O Supremo Tribunal Federal e a (in)coerência Interpretativa: o Caso da Quebra de Sigilo Bancário
The Brazilian Supreme Court and the Incoherence Interpretative: the Case of Breach of Bank Secrecy
Martha Leão
Professora de Direito Tributário da Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo/SP. Doutora e Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo. Mestre em Teoria do Direito e Democracia Constitucional pelo Istituto Tarello per la Filosofia del Diritto/Università Degli Studi di Genova. Advogada em São Paulo. E-mail: martha.leao@humbertoavila.com.br.
Recebido em: 19-08-2019
Aprovado em: 22-10-2019
Resumo
O presente artigo objetiva analisar criticamente a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao art. 5º, inciso XII, da Constituição, que trata do direito ao sigilo de dados bancários e da permissão, excepcional, de que este sigilo seja quebrado por meio de decisão judicial. Do ponto de vista do Direito Tributário, em 2015, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.390, flexibilizou referido direito ao sigilo de dados bancários e entendeu como constitucional o acesso da Receita Federal a estes dados sem decisão judicial para fins de fiscalização tributária. Do ponto de vista do Direito Penal, contudo, em decisão monocrática recente do Ministro Dias Toffoli no Recurso Extraordinário n. 1.055.941, foi determinada a suspensão de todos os processos penais em trâmite no Brasil em que tenha havido compartilhamento de dados bancários sem autorização judicial. O objeto deste artigo, portanto, é a divergência interpretativa do Supremo Tribunal Federal com relação ao mesmo dispositivo e a análise de suas consequências.
Palavras-chave: sigilo bancário, direito de privacidade, interpretação, coerência.
Abstract
The present article aims at critically analyzing the interpretation given by the Brazilian Supreme Court to article 5, item XII of the Brazilian Constitution, which deals with the right to bank secrecy and the exceptional permission that this confidentiality be breached by judicial decision. From the point of view of Tax Law, in 2016, the Brazilian Supreme Court, in the judgment of the Direct Action of Unconstitutionality n. 2.386, eased the referred right to bank secrecy and understood as constitutional the Federal Revenue access to these data without judicial decision for tax inspection purposes. From the point of view of criminal law, however, in a recent monocratic decision of Minister Dias Toffoli in Extraordinary Appeal n. 1.055.941, the suspension of all criminal proceedings pending in Brazil in which bank data was shared without judicial authorization was determined. The object of this article, therefore, is the interpretative divergence of the Federal Supreme Court regarding the same provision and the analysis of its consequences.
Keywords: bank secrecy, right of privacy, interpretation, coherence.
“Due process is severely jeopardized if the end justifies the means.” (SEER, Roman)1
“O presente debate diz respeito àquilo que é mais essencial ao Direito em geral e ao Direito Tributário em particular: sua função de limitar o poder do Estado e de garantir e promover o exercício de direitos fundamentais no âmbito do Estado de Direito.” (ÁVILA, Humberto)2
Introdução
No dia 15 de julho de 2019, o Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu, por meio de decisão monocrática proferida no Recurso Extraordinário n. 1.055.941, todas as investigações e ações penais instruídas com informações repassadas por órgãos de controle ao Ministério Público sem autorização judicial. O pedido foi formulado no âmbito do processo penal contra Senador da República investigado por malversação de fundos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Sua defesa afirmava que o inquérito se basearia em informações enviadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF ao Ministério Público sem autorização judicial, o que caracterizaria quebra inconstitucional de sigilo bancário.
A decisão do Ministro Dias Toffoli, portanto, ainda que liminar, antecipa uma determinada interpretação do disposto no art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal, cujo teor assim determina: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
O texto constitucional não comporta dúvidas acerca do sentido preliminar das suas palavras neste dispositivo: a regra geral prescrita pela Constituição é a inviolabilidade do sigilo de dados (dentre eles, os dados bancários) e a exceção autorizada pela Constituição refere-se tão somente à hipótese de investigação penal (condição um) somada à prévia autorização judicial (condição dois). O sentido desta regra constitucional, portanto, é bastante enfático: a quebra de sigilo de dados depende, para estar de acordo com a Constituição, de investigação penal somada à prévia autorização judicial. Fora desta hipótese restrita, não há constitucionalidade na quebra de sigilo de dados. Desse modo, do ponto de vista da sua compatibilidade com a Constituição, há que se apontar a correção da decisão liminar tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesse caso.
