Breves Considerações sobre a Digitalização da Economia e seus Impactos na Tributação

Brief Considerations on the Digitization of the Economy and its Impacts on Taxation

Nicholas Guedes Coppi

Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Professor do curso de especialização em Direito Tributário do IBET. Advogado em Campinas/SP. E-mail: nicholas@gcbaadvogados.com.br.

Thiago Santos da Silva

Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Agente Fiscal de Rendas da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo em Campinas/SP. E-mail: tssilva@fazenda.sp.gov.br.

Recebido em: 07-08-2019

Aprovado em: 09-10-2019

Resumo

Neste artigo, procura-se demonstrar como a revolução da economia digital está provocando relevantes impactos em âmbito tributário, uma vez que as estruturas tradicionais de tributação baseiam-se na intermediação das transações, na territorialidade das atividades e na tangibilidade dos bens. A economia digital produz, portanto, um vácuo decorrente da minimização e, até mesmo eliminação dos intermediários na realização dos negócios jurídicos. Diante desse cenário, a tarefa de identificação e controle das materialidades tributáveis torna-se mais complexa, demandando um debate a respeito de conceitos tradicionais estabelecidos na doutrina e na jurisprudência tributárias para que possa acompanhar a evolução e o impacto derivado dessas novas tecnologias. É, desse modo, imperioso que se repense o sistema tributário, à luz desse novo paradigma econômico, sob pena de que as Administrações Tributárias, sujeitadas a esse novo panorama, utilizem-se de velhas categorias para atingir novas situações derivadas da digitalização da economia, provocando, por certo, evidente caos tributário e nítido rompimento com os mandamentos insertos na Constituição da República, atingindo especialmente os diretos fundamentais do particular.

Palavras-chave: economia digital, tributação, ICMS, tecnologia, sistema tributário.

Abstract

In this article, we seek to demonstrate how the digital economy revolution is having significant tax impacts, since traditional tax structures are based on the intermediation of transactions, the territoriality of activities and the tangibility of goods. The digital economy thus produces a vacuum arising from the minimization and even elimination of intermediaries in the conduct of legal business. Given this scenario, the task of identifying and controlling taxable materialities becomes more complex, requiring a debate about traditional concepts established in tax doctrine and jurisprudence so that it can follow the evolution and the impact of these new technologies. It is therefore imperative that the tax system be rethought, in the light of this new economic paradigm, under penalty that the tax administrations, subjected to this new panorama, use old categories to achieve new situations derived from digitization of the economy, causing certainly, tax chaos and a clear break with the commandments included in the Constitution of the Republic, especially affecting the fundamental rights of the individual.

Keywords: digital economy, taxation, VAT, technology, tax system.

Introdução

O fenômeno que se convencionou chamar “economia digital”1 é, sem sombra de dúvidas, o de maior relevância para a economia mundial desde a Revolução Industrial. O termo foi criado por Dan Tapscott2 em 1997 e vem sendo usado desde então para se referir à parcela da economia baseada em tecnologias digitais.

A identificação da economia digital se dá através de características que a distinguem da economia tradicional, quais são3:

Mobilidade: a economia digital aumenta a mobilidade em muitas dimensões diferentes. Por exemplo, a propriedade intangível é uma de suas principais características – os direitos associados são facilmente transferíveis para jurisdições de baixa tributação. Usuários e clientes também podem realizar atividades comerciais através das fronteiras, o que desafia os sistemas fiscais tradicionais.

Dados como fonte de valor: característica fundamental da economia digital. Os dados são coletados de vários agentes e atividades do mercado. As crescentes capacidades de coletar, armazenar e tratar fluxos massivos de dados levaram ao conceito de “big data”, que pode gerar valor em atividades privadas (marketing) ou públicas (governo).

