Reflexões Históricas sobre o Artigo 111 do CTN: a Escolha pela Expressão “literalmente” em Oposição à Expressão “restritivamente”

Luciana Ibiapina Lira Aguiar

Mestranda em Direito e Desenvolvimento pela FGV. Advogada em São Paulo.

Resumo

Este artigo tem por objetivo resgatar detalhes históricos e técnicos relevantes sobre o processo de elaboração do artigo 111 do Código Tributário Nacional (CTN). A análise desenvolvida buscou relatar a discussão travada à época, notadamente no que tange à utilização do termo “restritivamente”, em oposição ao termo “literalmente”, empregado pelo dispositivo para explicitar o método de interpretação de legislação nas hipóteses de (i) suspensão ou exclusão do crédito tributário, (ii) outorga de isenção e (iii) dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias, previstas nos incisos I a III do referido artigo. O resgate dessas razões históricas tomou por base o texto do Anteprojeto de CTN, os trabalhos da Comissão Especial do CTN e o texto final do artigo conforme projeto do CTN, além do próprio artigo 111 do CTN, nos termos aprovados na Lei 5.172 de 1966.

Palavras-chave: CTN, artigo 111, interpretação, literal, restritiva.

Abstract

This paper aims to rescue relevant technical and historical details about the development process of Article 111 of the Brazilian Tax Code (CTN). This study sought to report the discussions at the time of the drafting of Article 111 of CTN, especially regarding the use of the term “restrictive”, as opposed to the term “literally” used by this article to explain the law interpretation method in cases of (i) suspension or exclusion of the tax credit, (ii) grant of exemption and exemption from compliance of accessory tax obligations, provided for in items I to III of the Article 111. The research of these historical reasons was based on (i) the text of the CTN Draft, (ii) the work of the Special CTN Committee, (iii) Article 111 CTN Project, (iv) as well as the actual CTN Article 111, as currently in force.

Keywords: CTN, article 111, interpretation, literally, restrictively.

“No entanto as palavras devem conter uma idéia.”1

1. Apresentação do Tema

É interessante refletir sobre como alguns temas do Direito Tributário, não obstante a antiguidade dos dispositivos legais, permanecem controversos ou, pelo menos, dignos de debates doutrinários e jurisprudenciais. Com o passar do tempo, porém, mesmo com as frequentes reflexões, corre-se o risco de que determinados detalhes históricos e técnicos relevantes se percam e passem mais discretamente nos debates contemporâneos.

Reconhecendo que os trabalhos preparatórios representam um dos elementos disponíveis para se interpretar uma lei2, este artigo tem por objetivo resgatar um destes detalhes sobre uma norma extremamente relevante: o artigo 111 do Código Tributário Nacional (CTN) que menciona o método de interpretação (“interpreta-se literalmente”) a ser adotado em caso de legislação tributária que disponha sobre a suspensão ou exclusão do crédito tributário, a outorga de isenção e a dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.

Trata-se de uma proposta de arqueologia3 jurídica visando retratar o contexto no qual se idealizou o dispositivo legal sob estudo, por meio dos registros feitos à época da elaboração do CTN e nos anos que se seguiram, notadamente no que tange à utilização do termo “restritivamente”, em oposição ao termo “literalmente”, empregado em sua versão final.

Para tanto, o estudo proposto tomou por base:

i) O texto do artigo 77, constante do Anteprojeto de CTN, de autoria de Rubens Gomes de Souza (“Anteprojeto”), escalado para a tarefa por indicação de Aliomar Baleeiro, corroborada pelo Ministro da Fazenda (Osvaldo Aranha);

ii) As sugestões 723 e 9134 oferecidas ao Anteprojeto e referentes ao artigo em estudo;

iii) O Relatório apresentado por Rubens Gomes de Sousa e aprovado pela Comissão Especial nomeada pelo Ministro da Fazenda para elaboração do projeto de CTN (“Comissão Especial”);

iv) O texto final do artigo 133 do projeto do CTN (“Projeto”), correspondente ao artigo 77 do Anteprojeto; e

v) O próprio artigo 111 do CTN, conforme consta na Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966.

