Por uma Pragmática no Direito Tributário

Júlio Alberto Neves de Carvalho

Advogado em São Paulo.

Resumo

Este artigo trata dos problemas metodológicos que o tradicional formalismo tributário assume no trato do árido tema relacionado aos limites da extrafiscalidade, face à complexidade do arcabouço axiológico encarnado na Constituição Brasileira de 1988 e da realidade sociopolítica do País. Serão endereçadas as dificuldades que as conhecidas categorias lógico-formais do Direito Tributário enfrentam enquanto aparato metodológico para o tratamento de complexa substância político-moral que tem se posto na pauta do Direito Tributário, mormente quanto aos limites das normas tributárias dirigistas e ao uso ou abuso da instrumentalização do Direito Tributário. Para tanto, será proposto o desenvolvimento de uma pragmática do Direito Tributário, enquanto perspectiva mais adequada para o endereçamento dos problemas que orbitam o tema.

Palavras-chave: formalismo, categorias formais, limites da extrafiscalidade, pragmática do Direito Tributário.

Abstract

This article aims to deal with methodological problems that the traditional formalism assumes by facing arid subject related to the limits of the interventionist practice of Tax Law, in view of the complexity of the various policies and principles embedded in the Brazilian Constitution, as well as complexity of the political and social tissue. It will be addressed the difficulties the known formal categories of the Brazilian Tax Law face as methodological equipment to approach the problematic moral and political substance that has been placed in the Brazilian Tax Law agenda, primarily as to the limits of the inductive tax norms and the use or abuse of the instrumentalization of tax law. Therefore, I will propose the development of a pragmatic point of view on Tax Law as the most adequate perspective to address the problematic issues involved in the subject.

Keywords: formalism, formal categories, inductive tax norms, pragmatics in Tax Law.

1. Aproximações Iniciais

A relação jurídico-tributária, enquanto objeto científico próprio, comporta múltiplos focos de análise: técnico-jurídico ou formal, econômico, político, sociológico, moral - todos não necessariamente estanques ou heterogêneos entre si.

Neste estudo, o Direito Tributário será enfocado, não pela óptica do tradicional método lógico-analítico da regra-matriz - redutor de complexidades (calcado nas usuais categorias formais: sujeitos ativo e passivo, direito subjetivo de crédito, obrigação tributária etc.) -, mas sob o viso de uma pragmática político-moral da relação tributária - compaginada com a Teoria do Estado e o sistema constitucional -, considerando-o na prática social concreta do discurso normativo em que suas categorias são manipuladas pelos seus usuários.

Ao nihilismo1 do Direito Tributário - tradicionalmente formalista e pouco afeto às inter-relações dos contribuintes entre si e destes para com o Estado enquanto comunidade politicamente estruturada - deve se contraerguer uma Ética Fiscal do Estado e dos Contribuintes2.

2. Redução nas Formas e o Exemplo da Relação Obrigacional e do Direito Subjetivo de Crédito

O Direito Tributário é, em essência, um Direito da Coletividade3. A justiça constitucional tributária não se confina na relação Estado-cidadão, mas afeta também a relação dos contribuintes entre si4, entrelaçados na comunidade fiscal solidária. A responsabilidade pública dos concidadãos na realização do projeto de Estado Democrático de Direito amadurece a solidariedade social enquanto ambiente ético comum onde se congregam política e moralmente os cidadãos-contribuintes.

É sob o mote da dimensão pública da relação jurídica fiscal que Roman Seer5 nos dá conta de que, numa comunidade solidária de contribuintes, “para o cidadão individual a obrigação tributária somente permanece sustentável se for garantido que o Estado exija da mesma forma perante os demais”, de tal modo que a Autoridade Fazendária atua, assim, como “fiduciária da comunidade solidária integrada por todos os contribuintes”.

Assumem elevada importância essas colocações de Seer sobre a práxis pública da Administração Fazendária por flagrar algo tão evidente quanto olvidado a respeito da situação jurídica subjetiva em que se investe a Fazenda Pública quando lança o imposto e o cobra administrativamente e/ou no âmbito do processo judicial.