Há, contudo, um problema a ser enfrentado. Esta interpretação, que privilegia o teor do disposto no texto constitucional, não era a interpretação adotada (até este momento) pelo Supremo Tribunal Federal. Com efeito, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.390, em 17 de fevereiro de 2015, de Relatoria do próprio Ministro Dias Toffoli, o Tribunal decidiu que esta regra constitucional deveria ser interpretada como um princípio sujeito à flexibilização e que não haveria quebra de sigilo de dados pela “transferência”, sem decisão judicial, dos dados bancários dos contribuintes à Receita Federal para fins de fiscalização tributária. Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal autorizou a quebra de sigilo de dados para casos de fiscalização, no interesse do Estado, sem prévia autorização judicial. As duas condições impostas pela Constituição, por conseguinte, foram flexibilizadas na jurisprudência da Corte em prol do interesse do Estado de ter acesso aos dados bancários dos cidadãos.
O objeto deste artigo reside na análise da (in)compatibilidade destas duas decisões do Supremo Tribunal Federal com relação ao mesmo dispositivo constitucional, cujo teor não sofreu qualquer alteração entre 2015 e 2019. O que este artigo pretende demonstrar é a irracionalidade de duas interpretações absolutamente divergentes com relação ao mesmo dispositivo constitucional: as decisões proferidas criam duas normas opostas com relação ao mesmo dispositivo, o que as tornam incompatíveis. Este cenário impõe ao Tribunal uma revisão do precedente anterior relativamente ao Direito Tributário, como forma de assegurar a coerência do exercício do controle de constitucionalidade pela Corte. É o que se passa a analisar.
1. O direito ao sigilo de dados bancários na Constituição
A Constituição não poderia ter sido mais clara em definir o sigilo de dados como um direito fundamental. Em seu art. 5º, inciso XII, ela estabelece ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. O dispositivo, por conseguinte, estabelece uma regra fechada, cujas únicas exceções são aquelas especificamente detalhadas (investigação criminal ou instrução processual penal) e no modo como detalhadas (por autorização judicial). Mais do que definir as hipóteses nas quais a regra geral não seria aplicada, a regra definiu como isso aconteceria, ou seja, o instrumento por meio do qual as hipóteses excepcionais seriam aplicadas. Não há nenhum espaço aqui para dúvidas com relação à existência de uma proteção constitucional por meio de regra com relação ao sigilo de dados. Embora não seja um direito absoluto, o meio para a sua restrição foi expressamente indicado pelo texto constitucional: por ordem judicial.
Assim, a mera ampliação das hipóteses nas quais o sigilo poderia ser quebrado, para abranger também situações tributárias e não apenas penais, já seria problemática frente ao texto constitucional brasileiro3. A situação, no entanto, se torna ainda mais grave na medida em que se discute a possibilidade de esta quebra de sigilo ocorrer somente a partir de uma decisão da autoridade fiscalizadora, agente diretamente interessado no caso, sem a participação judicial para regular este conflito. Não se trata de uma questão meramente formal. Enquanto nos casos de Direito Privado o Estado atua como um terceiro desinteressado com relação aos interesses dos sujeitos privados, no Direito Tributário e no Direito Penal isso é diferente: apenas o juiz tem este distanciamento necessário para a imposição de um balanço razoável entre o interesse das partes4.
Não se ignora que, para parte da doutrina, a proteção dos direitos dos contribuintes seria mais apropriada do ponto de vista do direito infraconstitucional, devido às necessidades constantes de adaptação decorrentes da interação entre autoridade fiscal e contribuinte num cenário em transformação5. Não foi esta, no entanto, a postura adotada pela Constituição brasileira: o texto constitucional antecipou uma série de conflitos entre os interesses arrecadatórios do Estado e os interesses dos contribuintes, estabelecendo, de antemão, como eles deveriam ser ponderados por meio de regras6. O conflito entre o sigilo e a privacidade dos contribuintes, de um lado, e o interesse fazendário de acessar estas informações, de outro lado, é um exemplo deste posicionamento. A Constituição optou expressamente pela preservação do primeiro, salvo autorização judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (art. 5º, inciso XII).
