O Tratamento do Preço, do Desconto e da Condição no Direito Tributário

Fábio Piovesan Bozza

Mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo. Advogado em São Paulo.

Katia Soriano de Oliveira Mihara

LLM em Direito Societário pelo Instituto Brasileiro de Mercados de Capitais. MBA em Análise e Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Advogada em São Paulo.

Clara Gomes Moreira

Mestranda em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo. Advogada em São Paulo.

Resumo

Muitas relações continuadas de fornecimento de bens, serviços e direitos costumam agregar obrigações contratuais acessórias (verbas comerciais) ao negócio principal, com o intuito de incrementar a produtividade e a lucratividade das operações. O presente estudo pretende investigar em quais circunstâncias a estipulação das mencionadas verbas comerciais, especialmente aquelas remuneradas por desconto, pode ou não afetar o preço de venda de bens, serviços e direitos e, consequentemente, influenciar a apuração dos tributos incidentes sobre a receita.

Palavras-chave: preço, desconto, condição, negócio jurídico, causa.

Abstract

Many long-lasting relationships of supply of goods, services and rights usually aggregate accessory obligations (commercial duties) to the main business in order to increase the productivity and profitability of the transactions. This study aims to investigate under what circumstances the stipulation of the aforementioned commercial duties, especially those paid by discount, may or not affect the selling price of goods, services and rights and therefore influence on the calculation of taxes on revenue.

Keywords: price, discount, condition, juridical act, cause.

1. Introdução

Para muitos tributos incidentes sobre a receita bruta ou que consideram o referido elemento em sua base de cálculo, afigura-se essencial determinar, com precisão, o preço da operação. É o caso, por exemplo, do IPI, do ICMS, do ISS, da contribuição ao PIS e da Cofins.

O preço constitui a retribuição pecuniária fixada em contratos bilaterais onerosos que uma parte deve pagar à outra, para o recebimento de bens, serviços ou direitos. A respectiva troca é expressão do sinalagma, isto é, da dependência recíproca entre as prestações que conduz ao equilíbrio negocial. Significa dizer que a prestação prometida por uma das partes é a causa da prestação prometida pela outra.

Em um mercado aberto e globalizado, o preço costuma resultar do nivelamento alcançado pelo constante choque entre a oferta e a demanda, proporcionado por vendedores e compradores concorrentes.

Acontece que a busca pelo incremento da produtividade e da lucratividade tem levado as empresas a realizar arranjos contratuais cada vez mais complexos, agregando-lhes obrigações contratuais acessórias que possibilitam a redução dos custos da operação e a maximização da riqueza (doravante denominadas de verbas comerciais), mediante aumento ou redução do preço de bens, serviços ou direitos. São obrigações relacionadas, por exemplo, com o pagamento do respectivo preço, previamente ao vencimento da obrigação; com a logística para a entrega dos bens; com a forma de exposição das mercadorias no estabelecimento do adquirente; ou com a propaganda dos produtos destinados à revenda em informes publicitários.

Diante desse quadro, o presente estudo pretende investigar em quais circunstâncias a estipulação das verbas comerciais afeta o preço de venda de bens, serviços e direitos e, consequentemente, influencia a apuração dos tributos incidentes sobre a receita.

Nessa empreitada, será possível perceber que certas noções formuladas no passado pelas autoridades fiscais, suficientes para a solução das controvérsias surgidas naquela época, precisam ser revistas ou, quando menos, contextualizadas, de acordo com a complexidade hodierna das estruturas negociais. É o que ocorre, por exemplo, com a definição do desconto incondicional, constante de uma normativa emitida pelo Fisco federal, em 1978, que singelamente o considera como sendo aquele não dependente de evento futuro e diminuído do preço constante na própria documentação da operação.

A insuficiência normativa do conceito e a complexidade do tema podem ser ilustrativamente comprovadas, ao se examinar os fatos que subsidiaram o julgamento da autuação fiscal descrita a seguir pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), envolvendo a qualificação jurídica de verbas comerciais e a incidência da contribuição ao PIS e da Cofins.

Envolvendo quadro fático semelhante ao analisado pelo Carf, o assunto também teve repercussão sobre a incidência do ICMS, levando as autoridades fiscais do Estado de São Paulo a se posicionar a respeito.

2. A Abordagem Jurisprudencial sobre as Verbas Comerciais

A controvérsia analisada no Acórdão nº 3302-002.119, de 22 de maio de 2013, proferido pela Terceira Seção do Carf, refere-se a auto de infração lavrado pela fiscalização federal em razão de suposto recolhimento a menor da contribuição ao PIS e da Cofins, devidas por uma grande revendedora varejista.

A discussão cingia-se à natureza das verbas comerciais fixadas em contrato de concessão comercial (contrato cuja natureza jurídica será detalhada abaixo) e à possibilidade de concebê-las como sendo descontos incondicionais e, portanto, redutoras da receita bruta submetida à incidência das aludidas contribuições. Todavia, na compreensão fiscal, tais verbas comerciais não poderiam ser qualificadas desse modo, por assumirem a natureza de remuneração dos serviços prestados.

Quer dizer, enquanto a varejista contabilizou-as como descontos do preço da operação, sob as rubricas custo de mercadoria ou despesa comercial, reduzindo-as das bases tributáveis das referidas contribuições, a fiscalização entendeu tratar-se de receitas, correspondentes às remunerações recebidas pela varejista, em decorrência da prestação de serviços aos fornecedores, e que, portanto, deveriam ser incluídas nas bases de cálculo dos tributos em questão.

Em breve síntese, as verbas comerciais estruturadas na complexa rede de obrigações do contrato de concessão comercial compreendiam as seguintes:

i) verba de logística: o fornecedor ficava obrigado a entregar suas mercadorias nos centros de distribuição da varejista; por sua vez, competia a essa realizar o transporte até os postos de venda, valendo-se para tanto de frota de veículos de sua titularidade;

ii) verba de propaganda ou propaganda participada: a varejista se comprometia a incluir a publicidade do fornecedor em determinados veículos de comunicação por ela utilizados, como em encartes publicitários;

iii) verba de aniversário, verba de inauguração e verba de reinauguração: a varejista se comprometia a colocar a publicidade do fornecedor em certos veículos de comunicação e a incluí-los em campanhas promocionais realizadas ambos nas datas e nos eventos determinados;

iv) verba de fidelização: incentivo à compra da mercadoria pela fidelidade que era imposta, assumindo a varejista o compromisso de não substituir os produtos do fornecedor por outros similares de seus concorrentes;

v) verba de não devolução: a varejista se comprometia a evitar despesas adicionais geradas pela devolução das mercadorias avariadas no interior de lojas ou de depósitos;

vi) verba de bonificação por pedido de compra: compromisso que a varejista tinha de adquirir as mercadorias do fornecedor, muito embora com preços superiores aos praticados pelos concorrentes, inclusive, na hipótese de esses fazerem promoções;

vii) verba de fundo de desenvolvimento de negócios: referente às ações institucionais.