A Administração Fiscal cumpre, decerto, um mandato político-legal, fiscalizando o cumprimento igualitário do preceito impositivo. A situação jurídica subjetiva do Estado-Administração, em relação aos contribuintes reciprocamente considerados, é centro convergente de interesses tanto do Estado quanto da comunidade geral de contribuintes, copartícipes do fenômeno público da tributação. A propósito, preconiza Ezio Vanoni6 que “é evidente que o interesse do Estado e o interesse geral dos seus membros são uma só e mesma coisa. (...) Entre o Estado e o complexo dos cidadãos não existe nenhuma oposição, mas ao contrário, identidade absoluta”.

Daí se indagar, por exemplo, se uma categoria lógico-formal geneticamente pandectista como o direito subjetivo de crédito tem aptidão metodológica para agasalhar a complexidade do fenômeno político e socioeconômico da tributação. À evidência que não, e isso não é nenhuma novidade.

É incisiva a crítica de Vanoni7 ao explanar que Nawiasky peca certamente por excesso quando este afirma que “contribuinte e Estado se encontram em face da lei na mesma situação do credor e do devedor de direito privado”. Na mesma toada punha-se Ernst Blumenstein8, para quem o objeto da relação tributária consiste, sobretudo, numa prestação patrimonial a favor da comunidade; portanto, uma relação obrigatória de Direito público, no bojo da qual a comunidade é que ocupa a posição de credora, e o indivíduo, a de devedor.

Conjuminando-se a essa plêiade de destacados juristas, segue, na doutrina pátria, a apologia de Ricardo Lobo Torres9 a respeito da adoção, pelo Direito Tributário, da teoria da relação obrigacional, acusando-a de afastar o fenômeno tributário de suas matrizes constitucionais, ao contrário da doutrina mais moderna como de Klaus Tipke e Birk, na Alemanha, e Escribano, na Espanha, que estuda a relação jurídico-tributária a partir do enfoque constitucional e sob a perspectiva pública do Estado Democrático de Direito.

Decerto, a Administração Fiscal não é titular de interesse próprio, tampouco tem algum direito subjetivo a proteger. Se a relação entre o Fisco e o contribuinte se projeta sobre a plataforma de uma relação jurídica administrativa, então se dá numa “relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente”10, na qual a Administração Fiscal exerce um poder de polícia, titular de um de­ver-poder (situação jurídica complexa ou molecular) e gestora do interesse público da comunidade fiscal de contribuintes, e não um direito subjetivo próprio (situação jurídica simples ou atômica)11.

Uma redução funcional da situação jurídica do Estado, como esta relatada, na adoção de categoria lógico-jurídica mais simples, invertendo a situação molecular pela atômica e reduzindo a tarefa e a responsabilidade pública do Estado na relação fiscal, teve o claro propósito, em tempos de arrojado positivismo científico em que forjada, de desferir um corte epistemológico no Direito Tributário, amputando as dimensões política, econômica e moral inerentes ao fenômeno regulado.

Marco Aurélio Greco12, em rico artigo sobre a crise do formalismo no Direito Tributário brasileiro, publicado na Revista da PGFN, bem acentua que o modelo reducionista - que serviu de berço teórico para as tradicionais categorias formais das quais ainda se instrumenta o tributarista na atual praxeologia do Direito Tributário brasileiro, conquanto tenha tido grande valor no contexto histórico em que erigido pela doutrina fundacional pátria do início da década de 1970, centrada numa rígida matemática de conceitos lógico-formais do plano sintático-semântico (regra-matriz de incidência tributária e os elementos composicionais: material, espacial, temporal, subjetivo e quantitativo) - pôs de lado, intencionalmente, o plano funcional da pragmática, reduzindo a complexidade do meio, e tornando o sistema mais operativo.

James Marins13, na mesma esteira, também atina que o reducionismo epistemológico que foi defendido pelos teóricos de escol do final do século passado justificava-se ideologicamente pelo objetivo de robustecer a segurança jurídica na obrigação tributária, impermeabilizando-a contra razões sócio-políticas imanentes ao próprio fenômeno fiscal, objeto de regulação sistemática.

A propósito, calha lembrar Viehweg14, que, com propriedade, elucida que o pensar sistemático ou dogmático, ao contrário do tópico ou problemático, é, em si, redutor da realidade ou do objeto de estudo, pois seleciona propriedades do substrato real e os enrijece em fórmulas estanques, distanciando-se do ponto inicial.