2. A interpretação conferida pelo STF ao art. 5º, XII, da CF, na ADIn n. 2.390
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal julgou cinco processos que questionavam o art. 6º da Lei Complementar n. 105/2001, regulamentado pelo Decreto n. 3.724/2001, que permite aos bancos fornecerem dados bancários de contribuintes à Receita Federal, sem prévia autorização judicial. O tema estava em discussão no Recurso Extraordinário n. 601.314, com repercussão geral reconhecida, e em quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que também contestavam a flexibilização do sigilo das operações financeiras.
Ajuizadas por partidos políticos e confederações patronais, as ações sustentavam que o dispositivo seria inconstitucional por violação ao art. 5º, incisos X e XII, da Constituição. As quatro ações foram relatadas pelo Ministro Dias Toffoli, que preparou relatório e voto conjunto para o julgamento, posicionando-se pela constitucionalidade e sendo seguido pela maioria dos ministros. Apenas os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello votaram pela exigência de decisão judicial para o acesso aos dados e, portanto, pela inconstitucionalidade da lei7. Vale dizer que aquela decisão já se tratava de uma mudança de posicionamento da Corte, que possuía decisão anterior de seu Plenário considerando inconstitucional a lei que previa o acesso de dados bancários pela Receita Federal sem a necessidade de decisão judicial. A decisão anterior, por maioria, considerava que a Constituição garantia a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo do Judiciário. Sob esta fundamentação, o entendimento anterior considerava inconstitucional norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte8.
Em ambas as ocasiões julgava-se exatamente o mesmo tema, ou seja, a norma que deveria ser reconstruída a partir do art. 5º, inciso XII, para saber se ela autorizava ou não que, para fins tributários, se flexibilizasse a exigência de autorização judicial para permitir o acesso pelas autoridades fiscais aos dados bancários dos contribuintes. A decisão, adotada pelo mesmo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, era exatamente a de que o dispositivo constitucional deveria ser reconstruído como uma regra no sentido de proteção à privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações. Regra esta cuja única exceção (a quebra do sigilo) seria submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, apenas para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. Com base nesta fundamentação, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu que “conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte”9. Em outras palavras, o entendimento anterior, de 2011, considerava inconstitucional norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.
Decisão absolutamente contrária, contudo, foi adotada no julgamento de 2015 pelo mesmo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal analisando, reitera-se, o mesmo tema. A fundamentação utilizada pelo Ministro Relator, condutor do voto prevalecente, para justificar esta decisão baseia-se na ideia de dever fundamental de pagar tributos, que é destacado por ele como um verdadeiro compromisso internacional do país, como se verifica na seguinte passagem:
“[...] tenho por relevante, nos presentes feitos, abordar em separado dois elementos que refletem, em essência, minha compreensão quanto ao tema: (i) a inexistência, nos dispositivos combatidos, de violação a direito fundamental (notadamente de violação à intimidade), pois não há ‘quebra de sigilo bancário’, mas, ao contrário, a afirmação daquele direito; e (ii) a confluência entre os deveres do contribuinte (o dever fundamental de pagar tributos) e os deveres do Fisco (o dever de bem tributar e fiscalizar), esses últimos com espeque, inclusive, nos mais recentes compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.” (STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.390, Voto do Ministro Relator Dias Toffoli, j. 17.02.2015, p. 9 do Acórdão)
São várias as críticas que devem ser apresentadas à fundamentação do Supremo Tribunal Federal nesse caso. Ultrapassada a questão da proteção ao sigilo dos dados, o Ministro passa a justificar sua decisão com base, primeiro, no dever fundamental de pagar tributos e, segundo, com base em compromissos internacionais vinculados ao combate à sonegação. Em síntese, o Ministro Dias Toffoli, citando Nabais, afirma que pagar tributo no Brasil é um dever fundamental alicerçado na ideia de solidariedade: “evidencia-se a natureza solidária do tributo, o qual é devido pelo cidadão pelo simples fato de pertencer à sociedade, com a qual tem o dever de contribuir. O dever fundamental de pagar tributos estaria, pois, alicerçado na ideia de solidariedade social.”10 Desta constatação, o Ministro chega à seguinte consequência: “sendo o pagamento de tributos, no Brasil, um dever fundamental, [...] é preciso que se adotem mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal”. Até aqui, nenhuma incorreção em seu posicionamento.