No âmbito do Carf, embora a autuação fiscal tenha sido, ao final, considerada válida pelo tribunal administrativo, houve divergência de posicionamentos entre os conselheiros. O resultado do julgamento só foi alcançado em função do voto de qualidade proferido pelo presidente.

Nesse sentido, o voto vencido refutou a qualificação conferida na autuação, uma vez que: (i) as obrigações relacionadas com as verbas comerciais constituiriam atividades estranhas ao objeto social da varejista; (ii) faltaria à hipótese o próprio conceito de serviço stricto sensu, porquanto, no momento em que adquiridas as mercadorias, elas integrariam o patrimônio da revendedora; consequentemente, a execução das prestações configuraria, em verdade, a realização de um autosserviço (quando muito, poderia haver um rateio de despesas, entendendo-se que a varejista e o fornecedor seriam, ambos, os tomadores do serviço em tela, que seria prestado por um terceiro); (iii) as aludidas verbas expressariam uma política comercial traçada, estrategicamente, entre as partes para elevar a rentabilidade da operação.

Sob tais argumentos, o voto vencido considerou que as verbas comerciais não poderiam ser qualificadas como receita por aquele que recebeu um desconto na aquisição de bens para revenda, por não caracterizarem novas entradas no patrimônio, pois delas não resultaria qualquer acréscimo patrimonial. Haveria um mero ingresso, conceito distinto daquele de receita. A conclusão foi pela existência de um desconto incondicional, sem a obrigatoriedade de o mesmo constar em documento fiscal, desde que corretamente contabilizado e, consequentemente, pela improcedência do lançamento de ofício.

Já no voto vencedor, frisou-se que a questão não residiria no modo pelo qual a verba teria sido formalizada (se na própria nota fiscal, se em fatura, ou em qualquer outro documento apartado emitido simultaneamente à operação de compra e venda), mas na identificação da natureza jurídica da respectiva verba. E, no caso analisado, a qualificação como descontos incondicionais não teria sido evidenciada. Ao revés, teria ficado comprovado o auferimento de receitas, sujeitas à incidência das contribuições aludidas, uma vez que resultantes em um aumento patrimonial. Concluiu-se, assim, pela manutenção do lançamento de ofício.

Mas, se no Acórdão nº 3302-002.119, de 22 de maio de 2013, a decisão pendeu para o lado do Fisco, no exame de caso análogo realizado por outra turma do mesmo tribunal administrativo, envolvendo a autuação de outra revendedora varejista, sob condições contratuais semelhantes, a decisão pendeu para o lado do contribuinte. Com efeito, no julgamento que originou o Acórdão nº 3402-002.092, de 23 de julho de 2013, os julgadores, por maioria de votos, anularam o auto de infração que pretendia exigir o recolhimento da contribuição ao PIS e Cofins sobre as verbas comerciais. A ementa desse último encontra-se assim redigida:

“PIS e Cofins. Regime não Cumulativo. Descontos Obtidos. Reclassificação para Prestação de Serviços Diversos. Presunção Fiscal. Ônus da Prova.

Deve ser cancelado o lançamento baseado em presunção fiscal na hipótese de ausência de prova do elemento volitivo das partes em celebrar o contrato de prestação de serviço, consistente em uma obrigação de fazer da compradora em favor dos seus fornecedores, voltados à prestação serviços diversos por um preço certo, determinado ou determinável. Do mesmo modo, havendo contratos ‘atípicos’, que veiculam acordos comerciais prevendo o preenchimento de condições para a obtenção de descontos e/ou bonificações em operações comerciais, e não para a prestação de serviços de uma parte à outra, deve prevalecer a prova documental da existência dos acordos comerciais tendentes à concessão de descontos comerciais e bonificações em detrimento dos presumidos contratos típicos de prestação de serviços.” (Destacamos)

Diante da divergência entre julgados, é importante entender o escopo das relações jurídicas comerciais subjacentes, de modo a evitar que se distorçam os institutos de Direito Privado transpostos à hipótese de incidência respectiva.

3. O Posicionamento do Fisco do Estado de São Paulo

As autoridades fiscais do Estado de São Paulo também foram instadas a se manifestar acerca da qualificação jurídica dos descontos concedidos pelo fabricante nas operações de venda de determinado produto aos comerciantes varejistas, em razão da execução de verbas comerciais previstas em contratos de fornecimento: (i) a fidelidade do cliente, (ii) o histórico ou as metas de crescimentos já concretizados, (iii) a entrada centralizada de produtos, (iv) a compensação pela impossibilidade de troca de produtos defeituosos, (v) a inserção de produtos em campanhas publicitárias, (vi) a utilização de sistemas de informação para a cobrança.

No entanto, nas respostas às Consultas Tributárias nos 137/2008, 138/2008, 139/2008 e 140/2008, todas de 23 de dezembro de 2012, o Fisco estadual entendeu que, por constarem de contratos que estipulam condições para seu implemento, tais verbas comerciais teriam a natureza de descontos condicionais e não poderiam reduzir a base de cálculo do ICMS1.

4. A Complexidade para Qualificação Jurídica das Verbas Comerciais

A qualificação jurídica de uma dada verba comercial não ocorre isoladamente, mediante o simples cotejo da respectiva materialidade, mas depende da análise dos contextos econômico e jurídico (contratual) nos quais inserida.

Não é possível afirmar, de antemão, se a contrapartida recebida pela entrega da mercadoria em determinado tempo e lugar constitui uma receita de transporte (obrigação autônoma) ou um componente do preço de bens, serviços ou direitos (obrigação acessória), inclusive sob a forma de desconto (condicional ou incondicional). Na verdade, verbas comerciais com conteúdos idênticos, a depender dos mencionados contextos, podem caracterizar ora uma receita, ora um componente do preço para o fornecimento de outros itens.

