Da Legitimidade Ativa para pleitear a Restituição do Indébito dos Tributos Submetidos à Substituição Tributária

Concerning Legal Standing to claim Refund of Overpaid Taxes of Taxes Submitted to the Tributary Substitution

Mateus Benato Pontalti

Juiz Federal lotado na cidade Uberlândia/MG. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Mestrando em Direito Tributário pelo IBET. E-mail: mateus_pontalti@hotmail.com.

Recebido em: 20-08-2019

Aprovado em: 07-10-2019

Resumo

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE n. 593.849, aprovou a Tese 201 de Repercussão Geral, estabelecendo que é devida a restituição da diferença do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente quando a base de cálculo efetiva da operação for inferior à base de cálculo presumida. Diante dessa decisão, voltou à tona o debate sobre a melhor interpretação do art. 166 do Código Tributário Nacional. O objetivo deste trabalho é apresentar um ponto de vista sobre as condições de aplicabilidade desse dispositivo às hipóteses de substituição tributária. Para tanto, aborda-se inicialmente o tema sobre a pertinência da classificação dos tributos em diretos e indiretos no estudo do fenômeno jurídico. Em seguida, a atenção volta-se para a construção de sentido da expressão “transferência do respectivo encargo financeiro”, utilizada no art. 166 do Código Tributário Nacional, para, posteriormente, verificar-se se o fenômeno da substituição tributária se amolda à hipótese normativa construída a partir daquele dispositivo. Por fim, identifica-se quem é aquela pessoa que, segundo o dispositivo, deve provar ter assumido o encargo para postular a repetição do indébito, oportunidade em que se enfrenta a temática da legitimidade processual. Ao final, conclui-se que a regra geral é a de que a legitimidade ativa é do substituído, sendo do substituto apenas em hipóteses excepcionais, se ele comprovar que suportou o ônus tributário ou se demonstrar que obteve a autorização daquele para pleitear a repetição.

Palavras-chave: tributos diretos e indiretos, substituição tributária, legitimidade ativa, art. 166.

Abstract

In judging the RE n. 593,849, Brazilian Federal Supreme Court approved General Repercussion Thesis 201, stating that the restitution of the ICMS difference overpaid in the forward tax substitution regime is due when the effective calculation basis of the transaction is less than assumed calculation basis. Faced with this decision, the debate about the best interpretation of article 166 of the National Tax Code has returned. The objective of this paper is to present a point of view on the conditions of applicability of this device to the hypothesis of tax substitution. To this end, the subject is initially addressed about the relevance of the classification of taxes into rights and indirect taxes in the study of the legal phenomenon. Next, attention is drawn to the construction of the meaning of the expression “transfer of the respective financial charge”, used in article 166 of the National Tax Code, to subsequently verify whether the phenomenon of tax substitution fits the normative hypothesis built from that device. Finally, it is identified who is that person who, according to the device, must prove to have assumed the charge to postulate the repetition of the undue payment, opportunity in which the issue of procedural legitimacy is faced. In the end, it is concluded that the general rule is that active legitimacy is of the substituted, and of the substitute only in exceptional cases, if he/she proves that he/she has borne the tax burden or if he/she demonstrates that has obtained the authorization of the taxpayer to claim repetition.

Keywords: direct and indirect taxes, tax substitution, active legitimacy, article 166.

1. Introdução

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE n. 593.849, aprovou a Tese 201 de Repercussão Geral1, estabelecendo que é devida a restituição da diferença do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente quando a base de cálculo efetiva da operação for inferior à base de cálculo presumida.

Diante dessa decisão, voltou à tona o debate sobre a melhor interpretação do art. 166 do Código Tributário Nacional2, que regulamenta a legitimidade ativa nas ações de repetição do indébito dos tributos que comportam a transferência do respectivo encargo financeiro.

Duas são as questões principais que envolvem a aplicação desse dispositivo às hipóteses de substituição tributária: a primeira concerne aos limites de aplicação da regra, o que depende do sentido que se dê à expressão transferência do respectivo encargo financeiro; a segunda diz respeito à identificação de quem tem legitimidade para pleitear a repetição da quantia paga indevidamente.

Quanto ao primeiro ponto, observa-se na doutrina uma multiplicidade de critérios propostos para delimitar o alcance do dispositivo, seja através de uma análise econômica da incidência, que alguns defendem ter se tornado jurídica pela positivação dessa regra; seja pela análise jurídica da incidência, por parte daqueles que entendem que não houve a juridicização do fenômeno econômico.

Na jurisprudência a questão também permanece em aberto. O Superior Tribunal de Justiça tem decisões contraditórias, ora adotando uma perspectiva jurídica na definição do que seja transferência do respectivo encargo financeiro3, ora utilizando fundamentos econômicos para dar sentido à regra jurídica4. Do ponto de vista específico da substituição tributária, encontram-se os seguintes posicionamentos: (i) a circunstância de a base presumida ter sido menor do que a base real é prova de que não houve o repasse econômico do valor do tributo5; (ii) em qualquer caso, há a necessidade de comprovação de que não houve o repasse do encargo tributário ao consumidor final para atendimento do requisito previsto pelo art. 166 do CTN6.

Quanto ao segundo ponto, atinente à legitimidade processual, também há divergências na doutrina, encontrando-se as seguintes posições: (i) a legitimidade é do substituto; (ii) a legitimidade é do substituído; (iii) a legitimidade pode ser do substituto ou do substituído, a depender das circunstâncias.

