A não Cumulatividade da Contribuição para o PIS e da Cofins: a Restrição ao Aproveitamento de Créditos e os Limites à Atuação do Legislador Infraconstitucional

José Luiz Crivelli Filho

Mestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo. Advogado em São Paulo.

Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar questões relacionadas ao regime não cumulativo da contribuição para o PIS e da Cofins, instituídos pelas Medidas Provisórias nos 66/2002 e 135/2003, posteriormente convertidas nas Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003, à luz dos princípios e regras previstos na Constituição Federal de 1988, a fim de estabelecer o alcance da não cumulatividade aplicável às referidas contribuições sociais e os limites postos à atuação do legislador infraconstitucional no desenvolvimento deste regime. Também serão analisadas algumas hipóteses de restrição ao aproveitamento de créditos e a sua inconsistência com as normas hierarquicamente superiores, buscando-se, ao final, interpretação que garanta maior coerência sistêmica.

Palavras-chave: não cumulatividade, PIS, Cofins, livre concorrência, neutralidade, limites normativos.

Abstract

This article aims to analyze some questions related to the non-cumulative regime of PIS and Cofins established by Provisional Measure nº 66/2002 and 135/2003 issues and subsequently converted into Law nº 10.637/2002 and 10.833/2003 in the light of the principles and rules of Federal Constitution of 1988, in order to establish the extent of non-cumulative applicable to such social contributions and the limits put to the performance of the infra-legislature in developing this system. Some hypotheses restricting the use of credit and its inconsistency with the hierarchically superior norms will also be examined in an attempt to obtain an interpretation that ensures greater systemic coherence.

Keywords: non-cumulative, PIS, Cofins, free competition, neutrality, regulatory limits.

Introdução

O ordenamento jurídico brasileiro sempre previu que as contribuições sociais cobradas sobre o faturamento incidissem de forma cumulativa, ocasionando múltiplas incidências sobre a base tributável. Se, de um lado, a incidência cumulativa afasta-se de princípios como o da isonomia, capacidade contributiva, livre concorrência e neutralidade tributária, de outro, permitia eficiência na arrecadação e simplicidade na apuração.

A EC nº 42/2003 - que inseriu o parágrafo 12 ao artigo 195 da Constituição Federal de 1988 -, bem como as Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003, atenderam ao pleito dos contribuintes que clamavam por um sistema não cumulativo para tais contribuições. As novas regras inseridas no sistema, a despeito de admitirem o desconto de créditos em relação à receita tributável do contribuinte, criaram um regime complexo e confuso, que aumentou o compliance dos contribuintes e tem gerado inúmeras discussões nas esferas administrativa e judicial, mormente quanto às limitações postas pelo legislador infraconstitucional para o aproveitamento de créditos.

Encontrando-se a não cumulatividade do PIS e da Cofins prevista na Constituição Federal de 1988, importa analisar o seu sentido e alcance, conectando-a aos demais princípios e regras aplicáveis a esta espécie tributária para, em seguida, estabelecer os limites normativos postos à atuação do legislador infraconstitucional, mormente quanto aos créditos passíveis de aproveitamento.

Diante da problemática brevemente exposta, o presente trabalho objetiva definir o sentido e o alcance da não cumulatividade prevista para o PIS e a Cofins, bem como os limites postos à atuação do legislador infraconstitucional no desenvolvimento deste regime. Ao final, serão analisadas algumas hipóteses de restrição ao aproveitamento de créditos, bem como a sua compatibilidade com o texto constitucional.

1. A não Cumulatividade Tributária

1.1. Noções gerais

Em regra, a doutrina classifica os tributos sobre o consumo em: (i) monofásicos; (ii) plurifásicos cumulativos; e (iii) plurifásicos não cumulativos. Na primeira hipótese, o tributo incide “em um só ponto do processo de produção e distribuição”, como ensina Luís Eduardo Schoueri1, ficando as etapas seguintes desobrigadas ou sujeitas a um regime de alíquota zero, por exemplo. Na segunda hipótese, cobra-se o tributo em cada etapa do ciclo econômico, perfazendo-se a chamada incidência em “cascata”, pois não se admite a dedução do tributo pago na etapa anterior. Nesse caso, o tributo é computado como custo do agente que se incorpora ao preço do produto ou serviço. Na terceira e última modalidade, o tributo incide apenas sobre o valor agregado ao produto ou serviço, permitindo-se o abatimento do montante pago na etapa anterior.