Esclarece-se que, para esta tarefa, tomou-se a liberdade de transcrição de trechos do artigo 111 do CTN em todas as suas fases de elaboração, bem como de trechos de outras obras daquele período. As transcrições visaram proporcionar que o resgate histórico fosse tão fiel quanto possível às reflexões e preocupações externadas pelos autores de nosso Código Tributário, consolidando-as de forma cronológica e sistemática, o que julgou-se essencial para o cumprimento do objetivo ora proposto.

2. Histórico do Artigo 111 do CTN

2.1. Introdução

Em “O Código Tributário Nacional segundo a correspondência de Rubens Gomes de Sousa”5 é possível encontrar um verdadeiro tesouro de autoria de Aliomar Baleeiro no qual, por meio de relatos de correspondências trocadas entre ele e Rubens Gomes de Sousa, são descritos os esforços que deram origem ao Código Tributário Nacional, vigente no Brasil desde 1966. As correspondências, transcritas parcialmente nessa obra, referem-se ao período abrangido entre os anos de 1947 e 1954 e deixam claro que o esboço do nosso CTN foi construído a partir de virtuosa dedicação de Rubens Gomes de Sousa e Aliomar Baleeiro, contando com vários colaboradores em fase posterior. Para o trabalho que ora se propõe, uma passagem externada por Rubens Gomes de Sousa e registrada em uma dessas correspondências merece destaque, por sua capacidade de revelação:

“Uma coisa que me preocupa, sob este aspecto, é ‘não arrombar portas abertas’, ou seja, não legislar aquilo que é evidente, ou é decorrência necessária de outros dispositivos. Entretanto, este é um ponto delicado, porque, conhecendo como conhecemos, a tendência, tanto do fisco como do contribuinte, para fingir ignorar aquilo que convenha ignorar, às vezes será necessário dizer mesmo expressamente o evidente e consagrar em lei o truísmo.”6

Em outra passagem de uma correspondência datada de 1951, Rubens Gomes de Sousa assim se manifesta sobre o seu trabalho, ainda individual, do que seria o esboço do Anteprojeto de CTN:

“(...) estou revendo tudo, palavra por palavra, para a redação final. Haverá algumas (poucas) alterações de conceito, mas bastante alterações de colocação de dispositivos, melhoria de redação e preenchimento de omissões dentro do plano sistemático adotado.”7

Revelam-se, por estas passagens, por um lado, a cautela para evitar a existência de dispositivos inúteis e por outro, a preocupação de que omissões pudessem gerar lacunas oportunistas para as partes envolvidas no cumprimento de uma obrigação tributária. Esta mesma preocupação com “o que dizer” também se refletiu no “como dizer” por meio das escolhas de palavras, buscando significados mais precisos, o que certamente não foi uma tarefa simples.

Gilberto de Ulhôa Canto8, anos mais tarde, confirmando as preocupações originais de Rubens de Gomes de Souza, registrou que a comissão que elaborou a Emenda 18, de 1º de dezembro de 1965, e que foi praticamente a mesma que elaborou a versão final do Projeto teve preocupação didática de redigir o texto do CTN de maneira explicativa e detalhada para esclarecer e orientar o sentido das normas, algumas inovadoras à época. Por esta razão, optou-se por introduzir disciplina minuciosa no referido Código, dispondo sobre matérias que, na visão de Ulhôa Canto, seriam mais próprias de um livro de doutrina do que de um diploma legislativo, que buscavam uniformizar e até dar a conhecer o significado de certos conceitos.

Toda esta introdução se faz necessária para contextualizar o ambiente no qual foi trabalhado o texto do CTN e, especialmente, o artigo 111. Carlos da Rocha Guimarães9 explica que o texto do dispositivo “mirou a certeza e a simplicidade na sua aplicação e se inspirou na justiça fiscal, quanto aos princípios informadores de sua formulação”. Com o passar dos anos e a perpetuidade de controvérsias que ainda pairam sobre este artigo, questiona-se a eficácia de seus autores no atingimento do objetivo pretendido, apesar do zelo e notória dedicação dispensados ao processo. Reconhecendo, portanto, a pertinência da questão, buscou-se reconstituir a história do artigo 111 do CTN, como forma de descortinar seu alcance e sentido.