O problema de sua argumentação é evidenciado apenas quando se percebe que em nenhum momento o Ministro limita estes mecanismos àqueles autorizados pela Constituição. A não submissão destes mecanismos à Constituição fica clara na sequência do voto, em que o Ministro fundamenta sua convicção nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil com relação à transparência e ao intercâmbio de informações financeiras, como, por exemplo, as ações vinculadas à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Portanto, os padrões internacionais impõem – segundo o Ministro – a adoção destes mecanismos, porque o entendimento em sentido contrário “poderia representar um retrocesso de nosso país em matéria de combate à sonegação fiscal e a uma série de crimes”11. Desse modo, com base no argumento de necessidade de alinhamento da jurisprudência constitucional brasileira aos “padrões internacionais”, o acórdão conclui pela flexibilização da regra atinente ao sigilo fiscal.
Independentemente dos equívocos desta fundamentação, importa para este artigo a norma criada pela interpretação realizada pelo Supremo Tribunal Federal nesta decisão: entendeu-se, por maioria, que o disposto no art. 5º, inciso XII, da Constituição, seria um princípio (no caso, o princípio da privacidade) cujo teor deveria ser objeto de ponderação com outros princípios diante do suposto conflito de normas (nesse caso, princípio da privacidade versus interesse da Fiscalização e da sociedade no combate à sonegação ou, simplesmente, com base no dever fundamental de pagar tributos)12. Por essa razão, entendeu-se que a norma decorrente do art. 5º, inciso XII, da Constituição, teria a natureza de um princípio flexível com relação à sua aplicabilidade, podendo ser derrotada diante do interesse do Estado (nesse caso, tributário). A norma reconstruída pelo Supremo Tribunal Federal, portanto, poderia ser assim sumarizada: “é constitucional o acesso aos dados bancários dos cidadãos para fins de cumprimento do dever de Fiscalização por parte do Estado”.
3. A interpretação conferida pelo STF ao art. 5º, XII, da CF, no RExt n. 1.055.941
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar novamente sobre a interpretação a ser conferida ao art. 5º, inciso XII, da Constituição. Trata-se de decisão ainda liminar proferida no âmbito do Recurso Extraordinário n. 1.055.941, pelo Ministro Presidente da Corte, Dias Toffoli. Por meio de decisão monocrática, o Ministro determinou a suspensão de todas as investigações e ações penais instruídas com informações repassadas por órgãos de controle ao Ministério Público sem autorização judicial. Esta decisão, em sua parte relevante à presente discussão, determinou a suspensão do processamento de todos os processos judiciais em andamento que versem sobre o tema 990 da Repercussão Geral. Este tema está assim ementado:
Tema 990: “Possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário.”
Assim, exercendo seu poder de cautela, o Ministro Dias Toffoli pontua a necessidade de que se verifique a compatibilidade com a Constituição do compartilhamento de dados bancários dos contribuintes para fins de instrução penal sem decisão judicial. A decisão do Ministro Dias Toffoli, portanto, ainda que liminar, antecipa uma determinada interpretação do disposto no art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal. Considerando a exigência da prescrição constitucional de que o sigilo de dados é a regra e a exceção é o seu compartilhamento, desde que para fins penais e com decisão judicial, não há que se fazer qualquer ressalva acerca deste entendimento – que, reitera-se, ainda precisará ser confirmado pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal.
Ainda assim, para os fins deste artigo importa destacar, de um lado, a compatibilidade desta interpretação com o sentido preliminar do texto constitucional no que diz respeito à regra de privacidade dos dados prescrita pelo art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal; e, de outro lado, a incompatibilidade desta interpretação com a norma já criada pelo próprio Supremo Tribunal Federal com relação exatamente ao mesmo dispositivo. É o que se passa a analisar.