Efeitos de rede: os efeitos de rede são difundidos na economia digital. Eles permitiram a criação de valor de informações privadas, especialmente através dos chamados modelos de negócios multilaterais. Nesses modelos, vários grupos de pessoas interagem através de uma plataforma, resultando em aspectos positivos e negativos. Como exemplo de aspectos positivos, citam-se as plataformas de pagamento, de mídias e as redes sociais. Como exemplo de aspectos negativos, pode-se citar a publicidade compulsória, considerada intrusiva e pouco atraente, mas que é compensada pela oferta de baixo custo ou mesmo gratuidade de um serviço (e.g. sistemas de buscas).

Essas características têm repercussões relevantes em âmbito tributário, uma vez que as estruturas tradicionais de tributação baseiam-se na intermediação das transações, na territorialidade das atividades e na tangibilidade dos bens. Em contrapartida, valendo-se do escólio de Marco Aurélio Greco4, a digitalização da economia provoca três grandes alterações no paradigma socioeconômico5: (i) desintermediação das transações, (ii) desterritorialização das atividades; e (iii) desmaterialização dos bens.

Passa-se à análise do impacto de cada uma destas alterações no campo tributário, utilizando-se, como instrumento didático-metodológico, de exemplos de novas realidades econômicas advindas da digitalização da economia frente aos instrumentos de tributação disponíveis no Sistema Constitucional Tributário.

1. Criptomoedas e a desintermediação das transações

O avanço comunicacional implementado pelas novas tecnologias possibilitou uma alteração no fluxo das transações comerciais. O consumidor não mais necessita de um intermediador – comerciante, entidade financeira etc. – para adquirir um produto, serviço ou utilidade. Esse modelo negocial caracterizado pelo contato direto entre consumidor e produtor denomina-se peer to peer exchange (P2P)6. Um exemplo claro desse novo modelo é o bitcoin, uma criptomoeda que prescinde de um órgão monetário estatal e que, consequentemente, impossibilita seu uso para políticas monetárias.

As criptomoedas têm sido assunto recorrente em discussões econômicas, políticas e jurídicas, fato que não poderia ser diferente frente aos impactos econômicos delas decorrentes. A título de contextualização, colacionamos texto de Thiago Medaglia e Eric Visini7 sobre o bitcoin:

“Essa moeda virtual foi originalmente quantificada em 5 de outubro de 2009 e, na ocasião, US$ 1,00 (um dólar dos Estados Unidos da América) equivalia a 1.309 Bitcoins (em Reais, na cotação da época, R$ 1,00 equivaleria a 746 Bitcoins). Esse valor foi definido naquela data com base numa equação que quantificava o gasto com energia elétrica utilizada para ligar o computador que gerava os Bitcoins.

Em 6 de fevereiro de 2010, essa moeda virtual é levada a mercado. No dia 3 de janeiro de 2017, a cotação da unidade do Bitcoin no mercado brasileiro alcança aproximadamente R$ 4.100,00. Em março, a cotação do Bitcoin supera o valor da onça do ouro. Em 30 de novembro desse mesmo ano, os Bitcoins são ‘comercializados’ em território nacional por R$ 40.680,00 a unidade.

Em termos numéricos, a mesma quantidade de Bitcoins que poderia ser ‘adquirida’ no final de 2009 por R$ 1,00 custaria mais de R$ 30,3 milhões no final de novembro de 2017. Ainda em termos numéricos, um investimento de R$ 11.500,00 feito com base na primeira quantificação do Bitcoin, se realizado ao final de novembro de 2017 na cotação acima, transformaria o investidor no homem mais rico do mundo, com patrimônio superior a US$ 100 bilhões.”

Além de sua relevância financeira, saltam aos olhos a aceitação e a adesão às criptomoedas, tendo sido amplamente divulgado pela imprensa nacional, em janeiro de 2018, que o número de investidores em bitcoin já ultrapassara o dobro do número de investidores cadastrados na bolsa de valores paulista8.

Apesar da relevância do tema e de algumas iniciativas legislativas unilaterais, não há um conceito legal de criptomoedas. Para fins do presente estudo, utilizaremos os elementos indispensáveis à sua caracterização, segundo estudo do FMI9, quais são: (i) representar valores digitalmente; (ii) não possuir curso legal; (iii) serem conversíveis no mundo real em bens, serviços e até moedas oficiais; e (iv) fazer uso de tecnologia criptográfica para validação.