É o caso das despesas de transporte e de seguro contratadas pelo vendedor e repassadas ao comprador nas operações de compra e venda de mercadorias, sob a cláusula CIF (Cost, Insurance and Freight). Como tais despesas são incorridas para o desempenho da atividade operacional principal, todo o preço cobrado pelo vendedor constitui uma receita de venda de mercadorias. Desde que existente uma vinculação direta entre as obrigações principal e acessória, não parece adequado dizer que o vendedor aufere, além de uma receita de venda de mercadorias, também uma receita de prestação de serviço de transporte ou mesmo de seguro.

Essa parece ter sido a ratio que presidiu a Solução de Consulta nº 208/2014, emitida pela Coordenação-Geral do Sistema de Tributação (Cosit) ao analisar os encargos financeiros incidentes sobre as operações de uma administradora de cartões de crédito:

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ.

Ementa: Administradora de cartões de crédito. Tributação com base no lucro presumido. Possibilidade de opção. Base de cálculo. Coeficiente de presunção.

As administradoras de cartões de crédito, desde que observadas as condições previstas em lei, podem optar pelo regime de tributação com base no lucro presumido, na condição de prestadoras de serviços.

As receitas auferidas por tais pessoas jurídicas, quando decorrentes de encargos de financiamento, taxas e tarifas, sujeitam-se ao coeficiente de presunção de 32% (trinta e dois por cento), para fins de apuração da base de cálculo do IRPJ, visto que estes, por decorrerem intrinsecamente dos serviços prestados, enquadram-se perfeitamente no conceito de receita bruta.

Por outro lado, as receitas provenientes de juros e multas de mora, cobrados em razão de inadimplência de clientes, devem ser integralmente adicionadas à base de cálculo, para efeito da incidência do tributo.

Dispositivos Legais: Lei Complementar nº 116, de 2003, item 15.01 da lista de serviços anexa; Lei nº 8.078, de 1990, art. 3º; Lei nº 9.249, de 1995, arts. 15, § 1º, III, ‘a’, e 20; Lei nº 9.430, de 1996, art. 25, alterado pela Lei nº 12.973, de 2014; Lei nº 9.718, de 1998, art. 14; Parecer Cosit nº 4, de 2004.” (Destacamos)

É latente, assim, a necessidade de sincronização entre os institutos de Direito Privado e os de Direito Tributário para a verificação da existência da mencionada vinculação direta entre as obrigações assumidas em dado negócio, eis que se correlacionam: (i) a formação do contrato tal como idealizado pelos particulares, como decorrência do exercício da autonomia privada; (ii) as concepções de custo e de preço; (iii) a unidade contratual (contrato misto) ou a pluralidade contratual (contratos coligados), a depender da vinculação existente entre a obrigação principal e as acessórias; (iv) a condição, como elemento acidental do contrato; e (v) a determinação dos aspectos temporal e quantitativo da hipótese de incidência tributária.

Tal providência se faz necessária uma vez que a atividade tributária recai, no caso dos tributos que incidem sobre a receita bruta, sobre os efeitos jurídicos de uma modalidade de negócio. A compatibilização entre as normas de incidência tributária e as peculiaridades jurídicas da transação é imprescindível.

A interação entre os aspectos acima citados autoriza alcançar duas conclusões. Em primeiro lugar, permite-se definir se a contraprestação pelo cumprimento de determinada obrigação constitui uma receita (obrigação autônoma) ou um mero componente do preço para o fornecimento de outro item principal (obrigação acessória). Em segundo lugar, tratando-se de obrigação contratual acessória, cuja contraprestação apresentar-se sob a forma de desconto, é possível especificar se se cuida de desconto incondicional ou de desconto condicional.

Para ilustrar a aplicação desses conceitos, mostra-se conveniente analisar a dinâmica das relações jurídicas estabelecidas entre as fornecedoras (geralmente, fabricantes) e as revendedoras varejistas, semelhantemente às situações tratadas nos julgados administrativos e nas respostas às consultas acima mencionadas.

Pois bem. As relações com grandes empresas varejistas, normalmente, são formalizadas em dois níveis contratuais. Em um acordo abrangente, denominado contrato de concessão comercial, são estipuladas as regras gerais que deverão governar os principais aspectos do relacionamento comercial entre o fornecedor e a varejista, inclusive as verbas comerciais. Já os negócios de compra e venda de produtos propriamente ditos, nos quais são especificados o produto, a quantidade e o respectivo preço, bem como a execução das verbas comerciais previstas no contrato de concessão comercial, estão contidos nos denominados contratos de aplicação. Ambos os tipos contratuais compartilham finalidades comuns. As previsões de um exercem influência sobre as disposições do outro. Elas serão analisadas a seguir.

O estudo das estipulações contidas em cada nível contratual permite vislumbrar o contexto negocial em que a verba comercial foi inserida, a função por ela desempenhada e os diversos critérios eleitos pelas partes para a formação dos preços das mercadorias.

Por evidente, o emprego dos institutos mencionados abaixo não está restrito aos negócios havidos somente no mercado varejista ou cujas relações estejam estruturadas por meio de contratos de concessão comercial e de contratos de aplicação. Apenas a análise é feita a partir das operações realizadas por esse setor em função da estrutura bem definida dos contratos, o que facilita a compreensão acerca da qualificação e do alcance das verbas comerciais manejadas e torna evidente, a nosso ver, a visualização dos fenômenos. Por esse motivo, as conclusões alcançadas podem, de maneira geral, ser transpostas para outros tipos de negócio jurídico que contemplem o elemento preço.

5. O Contrato de Concessão Comercial: um Contrato Misto

Por contrato de concessão comercial, entende-se um contrato atípico, um tipo social de contrato2, que se caracteriza pelas normas gerais que deverão disciplinar as diversas operações de compra e venda mercantil executadas pelas partes, visando à revenda de produtos a terceiros, em determinada zona.

O contrato de concessão comercial qualifica-se como um contrato-quadro, na dicção da doutrina civilista francesa3. Apenas estabelece a moldura, ou seja, os parâmetros para a execução das futuras e múltiplas operações de compra e venda mercantil, sem, contudo, absorvê-las4. Instaura-se, assim, uma relação econômico-jurídica complexa, estável e duradoura de colaboração, cuja execução demanda a celebração de futuros contratos de aplicação entre as partes.