4. A incoerência argumentativa na criação de duas normas incompatíveis entre si
A coerência é um postulado normativo. Coerência, do ponto de vista semântico, conota a ideia de “qualidade, condição ou estado de harmonia entre dois fatos ou duas ideais; relação harmônica/conexão”13. Não há um descompasso entre esta definição semântica e o postulado da coerência para o Direito. Nas palavras de Bracker, “um conjunto de sentenças é substancialmente coerente se houver uma conexão positiva entre seus elementos”14. Coerência não significa apenas consistência lógica, não obstante esta faça parte da ideia de coerência. Trata-se de uma exigência maior que esta e que pode ser observada em graus. Nesse sentido, Peczenick destaca que “quanto mais as declarações pertencentes a uma dada teoria se aproximam de uma estrutura de suporte perfeita, mais coerente esta teoria”15.
Segundo Ávila, um conjunto de proposições qualifica-se como coerente se preenche os requisitos de (i) consistência e (ii) completude. De um lado, consistência significa ausência de contradição: um conjunto de posições é consistente se não contém, ao mesmo tempo, uma proposição e sua negação. De outro lado, completude significa a relação de cada elemento com o restante do sistema, em termos de integridade (o conjunto de proposições contém todos os elementos e suas negações) e de coesão inferencial (o conjunto de proposições contém suas próprias consequências lógicas)16. O debate aqui enfrentado, portanto, possui um problema de consistência, na medida em que as duas normas recriadas pela interpretação conferida ao mesmo dispositivo constitucional pelo Supremo Tribunal Federal são incompatíveis entre si, de tal sorte que sendo uma verdadeira, a outra necessariamente terá de ser falsa.
De um lado, na decisão tomada em 2015 pelo Supremo Tribunal Federal, entendeu-se que o disposto no art. 5º, inciso XII, da Constituição, seria um princípio (princípio da privacidade) cujo conteúdo poderia ser objeto de ponderação com outros princípios diante de suposto conflito de normas (naquele caso, princípio da privacidade versus interesse da Fiscalização e da sociedade no combate à sonegação ou, simplesmente, com base no dever fundamental de pagar tributos). Ou seja, entendeu-se que a norma decorrente do art. 5º, inciso XII, da Constituição, teria a natureza de um princípio flexível com relação à sua aplicabilidade, podendo ser derrotada diante do interesse do Estado (naquele caso, tributário). A norma reconstruída pelo Supremo Tribunal Federal, naquela ocasião, poderia ser assim sumarizada: “é constitucional o acesso aos dados bancários dos cidadãos para fins de cumprimento do dever de Fiscalização por parte do Estado”. Esta regra não encontrava referibilidade no sentido preliminar do texto constitucional, mas, ainda assim, foi a norma criada pelo Supremo Tribunal Federal em seu papel de intérprete da Contribuição.
De outro lado, em 2019, o Supremo Tribunal Federal, ainda que em caráter monocrático por decisão do seu Presidente, o Ministro Dias Toffoli, entendeu que o disposto no art. 5º, inciso XII, da Constituição, seria uma regra (“é inviolável o sigilo de dados, [...] salvo por ordem judicial [...] para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”). Por essa razão, entendeu-se que este dispositivo não deveria ser objeto de ponderação com outros princípios diante do suposto conflito de normas (nesse caso, regra da privacidade versus interesse do Estado na investigação criminal). A norma reconstruída pelo Supremo Tribunal Federal, nessa ocasião, poderia ser assim sumarizada: “é inconstitucional o acesso aos dados bancários dos cidadãos para fins de cumprimento do dever de Fiscalização por parte do Estado”.
Isso significa dizer que, enquanto na decisão de 2015, o Supremo Tribunal Federal criou a norma A (“é constitucional o acesso aos dados bancários dos cidadãos para fins de cumprimento do dever de Fiscalização por parte do Estado”), o mesmo Tribunal, em 2019, sem qualquer alteração no dispositivo constitucional criou a norma não-A (“é inconstitucional o acesso aos dados bancários dos cidadãos para fins de cumprimento do dever de Fiscalização por parte do Estado”). Estas duas normas, no entanto, são absolutamente incompatíveis entre si e não podem, ao mesmo tempo, subsistir no mesmo ordenamento jurídico. O dever de coerência implica a proibição de reconhecimento de validade de duas normas contraditórias17. Não se pode, com o perdão da obviedade desta afirmação, arguir de modo racional que ao mesmo tempo em que é constitucional a quebra de sigilo bancário para fins fiscalizatórios também é inconstitucional a quebra deste mesmo sigilo para fins fiscalizatórios.