Alcides Jorge Costa2 elenca duas vantagens em relação à tributação cumulativa: (i) a facilidade na sua aplicação e compreensão; e (ii) a fixação de alíquotas menores, a fim de se garantir um volume de arrecadação satisfatório e a repercussão do tributo em um grande número de empresas. Por outro lado, o professor da Universidade de São Paulo3, também aponta desvantagens ao imposto plurifásico cumulativo: (i) a indução à verticalização das empresas (concentração da produção); (ii) a impossibilidade de que a carga tributária que acompanha o produto seja uniforme para os consumidores em razão do tamanho do ciclo de produção e comercialização que poderá variar (ora ser maior, ora menor, inclusive em face da verticalização da produção); (iii) a impossibilidade de se desonerarem as exportações; e (iv) a desigualação entre o produto importado e o nacional, tornando aquela mais interessante ao consumidor final, por chegar livre de tributos do exterior.

Vejamos, a seguir, uma situação em que a tributação é plurifásica e cumulativa, supondo ser a alíquota sempre 10%:

 

Tabela 01 - Efeitos da tributação plurifásica cumulativa

 

“A”

“B”

“C”

“Consumidor final”

Valor da venda

100,00

200,00

300,00

300,00

Valor agregado

0,00

100,00

100,00

Devido

10,00

20,00

30,00

60,00

No caso hipotético, ao final do ciclo econômico, terá sido recolhida a quantia de 60 para o Estado. Se o contribuinte “C” optasse por concentrar a sua produção, suprimindo a segunda etapa da cadeia, certamente poderia vender o bem ao consumidor final a um preço inferior ou até mesmo aumentar a sua margem de lucro, o que certamente causaria desigualdades entre empresas do mesmo setor de atividade econômica, tal como sustenta Alcides Jorge Costa. Grandes empresas, por exemplo, concentrariam a sua produção, reduzindo o número de etapas até a entrega da mercadoria ao consumidor final, enquanto empresas menores, impossibilitadas de realizar a mesma operação, acabariam por sujeitar-se a uma carga tributária muito maior, cuja repercussão no preço final seria inevitável. Os efeitos são indesejáveis, pois desestimulam a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico.

A não cumulatividade busca compensar as desvantagens citadas, trazendo maior equilíbrio ao mercado e possibilitando que produtos ou serviços similares possuam a mesma carga tributária, independentemente da complexidade do ciclo de produção ou comercialização. Com isso, criam-se condições de igualdade entre empresas e, consequentemente, estimula-se a livre iniciativa e a livre concorrência, sem prejuízo da garantia de maior neutralidade da tributação com relação à formação dos preços.

A não cumulatividade pode ser operacionalizada por diversos métodos, como será visto no subitem 1.3. Grosso modo, permite-se que o contribuinte desconte do montante devido o imposto pago anteriormente, cabendo-lhe recolher o tributo apenas sobre o valor agregado ao bem ou serviço. Como mencionado, independentemente do número de etapas do ciclo econômico, o encargo suportado pelo consumidor final será sempre o mesmo. Retomemos o exemplo acima, desta vez levando em consideração esta técnica:

 

Tabela 02 - Exemplo de tributo plurifásico não cumulativo

 

“A”

“B”

“C”

“Consumidor final”

Valor operação

100,00

200,00

300,00

300,00

Valor agregado

0,00

100,00

100,00

Alíquota (10%)

