado pelo Relator Ministro Rogério Schietti Cruz no voto proferido no julgamento do HC n. 399.109/SC.