Greco15, no seu livro sobre dinâmica da tributação, adverte que o grande perigo dos dogmas sistemáticos vem à tona quando surpreendidos por casos aos quais não mais se ajustam, revelando inadequações, perplexidades e aporias entre os seus arranjos e a nova configuração da realidade que se insurge contra a cadeia lógica do sistema.

No apego excessivamente formal à estrutura obrigacional da relação jurídica tributária, aos moldes civilistas, Helenilson Cunha Pontes16 já acusava o efeito colateral de escamotear desigualdades reais entre Estado - sujeito ativo - e contribuinte - sujeito passivo. Hoje, os efeitos colaterais do paradigma redutor daquela incipiente Ciência do Direito Tributário brasileiro são ainda mais problemáticos.

O êxodo axiológico induzido na relação jurídica fiscal pela doutrina formalista que arquitetou as bases do Direito Tributário no Brasil, hoje, já dá mostras de patente falibilidade. Diante da complexidade socioeconômica espelhada na realidade política do país e do longo ementário de programas estatais encarnados na Constituição Brasileira de 1988, o antigo modelo teórico anuncia intrincadas dificuldades de enfrentamento, por exemplo, de temas áridos como os limites político-constitucionais da extrafiscalidade, que excepciona os critérios de justiça fiscal sob o mote de uma justiça constitucional tributária.

Com esse diagnóstico, cumpre questionar: as usuais categorias formais do Direito Tributário a que vimos nos referindo, tanto quanto seu hermético conceitualismo, usinados ideologicamente nas fôrmas do paradigma redutor, são aparato metodológico suficiente para se erigir uma adequada frente de abordagem da complexidade axiológica inerente a esses ambientes ético-jurídicos? É o que será endereçado no subcapítulo seguinte, sem pretensão nenhuma, é claro, de exaurir o tema.

3. Crise do Modelo Teórico Reducionista

O fetiche ao formalismo, compreensível em contextos históricos de agudo autoritarismo como instrumento de proteção ao ideário democrático17, perde terreno à medida que se avolumam as complexidades sócio-políticas e morais entranhadas na arena pública das grandes discussões jurídico-tributárias do País.

Basta por reparo no fértil campo das isenções tributárias, empestado de hipóteses excepcionais à racionalidade do sistema tributário. A profusão de exceções, enxertando nichos de favorecimento fiscal cada vez mais numerosos, turva, paulatinamente, o padrão de coerência do sistema.

A ocultação de interesses eleitoralmente orientados sob a capa de um simbólico18 discurso normativo em prol do dirigismo fiscal programático descredencia moralmente o sistema, aguça a insegurança, causa déficits de arrecadação a serem recompensados na sobrecarga dalgum outro setor e enseja a proliferação dos focos de evasão fiscal.

Esse tema também não é novidade na literatura de Direito Tributário, não obstante o frescor e a atualidade que, surpreendentemente, ainda conserva. Louis Eisenstein19, em seu livro The ideologies of taxation, originalmente publicado em 1961, já compreendia a facilidade com que se enredavam retoricamente variados conteúdos de sentido a partir da textura aberta do interesse público, mormente em normas extrafiscais. É o que se depreende dos escólios cuja transcrição é inevitável:

“The public interest is not some manifest essence that transcends the realm of private interests. It is a changing product that is periodically distilled from the pressures of competing interests to the prevailing prefe­rences of the moment. (...) The public interest is an empty vessel into which everyone pours his private preferences.”

A aptidão para o discurso simbólico que as normas tributárias dirigentes portam, na divisa entre o sistema jurídico-constitucional e o sistema político, é algo com que se deve preocupar o Direito Tributário brasileiro, hoje, tanto mais em razão da complexidade axiológica da Constituição brasileira de 1988 e da pulverização ética como realidade política do substrato social, fatores que dão margem para que se escore no arcabouço constitucional um discurso normativo, a bem de ver, desconectado dos autênticos interesses públicos extrafiscais, que devem semelhar em maior medida possível os programas constitucionais.

Modelar o desenvolvimento metodológico do Direito Tributário à guisa de modelos redutores, construindo análises estruturalmente conformes a constructos sintático-binários (hipotético-descritiva e prescritiva), empana a intenção político-ideológica latente no discurso normativo que subjaz à superfície jurídico-normativa aparente.