Na jurisprudência, a questão está longe de ser pacificada, existindo dois posicionamentos distintos no Superior Tribunal de Justiça: (i) apenas o substituto tributário tem legitimidade, porque a situação é a mesma daquela julgada pela Corte sob o rito repetitivo no REsp n. 903.3947; (ii) o substituído é quem tem a legitimidade8.

Diante desse contexto, o objetivo deste trabalho é apresentar um ponto de vista sobre as condições de aplicabilidade do art. 166 do Código Tributário Nacional às hipóteses de substituição tributária.

Para tanto, aborda-se inicialmente o tema sobre a pertinência da classificação dos tributos em diretos e indiretos no estudo do fenômeno jurídico, bem como o impacto que essa classificação teve no período anterior ao Código Tributário Nacional.

Em seguida, a atenção volta-se para a construção de sentido da expressão “transferência do respectivo encargo financeiro”, utilizada no art. 166 do Código Tributário Nacional, para, posteriormente, verificar-se se o fenômeno da substituição tributária se amolda à hipótese normativa construída a partir daquele dispositivo.

Por fim, identifica-se quem é aquela pessoa que, segundo o dispositivo, deve provar ter assumido o encargo para postular a repetição do indébito, oportunidade em que se enfrenta a temática da legitimidade processual.

Ao final, conclui-se que a regra geral é a de que a legitimidade ativa é do substituído, sendo do substituto apenas em hipóteses excepcionais, se ele comprovar que suportou o ônus tributário ou se demonstrar que obteve a autorização daquele para pleitear a repetição.

2. Da classificação dos tributos em diretos e indiretos e a sua recepção na jurisprudência formada antes da edição do Código Tributário Nacional

A doutrina se divide quanto à definição do que sejam tributos diretos e indiretos, existindo pelo menos três posições sobre o tema: (i) de acordo com a corrente técnico-administrativo, os tributos são diretos quando a Administração leva em consideração para dimensionamento do objeto da obrigação tributária a renda do contribuinte, e indiretos quando o cálculo é realizado de acordo com outras circunstâncias que, apenas de modo indireto, seriam capazes de dimensioná-la; (ii) pela teoria econômica ou financeira, os tributos são diretos quando não há a possibilidade de translação do gravame e indiretos quando o contribuinte repassa o custo da tributação para terceiros; (iii) por fim, pela corrente da capacidade contributiva, os tributos diretos são aqueles em que a renda do contribuinte é diretamente atingida – Imposto de Renda, por exemplo – e os tributos indiretos aqueles em que a riqueza é indiretamente atingida – tributos sobre consumo, patrimônio etc.9

O debate sobre a melhor definição é estéril, porque não há um sentido em si das expressões “tributos diretos” e “tributos indiretos”, sendo a conotação condicionada à definição que se estipula, podendo os termos serem utilizados em cada um daqueles sentidos, a depender do propósito do discurso. Portanto, embora a dimensão signativa utilizada por cada uma dessas correntes seja a mesma – no caso, as expressões “tributos diretos” e “tributos indiretos” – a dimensão objetiva – objeto designado – e a dimensão de sentido – conotação – são diversas.

Nessa perspectiva, também não há uma classificação que seja a verdadeira, porque cada uma das correntes utilizou critérios distintos para recortar a realidade, de acordo com os interesses que motivaram os sujeitos cognoscentes. É, aliás, justamente em razão dessa possibilidade de múltiplos recortes da realidade que se costuma afirmar que não há classificações certas ou erradas, mas úteis ou inúteis.

Do ponto de vista dogmático, essas classificações não são úteis para o estudo do fenômeno da tributação, porque nenhum dos critérios enunciados se fundamenta em regras de direito positivo.

O critério adotado pela corrente técnico-administrativo pode ser importante de uma perspectiva funcional, para entender como o aparato se organiza para fiscalizar os contribuintes. Sob a perspectiva da regulação das condutas intersubjetivas, em nada contribui.

O mesmo ocorre com o critério da transferência do custo da tributação para terceiros. Se, do ponto de vista econômico, essa classificação é criticada pela sua artificialidade, do ponto de vista jurídico ela não ajuda a explicar o fenômeno tributário, porque o direito positivo não incorporou a dicotomia tributos diretos/tributos indiretos.

Por fim, o critério adotado pela corrente da capacidade contributiva pode ser importante para o estabelecimento da política fiscal, mas em nada influencia na validade ou invalidade dos enunciados prescritivos que compõem o ordenamento jurídico.

Assim, a adoção da dicotomia tributos diretos/tributos indiretos não tem relevância para descrição do direito positivo, pelo menos no que tange às definições acima expostas.

Apesar dessa circunstância, é inegável que tal classificação influenciou na compreensão do direito posto, sobretudo a segunda corrente, que utiliza como critério a possibilidade do repasse do custo da tributação a terceiros.

Foi com base na adoção dessa perspectiva que o Supremo Tribunal Federal, ainda antes da edição do Código Tributário Nacional, editou a Súmula n. 71, segundo a qual “embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto”10. Ao analisar-se o RE n. 46.45011, percebe-se que o argumento utilizado para se chegar a essa conclusão foi o seguinte: tratando-se de tributos indiretos, o contribuinte já incorporou o valor despendido no preço da mercadoria vendida a terceiro. Logo, não sofreu prejuízo e, portanto, não tem direito à repetição.