Com efeito, há a integração de uma parte à rede de distribuição da outra5. Merece destaque a função econômica desempenhada pelo negócio jurídico em tela, qual seja, o escoamento da produção e o fornecimento de produtos, a depender da ótica analisada6.

Essa contratação-quadro agasalha em si - ademais da regulação geral do fornecimento de mercadorias - uma multiplicidade de obrigações outras que delineiam os contornos estratégicos para o escoamento e o fornecimento dos produtos e que se reputam acessórias ao negócio principal de compra e venda mercantil.

O contrato de concessão comercial é concebido, desse modo, como um contrato misto. O elemento ímpar para classificá-lo como tal reside em sua unidade estrutural, a despeito de constituir-se de “uma pluralidade de elementos de distintos tipos contratuais reunidos em um único negócio jurídico”7. Por assim dizer, há um contrato misto quando se combinam elementos próprios de tipos contratuais diversos, sem que eles constituam uma pluralidade de negócios8. O negócio jurídico em questão costuma reunir as seguintes obrigações acessórias:

“(...) (i) exclusividade do distribuidor; (ii) exclusividade do fornecedor; (iii) obrigatoriedade ou possibilidade de prestação de assistência técnica aos adquirentes, incluindo eventual treinamento de pessoal; (iv) obrigatoriedade de investimentos mínimos; (v) mandato ou empreitada para viabilizar o adimplemento da obrigação de garantia assumida pelo fornecedor; (vi) obrigatoriedade de o distribuidor informar ao fornecedor dados sobre o mercado e as preferências dos adquirentes; (vii) obrigações de empreender ou participar das despesas efetuadas com publicidade; (viii) vendas casadas; (ix) licença de uso de marca; (x) determinação ou sugestão de preços de revenda; (xi) aquisição mínima de certa quantia de produtos; (xii) manutenção de estoque e/ou peças de reposição; (xiii) proibição de venda para terceiros com escopo de diminuir os efeitos ou evitar a comercialização paralela dos produtos distribuídos com cláusula de exclusividade.”9

Como será visto, efeitos fiscais importantes poderão derivar de tal concepção, notadamente a impossibilidade de o fisco exigir o recolhimento de tributos autônomos sobre as verbas comerciais, quando estas puderem ser qualificadas como obrigações acessórias.

Considerando a complexidade da estrutura interna contida no contrato de concessão comercial, ínsita à pluralidade de obrigações constante de um único contrato, passa-se ao estudo da relação existente entre esse negócio jurídico e as diversas compras e vendas mercantis que lhe sucedem.

6. A Relação entre o Contrato de Concessão Comercial e os Contratos de Compra e Venda: um Contrato-quadro e os Diversos Contratos de Aplicação

Conforme já afirmado, os contratos de compra e venda mercantil são autônomos e não se encontram contidos no bojo do contrato de concessão comercial. Porém, são contratos interligados por determinado nexo de coligamento.

Consequentemente, deve-se reconhecer que o contrato de concessão comercial não cuida da transmissão de qualquer propriedade entre as partes envolvidas. Não há quaisquer obrigações de entregar coisa ou de efetuar pagamento de preço10. Esse contrato implica, exclusivamente, a obrigação de as partes negociarem, à luz da boa-fé objetiva, as compras e vendas mercantis sucessivas11; ou a obrigação de, no futuro, celebrarem-nas, emitindo as necessárias declarações negociais, havendo uma proximidade conceitual do contrato de concessão comercial com o contrato preliminar12.

Impõe-se, enfim, a pedra angular do regime de coligamento entre os contratos: a unidade de fim econômico expressa no escoamento da produção e no fornecimento de produtos13.

O ponto é importante para determinar as repercussões fiscais sobre o preço da operação de compra e venda mercantil, inclusive sobre a caracterização de descontos concedidos como condicionais ou incondicionais. Também é possível compreender o modo pelo qual a Fazenda Pública deve conceber o contrato de concessão comercial, para fins de definição da hipótese de incidência respectiva. Amparada nesta construção teórica, a condicionalidade dos descontos, expressa na futuridade e na incerteza, associa-se e guarda a sua parametrização no próprio negócio jurídico e nas consequências desta forma contratual.

7. A Caracterização do Desconto

Verifica-se que as atividades econômicas desempenhadas por uma empresa, muitas vezes, constituem-se da reunião de inúmeros atos sucessivamente concatenados entre si, para o atingimento de um fim comum.

Uma analogia que expressa esta ideia é a imagem de um cordão de pérolas14. Esse é constituído de um fio que perpassa cada uma das pérolas enfileiradas até alcançar o fecho. Se cada pérola correspondesse a um ato da atividade econômica, o fio que as une é a finalidade por elas almejada. Esta percepção, dir-se-ia simplória, permite que se vislumbre a atividade econômica como uma unidade indissociável das partes que lhe compõe e que visa a alcançar determinado resultado concreto.

A mesma leitura pode ser transposta para a análise tanto dos contratos de concessão comercial, quanto dos contratos de compra e venda mercantil, de maneira a visualizar as pérolas e o fio, ou seja, as obrigações pactuadas e o objeto do contrato. Esclareça-se que o fio apenas perpassa a pérola cujo encaixe seja com ele compatível. Da mesma forma são as cláusulas obrigacionais em um contrato, as quais apenas poderão ser reunidas, sob o prisma teleológico, caso sejam pertinentes ao atingimento do objeto do contrato.

Esse exame conforma-se à percepção relativa ao contrato misto, de acordo com o exposto anteriormente, o qual se caracteriza pela unidade estrutural/de conteúdo que se vislumbra no nexo existente entre as normas gerais para o fornecimento de mercadorias e as verbas comerciais.

A transposição desta construção permite uma compreensão unificada das obrigações pactuadas, considerando a sua aptidão de fomentar a função econômica desempenhada pelo negócio jurídico em tela, qual seja: o escoamento da produção e o fornecimento de produtos. Neste caso, absorvidas estão tais obrigações acessórias pelo objeto contratual global (em outras palavras, a natureza jurídica das diversas obrigações contratuais é uma só).

Consequentemente, a subsunção de um fato tributável à hipótese de incidência depende da compreensão finalística daquele fato de maneira unitária, não se concebendo isoladamente os atos da atividade, o que, diversamente, ensejaria a tributação autônoma de cada qual.