Os vetustos modais lógico-formais do sistema tributário não conseguem dar adequado tratamento metodológico a essa substância político-moral que tem se posto na pauta do Direito Tributário e dele exigido respostas.

A abordagem do fenômeno extrafiscal e da consectária instrumentalização do Direito Tributário aos fins constitucionais não pode passar ao largo das investigações sobre as contingências estadísticas, as razões sócio-políticas que alicerçam a métrica das alíquotas praticadas pelo legislador, dos princípios e argumentos de qualquer ordem invocados pelo Estado.

Face à inundação de expectativas normativas, às vezes até contraditórias entre si, em relação à compreensão de um mesmo texto constitucional (mormente quanto a normas constitucionais programáticas como fundamento normativo a normas tributárias dirigistas ou indutoras), em razão da pluralidade sistêmica de variados pontos de observação (os interesses políticos do legislador, os interesses arrecadatórios da Fazenda, os elisivos e mercadológicos dos agentes econômicos - todos os setores digladiando retoricamente pela prevalência da sua própria leitura dos princípios constitucionais no contexto sociopolítico em que manipulados), somada à vagueza, à ambiguidade e à porosidade do texto constitucional, segue-se o problema do controle do poder tributário no desempenho legislativo das competências tributárias e na própria interpretação das normas tributárias dirigistas, tanto mais se pressuposto um substrato social hipercomplexo como o brasileiro, que dá azo a particularismos de fatores sociais e econômicos diversos.

Somam a esse cipoal de dificuldades outros fatores que ofuscam ainda mais a análise: o complexo de finalidades constitucionais cometidas ao Estado, por vezes, bloqueia a identificação precisa do fim perseguido pela norma legal dirigista, aliviando o ônus argumentativo do Poder Público para justificar suas ações interventivas. Marcel Papadol20 nos avisa que, face à diversidade de finalidades indicadas pela nossa Constituição Federal, “não seria difícil o conserto de eventuais equívocos cometidos pelo Poder Público, mediante o reconhecimento aleatório de justificativas para a adoção de medidas extrafiscais”, as quais encontram fácil acomodamento retórico no emaranhado plexo de fins constitucionais vazados em textura aberta.

Outra dificuldade a ser vencida, nesse túrbido panorama, assoma no fato de que, nas proporções macrológicas com que se projetam as normas dirigistas, as prognoses (ex ante) são inseguras, e o controle (ex post), geralmente tardio21. Anota, a propósito, o professor Roberto Ferraz22 que, por exemplo, “não se sabe se a isenção de IPI beneficia a atividade dos taxistas ou a dos donos de frotas, dos donos de licença e outros que configuram os capitalistas que exploram esse serviço de transporte, ou mesmo os fabricantes de automóveis”.

Com esse quadro, este estudo propugna o desenvolvimento de uma abordagem semântico-pragmática do discurso normativo utilizado pelo Estado (no âmbito legislativo, normativo infralegal e jurisprudencial) para justificar a Política Extrafiscal emplacada, enfocando-o na sua prática social concreta e no exame dos contextos concretos de seus usos, num verdadeiro controle público da linguagem pela comunidade discursiva. Como bem sumariza Marcelo Neves23, com indisputável clareza, enquanto o modo de pensar sintático-semântico “implica uma significação univocamente fixada do signo”, o semântico-pragmático “pressupõe a variabilidade do sentido dos termos e expressões”.

Portanto, somente com o aporte de um modo de pensar semântico-pragmático será possível erigir uma metodologia apta ao controle mais acurado da prática da instrumentalização do Direito Tributário, vis-à-vis a equivocidade semântica do texto constitucional e a pluralidade pragmática das expectativas normativas dos sujeitos inseridos no conflito ideológico da comunidade discursiva (interesses arrecadatórios da Fazenda Pública, político-eleitorais do legislador de plantão, econômico-elisivos do contribuinte).

Estancar o desenvolvimento metodológico do Direito Tributário no isolamento sintático de suas categorias formais implica reduzi-lo a uma linguagem artificial incapaz de compreender os problemas do uso simbólico do texto normativo.

A práxis das normas programáticas da Constituição por meio das normas legais extrafiscais só poderá ser realmente “testada” no plano semântico-pragmático, analisando a situação e o contexto comunicativos.