No modelo econômico tradicional, identificam-se, no mínimo, dois intermediários entre as duas pontas de uma cadeia de consumo: um comerciante e uma instituição financeira. Esses agentes têm relevância no modelo atual de tributação, pois um dos principais instrumentos de controle da ocorrência do fato gerador e do cumprimento das obrigações decorrentes é investir os intermediários na condição de responsáveis tributários, seja como agentes de retenção (e.g. instituições financeiras) seja como agentes de arrecadação (e.g. substitutos tributários na tributação indireta).

Já no modelo econômico digitalizado, o consumidor tem acesso direto ao produtor, independentemente de quaisquer limitações geográficas, e as criptomoedas criam a possibilidade da realização desse negócio sem a intermediação de uma entidade financeira, seja ela estatal ou privada. A simples eliminação de intermediários torna mais complexa a identificação e o controle de materialidades tributáveis, porém a situação se agrava devido à arquitetura de desenvolvimento das moedas digitais10: a criptografia ponta a ponta nas transações (peer to peer exchange) e nas validações de rede (peer to peer network) impossibilita a identificação dos sujeitos que transacionam, sendo registrados nos “nós” (nodes) e respectivos “blocos” (blocks) a chave de validação da transação (hash) e as chaves públicas dos proprietários (owners public keys), dados que não permitem a identificação dos sujeitos do negócio, tampouco informações sobre os bens, serviços e utilidades transacionadas.

Essa particularidade intrínseca às moedas digitais criptografadas acaba gerando uma situação emblemática do descompasso entre os atuais sistemas tributários e a nova economia: a tributação das operações de – ou com utilização de – criptomoedas depende, exclusivamente, da declaração espontânea dos contribuintes à autoridade fiscal.

2. A computação em nuvem e a desterritorialização das atividades

Outro tema de relevo nas discussões tributárias, a chamada “computação em nuvem” (cloud computing) pode ser definida como uma estrutura virtual através da qual se tem acesso, remotamente, a dados, softwares ou capacidade para gravação de informações, que não se encontram no computador ou no dispositivo móvel do usuário, mas em diversos servidores conectados em rede11.

Segundo a literatura especializada, são três as espécies do gênero computação em nuvem: (i) IaaS; (ii) PaaS; (iii) SaaS12. Abstraindo-se dos pormenores técnicos, as atividades podem ser resumidas da seguinte forma:

Infrastructure as a Service: oferta de uma infraestrutura, através da internet, por meio da qual podem ser utilizados poder de processamento e espaço para armazenagem de dados, como um “disco” e um “processador” virtuais acessados pelo usuário remotamente.

Plattaform as a Service: oferta de uma plataforma, por meio da qual, além de uma infraestrutura, são disponibilizadas ferramentas de desenvolvimento e oferta de softwares para desenvolvedores.

Software as a Service: oferta de softwares através dos servidores do provedor do serviço, não sendo necessária a transferência ou instalação no computador do usuário.

A infraestrutura em rede desse tipo de computação exige que os servidores estejam espalhados por diversos territórios, ocasionando um sem fim de possibilidades geográficas para fins de configuração do negócio jurídico. Por exemplo, uma empresa brasileira contrata um IaaS da Google, cujo estabelecimento central fica nos Estados Unidos; o serviço é prestado pela subsidiária irlandesa da empresa e os servidores estão localizados fisicamente na Índia. A dificuldade em se estabelecer o local de ocorrência do evento consequentemente implica a dificuldade de identificação da entidade tributante.

Com o avanço da computação em nuvem a ação humana e a presença física no local de desenvolvimento das atividades são cada vez menos relevantes. E essas mudanças causam impactos diretos na tributação, especialmente na brasileira, estabelecida sob um paradigma de localização física de negócios e contribuintes.