O fundamento, no entanto, é questionável mesmo sob o enfoque econômico, porque não há como saber a priori se houve ou não o repasse do custo da tributação a terceiro, conforme expôs posteriormente o Ministro Aliomar Baleeiro no julgamento do RE n. 45.99712:

“Resta a controvérsia sobre a impossibilidade jurídica da repetição de tributos indiretos, tese que tem amparo na Súmula nº 71. Entendo que essa diretriz não pode ser generalizada. Há de ser apreciada em cada caso concreto, porque, de começo, do ponto de vista científico, os financistas ainda não conseguiram, depois de 200 anos de discussão, desde os Fisiocratas do século XVIII, um critério seguro para distinguir o imposto direto do indireto. O mesmo tributo poderá ser direto ou indireto, conforme a técnica de incidência e até conforme as oscilantes e variáveis circunstâncias do mercado, ou a natureza da mercadoria ou a do ato tributado. [...] À falta de um conceito legal [...] o Supremo Tribunal Federal inclina-se a conceitos econômico-financeiros baseados no fenômeno da incidência e da repercussão dos tributos indiretos, no pressuposto errôneo, data vênia, de que, sempre, eles comportam transferência do ônus do contribuinte de jure para o contribuinte de fato. [...]”

Essas ponderações resultaram numa evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que depois foi materializada na Súmula n. 54613, segundo a qual “cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo”.

Portanto, já nessa época, a Corte abandonou a classificação outrora adotada, por concluir que ela foi fundada numa premissa falsa: a de que se poderia definir, tão somente pelo tipo de tributo, quando há a transferência para terceiro do custo da tributação. Preferiu, assim, analisar casuisticamente essa circunstância, admitindo a repetição quando comprovada a não recuperação do valor despendido a título de tributo.

Embora editada em 1969, a Súmula foi aprovada após o julgamento de casos concretos ocorridos antes da vigência do Código Tributário Nacional. Na época, os pedidos de repetição do indébito eram solucionados com base no art. 964 do Código Civil de 1916, cuja interpretação prevalecente era a de que o dispositivo exigia a prova do enriquecimento ilícito e do empobrecimento do solvens. Daí a relevância da discussão sobre se ocorreu ou não a transferência do custo da tributação para um terceiro.

Em 1966, no entanto, o Código Tributário Nacional foi editado, tendo esse diploma legislativo inserido um dispositivo específico para tratar do tema. Trata-se do art. 166, sobre o qual se falará a seguir.

3. Art. 166 do Código Tributário Nacional

3.1. Significado da expressão “transferência do respectivo encargo financeiro”

O art. 166 do Código Tributário Nacional dispõe no seguinte sentido:

“Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”

Ao utilizar a oração “tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”, a regra permite a conclusão de que o Código Tributário Nacional não incorporou a classificação que divide os tributos em diretos e indiretos, e que outrora influenciou na elaboração da Súmula n. 71 do Supremo Tribunal Federal. Não fosse assim, a regra teria substituído aquela expressão pelos termos “tributos indiretos”, e incorrido no equívoco, já demonstrado por Aliomar Baleeiro, de tentar definir previamente quando há o repasse do custo da tributação a terceiros e quando isso inocorre.

Assim, abrem-se duas possibilidades na construção do sentido daquela expressão: (i) interpretá-la sob o enfoque econômico para condicionar a legitimidade ativa à comprovação, caso a caso, da transferência do encargo financeiro; (ii) atribuir-lhe um sentido jurídico, tentando encontrar, no direito positivo – e não na economia – os critérios que permitam o enquadramento de um dado tributo à categoria dos repercutíveis ou à categoria dos não repercutíveis.

Pois bem. O fato é que existem obstáculos intransponíveis à adoção da primeira perspectiva, pelas seguintes razões:

Primeira, porque, se assim o fosse, a regra geral do artigo 165 do Código Tributário Nacional seria uma classe vazia, na medida em que todo tributo pode, em tese, repercutir.

Segunda, porque a comprovação da (in)existência da repercussão é inviável. Como ensina Alfredo Augusto Becker:

“[...] a previsibilidade da repercussão econômica e a constatação dos resultados efetivos da repercussão alcançam-se por aproximação ainda distante e nebulosa, mediante utilização de princípios financeiros extremamente complexos e cujos resultados ainda são de natureza macroeconômica”14.

Luís Eduardo Schoeuri15, levando apenas em consideração as variáveis apontadas por Cesare Cosciani, realizou cálculo matemático combinatório e chegou à conclusão de que existe a possibilidade da ocorrência de 566.231.040 (quinhentos e sessenta e seis milhões, duzentos e trinta e um mil e quarenta) diferentes situações que podem impactar na eventual translação.

É o que também pensa Eduardo Domingos Bottallo, que explica essa posição com um exemplo:

“Como poderia, por exemplo, uma empresa, contribuinte do imposto de importação, ou das contribuições patronais destinadas ao custeio da Previdência Social, saber quem arcou, e em que proporções, com o ônus destes tributos que teve de pagar para desenvolver suas atividades comerciais, industriais ou de prestação de serviços? Quais seriam os registros ou assentamentos onde essas evidências estariam indicadas, com a precisão e o detalhamento necessário, se não há obrigação legal de fazê-lo? Por certo em nenhum.”16

Terceira, porque, diante desse contexto, a adoção dessa interpretação inviabilizaria todos os pedidos de repetição do indébito, representando um incentivo à instituição de tributos ilegais.

Quarta, porque, mesmo que se comprovasse que ocorreu a repercussão econômica, a negação da legitimidade ativa para pleitear a repetição do indébito ofenderia o direito à propriedade e o direito ao livre exercício da atividade econômica. De fato, como ensina Alfredo Augusto Becker:

“não existe lei que estabeleça um limite ao lucro e se existisse somente será ilícito o excesso de lucro ao limite legal e não o fato de o tributo indevido ter sido um dos elementos que contribuiu para a formação do preço do negócio jurídico”17.