A metódica pragmática que se postula para o adequado enfrentamento da complexidade indicada exige, portanto, uma abordagem mais tópica e menos sistemática; mais argumentativa e menos atrelada aos arranjos formais e fórmulas conceituais estanques; mais holística e menos hermética; mais zetética e menos dogmática; enfim, mais pragmática e menos sintática.

4. Alguns Casos Típicos na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Ante as insuficiências já reportadas do formalismo tributário enquanto estratégia metodológica de abordagem do uso de normas constitucionais de textura aberta, mormente quando em conta normas de viés extrafiscal, tem-se assistido à estratificação jurisprudencial de uma linguagem simbólica vazada em fórmulas dogmáticas incapazes de se conectarem com os elementos reais que enredam o contexto discursivo.

Em julgado da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal24, por exemplo - no qual a recorrente pleiteava, em sede recursal extraordinária, a extensão jurisdicional, em seu favor, do benefício da isenção tributária concedido pelo hoje revogado art. 2º da Lei 8.393/1991 -, viu-se na justificação do voto-condutor do Ministro Relator Celso de Mello apenas uma rarefeita alusão a razões “prontas” do tecido normativo, sem descer à análise do contexto em que a medida extrafiscal foi engendrada.

Ao demitir-se da análise do contexto concreto de uso da medida extrafiscal e dos elementos socioeconômicos do substrato real, o discurso de legitimação da norma dirigista esvaziou-se de real significado, desracionalizando-se.

São ilustrativos os escólios colhidos do próprio voto do Ministro Relator no aludido julgado: (i) “a outorga da isenção tributária em exame apoiou-se, para efeito de sua concessão, em pressupostos lógicos e objetivos legitimadores do tratamento normativo diferenciado” (destaque meu); (ii) “foi estabelecida com o fim precípuo de viabilizar a plena realização de objetivo estatal nitidamente qualificado pela nota da extrafiscalidade” (destaque meu); (iii) “é que a mencionada isenção (...) objetiva conferir efetividade ao art. 3º, II e III, da Constituição da República, eis que, nesse sentido, a função extrafiscal do tributo atua como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional e de superação das desigualdades sociais e regionais” (destaque meu); e (iv) “encontra o seu fundamento racional na necessidade de o Estado implementar políticas governamentais (...) (destaque meu)”.

Disto, é de se indagar: quais pressupostos lógicos e objetivos legitimadores do tratamento diferenciado o caso apresentou? A qual específico objetivo nitidamente qualificado pela nota da extrafiscalidade, no plano concreto, a medida extrafiscal se dirigiu e em que medida a isenção do IPI, naquelas circunstâncias, auxiliou o objetivo estatal? Por que conduziria à promoção do desenvolvimento nacional e à superação das desigualdades sociais e regionais e de que maneira? O avanço a ser conduzido nesses setores programáticos da Constituição seria suficiente para excepcionar os critérios de justiça fiscal?

A mera referência simbólica aos predicados destacados no extrato retirado do voto do Ministro Relator não satisfez o ônus argumentativo a cargo do Estado em justificar concretamente o implemento da política extrafiscal. Foi insuficiente à racionalização da medida interventiva e incapaz de descer à análise e mensuração dos interesses em jogo no contexto discursivo em que a norma dirigista foi praticada.

Mais grave ainda é nota paradigmática do ex-Ministro Paulo Brossard frequentemente utilizada na justificação pelo Judiciário das normas extrafiscais, cuja reprodução se impõe:

“A isenção fiscal decorre do implemento da política fiscal e econômica, pelo Estado, tendo em vista o interesse social. É ato discricionário que escapa ao controle do Poder Judiciário e envolve juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo.25 (Destaque meu)

Dessume-se do excerto destacado a clara predisposição do Supremo Tribunal Federal de não se imiscuir no exame dos elementos contextuais componentes do painel político-econômico em que se programou a norma dirigista, sabotando-se investigações no plano semântico-pragmático através de dogmas redutores de complexidade como: mérito do ato administrativo (conveniência e oportunidade), ato discricionário e separação de poderes.

Noutra oportunidade, em caso similar, em que a recorrente, uma empresa especializada em importação e comércio atacadista de produtos importados, postulava à Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal26 a extensão dos benefícios isencionais veiculados pelo art. 6º do DL 2.343/1988, fulcrando-se no princípio da isonomia, idêntico foi o discurso de legitimação da norma indutora, alijando-se o órgão julgador de examinar o entorno político-econômico do caso.