3. Impressora 3D e a desmaterialização dos bens

Dúvidas não há de que os exemplos citados anteriormente poderiam, perfeitamente, ilustrar o processo de desmaterialização dos bens, outrossim, a impressão 3D também seria capaz de ilustrar, com exatidão, a desintermediação dos negócios e a desterritorialização das atividades. Sua escolha neste item deu-se por também representar o aumento do valor do capital intangível e da consequente mobilidade deste.

Como citado anteriormente, as novas tecnologias alteraram – e continuam alterando – as cadeias econômicas, mormente as de industrialização e comercialização. A adoção em escala comercial da impressão 3D alterará a própria forma de produção de bens. E seus possíveis impactos econômicos são extremamente relevantes: segundo pesquisa realizada pela Mckinsey & Co.13, são projetados entre $ 250 e $ 550 bilhões por ano.

A impressão 3D, também conhecida como prototipagem rápida, é uma forma de tecnologia de fabricação aditiva em que um modelo tridimensional é criado por sucessivas camadas de material. Fabricação aditiva é o processo de criar objetos a partir de modelos digitais criados em três dimensões.

Partindo-se de um modelo digital – projeto ou software – inserem-se os dados numa impressora e, após o tempo necessário para o processo, as informações existentes no mundo digital corporificam-se. À primeira vista, pode-se interpretar o modelo negocial como uma “materialização” dos bens, mas uma análise detida poderá demonstrar o contrário.

Tomemos como exemplo um terno de duas peças (calça e paletó). Basicamente, há duas opções para aquisição: (i) modelos fabricados em escala com tamanhos padronizados e sem possibilidade de ajuste individual na fabricação (ready to wear) ou; (ii) modelos fabricados sob encomenda, com ajustes de fabricação individualizados para o usuário (taylored). Aqueles, devido à economia de escala, são consideravelmente mais baratos que estes, porém, majoritariamente, são de qualidade inferior.

Ilustrando a suposta cadeia econômica do exemplo, o design (intangível) é feito por um estilista italiano na sede da empresa X, que fica na Espanha; o modelo é enviado para fabricação no Vietnã e o tecido utilizado é tramado na China, sob as especificações do escritório de qualidade do grupo, que fica nos Estados Unidos. Ressalta-se que, a depender das oscilações de preço dos insumos e da mão de obra, as fabricações do tecido e do terno podem ser transferidas para outros países, sem necessidade de realocação de capital físico, tampouco investimento, vez que as empresas – no caso, vietnamita e chinesa – prestam serviço para a empresa X.

A despeito dos custos de logística e de tributação, o produto é enviado para o mercado brasileiro, onde é desembaraçado e enviado para a filial varejista do grupo, X Brasil, e oferecido ao consumo interno por um preço razoavelmente inferior ao do custo de um produto sob medida. O baixo valor agregado decorre da não personalização e da utilização de materiais “escaláveis” ou de baixa qualidade, além da maior parte desse valor ser decorrente de dois intangíveis, quais são a marca “X” e o design do produto.

Em contrapartida, um terno com design semelhante, feito por alfaiate, sob medida e com um tecido de escolha do adquirente, provavelmente custará o dobro ou mais, sendo atribuída a maior parcela desse valor agregado à personalização da fabricação e ao custo dos insumos. Em apertada síntese, ou adquire-se um produto padrão por um preço acessível ou se adquire um personalizado por um preço brutalmente superior.

Essa extensa digressão justifica-se aqui: o uso em escala comercial de impressoras 3D possibilita a economia de escala aliada à personalização. Como na situação hipotética acima, o adquirente tem interesse num terno com o design da marca X; aquele vai ao endereço virtual da empresa na rede mundial de computadores e adquire um modelo digital tridimensional do terno, com a possibilidade de alteração de valores correspondentes às suas medidas; dirige-se a uma central de impressão 3D, especializada em impressões com tecidos; escolhe o tecido que mais lhe aprouver (por um preço possivelmente inferior ao de uma alfaiataria), tira as suas medidas e, no tempo necessário para o processo, terá um terno de design italiano, adquirido de uma empresa espanhola e “materializado” no Brasil.