Posição semelhante é compartilhada por Hugo de Brito Machado Segundo, para quem o tributo é apenas um dos fatores a serem considerados na formação do preço de venda de um produto ou serviço. E, tal qual ocorre com relação aos demais custos provisionados, a sua não realização total ou parcial em nada interfere no negócio privado realizado entre os agentes econômicos. O autor traz um exemplo que reforça a substância dos seus argumentos:

“Se um comerciante fixa seu preço pensando ter de pagar um aluguel elevado, e o comprador aceita pagar esse preço e adquire a mercadoria, celebrando contrato de compra e venda, o fato de depois se constatar que esse aluguel não seria tão elevado, ao final, não transforma o preço pago em indevido, só por isso. O preço é devido, porque fora validamente pactuado, pouco importando, para isso, quais fatores levaram o comerciante a fixá-lo no patamar aceito pelo comprador. Essa aceitação, sim, é relevante. E, assim como acontece com aluguéis, salários e outros custos, dá-se com os tributos, sejam diretos ou indiretos.”18

Portanto, é com base em critérios jurídicos – e não econômicos – que se deve definir o que significa “tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”.

Partindo dessa premissa, diversos autores se dedicaram à tarefa e construíram soluções interpretativas distintas.

José Arthur Lima Gonçalves e Marcio Severo Marques entendem que é o regime jurídico do tributo que indica a ocorrência ou não da transferência do encargo, e enxergam esse fenômeno tão somente nas hipóteses de substituição tributária. Vítor Cassone, por sua vez, vê a aplicabilidade do art. 166 reduzida aos tributos lançados e destacados em documento fiscal, solução que também é endossada por Hugo de Brito Machado Segundo e Paulo de Tarso Vieira Ramos. Marco Aurélio Greco sustenta que a natureza referida pelo art. 166 do CTN seria aferida a partir da obrigação tributária, concluindo que esta regra se aplica apenas aos tributos cuja hipótese de incidência pressuponha a intervenção de dois sujeitos19.

Portanto, são muitas as soluções encontradas pela doutrina para atribuir sentido ao disposto no art. 166 do CNT.

No presente trabalho, adota-se aquela exposta por Andréa Machado Darzé Minatel20 em monografia sobre o tema. Segundo a autora, são tributos que comportam, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro aqueles em que o direito positivo assim o quis, mediante a introdução de regra que autorizou ou presumiu essa circunstância. E isso ocorre nas seguintes situações: nas hipóteses de responsabilidade tributária por ato lícito e nas hipóteses de não cumulatividade do IPI e do ICMS21. Na primeira situação, o responsável tributário tem o direito de reter ou de ser reembolsado do valor pago a título de tributo. Na segunda, o adquirente tem o direito de compensar o valor devido por ele com aquele que incidiu na operação anterior. Em ambos os casos, portanto, o direito positivo pressupôs a repercussão.

Para fins deste artigo, limita-se a análise do art. 166 às hipóteses de substituição tributária, a que se visualiza como uma das modalidades de responsabilidade tributária. É o que se fará a seguir.

3.2. O porquê da aplicação do art. 166 do CTN às hipóteses de substituição tributária

A fenomenologia da substituição tributária comporta discussões na doutrina, podendo-se descrevê-la sob diversas perspectivas. Maria Rita Ferragut entende que a substituição tributária, como uma das modalidades de responsabilidade tributária, afigura-se como uma norma de conduta, que a partir de um fato não tributário, implica a inclusão do substituto no polo passivo de uma relação jurídica tributária. Para a autora, diferentemente do que ocorre nas modalidades de responsabilidade por solidariedade e de responsabilidade por sucessão, na substituição tributária há apenas uma norma individual e concreta, muito embora existam duas normas gerais e abstratas – a norma geral imponível e norma geral atributiva de responsabilidade. Ela elucida a sua posição com um exemplo:

“Imaginemos a substituição tributária. A lei, ao criar a regra-matriz de incidência, prescreve como sujeito passivo do ISS não o prestador do serviço – que é aquele que pratica a materialidade prevista na Constituição como passível de tributação – mas a fonte pagadora.

A substituição ocorrida entre o pretenso contribuinte e o responsável é somente pré-jurídica. Em momento algum o realizador do fato encontrou-se vinculado obrigacionalmente com o fisco, em que pese estar juridicamente compelido a suportar a carga tributária. Se é assim, como defender a existência de duas relações?

O que existirá, eventualmente, é a existência de duas normas gerais e abstratas, veiculadas com base em suportes físicos diferentes. A primeira, de substituição, e a segunda de qualificação do fato jurídico tributário, antecedente da norma de constituição do crédito.”22

Andréa Machado Darzé Minatel23, por sua vez, enxerga a substituição tributária como uma norma de estrutura. Do encontro entre a regra-matriz tributária e a regra de substituição há uma mutilação no critério pessoal daquela, que resulta na inibição da exigência do tributo da pessoa que realizou o fato tributário e na inclusão de um terceiro como devedor.

Apesar de descreverem o fenômeno sob diferentes perspectivas, ambas concordam que na substituição tributária há apenas um sujeito qualificado como devedor. É o que também pensa Paulo de Barros Carvalho:

“Enquanto nas outras hipóteses permanece a responsabilidade supletiva do contribuinte, aqui o substituto absorve totalmente o debitum, assumindo, na plenitude, os deveres de sujeito passivo, quer os que dizem respeito aos expedientes de caráter instrumental, que a lei costuma chamar de obrigações acessórias.”24

Portanto, quer se adote uma perspectiva ou outra, o fato é que, na substituição tributária, um terceiro, que não realizou o fato imponível, é colocado no polo passivo de uma relação obrigacional. E isso impõe que se dê um passo atrás para indagar em que medida tal circunstância é autorizada constitucionalmente. Na resposta a essa questão é que se vai entender o porquê de o art. 166 regular esse tipo de situação.