Como estratégia, escorando-se em idêntico discurso, novamente o Supremo Tribunal Federal se apoiou no mesmo discurso simbólico que se depreende nas seguintes passagens do julgado em foco:

“A concessão desse benefício isencional traduz ato discricionário que, fundado em juízo de conveniência e oportunidade do Poder Público, destina-se, a partir de critérios racionais, lógicos e impessoais estabelecidos de modo legítimo em norma legal, a implementar objetivos estatais nitidamente qualificados pela nota de extrafiscalidade. A exigência constitucional de lei formal para a veiculação de isenções em matéria tributária atua como insuperável obstáculo à postulação da parte recorrente, eis que a extensão dos benefícios isencionais, por via jurisdicional, encontra limitação absoluta no dogma da separação de poderes.” (Destaque meu)

Novamente, cabe inquirir: que critérios racionais, lógicos e impessoais foram esses que tornaram legítima a norma isencional e, mais ainda, sua adstrição ao restrito substrato de contribuintes por ela contemplados? Que específicos objetivos estatais nitidamente qualificados pela nota de extrafiscalidade que, no caso, legitimaram a contração dos usuais critérios de justiça fiscal? E em que medida foi necessária?

Vê-se, nas passagens realçadas, um discurso quase idêntico ao do outro caso reportado, que envolvia outro contexto específico, outras partes, outro imposto. Isso revela um déficit argumentativo dos órgãos julgadores frente à complexidade que é própria da investigação sobre a legitimidade de normas tributárias com vetor extrafiscal.

Problemas desse gênero, concernentes ao discurso de legitimação das normas tributárias indutoras, já têm sido denunciados por juristas de escol no panorama doutrinário brasileiro. O professor Roberto Ferraz27, em importante artigo sobre a intervenção do Estado na Economia e a necessária motivação dos textos legais, expõe o fenômeno aqui reportado sob o mote do chamado dirigismo fiscal, “que consiste no uso de instrumentos fiscais com falsas justificativas de intervenção do Estado na Economia, visando na realidade favorecer interesses particulares”, desconectado, pois, de uma autêntica direção fiscal. E arremata:

“Grupos de influência e pressão têm conseguido aproveitar-se da ingenuidade dos que vêem, em todas as finalidades, louváveis desculpas para ‘incentivo do governo’, quando na verdade visam apenas proteger seus interesses. Com a desoneração de alguns, há consequentemente sobrecarga fiscal nos demais setores.”

No mesmo artigo, o Professor Ferraz expôs a posição do Supremo Tribunal Federal, no RE 225.655-4/PB28, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão em que se decidiu categoricamente - a respeito da necessidade de motivação expressa do Poder Executivo para as alterações das alíquotas dos impostos de conjuntura (II, IE, IPI, IOF) -, pelo “inteiro descabimento da exigência de motivação do ato pelo qual o Executivo exerce a faculdade em apreço, por óbvio o objetivo de ajustar as alíquotas do imposto aos objetivos da política cambial e do comércio exterior (art. 21 do CTN)”.

Novamente, calha perquirir: no caso exposto, quais objetivos de política cambial e de comércio exterior foram objetivados para justificar a manobra de político-fiscal praticada? Em que medida a gestão fiscal implementada promoveu os objetivos propostos em detrimento da justiça fiscal? Não basta a mera indicação retórica de um subconjunto de objetivos estatais (no caso: de política e do comércio exterior) descalçada de um denso e coerente suporte argumentativo que legitime o uso do poder por via da medida extrafiscal.

Também Eduardo Fortunato Bim29, em artigo sobre a inconstitucionalidade das razões de Estado e o poder de tributar, alude ao fenômeno em foco, entranhado no discurso juspublicista, sob o mote de razões de Estado, que, no sentido enfocado pelo autor, “consiste em pseudo-argumentos para fazer prevalecer a supremacia das razões (= interesses) políticos sobre as do direito e/ou da moral”. Assim explana:

“Uma das características da razão de Estado é que elas não aparecem com esse nome no discurso jurídico; ela é uma espécie de argumento invisível que direciona a leitura do ordenamento jurídico sob rótulos menos agressivos e mais simpáticos, como a solidariedade social, bem comum, interesse público em geral, perda de arrecadação etc. (...). E exatamente por serem invisíveis, combatê-las é tarefa árdua, exigindo do intérprete e aplicador do direito a sua profunda compreensão para, consciente ou inconscientemente, não se deixar seduzir pelo seu discurso.”