As possibilidades que essa tecnologia traz são exponenciais. Toda aquela logística de fabricação e distribuição seria reduzida consideravelmente. O intangível (imaterial), que realmente possui valor agregado, passaria a ser o bem transacionado em larga escala e, como informação digital que é, não encontraria limites em intermediadores e barreiras geográficas. Reconhece-se que o tema pode soar como ficção científica, mas rápida consulta na rede mundial de computadores demonstra as possibilidades dessa tecnologia. Atualmente já é possível imprimir roupas14, calçados15, carros16 e até casas inteiras17.

Desnecessário repisar que os impactos dessa tecnologia na tributação – ao menos nos moldes atuais – serão catastróficos. No exemplo elaborado acima os reflexos podem não ficar evidenciados prima facie, pois ainda há uma cadeia econômica (aquisição do modelo e aquisição do serviço de impressão), mas imaginando-se que a impressão 3D tenha sido realizada pelo próprio adquirente, os efeitos ficam mais evidentes. De uma tributação incidente sobre toda a cadeia econômica do bem (importação, industrialização, operações com mercadorias etc.) a base tributável será restringida ao valor dos insumos, que geralmente possuem um valor agregado menor.

Longe da pretensão de esgotar temas tão complexos, a utilização de cases de novos negócios para a contextualização desse novo paradigma econômico demonstra-se de grande utilidade para identificação e análise do paradigma utilizado como base ao Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. Analisar-se-á sua efetividade frente essas novas materialidades.

4. O paradigma econômico do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro

Não se faz necessária profunda incursão sobre o texto constitucional de 1988 a fim de que se identifiquem as bases econômicas sobre as quais foi erigido o Sistema Tributário Brasileiro. Como afirmado no texto introdutório, o recorte metodológico do presente trabalho dá-se na tributação sobre o consumo, espécie mais exposta às alterações carreadas pela digitalização da economia.

A Constituição Federal, especificamente em matéria de tributação, apresenta um texto analítico, com complexidade e extensão pouco usuais, o que, na lição do saudoso Geraldo Ataliba18, resulta na modelagem integral do sistema tributário. Tal assertiva19 pode ser verificada na especificidade das normas de atribuição de competência, as quais, em relação à tributação sobre o consumo, tiveram como base20 a Emenda Constitucional n. 18/1965 à CF/1946.

A técnica legislativa utilizada pelo constituinte, para fins de atribuição de competência tributária, consistiu em distribuição das materialidades conhecidas entre os entes federados, possivelmente por uma lógica financeira de potencial arrecadatório, o que acabou resultando em cisões de uma mesma realidade (e.g. a tributação sobre a transferência patrimonial, dividida pela espécie do bem e pela onerosidade ou não da operação), em junções de realidades distintas sob o manto de uma única materialidade (e.g. operações de circulação de mercadorias e prestação de serviços de comunicação) e em tributação de uma mesma realidade por diferentes materialidades e, consequentemente, bases tributárias distintas (e.g. operações de circulação de mercadorias, importação de bens e industrialização).

Desta feita, a tributação sobre o consumo foi estabelecida sobre as seguintes figuras impositivas: ICMS, ISS, IPI, PIS/COFINS21 e IOF. Para fins deste trabalho, realizar-se-á análise detida daqueles dois primeiros, quais se mostram suficientes para a identificação do paradigma econômico plasmado no texto constitucional22.

O ICMS em sua modalidade “mercadorias” incide sobre as operações relativas à circulação de mercadorias. Vale observar que o termo “mercadoria” tem sido interpretado pela melhor doutrina23 como bem móvel, corpóreo sujeito à mercancia. Historicamente esse entendimento tem sido acolhido pela jurisprudência do Superior Tribunal Federal, a despeito de já ter sinalizado, em juízo liminar24, no sentido de que download pode ser incluído pelo legislador estadual na definição de operação relativa à circulação de mercadorias. Pode-se inferir, portanto, que este tributo possui como paradigma econômico a localização física dos contribuintes, corporeidade dos bens e intermediação dos negócios (cadeia de circulação).