2.2. Do artigo 111 no Anteprojeto

Pelos trechos das cartas transcritas em “O Código Tributário Nacional segundo a correspondência de Rubens Gomes de Sousa” constata-se que o Anteprojeto foi encaminhado ao gabinete do Ministro da Fazenda à época, Osvaldo Aranha, em 1953. No Anteprojeto, base para os trabalhos da Comissão Especial, o dispositivo equivalente ao atual artigo 111 do CTN tinha a seguinte redação:

“Art. 133 Será interpretada literalmente a legislação tributária excepcional em relação ao direito tributário comum, assim considerada a que disponha, sobre:

I. Suspensão ou exclusão do crédito tributário;

II. Concessão de reduções ou franquias tributárias, ou dispensa de obrigações tributárias acessórias, ainda que em caráter temporário ou condicional.

Parágrafo único. Não se considera excepcional, para efeitos deste artigo, a legislação tributária que disponha sobre:

I. Instituição de tributos extraordinários ou de caráter para fiscal, quaisquer que sejam a sua natureza e finalidade;

II. Imposição de sanções ou penalidades pecuniárias ou de qualquer natureza, observado o disposto no art. 273.”10

O Anteprojeto, então, foi publicado no Diário Oficial de 25 de agosto de 195311 e posto em uma espécie de audiência pública pela sociedade civil, bem como foi analisado e debatido no âmbito da Comissão Especial. No curso desse processo foram oferecidas as sugestões 723 e 913 visando o aprimoramento da redação do supracitado artigo 133, nos seguintes termos:

“723. (A) Idem. (B) No art. 133, substituir ‘literalmente’ por ‘restritivamente’. (C) ‘Literalmente’ pode ser até ampliativo da ‘mens legis’. O que parece é que se quer que nas hipóteses previstas no artigo se dê menor amplitude possível ao texto, porque derroga o princípio geral da igualdade perante o Fisco. (D) Rejeitada (83).

913. (A) Idem. (B) Substituir, no corpo do art. 133, a palavra ‘literalmente’ por ‘estritamente’. (C) Ata da 8ª sessão. (D) Rejeitada (83).”12

2.3. Do artigo 111 do Projeto de Lei 4.834, de 195413

Após a análise das sugestões ao Anteprojeto, em julho de 1954, foi apresentado o Projeto no qual o artigo 77, correspondente ao artigo 133 do Anteprojeto, foi redigido nos seguintes termos:

“Art. 77 Interpreta-se literalmente a legislação tributária excepcional em relação ao direito tributário comum, assim considerada a que disponha, ainda que em caráter temporário ou condicional, sobre:

I. Suspensão ou exclusão do crédito tributário;

II. Concessão de reduções ou franquias tributárias, ou dispensa de obrigações tributárias acessórias.

Parágrafo único. Não se considera excepcional, para efeitos deste artigo, a legislação tributária que disponha sobre:

I. Instituição de tributos extraordinários, quaisquer que sejam a sua natureza e finalidade.

II. Imposição de sanções ou penalidades de qualquer natureza observado o disposto no artigo seguinte.”14

Pela leitura do referido artigo percebe-se que as sugestões de substituição do termo literalmente por restritivamente foram rejeitadas, o que se deu após algum debate. A exposição de motivos15 do Projeto confirma as dificuldades enfrentadas para elaboração das regras interpretativas, mencionado que em relação ao “problema da interpretação da lei tributária” decidiu-se por adotar a:

“orientação moderna da hermenêutica integrativa e finalística, traduzida na rejeição de limitações apriorísticas da função do aplicador da lei. Em decorrência desse critério básico, e de sua vinculação ao conteúdo econômico dos atos e fatos tributados, traça regras especiais, complementares da norma geral, ou excepcionais em relação a ela, quanto a determinadas situações particulares”.16

Ao tratar do artigo 77 do Projeto, Rubens Gomes de Sousa, em seu relatório geral aprovado pela Comissão Especial, revela o debate e as razões da rejeição das sugestões:

“O art. 77, derrogando a regra geral do art. 73, enumera hipóteses de interpretação literal, o que, por sua vez, se justifica em razão do caráter excepcional de tais hipóteses, em relação à regra geral do art. 65.