Eis a importância da qualificação jurídica de uma verba comercial, sob a acepção finalística então proposta, o que permite questionar a sua pertinência com a compra e venda mercantil, afastando-se a incidência autônoma sobre cada qual. Afinal, não faz sentido cobrar tributos próprios sobre as atividades de transporte ou de seguros vinculadas à operação de venda de mercadoria, na medida em que elas sejam acessórias, inerentes e essenciais ao desempenho da própria obrigação principal (venda de mercadoria).

Ao revés, se comprovado o deslocamento teleológico entre uma obrigação e o objeto contratual principal, tem-se que, ainda que formalmente inseridos no corpo do mesmo instrumento contratual celebrado pelas partes, materialmente não se trata de uma obrigação liquidada por uma verba comercial, podendo constituir uma prestação de serviço autônoma, possuidora de preço e geradora de nova receita e, devendo, por conseguinte, ser tributada, isolada e individualmente, pela hipótese de incidência respectiva. É o caso do frete contratado pelo vendedor e repassado ao comprador que contempla o transporte de outros bens, além das mercadorias vendidas.

Toda essa construção perpassa uma premissa causal do negócio jurídico.

Preliminarmente, é essencial um esclarecimento quanto ao próprio instituto em tela. A causa percorreu períodos de prestígio e de decadência, ao largo dos anos. Por assim dizer, foi e é muito mal compreendida por alguns doutrinadores, chegando uma parcela desses ao ponto de negar-lhe qualquer valor. Em paralelo, vivencia-se um movimento de seu resgate, com vistas, especialmente, a sistematizá-la e, portanto, a garantir-lhe a devida aplicação.

Explique-se: a causa é um importante instrumento de conformação de estruturas e de funções ao ordenamento jurídico em que inseridas. Em termos obrigacionais e contratuais, esta análise importa a aferição porque o interesse objetivo das partes, decorrente da autonomia privada, é considerado digno de tutela pelo Direito.

Destaque-se que, neste trabalho, a noção de causa é utilizada como sendo aquela final, pela qual se perquire o elemento teleológico a que se destina um negócio jurídico e o porquê. Deste modo, concebe-se lhe uma caracterização dual: causa abstrata e causa concreta.

Por causa abstrata, compreende-se o objetivo intrínseco de um negócio jurídico, aferido em consonância com o tipo contratual abstrato respectivo. Isto é, a percepção finalística é definida conforme os elementos essenciais do negócio jurídico puro e simples. Exemplificadamente, toma-se o tipo compra e venda, cuja causa abstrata reside na transferência de propriedade da coisa em troca do preço.

Por outro lado, a denominada causa concreta corresponde à finalidade perseguida pelas partes contratantes, quando da celebração de um determinado negócio jurídico. Desta feita, somam-se os elementos adotados em um negócio, especialmente aqueles acidentais, considerando-os como sendo uma unidade de desígnios objetivos comuns a ambas as partes, que pautam certa relação jurídica15.

Esta acepção causal permite que se confronte a causa concreta com aquela abstrata, buscando perquirir em que medida o critério finalístico concretamente averbado entre as partes adéqua-se àquele abstratamente positivado.

Desta maneira, constrói-se uma ferramenta de análise da adequação entre o propósito concretamente buscado pelas partes e o meio jurídico empregado para alcançar tal desiderato. Esta avaliação investiga a pertinência finalística da verba comercial, enquanto meio de conformação do elemento acidental estipulado em um determinado negócio jurídico ao tipo abstrato negocial.

Desta análise, podem resultar duas possibilidades.

Na primeira hipótese, a causa concreta da verba comercial se adéqua àquela abstrata do tipo negocial celebrado, estando ambas em uma mesma esteira finalística. Neste caso, fala-se na abrangência da causa concreta pela aquela abstrata, de maneira a se compreender os elementos essenciais e aqueles acidentais como sendo uma unidade causal, em que esses atendem àqueles. Em consequência, a receita oriunda da verba comercial (verba de transporte, por exemplo) terá a mesma natureza da receita relativa ao negócio principal (receita de venda de mercadoria), não sendo possível a tributação autônoma daquela (como receita de serviço de transporte).

Já na segunda hipótese, verifica-se uma discrepância entre a causa concreta e a causa abstrata, de maneira que a dissidência existente entre elas impede que o tipo abranja a verba comercial. Isto porque não há entre ambos uma relação de pertinência finalística, ou seja, não é o segundo apto a fomentar o primeiro. Neste caso, o elemento acessório descaracteriza o tipo, seja em razão de sua acepção autônoma em relação ao principal, seja pela total impossibilidade de transposição da causa concreta àquela abstrata. Em consequência, neste caso, a receita oriunda da verba comercial (verba de transporte) tem a natureza própria (receita de serviço de transporte), distinta daquela ostentada pelo negócio principal (receita de venda de mercadoria), sendo possível a tributação autônoma.

Um esclarecimento é fundamental. Alguém poderia dizer que a definição do critério de adequação constitui uma avaliação discricionária, marcada por elevada margem de subjetividade. Por isto, são apresentados determinados parâmetros, com vistas a garantir a este exame a devida objetividade.

Uma primeira aproximação desta problemática reside na analogia construída por Heck16 para a percepção dos conceitos jurídicos ditos indeterminados. O autor trabalha com a imagem de uma lâmpada, que possui uma zona de luz clara e outra escura e, entre elas, há uma zona de penumbra. O mesmo se dá com o aludido conceito. Ele tem uma zona de certeza positiva e uma zona de certeza negativa relacionadas com a sua aplicação. Entre elas há uma zona de penumbra, na qual paira a dúvida quanto à definição perseguida, em que cabe ao intérprete decidir, desde que motivadamente, sobre a pertinência ou não de uma hipótese ao conceito. E é exatamente o que se pretende realizar a seguir.

O contrato de concessão comercial, como já exposto, constitui um contrato misto, em que estão justapostas uma pluralidade de obrigações reputadas próprias de tipos diversos. No entanto, admite-se a preponderância das normas sobre a compra e venda mercantil, enquanto expressão da função econômica da operação, e consideram-se acessórias as demais obrigações (verbas comerciais), na medida em que guardem compatibilidade com a causa abstrata daquele tipo (elementos essenciais). Vale esclarecer que essa relação entre a obrigação principal e a acessória, aferida no contrato de concessão comercial, será espelhada nos diversos contratos de aplicação (contratos de compra e venda mercantil).