Pois bem, um dos fundamentos do Sistema Tributário Nacional é o princípio da capacidade contributiva, que, na sua acepção absoluta ou objetiva, exige que o legislador ordinário componha a hipótese de incidência com situações que indiquem uma situação presuntiva de riqueza. É o que ensina Roque Carrazza:

“Com efeito, a hipótese de incidência dos impostos deve descrever fatos que façam presumir que quem os pratica, ou por eles é alcançado, possui capacidade econômica, ou seja, os meios financeiros capazes de absorver o impacto deste tipo de tributo. Assim, o legislador tem o dever, enquanto descreve a hipótese de incidência e a base de cálculo dos impostos, de escolher fatos que exibam conteúdo econômico […].”25

Isso autoriza a seguinte conclusão: é o contribuinte quem, em princípio, deve ser colocado no polo passivo da relação obrigacional, porque foi ele quem manifestou aquela situação presuntiva de riqueza prevista pela regra-matriz. Do contrário, o princípio da capacidade contributiva seria uma promessa constitucional vazia, porque o legislador poderia imputar a qualquer pessoa a qualificação de devedora, bastando que outrem realizasse o fato jurídico.

Assim, a inclusão de um terceiro no polo passivo da relação obrigacional exige um fundamento razoável, atualmente existente em situações que se justificam pela ocorrência de uma das seguintes circunstâncias: (i) prática de uma conduta ilícita por parte deste terceiro; (ii) possibilidade jurídica deste terceiro se ressarcir da quantia despendida a título de tributo.

Nas substituições tributárias, o fundamento repousa na possibilidade de o terceiro se ressarcir da quantia paga (ii), o que ocorre pela existência de uma regra jurídica que autoriza ao substituto transferir o ônus fiscal para o realizador do evento.

Na substituição tributária para frente isso se dá pelo reembolso, que é quando a lei autoriza ao substituto acrescer ao valor do preço o montante do tributo por ele pago. Alfredo Augusto Becker explica como isso acontece:

“Exemplo: A lei outorga ao fabricante (contribuinte de jure) o direito de por ocasião de celebrar o contrato de venda do produto, acrescentar ao direito de crédito do preço, mais o direito de crédito de reembolso do valor do imposto de consumo pago por ele, fabricante. Noutras palavras e com mais precisão científica: o legislador cria duas regras jurídicas.

A primeira regra jurídica tem por hipótese de incidência a realização de determinados fatos que, uma vez acontecidos, desencadeiam a incidência da regra jurídica tributária e o efeito jurídico desta incidência é o nascimento da relação jurídica tributária, vinculando o contribuinte de jure ao sujeito ativo, impondo-lhe o dever de uma prestação jurídico-tributária.

A segunda regra jurídica tem como hipótese de incidência a realização da prestação jurídico-tributária que se toma juridicamente devida após a incidência da primeira regra jurídica. A realização daquela prestação jurídico-tributária realiza a hipótese de incidência desta segunda regra jurídica e, em consequência, desencadeia sua incidência. O efeito jurídico desta incidência é o nascimento de uma segunda relação jurídica que tem: em seu polo positivo, aquela pessoa que fora o contribuinte de jure no primeiro momento, e, em seu polo negativo, uma outra determinada pessoa na condição de sujeito passivo. O conteúdo jurídico desta segunda relação jurídica consiste num direito de crédito do sujeito ativo (contribuinte de jure) contra o sujeito passivo, tradicionalmente denominado contribuinte de fato, mas que, cientificamente, somente será contribuinte de fato, na medida em que não puder repercutir o ônus econômico do tributo sobre uma terceira pessoa.”26

Na substituição tributária para trás pela retenção na fonte, compreendida como uma regra jurídica que autoriza ao substituto descontar o valor relativo ao tributo devido do montante a ser pago ao realizador do evento.

Portanto, em ambos os casos existe uma autorização para que o substituto modifique o objeto de uma prestação obrigacional de natureza não tributária. No primeiro – reembolso – isso acontece por meio de um acréscimo no preço a ser pago pelo realizador do evento ao substituto. No segundo – retenção na fonte – pelo abatimento do valor do tributo do montante da dívida que o substituto possui com o realizador do evento.

Eis, então, a razão pela qual se aplica o art. 166 às hipóteses de substituição tributária: trata-se de modalidade de sujeição passiva na qual o devedor – substituto – pode juridicamente realizar “a transferência do respectivo encargo financeiro” a outrem – realizador do evento.

Agora, cumpre dar um passo à frente para responder quem, diante dessa circunstância, tem legitimidade para ingressar com uma ação de repetição do indébito: aquele que transferiu o respectivo encargo financeiro ou aquele outro para quem o encargo foi transferido.

É o que se tentará fazer.

4. Do legitimado para ingressar com a ação de repetição do indébito nas hipóteses de substituição tributária para frente

Já se estabeleceu o que se entende como tributos que comportam a transferência do respectivo encargo financeiro. Agora o desafio é dar sentido à parte final do art. 166 do CTN, desvendando quem é aquele que possui legitimidade processual para pleitear a restituição do indébito.

A doutrina majoritária entende que tal pessoa é o contribuinte de direito. No caso em discussão, é o substituto tributário, em razão de ser ele o sujeito passivo da obrigação tributária, e, portanto, a pessoa que possui os ônus, direitos e deveres concernentes a essa relação jurídica.