O dispositivo corresponde ao art. 133 do Anteprojeto, diferindo dele apenas pela transposição da ressalva ‘ainda que em caráter temporário ou condicional’ para o corpo do artigo, a fim de generalizar sua aplicação às duas alíneas; (...)

As sugestões 723 e 913, que propunham se dissesse ‘restritivamente’ em vez de ‘literalmente’, não foram adotadas porque o objetivo visado é delimitar a interpretação à letra da lei, sem porém admitir restrição, em eventual prejuízo do contribuinte, das concessões nela previstas.17

Note-se que o citado artigo 73 do Projeto, primeiro artigo do Título IV (Da Interpretação da Legislação Tributária), dispunha que na aplicação da legislação tributária seriam admissíveis quaisquer métodos ou processos de interpretação, observado o disposto no título relativo às tais regras de interpretação. Apesar do citado artigo 73 não ter sido de fato aprovado na versão final do CTN, a sua finalidade, segundo Rubens Gomes de Sousa era “afastar o cerceamento da atuação do intérprete pela imposição de conclusões apriorísticas (pro fiscum ou contra fiscum)”18, conceito mantido no CTN19.

Já o artigo 65, também supramencionado e localizado no Título III (Da Aplicação da Legislação Tributária), determinava que somente nas hipóteses expressamente previstas poderiam ser dispensadas as aplicações da legislação tributária vigente, ressalvada, quanto a estas, a competência para declarar a sua inconstitucionalidade.

A partir da leitura das manifestações transcritas, é possível inferir que a rejeição ao termo “restritivamente” se deveu à preocupação de evitar que a expressão pudesse ser compreendida como uma autorização para que o intérprete estreitasse a aplicação de concessões legais de isenção em prejuízo dos contribuintes, não havendo qualquer intenção de limitar a liberdade intelectual do aplicador na norma, na busca legítima pelo conteúdo de um determinado dispositivo.

O autor da sugestão 723, Carlos da Rocha Guimarães20, alguns anos após a edição do CTN, ressaltou que a questão da interpretação de textos legais é um dos problemas centrais da dogmática jurídica e registrou a seguinte análise que, apesar de longa, por sua relevância, vai abaixo transcrita:

“Propusemos, nessa oportunidade, que se usasse o advérbio ‘restritivamente’, o que não foi aceito, a nosso ver, com justas razões, pois, como foi observado pelo Relator Prof. Rubens Gomes de Sousa, ‘o objetivo visado é delimitar a interpretação à letra da lei sem, porém, admitir restrição, em eventual prejuízo do contribuinte, das concessões nelas previstas.

Vemos, pelas duas justificativas, que a divergência se resumia à escolha das palavras: alertávamos para o perigo da literalidade levar-nos à concessão de isenções além da ‘mens legis’.

Opunha-se a Comissão Especial à palavra restritiva por considerar que ela poderia redundar em eventual prejuízo ao contribuinte.

Embora reconheçamos que a nossa sugestão não era melhor do que a expressão usada no texto do projeto e que veio a constar da lei, parece-nos que o que ficou bem claro é que, no fundo não se queria nem ampliar nem restringir a lei, além da sua exata significação (não ampliar o texto concessivo da isenção para não ferir o princípio da igualdade perante o fisco; não restringir o direito do contribuinte pela interpretação que lhe retirasse concessões legais).

Fica evidenciado que o método de interpretação literal é inadequado, tomada a expressão em sua ‘literalidade’.

Assim, o que se quer realmente significar com essa expressão é que o sentido da lei deve ser aplicado com a maior exatidão a fim de não criar isenção nele não prevista, nem eliminar isenção que nele se inclua.

Para tanto, é indubitável que temos que ir buscar, além da letra da lei, o seu sentido, o seu significado’.21

Concluiu o autor, com base em suas pesquisas, bem como nos trabalhos colaborativos para elaboração do Projeto, que o artigo 111 do CTN não nega o processo normal de apuração compreensiva do sentido das normas concessivas de isenção, circunscrevendo os seus limites aos casos que “a sua significação indica como nele incluídos”22. O texto do referido diploma legal, quis, outrossim, impedir que por um processo integrativo e não meramente interpretativo fossem preenchidas lacunas da lei, ultrapassando os seus limites assim explicitados: “só admitir como interpretação o que se considere implícito na letra da lei”23.