10,00

20,00

30,00

30,00

Crédito

0,00

10,00

20,00

Débito

10,00

20,00

30,00

Devido

10,00

10,00

10,00

30,00

Ao contrário da tributação plurifásica cumulativa, a não cumulatividade faz com que cada contribuinte recolha o tributo sobre o valor acrescido (100,00), mediante o abatimento do tributo devido na saída com o suportado na entrada. Deixa o gravame de ser considerado custo a ser agregado ao preço final de venda para ser contabilizado como valor a ser recuperado do elo seguinte do ciclo de produção e comercialização4. Com isso, o ônus econômico do tributo é repassado a cada etapa, alcançando o consumidor final. Não obstante, como bem destaca André Mendes Moreira5, “apesar de incidir fracionadamente em diversas etapas da cadeia produtiva (…) o imposto pago será sempre o mesmo independentemente da quantidade de etapas de circulação da mercadoria (ou prestação do serviço tributável)”, garantindo-se, portanto, maior igualdade da carga tributária para todos os agentes de determinado setor, criando condições equânimes de concorrência.

1.2. Não cumulatividade como forma de se assegurar a livre concorrência e a neutralidade

O artigo 170 da Constituição Federal de 1988 estabelece os fundamentos e a finalidade da Ordem Econômica, prescrevendo princípios a serem observados para o alcance dos valores por ela prestigiados, dentre eles, a livre concorrência

A Ordem Econômica protegida pela Constituição Federal de 1988 é aquela fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa6, dirigida a “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Luís Eduardo Schoueri7, em análise ao dispositivo constitucional supracitado, traz importantes conclusões que merecem transcrição:

“Ao apontar como fundamento da Ordem Econômica a Livre-iniciativa e como princípio a Livre Concorrência, o Constituinte deixa claro, por um lado, que nem um nem outro é a finalidade daquela. A primeira é um pressuposto, i.e., a Ordem Econômica preconizada pelo Constituinte baseia-se, ao lado do trabalho humano, na livre iniciativa. (…) Esta Ordem Econômica, por sua vez, não existe para assegurar a Livre-iniciativa nem a Livre Concorrência. Ela existe para assegurar a todos a existência digna. Esta é a razão de ser da Ordem Econômica fundada na Livre-iniciativa. Uma ordem econômica que esteja baseada na Livre-iniciativa mas que não tenha por finalidade assegurar a existência digna a todos não é aquela preconizada pelo Constituinte. Não merece proteção constitucional uma tal ordem.”

O princípio da livre concorrência, portanto, complementa, conforma e restringe a livre iniciativa. Ainda que esta busque assegurar a existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social, deverá ela observar os princípios prescritos pelo constituinte, o que impõe concluir não ser ela absoluta ou irrestrita. Da mesma forma, não é a livre concorrência um fim em si mesma, pressupondo, portanto, a livre iniciativa.

Em uma primeira aproximação, pode-se dizer que a livre concorrência deve permitir o acesso de todos ao mercado, garantindo igualdade de condições aos agentes econômicos que explorem a mesma atividade. Importante notar, na esteira do defendido por Diego Bomfim8, que este princípio não impõe “uma igualdade absoluta entre os competidores”, mas sim de condições, isto é, de oportunidades de competir.

Decorrência imediata da livre concorrência é a noção de neutralidade concorrencial, a qual abarca também a chamada neutralidade tributária. Exige-se que o Estado garanta condições de competitividade a todos aqueles que optarem por ingressar no mercado, vedando-se a intervenção negativa, entendida aquela que gera desequilíbrios concorrenciais. Este dever estende-se à tributação, que não deve causar distorções entre produtos ou serviços similares fornecidos por agentes diferentes. Com razão Misabel Derzi9, quando afirma que “ser neutro significa tanto ser indiferente na competitividade e concorrência, quanto na formação de preços de mercado”.

Assim, não se sustenta a ideia de que a neutralidade tributária corresponderia à existência de um tributo totalmente neutro ou à impossibilidade de que normas tributárias interfiram na Ordem Econômica. Muito pelo contrário: a tributação sempre gera, em maior ou menor escala, efeitos econômicos e alterações de comportamento dos agentes econômicos. Ademais, ainda que não se negue que a influência dos tributos na formação final do preço, objetiva-se que esta influência seja mínima e, uma vez existente, afete igualmente a todos que produzem o mesmo bem ou prestam o mesmo serviço.