A qualificação jurídica das verbas comerciais é, destarte, absorvida pela qualificação da obrigação principal. Este exame de pertinência causal permite definir a zona de certeza positiva em voga, com fulcro em uma adequação direta.

Tal entendimento, no entanto, pode esbarrar em uma conformação causal imprecisa, razão pela qual se destaca a seguir determinados standards para controle da zona de penumbra.

Em primeiro lugar, diante de uma legítima manifestação da autonomia privada, deve a Fazenda Pública, como regra, ser deferente à estrutura negocial concluída entre as partes. Isto porque, reputa-se, a princípio, que as obrigações acessórias acrescidas aos elementos essenciais do tipo revelariam um planejamento comercial estratégico de livre pactuação entre os particulares envolvidos. Excetuadas estão, logicamente, as hipóteses de fraude e de simulação.

Em segundo lugar, esclareça-se que o exame relativo à aludida conformação causal é abstrato, no sentido de que o sucesso ou o insucesso verificado no plano concreto não deve influenciar em tal juízo.

E, finalmente, em terceiro lugar, o ônus da prova da desconsideração da qualificação do negócio imputado pelas partes compete ao Estado, em razão da primazia, prima facie, da autonomia privada.

Esses, portanto, são alguns parâmetros para atribuir a devida objetividade no momento de confrontar a causa abstrata do tipo contratual utilizado na operação com a causa concreta perseguida pelas partes.

8. A (In)condicionalidade do Desconto

Neste ponto, avalia-se a condicionalidade dos referidos descontos com fulcro nas noções de contrato-quadro e de contratos de aplicação, uma vez que a autonomia privada regulará a futuridade e a incerteza em questão.

Para tanto, expõe-se a seguinte linha de argumentação: (i) o que se entende, sob a ótica do Direito Privado, por condição; (ii) como conformar este conceito ao Direito Tributário; (iii) o caso do contrato de concessão comercial: a natureza base do contrato e a condicionalidade das prestações assessórias.

O artigo 121 do Código Civil determina que “[se] considera (...) condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto”.

Diante deste dispositivo, Caio Mário da Silva Pereira17 apresenta as características intrínsecas a este instituto: (i) a emissão de vontade; (ii) a incerteza objetiva sobre a ocorrência da eventualidade e, neste caso, duas podem ser as hipóteses contempladas: incertus an incertus quando (incerteza do acontecimento e do momento) e incertus an certus quando (incerteza do acontecimento e certeza do momento); e (iii) a futuridade da hipótese, não bastando para tanto o mero desconhecido das partes.

Ressalte-se também a classificação da condição quanto ao seu efeito, a saber: (i) a suspensiva, que impede a eficácia do negócio jurídico, até que haja o seu implemento, e (ii) a resolutiva, que exaure a referida eficácia, com a sua ocorrência.

Verifica-se, portanto, que o contrato condicional, a despeito da aparência de negócio jurídico puro, subordina-se a um evento que lhe atingirá os efeitos, de maneira que, enquanto pendente de uma condição, há nele a incerteza e a provisoriedade da sua eficácia. Este estado cessa, porém, com o acontecimento da eventualidade condicional ou com a verificação da sua efetiva inexistência18.

De acordo com o artigo 109 do Código Tributário Nacional, na atividade interpretativa, o aplicador do Direito deve recorrer aos princípios gerais de Direito Privado para definir os institutos contidos na norma jurídica, ressalvados os respectivos efeitos tributários. Esclarece Luís Eduardo Schoueri19 a dualidade de leituras depreendidas do dispositivo. Em uma primeira acepção, poder-se-ia sustentar a prevalência do Direito Tributário sobre o Direito Privado, pois se dissociam os efeitos tributários daqueles civis. Contudo, este não parece ser o melhor entendimento. Uma segunda compreensão busca conciliar a ambivalência semântica em voga, de maneira a permitir que o legislador tributário conceitue diversamente um instituto dito de Direito Privado; porém, caso ele não o faça “com tintas próprias”20, dever-se-á considerar o contexto em que estipulado.

Com base nessas considerações, citam-se as diversas normas tributárias acerca do assunto.

Estabelecem o artigo 31, parágrafo único, e artigo 57 da Lei nº 8.981/199521 (IRPJ e CSL); artigo 3º, parágrafo 2º, I, da Lei nº 9.718/199822 (PIS e Cofins); artigo 14, parágrafo 2º, da Lei nº 4.502/196423 (IPI)24; artigo 13, parágrafo 1º, II, “a”, da Lei Complementar nº 87/199625 (ICMS); e artigo 14 da Lei do Município de São Paulo nº 13.701/200326 e artigo 16, parágrafo 3º, da Lei do Município do Rio de Janeiro nº 691/198427 (ISS) a exclusão dos descontos incondicionais das bases de cálculo respectivas.

No âmbito federal, a incondicionalidade foi tratada na Instrução Normativa SRF nº 51/1978, item 4.2, segundo a qual os descontos incondicionais “são parcelas redutoras do preço de venda, quando constarem [n]a nota fiscal dos bens ou [na] fatura de serviços e não dependerem de evento posterior à emissão desses documentos”. Por conseguinte, destacam-se os seguintes elementos qualificadores: (i) a redução do preço do bem ou do serviço; (ii) a sua inclusão em nota fiscal ou em fatura (certeza); e (iii) a inexistência de evento futuro a condicionar-lhe a eficácia (atualidade).

O desconto incondicional também pode se manifestar sob a forma de bonificação de mercadorias. A bonificação é uma modalidade de desconto que consiste na entrega de uma quantidade maior de produto vendido ao invés de se conceder uma redução no valor da venda. O comprador das mercadorias é beneficiado com a redução do preço médio de cada produto, sem que isso implique diminuição do preço do negócio28.

Ao Direito Privado coube conceituar, expressamente, a condição. Sob a mesma roupagem, o legislador tributário instituiu o desconto incondicional, sendo que ao desconto condicional, neste caso, restou uma conceituação residual, em conformidade com a legislação civil.

Na análise de um contrato de concessão comercial, o entendimento de que o exame da condicionalidade das prestações acessórias (características do contrato misto) encerra-se na consideração, exclusiva, deste contrato-quadro ignora toda a sistemática negocial em tela. Esse contrato possui, reitere-se, a função de traçar a moldura obrigacional dentro da qual se concluirá uma pluralidade de relações outras (contratos de aplicação). Assim sendo, ele se caracteriza pela abertura e pela imprecisão dos termos que encerra, em contraposição ao caráter cerrado das cláusulas contidas nos diversos contratos de aplicação (compras e vendas mercantis) que se seguem.