Ricardo Mariz, Gustavo Martini e Fabio Piovesan Bozza24 relembram que Gilberto de Ulhôa Canto, membro da Comissão Especial, em aula proferida no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco para o curso de extensão universitária promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário - IBDT, afirmou que a “redação final do artigo 111 traiu a intenção dos seus redatores, que não pretendiam manietar o processo mental de reconhecimento do sentido das leis, mas apenas dizer que, nas matérias submetidas àquele dispositivo, a interpretação deveria ser restritiva, e não extensiva ou ampliativa”.

2.4. Considerações complementares

A conclusão de Carlos da Rocha Guimarães remete-nos à preocupação externada pelo próprio Rubens Gomes de Sousa na citada correspondência a Aliomar Baleeiro, datada de 1951, sobre “não arrombar portas abertas”. Não obstante todo o zelo para o emprego de palavras na construção do texto do CTN visando atribuir significado preciso às concepções originalmente formuladas por seu idealizador, aprimoradas pela sociedade civil e pela Comissão Especial e, finalmente, apreciadas em processo legislativo, neste dispositivo em especial, o desconforto demonstrado por Carlos da Rocha Guimarães tinha fundamento relevante e que ecoa até os dias atuais nas diversas análises e discussões travadas acerca do artigo 111 do CTN.

Ainda em 1972, o Parecer Normativo CST 282, de 7 de novembro de 197225 pontuou que “literal disposição de lei” e “interpretação literal” não significam abstração de recursos de hermenêutica outros que não a pura interpretação gramatical.

Ricardo Lobo Torres26, citando o próprio Rubens de Gomes Souza, argumenta que quando o artigo 111 do CTN prescreve a interpretação literal das isenções, está ele, na verdade, buscando impedir que se recorra à analogia e à equidade, em homenagem ao princípio da legalidade, não tendo o condão de impor um método exclusivo de interpretação.

Aliomar Baleeiro, a quem Rubens Gomes de Souza atribuiu a paternidade espiritual do CTN27, também refletiu sobre o emprego do termo literal:

“estabelecendo a interpretação literal para os dispositivos que concedam suspensão ou exclusão do crédito tributário, isenções e dispensa das obrigações acessórias, o CTN afasta, nesses casos, e só neles os incisos I e II do art. 108”28.

Pela interpretação de Aliomar Baleeiro, portanto, o artigo 111 do CTN pretende apenas afastar a possibilidade de interpretação de regras isentivas por analogia ou por uso dos princípios gerais de Direito, não cabendo aprisionar o entendimento dessas normas a um método de intepretação já considerado ultrapassado à época da elaboração do Código, como a sua própria exposição de motivos menciona.

Schoueri29 qualifica como “infeliz” a referência à interpretação literal que, em suas palavras, “parece impor uma restrição à atuação do interprete”. Novamente surge a discussão travada no âmbito da Comissão Especial sobre o termo “restritivamente”, demonstrando ter sido em vão os esforços para localizar o vocábulo que melhor se coadunasse com a intenção dos legisladores da época.

Cita-se, ainda, o Parecer AGU/SF/2001, de 28 de setembro de 200030, da Advocacia-Geral da União, da lavra do Doutor Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, adotado pelo Ministro Gilmar Mendes, então Advogado-geral da União, em seu item 201 explicou que a norma do artigo 111 do CTN, ao falar em interpretação literal, prescreve a interpretação restritiva e não ampliativa. Suas palavras são:

“Cabe apenas responder que, em face de o art. 111 do CTN estabelecer que a legislação sobre isenção deve ser interpretada literalmente, ou seja, restritivamente, não comportando interpretação ampliativa, que fuja do sentido que as palavras podem ter (...).”