Foi esse o fundamento utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Recurso Especial n. 903.374:

“Processo civil. Recurso especial representativo de controvérsia. Artigo 543-C, do CPC. Tributário. IPI. Restituição de indébito. Distribuidoras de bebidas. Contribuintes de fato. Ilegitimidade ativa ad causam. Sujeição passiva apenas dos fabricantes (contribuintes de direito). Relevância da repercussão econômica do tributo apenas para fins de condicionamento do exercício do direito subjetivo do contribuinte de jure à restituição (artigo 166, do CTN). Litispendência. Prequestionamento. Ausência. Súmulas 282 e 356/STF. Reexame de matéria fático-probatória. Súmula 7/STJ.

Aplicação.

1. O ‘contribuinte de fato’ (in casu, distribuidora de bebida) não detém legitimidade ativa ad causam para pleitear a restituição do indébito relativo ao IPI incidente sobre os descontos incondicionais, recolhido pelo “contribuinte de direito” (fabricante de bebida), por não integrar a relação jurídica tributária pertinente. [...]

4. Em se tratando dos denominados “tributos indiretos” (aqueles que comportam, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro), a norma tributária (artigo 166, do CTN) impõe que a restituição do indébito somente se faça ao contribuinte que comprovar haver arcado com o referido encargo ou, caso contrário, que tenha sido autorizado expressamente pelo terceiro a quem o ônus foi transferido.

5. A exegese do referido dispositivo indica que: ‘... o art. 166, do CTN, embora contido no corpo de um típico veículo introdutório de norma tributária, veicula, nesta parte, norma específica de direito privado, que atribui ao terceiro o direito de retomar do contribuinte tributário, apenas nas hipóteses em que a transferência for autorizada normativamente, as parcelas correspondentes ao tributo indevidamente recolhido: Trata-se de norma privada autônoma, que não se confunde com a norma construída da interpretação literal do art. 166, do CTN. É desnecessária qualquer autorização do contribuinte de fato ao de direito, ou deste àquele. Por sua própria conta, poderá o contribuinte de fato postular o indébito, desde que já recuperado pelo contribuinte de direito junto ao Fisco. No entanto, note-se que o contribuinte de fato não poderá acionar diretamente o Estado, por não ter com este nenhuma relação jurídica.

Em suma: o direito subjetivo à repetição do indébito pertence exclusivamente ao denominado contribuinte de direito. Porém, uma vez recuperado o indébito por este junto ao Fisco, pode o contribuinte de fato, com base em norma de direito privado, pleitear junto ao contribuinte tributário a restituição daqueles valores.

A norma veiculada pelo art. 166 não pode ser aplicada de maneira isolada, há de ser confrontada com todas as regras do sistema, sobretudo com as veiculadas pelos arts. 165, 121 e 123, do CTN. Em nenhuma delas está consignado que o terceiro que arque com o encargo financeiro do tributo possa ser contribuinte. Portanto, só o contribuinte tributário tem direito à repetição do indébito. [...]” (REsp n. 903.394/AL, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, j. 24.03.2010, DJe 26.04.2010)

Esse também é o entendimento de Paulo de Barros Carvalho, para quem:

“Advirta-se que o terceiro que suporta com o ônus econômico do tributo não participa da relação jurídica tributária, razão suficiente para que se verifique a impossibilidade desse terceiro vir a integrar a relação consubstanciada na prerrogativa da repetição do indébito, não tendo, portanto, legitimidade processual.

Resulta dessas considerações que é ao sujeito passivo da obrigação tributária, ou responsável, que realizou o evento jurídico do pagamento indevido, que pertence o direito subjetivo de figurar no polo ativo do liame da devolução do indébito tributário.”27

No entanto, mesmo que não se negue que é o substituto que compõe o polo passivo da relação obrigacional, entende-se que daí não se chega necessariamente à conclusão de que é ele o legitimado para pleitear a repetição do indébito. O direito cria sua própria realidade, não existindo impedimento para que a lei atribua a outrem a legitimidade para pleitear a restituição de uma quantia paga pelo devedor. Portanto, a circunstância de o substituto integrar a relação tributária é um dos argumentos possíveis de utilização para atribuição de sentido ao art. 166 do CTN. Porém, não é o único. É possível a utilização de outros critérios interpretativos que levem à conclusão oposta daquela mencionada.

Do ponto de vista que se adota neste trabalho, embora o substituto seja o integrante do polo passivo da relação obrigacional, não é dele, via de regra, a legitimidade para pleitear a repetição do indébito. Pelos seguintes motivos:

Primeiro, porque o art. 166 não utilizou a expressão sujeito passivo para designar a pessoa legitimada à restituição, diferentemente do que fez o art. 165 do Código Tributário Nacional, que regulamenta a repetição dos tributos que não se enquadram na classe dos repercutíveis. Caso tivesse o dispositivo utilizado a expressão sujeito passivo, a questão estaria resolvida, porque tão somente o substituto teria a legitimidade processual. Como isso não aconteceu, faz-se possível a agregação de outros argumentos que, somados a esse, resultem numa solução diversa.

Segundo, porque não se endossa a proposta apresentada pelo jurista Marcelo Fortes de Cerqueira28, adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 903.374, que afirma que o art. 166 é norma de direito privado, que estabeleceria uma relação autônoma entre o contribuinte de fato e o contribuinte de direito.