Neste escopo negocial, a avaliação quanto à incerteza e à futuridade das prestações acessórias reside na análise dos contratos de aplicação, e não no contrato-quadro, o qual, esclareça-se, não constitui qualquer hipótese de incidência tributária. Com enfoque nestes contratos sucessivos, as cláusulas, anteriormente abertas, tornam-se precisas e descaracterizam a condicionalidade previamente verificada no contrato de concessão comercial. Afinal, a caracterização de um desconto condicional só poderia verdadeiramente ocorrer sobre um preço já formado.

Explique-se: este negócio jurídico estipula que, se a revendedora varejista optar por realizar determinada prestação acessória (verba comercial), surgirá para a fornecedora outra prestação acessória, correspondente a um ajuste no preço avençado (na espécie, a concessão de um desconto na operação de compra e venda mercantil).

A condicionalidade que se reputa existente, neste momento, no contrato de concessão comercial em nada contamina a definitividade a ser verificada, posteriormente, na formação do preço do contrato de aplicação, quando da conclusão da compra e venda mercantil propriamente. Eis que, no momento da conclusão das relações de aplicação, as partes - munidas da moldura em questão - determinam, precisamente, as obrigações imputadas a cada qual, formando definitivamente o preço. Em outras palavras, a execução da verba comercial prevista no contrato-quadro constitui um fato pressuposto na formação do preço do contrato de aplicação. Esse desconto é, portanto, incondicional.

Para ilustrar a explicação acima, vale mencionar os seguintes exemplos.

Primeiro exemplo: o contrato de concessão comercial prevê, como estímulo ao fortalecimento e à duração da relação comercial entre as partes, a atribuição de descontos progressivos sobre o preço de tabela, vigente no mês de referência, calculados em função do volume de mercadorias adquiridas pelo revendedor. Assim, para pedidos de compra de até 100 unidades, vale o preço de tabela; para pedidos entre 101 e 200 unidades, é concedido desconto de 10% sobre a referida base; para pedidos acima de 200 unidades, é concedido desconto de 20%. Não obstante as condições para fixação do preço estejam previamente contempladas no contrato de concessão comercial (contrato-quadro), o preço efetivamente praticado de relevância para fins fiscais é aquele constante no negócio de compra e venda de mercadorias (contrato de aplicação) relativo àquele específico mês. Trata-se, inequivocamente, de um desconto incondicional, que compõe a formação do próprio preço do contrato de compra e venda, mas que é destacado meramente para efeitos comerciais (demonstração da atribuição efetiva do desconto) ou gerenciais (controle de custos e de benefícios).

Segundo exemplo: tome-se a mesma situação fática acima descrita, mas altera-se, no contrato de concessão comercial, o momento de aplicação do benefício. Assim, se o desconto conquistado em um período (porque adimplidas as condições fixadas no contrato de concessão comercial) for aplicado sobre o preço do negócio de compra e venda de mercadorias do período seguinte (contrato de aplicação), a conclusão sobre a natureza do desconto deve ser exatamente a mesma do caso anterior. Trata-se de desconto incondicional.

Terceiro exemplo: um contrato de concessão comercial possui a previsão de uma verba de logística. Nesta fase do complexo negocial, a obrigação encerrada pela aludida cláusula é caracterizada pela condicionalidade, em razão da abertura do contrato-quadro quanto aos seus termos. Por sua vez, quando da celebração das operações de compra e venda (contratos de aplicação), verifica-se a determinação pelas partes da atualidade e da certeza da verba, na medida em que surge a obrigação, incondicional, para o fornecedor de entregar as suas mercadorias no centro de distribuição do revendedor, ao qual caberá transportar os bens até os postos de venda. A contrapartida por concentrar a entrega das mercadorias no centro de distribuição, distante dos múltiplos pontos de venda, consiste na concessão de um desconto incondicional sobre o preço dos bens vendidos pelo fornecedor em favor do revendedor.

Por assim dizer, em todos os exemplos, aquela verba que eventualmente poderia ser tida como condicional do contrato-quadro tornou-se incondicional quando da conclusão dos contratos de aplicação - momento em que se verifica, igualmente, os fatos tributáveis consequentes. Ressalte-se que, apenas nesta hipótese, pode-se falar no surgimento de uma obrigação tributária, uma vez verificada a ocorrência da hipótese de incidência em questão. Ora, se é assim, os requisitos da futuridade e da incerteza, inerentes à condição não existem na concretização deste fato tributável e, destarte, reconhece-se tratar de um desconto incondicional.

9. Conclusões

As verbas comerciais, assim consideradas as obrigações contratuais estabelecidas juntamente com a obrigação principal de fornecimento de bens, serviços ou direitos, podem ou não afetar o preço desta última, para fins de apuração dos tributos incidentes sobre a receita.

A influência das verbas comerciais na formação do preço do negócio principal deve ser verificada a partir da pertinência finalística entre as respectivas obrigações. Tal exame é feito por meio do manejo da causa do negócio jurídico, que constitui um importante instrumento de conformação de estruturas e de funções ao ordenamento.

A constatação da pertinência finalística permite afirmar que a qualificação jurídica das verbas comerciais, por representarem uma obrigação acessória, é absorvida pela qualificação da obrigação principal. É o que costuma acontecer, por exemplo, com a despesa de frete, incorrida pelo vendedor, na operação de venda de mercadoria sob a cláusula CIF. Nessa circunstância, o preço do negócio principal pode ser afetado, para fins fiscais, para mais (o preço final agrega tanto o preço da mercadoria quanto o preço de transporte). Mas, pode acontecer de determinada verba comercial afetar o preço para menos.

Modificando o preço para menos e sendo contemporâneo à conclusão do negócio principal, vislumbra-se a concessão de um desconto incondicional. A distinção feita ao longo do presente trabalho entre contrato-quadro e contratos de aplicação busca demonstrar que a condicionalidade da verba comercial, existente no primeiro contrato, não interfere a qualificação de tal desconto como incondicional, por ocasião da conclusão do segundo contrato, representativo da compra e venda mercantil propriamente dita. Isto é, a execução da verba comercial, condicionalmente prevista no contrato-quadro, constitui um fato pressuposto na formação do preço do contrato de aplicação.