Também assim se manifestou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional através do Parecer PGFN-CAT 1.495, de 9 agosto de 200131, que ao confrontar norma instituidora de incentivo fiscal com o artigo 111 do CTN, afirmou:

“22. Não se defenda a interpretação absurdamente restritiva, ou excessivamente apegada à literalidade da lei, porque não nos parece ser esse o método hermenêutico mais inteligente e consentâneo com a Ciência do Direito. Com efeito, o exame da norma, mesma a concessiva de favor fiscal, deve valer-se de todos os elementos interpretativos, de forma a se aproximar o máximo possível do seu verdadeiro sentido e alcance. Entendo, particularmente, não ser o mandamento do art. 111 do CTN impeditivo do exame percuciente da norma jurídica.” (Destaque nosso)

Ao julgar pela interpretação do Superior Tribunal de Justiça - STJ, externada em recentes acórdãos32, as preocupações de Carlos Rocha Guimarães e Rubens Gomes de Sousa foram vencidas e até esquecidas pela “literalidade” da redação do próprio artigo 111 do CTN. É o que se infere do trecho abaixo transcrito, extraído da ementa do AgRg nos EDcl no REsp 1.350.977/PR Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Recurso Especial 2012/0225861-5, publicado em 7 de março de 2014:

“É cediço nesta Corte que, à vista do art. 111, II, do CTN, a norma tributária concessiva de isenção deve ser interpretada literalmente, sendo que, na hipótese, a concessão de isenção do imposto de renda a partir da data da comprovação da doença vai de encontro à interpretação do art. 6º, XIV, da Lei n. 7.713/88, que prevê que a isenção se dá sobre os proventos de aposentadoria e não sobre a remuneração.” (Destaque nosso)

É nesse mesmo sentido o AgRg no REsp 1.288.337/PR Agravo Regimental no Recurso Especial 2011/0253530-7, publicado em 5 de março de 2013:

“1. Os créditos escriturais de PIS e Cofins decorrentes do sistema não cumulativo adotado pela Lei 10.833/03 não podem ser excluídos da base de cálculo do IRPJ e da CSLL por ausência de previsão legal expressa, sob pena de violação do art. 111 do CTN, segundo o qual as exclusões tributárias interpretam-se literalmente.” (Destaque nosso)

Após o resgate dos debates havidos à época da elaboração do CTN e das posteriores manifestações externadas pelos próprios autores e colaboradores do código, infere-se que a exceção às regras gerais de interpretação estabelecida pelo artigo 111 do CTN visava negar a utilização do método integrativo, previsto atualmente no artigo 108 do CTN, para a aplicação das normas que concedessem isenções tributárias.

Talvez por não haver absoluta clareza, à época, quanto a diferença dos conceitos - interpretação e integração - tenha-se enfrentado tamanha dificuldade para adequar o texto da lei à intenção de seus autores. Uma pista quanto à imprecisão ou confusão dos conceitos pode ser verificada a partir da própria redação do Projeto que nomeou o Título IV como “Da Interpretação da Legislação Tributária” e não “Da interpretação e Integração da Legislação Tributária”, título final consignado no CTN. A redação do então artigo 75 do Projeto tratava das regras integrativas (atualmente expostas no artigo 108 do CTN) como “métodos ou processos supletivos de interpretação”33.

Como resumem Ricardo Mariz, Gustavo Martini e Fabio Piovesan34, a integração é parte inerente ao processo interpretativo, ou seja, a interpretação seria o todo, do qual a integração seria apenas a parte responsável por vedar lacunas da lei. Luciano Amaro35, no mesmo sentido, explica que integração é o processo pelo qual, diante da omissão ou lacuna, se busca preencher o vácuo da lei. A distinção entre interpretação e integração está, para este autor, em que, na primeira, se preocupa em identificar o que determinado preceito quer dizer, presumindo-se a existência de uma norma a ser interpretada; na segunda, “após se esgotar o trabalho de interpretação sem que se descubra preceito no qual determinado caso deva subsumir-se, utilizam-se os processos de integração, a fim de dar solução à espécie”.