O ISS incide sobre as prestações de serviços não compreendidos nas materialidades do ICMS e definidos em Lei Complementar, o que configuraria uma atribuição de competência por exclusão de materialidades com condicionante de definição25. Conforme escólio do saudoso Aires Barreto26, serviço tributável é “o desempenho de atividade economicamente apreciável, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem, sob regime de direito privado, com fito de remuneração, não compreendido na competência de outra esfera do governo”.

Pode-se inferir que o substrato econômico sustentáculo dessa figura exacional é a localização física dos contribuintes e atividade humana de prestação.

Esta sucinta análise já é apta a demonstrar o paradigma econômico presente em nosso Sistema Constitucional Tributário: (i) territorialização das atividades, consubstanciada pela localização física dos contribuintes e necessidade de presença física de prestadores ou intermediadores; (ii) intermediação das operações, consubstanciada pela existência de cadeias econômicas de produção e circulação27 e; (iii) corporeidade dos bens, consubstanciada no conceito sedimentado de mercadoria.

Mera oposição de características dos diferentes paradigmas econômicos já possibilita a verificação do descompasso de realidades e da falta de instrumentalidade qual se reveste o Sistema Constitucional Tributário para enfrentar os desafios de uma economia digitalizada.

Soma-se a isso o fato de nosso Sistema Constitucional Tributário ser rígido e complexo, ocasionando um empecilho às necessárias mudanças estruturais que são exigidas, e constantemente alteradas, pela digitalização da economia.

5. A ineficiência do Sistema Constitucional Tributário frente à digitalização da economia

A fim de demonstrar que esse descompasso entre paradigmas econômicos acaba por tornar ineficiente o Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, tentemos imaginar, à luz do exposto anteriormente, uma operação realizada em ambiente digital e seu possível enquadramento tributário, com utilização das categorias tradicionais de direito.

Um consumidor, localizado na cidade São Paulo, adquire por meio da internet, um modelo digital tridimensional de um terno, desenhado por estilista italiano e comercializado por empresa espanhola, com endereço na rede mundial de computadores do tipo “.com”. O pagamento é efetuado através de criptomoedas, sendo transferido da carteira digital criptografada do adquirente brasileiro para a da empresa, sendo registradas na cadeia de blocos (Blockchain) apenas informações de validações da transação e as chaves públicas de todos os anteriores proprietários daquelas moedas. A disponibilização do produto é imediata, sendo recebido através de download, também criptografado, diretamente dos servidores contratados pela empresa, localizados fisicamente na Índia.

Nesse exemplo hipotético, imagine-se que o adquirente possua uma impressora 3D, com capacidade de realizar impressões em tecido. Após efetuar o download e inserir suas medidas no modelo digital, o consumidor imprime o terno, dentro de sua residência, com insumos previamente comprados no mercado interno.

Desconsiderando as operações cross-borders internacionais, pode-se concluir que há uma operação? Que há uma circulação, quer seja física, quer seja jurídica? Que há uma mercadoria tangível, corpórea? Que há industrialização? Não obstante esses questionamentos, de que forma seria possível identificar esse negócio, que não com a declaração espontânea do contribuinte? Como seria comprovada a materialidade de eventual fato jurídico tributário? Onde se consideraria ocorrido? A quem seria devido?

Conclusão

A digitalização da economia tem causado impacto considerável nas estruturas sociais e econômicas e isso, obviamente, repercute em seara tributária. Tal fato não é exclusivo do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, porém aqui há uma peculiaridade federativa que acaba por gerar uma verdadeira “guerra fiscal” entre entes federados, cada qual pretendendo alargar suas possíveis materialidades a fim de enquadrar essas novas realidades da economia digital.