O fato de estas normas terem sido criadas diante de discussões em dois ramos do Direito (Tributário e Penal) é irrelevante para o caso, porque o dispositivo constitucional é exatamente o mesmo e o interesse fiscalizatório do Estado também. Os direitos dos cidadãos diante do poder fiscalizatório do Estado servem tanto no Direito Tributário como no Direito Penal para a proteção do mesmo bem jurídico fundamental, qual seja, o direito fundamental de liberdade. O Direito Tributário atua diretamente sobre os direitos de liberdade e de propriedade em geral, interferindo na liberdade de conduta a partir da imposição de exações que incidirão, de forma diferente, sobre uma ou outra operação. Há um vínculo importante entre os direitos fundamentais de liberdade e a proteção da propriedade. Como a liberdade significa, em síntese, o reconhecimento da autonomia na tomada de decisões sobre a própria vida, as decisões atinentes a como gerir o seu patrimônio vinculam-se diretamente a ela. A justificação do direito de propriedade privada vincula-se à autonomia da pessoa e à necessidade de controlar individualmente seus recursos econômicos. Reconhece-se, por meio desta garantia fundamental, a importância da maximização da riqueza social com base em um sistema amplo de propriedade privada que crie as condições mais adequadas para o incremento desta riqueza18.
Nas palavras de Rodi, as normas tributárias atuam como “encurtamentos imperativos” (imperative Verkürzungen) do núcleo da esfera privada de liberdade (privaten Freiheitssphäre)19. Há, assim, uma relação direta entre a tributação e as liberdades de autodeterminação, de exercício de atividade econômica e de exercício profissional. O direito fundamental de liberdade pressupõe a autonomia de escolha com relação ao que fazer e ao como fazer. Isso faz parte do núcleo do direito fundamental de liberdade e de livre exercício de atividade econômica, sendo, por isso, protegido de qualquer discussão por parte da autoridade fiscal20.
A atuação do Estado enquanto agente fiscalizador no interesse da sociedade para arrecadar tributos (Direito Tributário) e punir os atos com rejeição social (Direito Penal), portanto, lida diretamente com o mesmo bem jurídico: a liberdade dos cidadãos, em uma relação verticalizada com o Estado. Sendo assim, os direitos e garantias fundamentais prescritas pela Constituição em defesa dos cidadãos como forma de coibir o arbítrio da atuação estatal não devem, de nenhum modo, ser interpretadas e aplicadas de forma distinta. Afinal, o postulado normativo da coerência também impede que a argumentação judicial seja arbitrária e, deste modo, orientada para a construção de normas que sirvam apenas aos interesses do julgador para solução particularista de casos concretos21.
Conclusões
As considerações anteriores permitem concluir que a decisão mais recente proferida pelo Supremo Tribunal Federal com relação ao disposto no art. 5º, inciso XII, da Constituição é a interpretação mais acertada com relação ao sentido preliminar do texto constitucional. Esta decisão, no entanto, colide frontalmente com o precedente da Corte firmado no julgamento do mesmo dispositivo constitucional aplicado à proteção dos dados bancários dos contribuintes para fins de fiscalização tributária.
Desse modo, é fundamental que o Supremo Tribunal Federal reanalise a interpretação a ser conferida ao art. 5º, inciso XII, da Constituição para determinar, afinal, qual é a norma decorrente deste dispositivo: se é a norma estabelecida pela decisão de 2015 (norma A: “é constitucional o acesso aos dados bancários dos cidadãos para fins de cumprimento do dever de Fiscalização por parte do Estado”), ou se é a norma estabelecida por esta decisão de 2019 (norma não-A: “é inconstitucional o acesso aos dados bancários dos cidadãos para fins de cumprimento do dever de Fiscalização por parte do Estado”). Estas duas normas, no entanto, são absolutamente incompatíveis entre si e não podem, ao mesmo tempo, subsistir no mesmo ordenamento jurídico.