A complexidade descortinada nessa arraigada práxis resulta do caráter proteiforme das razões de Estado, que aqui e ali, variam de camuflagem verbal ou subterfúgio retórico: interesse público, bem comum, interesse nacional, desenvolvimento nacional, objetivos estatais nitidamente qualificados pela nota de extrafiscalidade etc. Em todos os exemplos, prepondera sempre a linguagem conotativa, o discurso simbólico. Como bem ensina o genial Professor Marcelo Neves30, “o agir simbólico é conotativo na medida em que ele adquire um sentido mediato e impreciso que se acrescenta ao seu significado imediato a manifesto, e prevalece em relação a esse”.

É dizer, tornam-se coringas manipuláveis pelos donos do Poder e que servem como porta de entrada à infiltração no sistema jurídico de interesses alopoiéticos31, ou seja, políticos e/ou econômicos que se sobrepõem aos fins jurídicos autênticos32.

O que agrava ainda mais a dificuldade de se enfrentar esse problema - localizado no âmbito da pragmática do discurso normativo - é justamente a renitência institucional do Judiciário em investigar os reais interesses econômicos e ideológicos dissimulados pela capa das sobreditas razões de Estado, ao escudar-se nos dogmas da separação de Poderes e da insindicabilidade dos atos políticos ou de Governo como estratégia de redução de complexidade e álibi à responsabilidade pública pelo controle jurisdicional.

Aliás, informa-nos Bim33, que foi justamente essa a razão de criação da doutrina dos atos políticos ou de Governo, citando Oswaldo Aranha Bandeira de Melo: “a criação dessa categoria de atos objetivou justamente excluir uma série de atos, de caráter político, do controle da Justiça”. Ora, não é consentânea à ideia de Estado Democrático de Direito a existência de círculos de poder imunes ao controle público. Estado Democrático de Direito é Estado que se justifica, que se explica, que se fundamenta. Como bem sintetiza Bim34, “o que a doutrina da insidicabilidade dos políticos propugna é exatamente a apologia das razões de Estado”.

5. Conclusão

Seja sob o mote do dirigismo fiscal, seja sob o das razões de Estado, patente em qualquer dos aludidos conceitos é a presença do discurso simbólico de legitimação da extrafiscalidade como práxis jurídica, acompanhada da resistência institucional do Judiciário de se imiscuir na análise das motivações político-ideológicas e/ou econômicas que subjazem às manobras de Política Fiscal do Estado e à métrica das alíquotas manejáveis em normas tributárias de viés indutor, mormente quando em conta os conhecidos impostos de conjuntura (II, IE, IPI, IOF), quais permitem, como sabido, injunções diretas do Poder Executivo na definição das alíquotas. E como lembra Carlos Ayres Britto35, com a argúcia que lhe é natural, “todo mundo sabe onde, quando e como o Poder Legislativo decide, o que não acontece com as decisões do Poder Executivo”, pressupondo a necessidade ainda maior de se alicerçarem numa sólida e transparente justificativa ético-política para a direção fiscal assumida.

É com esta diagnose do panorama atual que assoma a insuficiência metodológica das vetustas categorias do formalismo tributário (estruturadas no plano sintático-semântico) como estratégia de enfrentamento de problemas dessa natureza (enquadrados no plano semântico-pragmático).

Com esse intuito que se propugna por um estudo do uso dos dogmas, formas e conceitos do Direito Tributário no campo da pragmática, atinando com o contexto ideológico e socioeconômico em que são usados ou abusados. Apenas com essa abordagem, situada no campo da pragmática da linguagem, que será possível melhor controlar o uso do poder fiscal no crescente fenômeno de instrumentalização do Direito Tributário.

1 No sentido adotado por Klaus Tipke. Moral tributária do Estado e dos contribuintes. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 14.