O Direito é uma ciência social aplicada e como tal deve ser examinado à luz das matérias propedêuticas, dentre as quais se inclui a história36. O método histórico37, previsto na hermenêutica jurídica, pode dar uma grande contribuição ao revelar o contexto vivido em determinado período e as razões de fundo para a construção de determinada norma. No caso do CTN, os documentos históricos analisados revelaram que o pioneirismo da tarefa de codificar o Direito Tributário gerou desafios técnicos e até políticos38. A preocupação didática decorrente desse pioneirismo pode ter causado, pontualmente, imprecisões que acabaram resultando em efeitos diversos do pretendido.

Os trabalhos preparatórios do CTN foram descritos por Juan Carlo Luqui como

“‘um substancioso tratado de direito tributário’ no qual a doutrina a jurisprudência e o direito comparado servem para reforçar e esclarecer as normas do projeto e seu significado no conjunto. Previa o autor argentino, antes mesmo da aprovação do CTN, que o relatório de Rubens Gomes de Souza seria um ‘documento precioso para a interpretação da lei que venha a ser promulgada, mas em qualquer hipótese o projeto e sua fundamentação têm valor fundamental para qualquer tarefa legislativa ou científica sobre a árdua matéria a que se referem’.”39

Diante do valor histórico das referências que documentaram o processo de elaboração do CTN não se pode negar a sua relevância para a adequada compreensão de suas normas, especialmente na situação em que se busca interpretar, de forma definitiva, o conteúdo do artigo 111.

3. Conclusão

Este estudo pretendeu resgatar detalhes históricos relevantes sobre o processo de elaboração do artigo 111 do CTN, notadamente no que tange à utilização do termo “restritivamente”, em oposição ao termo “literalmente”, apontando as sugestões, críticas e considerações feitas pelos autores e colaboradores do Projeto. Também foram pesquisadas as obras posteriores nas quais os próprios autores do CTN e outros importantes doutrinadores contextualizaram o citado diploma legal e interpretaram o seu sentido.

Com base em todo o exposto conclui-se que nas hipóteses elencadas no artigo 111 do CTN a missão do intérprete deve ser cumprida a partir do uso de todos os métodos disponíveis na hermenêutica jurídica, com restrição apenas quanto aos métodos integrativos supletivos previstos no artigo 108 do CTN. Esta parece ter sido a verdadeira razão da escolha pela manutenção, no texto final do artigo, do advérbio “literalmente” em detrimento de “restritivamente”, preservando-se a integridade da obra de Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhôa Canto e tantos outros ilustres juristas, que decididamente não pretenderam que, ao fim e ao cabo, os termos “literal” e “restritivo” se tornassem sinônimos.

1 De autoria de Goethe (Fausto, primeira parte, cena IV), a citação é transcrita no prólogo do artigo de Carlos da Rocha Guimarães (GUIMARÃES, Carlos da Rocha. “Interpretação literal das isenções tributárias”. In: BALEEIRO, Aliomar et al. Proposições tributárias. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 37), publicado em 1975 que a cita na língua original: “Doch ein Begriff muss bei den Worte Sein.”

2 Nesse sentido, Carlos Rocha Guimarães (“Interpretação literal das isenções tributárias”. Ob. cit., p. 447) externa que os aspectos preparatórios representam recurso de valor precário para se interpretar uma lei; no caso do estudo ora apresentado, diverge-se dessa posição pela riqueza do material preparatório à elaboração do CTN.

3 Em poucas palavras, Felipe Luiz (“O conceito de saber na epistemologia política de Michel Foucault”. Revista de Iniciação Científica da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp vol. 10, nº 2, 2010, p. 1. Disponível em http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/ric/article/viewFile/331/379. Acesso em 10 de setembro de 2014) resume arqueologia como “um método de pesquisa de história do pensamento e congêneres, que busca desvelar e descrever as formações discursivas, constitutivas de discursos, grupos articulados de enunciados, que são, por sua vez, acontecimentos, ou seja, são singulares - tem seu tempo e seu espaço”.

4 Ao todo foram 1.152 sugestões propostas ao texto do anteprojeto, publicado no Diário Oficial. O projeto 4.834, publicado no Diário do Congresso de 9 de setembro de 1954 foi encaminhado para a Câmara dos Deputados, mas não chegou a ser votado, sendo retomado no governo do Presidente Castelo Branco, novamente sob a liderança de Rubens Gomes de Sousa.