Utilizando esse enfoque também para as hipóteses de substituição tributária, existiriam duas relações jurídicas: a primeira entre o substituto e o Fisco, em que aquele teria o direito de exigir a repetição das quantias pagas indevidamente ao Fisco; a segunda entre o substituído e o substituto, na qual aquele teria o direito de postular deste último os valores obtidos em decorrência do cumprimento da prestação da primeira relação.

Embora dotada de perspicácia e coerência, a adoção dessa ideia inviabilizaria a repetição do indébito nos tributos submetidos à substituição tributária. Se, por um lado, o substituído não teria interesse processual, por outro o substituto não teria interesse fático em ingressar com a ação, uma vez que ao final sua empreitada seria uma perda de tempo e de recursos, em razão da possibilidade de ele ser compelido a entregar os valores recuperados ao realizador do fato jurídico tributário. Portanto, na prática, essa solução promove o enriquecimento ilícito do Estado e incentiva o cometimento de ilegalidades.

Ademais, o art. 166 regulamenta “a restituição de tributos”. O termo tributo, quando utilizado na acepção de quantia em dinheiro, é empregado num contexto específico, para se referir a valores monetários decorrentes da relação jurídica tributária, de cunho compulsório. Nessa perspectiva, afirmar que o dispositivo veicula norma de natureza privada e que, portanto, um particular é credor de tributos de outro particular, significaria dizer que o termo foi usado numa acepção não usual, como objeto de uma relação jurídica de origem contratual, decorrente de um negócio jurídico entre o substituto e o substituído.

Terceiro, porque adotada a premissa estabelecida no item 3.1 de que a transferência a que o art. 166 faz referência é de natureza jurídica, e não econômica, a adoção da perspectiva de que somente o sujeito passivo teria direito à repetição retiraria a racionalidade do dispositivo. Do ponto de vista específico da substituição tributária, isso significaria que aquele que transferiu o custo da tributação teria direito à repetição, enquanto aquele outro que suportou o encargo financeiro permaneceria no prejuízo. É o que também defende Andréa Machado Darzé Minatel:

“[...] outorgar, incondicionalmente, ao sujeito passivo do tributo o direito à repetição dos valores indevidamente pagos nessas situações equivale a perpetuar o indébito no sistema. Com efeito, se aquele que pagou o tributo sem fundamento de validade, a maior ou por erro pleiteia a devolução dessas quantias e isso se verifica no meio da cadeia de circulação de bens, por exemplo, tem-se que o sujeito seguinte do elo terá se creditado de valor a maior ou simplesmente indevido. Da mesma forma, se a devolução é autorizada, sem ressalvas, apenas ao responsável tributário (sujeito passivo), aquele que, por lei, suportou o encargo financeiro do tributo (o realizador do fato tributado) permanecerá sofrendo as consequências da exigência indevida.”29

Por fim, porque, tratando-se de substituição tributária para frente envolvendo o ICMS, a legislação foi expressa, atribuindo ao substituído – portanto, a alguém que não figurou como sujeito passivo da relação obrigacional – o direito de vindicar a restituição do valor do imposto pago em razão da não ocorrência do fato gerador presumido. É que se observa do art. 10 da Lei Complementar n. 87/1996:

“Art. 10. É assegurado ao contribuinte substituído o direito à restituição do valor do imposto pago por força da substituição tributária, correspondente ao fato gerador presumido que não se realizar.”

Essa solução legislativa, se isoladamente não tem o condão de fazer com que o dispositivo projete efeitos sobre outros tributos, em cotejo com os demais argumentos, permite que se defenda a perspectiva de que nem sempre é o sujeito passivo da relação obrigacional quem tem a legitimidade para postular o indébito.

Portanto, em razão desse conjunto de circunstâncias e tendo como premissa a ideia estabelecida no item 3.2 de que há a transferência do encargo financeiro na substituição tributária porque o próprio direito positivo autoriza ao substituto realizar o repasse do custo da tributação ao substituído por meio do reembolso ou através da retenção na fonte, entende-se que, como regra geral, é do substituído a legitimidade para ingressar com as ações de repetição do indébito, porque é ele quem assume o referido encargo.

Essa conclusão, além de ser compatível com o art. 166 do CTN, evita que aquele que transferiu o encargo obtenha a repetição, e permite que o terceiro seja ressarcido do custo que presumivelmente assumiu. É o que também pensa Andréa Minatel:

“[...] a repercussão, nessas específicas situações, é norma jurídica que autoriza o sujeito passivo do tributo, que não praticou o fato jurídico tributário, a transferir o ônus da tributação para a pessoa que o realizou. Assim, quem sofre efetivamente (ou, ao menos, presumidamente) o impacto do pagamento indevido do tributo nesses casos é o realizador do fato tributado, devendo, por esta mesma razão, ser ele, em princípio, o titular do direito subjetivo à devolução e não o responsável tributário, nos termos do próprio artigo 166 do CTN.”30

Quanto à questão probatória, não é necessário que o substituído demonstre que suportou o ônus financeiro, aplicando-se o disposto no art. 374, inciso IV, do CPC:

“Art. 374. Não dependem de prova os fatos: [...]

IV – em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.”

Isso porque o próprio enunciado normativo presume tal ocorrência ao permitir que o substituto transfira o encargo financeiro ao substituído. Quanto ao ponto, esclarece Andréa Minatel:

“[...] estabelecida a premissa de que o referido enunciado normativo se aplica apenas às hipóteses em que o próprio direito positivo juridiciza o repasse do ônus do tributo, impondo-o ou autorizando-o nas situações que especifica, não tem qualquer sentido exigir, nesses casos, como condição da ação, que o destinatário legal e final da regra de repercussão demonstre, por meio de provas, que efetivamente suportou o ônus do tributo que fora repassado por determinação do próprio sistema jurídico”31.