O atual sistema de tributação sobre o consumo consiste em cinco tributos – ICMS, ISS, IPI, PIS/COFINS e IOF – distribuídos entre as três esferas federativas, totalizando um sem-número de sujeitos ativos e legislações aplicáveis, ocasionando uma complexidade que torna o Brasil um dos piores lugares para empreender do mundo28. E essa realidade só tende a ser acentuada com o crescimento da digitalização da economia, que acaba por gerar mais conflitos de competência entre os entes tributantes e esvaziamento das bases tributáveis, vez que nosso Sistema Tributário é baseado na localização física dos contribuintes, na corporeidade dos bens e na intermediação das transações.

Não se pretende, neste trabalho, militar por um rompimento com a Constituição, outrossim, pretende-se trazer à reflexão a precariedade e a ineficácia do Sistema Constitucional Tributário frente às inovações tecnológicas e às mudanças estruturais que delas decorrem. A sua rigidez e inflexibilidade, que em outros contextos eram características desejáveis, não se compatibilizam com o dinamismo inerente à economia digital.

A utilização das categorias jurídicas tradicionais para compreender e alcançar as novas realidades advindas da digitalização da economia também não se mostra adequada. Nosso sistema tributário, elaborado sob uma realidade econômica analógica, baseada em operações com tangíveis e na localização física dos contribuintes não é suficiente para identificar as materialidades em ambiente digital, as quais aumentam exponencialmente em volume.

Diante dessas reflexões, surgem propostas reestruturantes, como a adoção de um Imposto sobre Valor Agregado29, de base ampla e alíquota uniforme, como defendido por Paulo Caliendo30 em brilhante artigo sobre o tema. Acredita-se que a adoção de tal sistema de tributação não será suficiente para solucionar os desafios que se apresentam com o crescimento da digitalização da economia, mas, indubitavelmente, aproximaria o Brasil dos debates mais aprofundados, que vêm sendo realizados há tempo considerável pelas maiores economias do mundo.

À guisa de conclusão, um novo sistema tributário, baseado no novo paradigma econômico e com certa flexibilidade estrutural, que possibilite alterações para acompanhar novos paradigmas, mostra-se um bom caminho a trilhar, possibilitando um aumento da produtividade econômica do país e incentivando, inclusive, o desenvolvimento de novas tecnologias disruptivas.

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1 Por não representar um setor apartado do sistema econômico, entende-se por mais acertada a utilização da expressão “digitalização da economia”, já que não há separação, mas sim uma interpenetração das tecnologias digitais por toda a economia. Não obstante, no presente artigo far-se-á uso das duas expressões para representar o mesmo fenômeno.

2 TAPSCOTT, Dan. The digital economy: promise and peril in the age of networked intelligence. New York: McGraw-Hill, 1997.

3 Cf. European Commission – Directorate-General Taxation and Customs Union – Expert Group on Taxation of the Digital Economy. Working Paper: Digital Economy – Facts & Figures, p. 3-4. Disponível em: <https://ec.europa.eu/taxation_customs/sites/taxation/files/resources/documents/taxation/gen_info/good_governance_matters/digital/2014-03-13_fact_figures.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2018.

4 GRECO, Marco Aurélio. Tributação e novas tecnologias: reformular as incidências ou o modo de arrecadar? Um “SIMPLES” informático. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

5 Faz-se necessário ressaltar que, na linha dos ensinamentos de Haskel e Westlake (HASKEL, Jonathan; e WESTLAKE, Stiam. Capitalism without capital: the rise of intangible economy. Princeton: Princeton University Press, 2018), entende-se que a mobilidade e os efeitos de rede são aspectos mais relacionados ao crescimento do capital intangível que à própria digitalização da economia, mas esta, além da criação de valor proveniente de informação (dados), possibilitou um aumento exponencial daqueles, desvelando o descompasso entre os paradigmas científicos correntes – mormente nos campos da economia, direito e contabilidade – e a nova realidade socioeconômica.

6 Cf. IMF STAFF DISCUSSION NOTE – Virtual currencies and beyond: initial considerations. Disponível em: <https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2016/sdn1603.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2018.

7 MEDAGLIA, T.; e VISINI, E. Breves considerações sobre o tratamento legal, contábil e fiscal das moedas virtuais. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

8 Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/educacao-financeira/noticia/bitcoin-ja-tem-mais-que-o-dobro-de-investidores-da-bolsa-no-brasil.ghtml>. Acesso em: 02 dez. 2018.