Por outro lado, constatada a ausência de pertinência finalística, a verba comercial constitui uma obrigação autônoma, cuja contraprestação representa uma receita passível de tributação, de acordo com a respectiva natureza jurídica. Nessa hipótese, o preço do negócio principal não é afetado, para fins fiscais.

1 Adicionalmente, o fato de as notas fiscais ou faturas emitidas não preverem a dedução do desconto sobre o preço foi fator preponderante para o Fisco Estadual Paulista ter considerado que não se trata de desconto incondicional, fundamentando-se tal entendimento a partir da Instrução Normativa SRF nº 51/1978.

2 SILVA, João Calvão da. Estudos jurídicos (Pareceres). Coimbra: Almedina, 2001, p. 192.

3 Adota-se, neste artigo, a nomenclatura “contrato-quadro”, por ser essa a usualmente utilizada pela doutrina brasileira. No entanto, a rigor, a noção de “contrat-cadre” melhor seria transposta para o Português sob a denominação “contrato-moldura” (SOARES, Guido Fernando Silva. Órgãos dos Estados nas relações internacionais: formas da diplomacia e as imunidades. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 134. Apud FORGIONI, Paula A. Contrato de distribuição. 2ª ed. São Paulo: RT, 2008, p. 78).

4 GHESTIN, M. Jacques. “Les spéficités françaises. La notion de contrat-cadre et les enjeux théoriques et pratique”. Le contrat-cadre de distribution enjeux et perspectives. Colloque du 11-12 decémbre 1996. La Semaine Juridique Édition Entreprise. Paris, Supplément ¾, n. 31-35, julho de 1997.

5 SILVA, João Calvão da. Op. cit., pp. 192-193.

6 FORGIONI, Paula A. Op. cit., p. 54.

7 KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contratuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 149.

8 MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos coligados no Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 111.

9 FORGIONI, Paula A. Contrato de distribuição. 2ª ed. São Paulo: RT, 2008, pp. 65-66.

10 SILVA, João Calvão da. Op. cit., p. 192.

11 GHESTIN, M. Jacques. Op. cit.

12 Forgioni afirma que “entre nós (e mesmo entre os franceses e os italianos), o contrato-quadro assume caráter de contrato prévio em face dos contratos de aplicação. Assim sendo, em nosso sistema, a efetivação das cláusulas do contrato-quadro de distribuição deverá passar pelos percalços característicos da execução dos acordos preliminares” (FORGIONI, Paula A. Op. cit., pp. 79-80).

Admite-se, todavia, este entendimento, quando diante de cláusulas contratuais que fixem quantitativos mínimos (reais ou percentuais) de compras. Nesta hipótese, o contrato de concessão comercial guarda grande similitude com o contrato preliminar, na medida em que surge uma obrigação de celebrar contratos futuros de compra e venda ao menos neste critério mínimo.

13 SILVA, João Calvão da. Op. cit., p. 194.

14 Referência à analogia construída por José Carlos Barbosa Moreira (O novo processo civil brasileiro. Exposição sistemática do procedimento. 29ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012, pp. 4 e ss.), segundo o qual, o processo guardaria semelhança com um colar de pérolas, na medida em que cada ato (“pérola”) que lhe compõe, muito embora aparentemente autônomo, seria, em realidade, unido, finalisticamente, por uma relação jurídica processual (“fio”).

15 Para um aprofundamento do estudo da causa dos negócios jurídicos e sua relação com o Direito Tributário, vide BOZZA, Fábio Piovesan. Planejamento tributário e autonomia privada. Dissertação (Mestrado em Direito). São Paulo: USP, 2014, pp. 85 e ss., 250 f.

16 HECK, Philipp. Interpretação da lei e jurisprudência dos interesses. São Paulo: Saraiva, 1947.

17 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Introdução ao Direito Civil. Teoria geral de Direito Civil. V. I. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 474-477.

18 Ibidem, pp. 477-479.

19 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 644-646.

20 Ibidem, p. 645.

21 Artigo 31, parágrafo único: “Na receita bruta, não se incluem as vendas canceladas, os descontos incondicionais concedidos (...).” (Destacou-se) Artigo 57: “Aplicam-se à Contribuição Social sobre o Lucro as mesmas normas de apuração e de pagamento estabelecidas para o imposto de renda das pessoas jurídicas, inclusive no que se refere ao disposto no art. 38, mantidas a base de cálculo e as alíquotas previstas na legislação em vigor, com as alterações introduzidas por esta Lei.”

22 Artigo 3º, parágrafo 2º: “Para fins de determinação da base de cálculo das contribuições a que se refere o art. 2º, excluem-se da receita bruta: I - as vendas canceladas, os descontos incondicionais concedidos (...).” (Destacou-se)

23 Artigo 14, parágrafo 2º: “Não podem ser deduzidos do valor da operação os descontos, diferenças ou abatimentos, concedidos a qualquer título, ainda que incondicionalmente.” (Destacou-se)

24 Artigo 13, parágrafo1º: “Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo: II - o valor correspondente a: a) (...) descontos concedidos sob condição.” (Destacou-se)

25 A inconstitucionalidade do aludido dispositivo foi objeto do Recurso Extraordinário nº 567.935, com repercussão geral reconhecida, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que se declarou a inconstitucionalidade o parágrafo 2º do artigo 14 da Lei nº 4.502/1964, com redação dada pelo artigo 15 da Lei nº 7.798/1989, entendendo que os descontos incondicionais não estão abrangidos na base de cálculo do IPI. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento consolidado no sentido de reputar impossível a integração do desconto incondicional à base de cálculo do IPI. Vide Recurso Especial nº 477.525 de relatoria do Ministro Luiz Fux.

26 Artigo 14: “A base de cálculo do Imposto é o preço do serviço, como tal considerada a receita bruta a ele correspondente, sem nenhuma dedução, excetuados os descontos ou abatimentos concedidos independentemente de qualquer condição.” (Destacou-se)

27 Artigo 16, parágrafo 3º: “Os descontos ou abatimentos concedidos sob condição integram o preço do serviço.” (Destacou-se)

28 Sobre a possibilidade de a bonificação de mercadorias configurar desconto incondicional, vide o acórdão da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça preferido no julgamento do Recurso Especial nº 1.111.156/SP, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 14.10.2009.