No entanto, de forma excepcional, a regra geral cede e a legitimidade passa a ser do substituto. Isso ocorre em duas situações: (i) quando o substituto retém corretamente o valor do tributo devido ou dele se reembolsa, mas, ao realizar o repasse ao Fisco, realiza o pagamento a maior; (ii) quando o substituído autoriza o substituto a pleitear a restituição32.

No primeiro caso, porque o substituto consegue provar haver assumido o encargo financeiro; no segundo, porque o terceiro, para quem foi transferido o encargo financeiro, expressamente lhe autorizou a pleitear a restituição.

5. Conclusão

Portanto, propõe-se a seguinte leitura do art. 166 do Código Tributário Nacional quando aplicado no bojo de tributos sujeitos ao fenômeno da substituição tributária:

1: A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro:

A expressão transferência do respectivo encargo financeiro deve ser compreendida a partir de critérios jurídicos, quando o direito positivo autoriza que alguém transfira o ônus financeiro a terceiro. No bojo da substituição tributária para frente isso ocorre pelo reembolso, e na substituição tributária para trás pela retenção na fonte.

2: Somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo2:

O substituído tributário é quem, como regra geral, tem a legitimidade processual, porque é ele quem assume o referido encargo financeiro. Nessa hipótese, como a legislação presume a transferência, não há a necessidade da comprovação efetiva da assunção do ônus, aplicando-se o disposto no art. 374, inciso IV, do CPC. No entanto, se o substituto comprovar que suportou o ônus – o que ocorre se ele retém corretamente o valor do tributo devido ou dele se reembolsa, mas, ao realizar o repasse ao Fisco, realiza o pagamento a maior – é dele a legitimidade processual.

3: ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la3:

A legitimidade também é do substituto se ele obtiver a autorização do substituído para pleitear a restituição do indébito.

Referências bibliográficas

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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. “Tema 201. É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pago a mais no regime de substituição tributária para a frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida.” 19.10.2016.

2 “166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). REsp n. 755.490/PR, Rel. Denise Arruda, nov. 2008 e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). AgREsp n. 436.894/PR, Rel. Min. José Delgado, dez. 2002.

4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). EDcl nos EDcl no RMS n. 11.927/MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 13.11.2018, DJe 14.12.2018.

5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). AgRg no REsp n. 630.966/RS, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 03.04.2018, DJe 22.05.2018.

6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). AgRg no AREsp n. 137.491/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 28.04.2015, DJe 15.05.2015.

7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). AgRg no AgRg no REsp n. 1.228.837/PE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 04.08.2015, DJe 12.08.2015.

8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). AgRg no AREsp n. 137.491/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 28.04.2015, DJe 15.05.2015.

9 ANDRADE, José Maria Arruda; BARROS, Maurício; e MACHADO, Hugo de Brito. A figura dos tributos indiretos e a aplicabilidade do artigo 166 do CTN. A tributação indireta no direito brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2013.

10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. “Súmula n. 71. Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto.” 13.12.1963. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=71.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas>. Acesso em: 27 jul. 2019.

11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (2ª Turma). RE n. 46.450, Rel. Min. A. Vila Boas, j. 10.01.1961, DJe 02.06.1961.

12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2ª Turma). RE n. 45.997. Rel. Min. Aliomar Baleeiro, j. 27.09.1966, DJe 22.02.1967.

13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. “Súmula n. 546. Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo.” 03.12.1969. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=546.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas>. Acesso em: 27 jul. 2019.

14 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 7. ed. São Paulo: Noeses, 2018, p. 577.

15 SCHOUERI, Luís Eduardo. A restituição de impostos indiretos no sistema jurídico-tributário brasileiro. Revista de Administração de Empresas v. 27, n. 1. São Paulo, mar. 1987, p. 43. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-75901987000100005&lng=
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16 BOTTALLO, E. D. Repetição do indébito tributário e o art. 166 do Código Tributário Nacional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 94, 1999, p. 261. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67441>. Acesso em: 15 out. 2019.

17 Ibidem, p. 615.

18 MACHADO SEGUNDO. Hugo de Brito. Ainda a restituição dos tributos indiretos. Revista Nomos v. 32, n. 2, p. 253. Disponível em: <http://www.periodicos.ufc.br/nomos/article/view/359>. Acesso em: 15 out. 2019.

19 MINATEL, Andréa Machado Darzé. Restituição do indébito tributário: legitimidade ativa nas incidências indiretas. São Paulo: Noeses, 2015.

20 Ibidem.

21 A regra não se aplica ao PIS/COFINS porque a não cumulatividade desses tributos decorre da concessão de um crédito cujo valor é apurado sem se levar em conta a operação anterior.

22 FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002. São Paulo: Noeses, 2005, p. 36/37.

23 Ibidem, p. 191/192.

24 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 177.

25 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 102/2013.

26 Ibidem, p. 570/571.

27 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 661.

28 CERQUEIRA, Marcelo Fortes de. Extinção da obrigação tributária: compensação e repetição do indébito. Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 371/406.

29 Ibidem, p. 267.

30 Ibidem, p. 304.

31 Ibidem, p. 268.

32 Andréa Medrado Darzé Minatel arrola uma terceira hipótese: quando o responsável demonstrar que, apesar da autorização legal, não procedeu, no plano dos fatos, à transferência do encargo financeiro ao realizador do fato tributado. No entanto, optou-se por não arrolar essa situação em razão da impossibilidade de demonstração dessa circunstância, conforme consignado quando se tratou da inviabilidade da interpretação econômica do art. 166 do CTN.