9 Cf. IMF STAFF DISCUSSION NOTE – Virtual currencies and beyond: initial considerations. Disponível em: <https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2016/sdn1603.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2018.

10 NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: a peer-to-peer electronic cash system. Disponível em: <https://bitcoin.org/bitcoin.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2018.

11 MACHADO SEGUNDO, H. B.; e MACHADO, R. C. R. Tributação da atividade de armazenamento digital de dados. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

12 ANTONOPOULOS, Nick; e GILLAM, Lee (ed.). Cloud computing: principles, systems and applications. London: Springer, 2010, p. 4.

13 MCKINSEY & CO. Disruptive technologies: advances that will transform life, business, and the global economy. Disponível em: <https://www.mckinsey.com/~/media/mckinsey/business%20functions/mckinsey-%20digital/our%20insights/disruptive%20technologies/mgi_disruptive_technologies_full_report_may2013.ashx>. Acesso em: 03 dez. 2018.

14 Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Caminhos-para-o-futuro/Desenvolvimento/-noticia/2017-/05/ja-pensou-em-imprimir-sua-propria-roupa-em-casa.html>. Acesso em: 03 dez. 2018.

15 Disponível em: <https://olhardigital.com.br/noticia/impressora-3d-imprime-calcados-com-apenas-fotos-do-pe-do-usuario/67519>. Acesso em: 03 dez. 2018.

16 Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/impressora-3d/118590-carro-esportivo-feito-impressao-3d-revela-engenharia-futuro.htm>. Acesso em: 03 dez. 2018.

17 Disponível em: <https://exame.abril.com.br/tecnologia/casa-feita-em-impressora-3d-custa-a-metade-de-uma-comum>. Acesso em: 03 dez. 2018.

18 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 16 a 21.

19 Consigna-se que o grande jurista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) fez essa afirmação em brilhante estudo do Sistema Constitucional Tributário instituído pela EC n. 18/1965, porém, como toda sua produção científica, transcende o objeto da análise e se aplica às mais diversas categorias do jurídico.

20 Cf. GRECO, Marco Aurélio. Tributação e novas tecnologias: reformular as incidências ou o modo de arrecadar? Um “SIMPLES” informático. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

21 Apesar de possuírem regimes jurídicos distintos dos aplicáveis aos impostos sobre o consumo, o efeito econômico das contribuições para o PIS e COFINS é semelhante, nesse espeque, foram consideradas como tributação sobre o consumo.

22 Faz-se necessário esclarecer que não advogamos pela rigidez e inelasticidade das hipóteses de incidência tributária possíveis discriminadas na CF/1988, características afetas à utilização de conceitos, pelo contrário entendemos que o constituinte fez uso de tipos abertos, vagos e flexíveis, referindo-se a características típicas das situações aptas a ensejar a relação obrigacional tributária.

23 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 50.

24 Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.945 MT.

26 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 35.

27 Outros aspectos do Sistema Constitucional Tributário fundamentam, até em maior grau, essa premissa, tais como a utilização de instrumentos de responsabilidade e substituição tributária além de instrumentos atinentes à Ordem Econômica. Optou-se por não se aprofundar nesses temas por questões metodológicas do presente trabalho.

28 Cf. WORLD ECONOMIC FORUM – The Global Competitiveness Report. Disponível em: <http://www3.weforum.org/docs/GCR2016-2017/05FullReport/TheGlobalCompetitivenessReport2016-2017_FINAL.pdf>. Acesso em: 04 dez. 2018. WORLD BANK – Doing Business Report. Disponível em: <http://www.doingbusiness.org/data/exploretopics/paying-taxes>. Acesso em: 04 dez. 2018.

29 Cita-se como exemplo a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 293-A, de autoria do Deputado Federal Antônio Carlos Mendes Thame.

30 CALIENDO, Paulo. Economia digital e a criação de um IVA para o Brasil. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.