2 TIPKE, Klaus. Moral tributária do Estado e dos contribuintes. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 14.

3 TIPKE, Klaus; e YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 15.

4 Idem.

5 SEER, Roman. Steuer und Studium, 1999, p. 294.

6 VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, sem data, traduzido por Rubens Gomes de Souza, do original italiano de 1932, pp. 115-117.

7 Idem.

8 BLUMENSTEIN, Ernst. A ordem jurídica da economia das finanças - tratado de finanzas, tomo I. Wilhelm Gerloff e Fritz Neumark (dirs.). Buenos Aires: El Ateneo, 1961, pp. 111 e ss.

9 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 14ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 234 e 235.

10 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 105.

11 Uma diferenciação entre situação jurídica atômica e molecular é referenciada por Marco Aurélio Greco. Dinâmica da tributação - uma visão funcional. 2ª ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pp. 103-107.

12 GRECO, Marco Aurélio. “Crise do formalismo no Direito Tributário brasileiro”. Revista da PGFN. Disponível em http://www.pgfn.fazenda.gov.br/revista-pgfn/revista-pgfn/ano-i-numero-i/greco.pdf. Consulta em 30 de agosto de 2014.

13 MARINS, James. Defesa e vulnerabilidade do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009, p. 21.

14 VIEHWEG, Theodor. “Sobre el futuro de la filosofía del Derecho como investigación fundamental”. Cuadernos de Filosofía del Derecho nº 6. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1969, p. 13.

15 GRECO, Marco Aurélio. Dinâmica da tributação - uma visão funcional. 2ª ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 27.

16 PONTES, Helenilson Cunha. “Revisitando o tema da obrigação tributária”. Direito Tributário - homenagem a Alcides Jorge Costa. Vol. 1. Coordenação de Luís Eduardo Schoueri. São Paulo: Quartier Latin, inverno de 2003.

17 Vide CALABRESI, Guido. “Two functions of formalism”. The University of Chicago Law Review vol. 67, nº 2. Spring, 2000, pp. 479-488.

18 Aqui entendido como discurso conotativo: com um descolamento entre a mensagem veiculada e a real intenção do emissor.

19 EISENSTEIN, Louis. The ideologies of taxation. Inglaterra: Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts and London, 2010, p. 161.

20 PAPADOL, Marcel. “Um passo adiante: contributo para a compreensão do controle das medidas tributárias extrafiscais e do papel desempenhado pela capacidade contributiva neste contexto”. Fundamentos do Direito Tributário. Humberto Ávila (org.). São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 281.

21 Vide TIPKE, Klaus; e YAMASHITA, Douglas Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 41.

22 FERRAZ, Roberto. “Intervenção do Estado na economia por meio da tributação - a necessária motivação dos textos legais”. Revista Direito Tributário atual nº 20. São Paulo: Dialética/IBDT, 2006, p. 244.

23 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 87.

24 AgRg no AI 360.461-7 Minas Gerais, Min. Rel. Celso de Mello (6.12.2005), Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.

25 RE 157.228/SP, Rel. Min. Paulo Brossard. Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, 3.5.1994.

26 AI-AgR 138.344, Rel. Min. Celso de Melo. Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, 2.8.1994.

27 FERRAZ, Roberto. “Intervenção do Estado na economia por meio da tributação - a necessária motivação dos textos legais”. Ob. cit., p. 243.

28 DJU de 28.4.2000, Ementário 1.988-6.

29 BIM, Eduardo Fortunato. “A inconstitucionalidade das razões de Estado e o poder de tributar: violação ao Estado Democrático de Direito”. Revista Direito Tributário atual nº 19. São Paulo: Dialética/IBDT, 2005, p. 192.

30 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 23.

31 Aqui entendido como injunção de critérios eminentemente econômicos ou político-eleitorais sobre os critérios próprios do sistema jurídico.

32 Sobre alopoiese no Direito, vide: NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, pp. 140-148.

33 BIM, Eduardo Fortunato. “A inconstitucionalidade das razões de Estado e o poder de tributar: violação ao Estado Democrático de Direito”. Ob. cit., p. 204.

34 BIM, Eduardo Fortunato. “A inconstitucionalidade das razões de Estado e o poder de tributar: violação ao Estado Democrático de Direito”. Ob. cit., p. 205.

35 BRITTO, Carlos Ayres. Perfil constitucional da licitação. São Paulo: Zênite, 1997, p. 83.