5 In: BALEEIRO, Aliomar et al. Proposições tributárias. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, pp. 7 a 33.

6 BALEEIRO, Aliomar et al. Proposições tributárias. Ob. cit., p. 15.

7 BALEEIRO, Aliomar et al. Proposições tributárias. Ob. cit., p. 21.

8 CANTO, Gilberto de Ulhôa de. “Legislação tributária, sua vigência, sua eficácia, sua aplicação, interpretação e integração”. Revista Forense no 267. Rio de Janeiro: Forense, julho, agosto e setembro de 1979, p. 25.

9 “Interpretação literal das isenções tributárias”. Ob. cit., p. 37.

10 Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, 1954, p. 298, destaque nosso.

12 Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional. Ministério da Fazenda. Rio de Janeiro: IBGE, 1954, pp. 505 e 523, respectivamente, destaque nosso.

13 Publicada no Diário do Congresso de 7.9.1954.

14 Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, 1954, p. 41, destaque nosso.

15 Exposição 1.250, de 21 de julho de 1954, Mensagem 373, de 20 de agosto de 1954.

16 Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, 1954, p. 12.

17 Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, 1954, pp. 183 e 184, destaque nosso.

18 Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, 1954, p. 179.

19 Nesse sentido vide AMARO, Luciano. Direito Tributário brasileiro. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 208.

20 Advogado na Guanabara e no Distrito Federal foi também participante do seminário promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Financeiro juntamente como Tito Resende, Gerson Augusto Silva e Gilberto de Ulhôa Canto, dentre outros.

21 GUIMARÃES, Carlos da Rocha. “Interpretação literal das isenções tributárias”. Ob. cit., pp. 57 e 58.

22 GUIMARÃES, Carlos da Rocha. “Interpretação literal das isenções tributárias”. Ob. cit., p. 61.

23 GUIMARÃES, Carlos da Rocha. “Interpretação literal das isenções tributárias”. Ob. cit., p. 61.

24 “Interpretação e aplicação da lei tributária”. In: MACHADO, Hugo de Brito (org.). Interpretação e aplicação da lei tributária. São Paulo: Dialética e Fortaleza: Icet, 2010, p. 365.

26 TORRES, Ricardo Lobo. “Interpretação e aplicação da lei tributária”. In: MACHADO, Hugo de Brito (org.). Interpretação e aplicação da lei tributária. São Paulo: Dialética e Fortaleza: Icet, 2010, p. 347.

27 BALEEIRO, Aliomar et al. Proposições tributárias. Ob. cit., p. 28.

28 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 447.

29 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 741.

30 Publicado no DOU-I-E de 1º de novembro de 2000, p. 10.

31 Publicado no DOU-I de 24 de junho de 2003, p. 16.

32 No mesmo sentido indicado pode-se citar o REsp 1.221.271/SC Recurso Especial 2010/0208674-7 (DJe de 7.4.2014).

33 Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, 1954, p. 41.

34 “Interpretação e aplicação da lei tributária”. Ob. cit., p. 363.

35 Direito Tributário brasileiro. Ob. cit., p. 206.

36 Nesse sentido se pronuncia José Luiz Antiga Jr. em “Hermenêutica jurídica. Método histórico”, p. 1. Disponível em http://www.antigaadvogados.com.br/professor/pro_1314194788.pdf. Acesso em 10 de setembro de 2014.

37 André Franco Montoro ressalta que interpretação histórica investiga os antecedentes da norma, tais como processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, discussão, emendas, aprovação e promulgação, sendo de grande utilidade para que sejam compreendidos a origem e o desenvolvimento histórico dos institutos jurídicos de forma a captar o significado preciso dos diplomas legais (MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito. 29ª ed. ver. atual. São Paulo: RT, 2011).

38 Apesar de o Anteprojeto datar de 1953, a sua primeira tentativa de aprovação pelo Legislativo foi frustrada. O tema só foi retomado no primeiro governo militar, quando então foi apreciado pelo Congresso Nacional.

39 LUQUI, Juan Carlo. “O projeto de Código Tributário Nacional do Brasil”. Revista de Direito Administrativo vol. 44, 1956, p. 546. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/15916/14746. Acesso em 10 de setembro de 2014.