A manutenção de duas normas incompatíveis entre si (A e não-A) não apenas é ilógica do ponto de vista da racionalidade do sistema, como leva ao enfraquecimento da natureza normativa da Constituição. Este tipo de conduta enfraquece o processo de constitucionalização do Direito, resultante de uma longa marcha civilizatória em que a Constituição foi posta no ápice do sistema normativo como um conjunto de normas dotadas de normatividade, e não como um manifesto político com significado simbólico, mas sem força normativa22. Pior do que uma decisão equivocada da Corte Constitucional com relação ao teor dos dispositivos constitucionais, é uma decisão equivocada que vale apenas para alguns, em detrimento de outros.
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1 Em tradução livre: “o devido processo legal é severamente comprometido se os fins justificam os meios” (SEER, Roman. National Report: Germany. In: MEUSSEN, Gerard (ed.). The burden of proof in tax law. EATLP International Tax Series v. 10. Uppsala: EATLP, 2011, p. 127-139 (128)).
2 ÁVILA, Humberto. Competências tributárias – um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 38.
3 LEÃO, Martha. O direito fundamental de economizar tributos. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 291.
4 SCHÖN, Wolfgang. Grundrechtsschutz gegen den demokratischen Steuerstaat. In: BAER, Susanne et al. (ed.). Jahrbuch des Öffentlichen Rechts der Gegenwart. Tübingen: Mohr Siebeck, 2016, p. 515-537 (523-524).
5 É a posição de Bentley ao defender um Código de Direitos dos Contribuintes, mas afirmar que este teria efeitos mais produtivos no plano infralegal e não constitucional (BENTLEY, Duncan. Taxpayers’ rights: theory, origin and implementation. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2007, p. 143).
6 No mesmo sentido, Barreto reconhece a efetiva tomada de posição constitucional sobre vários temas, que são regrados no plano constitucional (BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário – limites normativos. São Paulo: Noeses, 2016, p. 77).
7 BRASIL, STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.390, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 17.02.2015.
8 BRASIL, STF, Recurso Extraordinário n. 389.808/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 10.05.2011.
9 BRASIL, STF, Recurso Extraordinário n. 389.808/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 10.05.2011.
10 STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.390, Voto do Ministro Relator Dias Toffoli, j. 17.02.2015, p. 17 do Acórdão. A doutrina citada refere-se à obra do Professor José Casalta Nabais, que defende a existência de um dever fundamental de pagar impostos no contexto português: NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos – contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 1998, p. 186 e ss.
11 BRASIL, STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.390, Voto do Ministro Relator Dias Toffoli, j. 17.02.2015, p. 26 do Acórdão.
12 Sobre o tema, vide: LEÃO, Martha. O direito fundamental de economizar tributos. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 164 e ss.
13 HOUAISS, Antônio; e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 488.
14 BRACKER, Susanne. Kohärenz und juristiche interpretation. Kiel: Nomos Verlagsgesellschaft, 2000, p. 194.
15 PECZENIK, Aleksander. On law and reason. 2. ed. Dordrecht: Springer, 2008, p. 132.
16 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 169-170.
17 LEÃO, Martha; e DIAS, Daniela Gueiros. O conceito constitucional de serviço e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Direito Tributário Atual v. 41, ano 37. São Paulo: IBDT, 1º sem. 2019, p. 296-317 (301).
18 ATIENZA, Manuel; e RUIZ MANERO, Juan. Ilícitos atípicos. 2. ed. Madrid: Trotta, 2006, p. 51-52. Sarlet destaca que a garantia sobre a propriedade encerra muitas vezes um conteúdo existencial e vinculado diretamente à própria dignidade da pessoa, como ocorre por exemplo com o imóvel que serve de moradia ao titular do domínio (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 90).
19 RODI, Michael. Die Rechtfertigung von Steuern als Verfassungsproblem: dargestellt am Beispiel der Gewerbesteuer. München: Beck, 1994, p. 79.
20 ÁVILA, Humberto. Contribuições e Imposto sobre a Renda: estudos e pareceres. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 217; Idem. A prestação de serviços personalíssimos por pessoas jurídicas e sua tributação: o uso e o abuso do direito de criar pessoas jurídicas e o poder de desconsiderá-las, p. 147.
21 AARNIO, Aulis. Essays on the doctrinal study of law. Dordrecht: Springer, 2011, p. 145. No mesmo sentido: ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 40.
22 GUASTINI, Riccardo. La sintassi del diritto. Torino: Giappichelli, 2011, p. 247.