A tributação cumulativa, como visto, causa sérias distorções concorrenciais. A não cumulatividade, por outro lado, surge como instrumento hábil a assegurar a livre concorrência e, consequentemente, a neutralidade, pois permite que produtos e serviços similares tenham carga tributária igual ou próxima, viabilizando a competição entre agentes que explorem a mesma atividade econômica. Cria-se um ambiente favorável à livre iniciativa e ao desenvolvimento do mercado nacional, que também é objeto de proteção constitucional, ex vi do artigo 219.

A aplicação da não cumulatividade ao IPI e ao ICMS, por exemplo, permite que, ao final, a carga tributária suportada pelo consumidor capte a sua capacidade contributiva, manifestada no ato de consumo. Daí o caráter de neutralidade que assumem os tributos plurifásicos não cumulativos: o contribuinte suporta o ônus financeiro na entrada e o neutraliza na saída, envidando esforços para repercutir economicamente, no elemento seguinte da cadeia, o tributo devido na saída. Em um cenário ideal10, se o contribuinte toma crédito de 10 e sua saída enseja um débito de 20, recolherá 10 ao Fisco e repercutirá, na etapa seguinte, o valor devido na saída, de forma que, ao final, tenha repassado totalmente do ônus do imposto.

1.3. Métodos de operacionalização da não cumulatividade

A experiência com a técnica da não cumulatividade trouxe a possibilidade de utilização de diversos métodos para se obter o resultado pretendido, quais sejam: (i) método aditivo direto; (ii) método aditivo indireto; (iii) método subtrativo direto; (iv) método subtrativo indireto; e (v) método de crédito do tributo.

No método aditivo direto, aplica-se a alíquota sobre o valor efetivamente acrescido pelo contribuinte. Assim, se um insumo é adquirido por 150 e o contribuinte acresce mais 150 ao bem, supondo ser a alíquota de 15%, o valor a ser recolhido é o resultado da multiplicação da alíquota pelo valor acrescido, ou seja, 22,5. A dificuldade do método reside em saber o quantum efetivamente agregado ao bem.

No método aditivo indireto, aplica-se a alíquota sobre cada um dos elementos que compõem o valor agregado pelo contribuinte e, ao final, somam-se as quantias encontradas. Utilizando-nos do exemplo acima, supondo-se que o contribuinte tenha agregado 150, correspondendo 90 aos insumos, 10 às despesas e 50 à margem de lucro e aplicando-se a alíquota de 15%, tem-se: 13,5 (90 x 15%) + 1,5 (10 x 15%) + 7,5 (50 x 15%) = 22,5.

O método subtrativo direto, também conhecido por “método de subtração base sobre base”, consiste na aplicação da alíquota do tributo sobre a diferença entre o valor total das vendas e o valor total das compras. Se o contribuinte adquire insumos a 150 e vende seu produto a 300, submetido à alíquota de 15%, tem-se: (300 – 150) x 15% = 22,5.

O método subtrativo indireto mescla o método aditivo indireto e o método subtrativo direto, onde o contribuinte aplica a alíquota sobre o valor das receitas e sobre o valor das compras, obtendo o valor a ser recolhido mediante operação de subtração. Com base no mesmo exemplo, o contribuinte adquire insumos a 150 e vende seu produto a 300, submetido à alíquota de 15%, tem-se: (300 x 15%) – (150 x 15%) = 22,5.

Há, ainda, o método do “imposto contra imposto” (por vezes reconhecido no método subtrativo), adotado pelo ICMS e pelo IPI, em que se subtrai o imposto suportado nas entradas do montante devido na saída. Este método é o mais adotado em razão de sua simplicidade e facilidade de fiscalização, já que o valor do crédito vem destacado no próprio documento fiscal.

No tocante às contribuições sociais incidentes sobre o faturamento, quer parecer que o legislador ordinário elegeu o método subtrativo indireto, já que o contribuinte aplica as alíquotas de 1,65% (PIS) e 7,6% (Cofins) sobre o valor da receita auferida e sobre os valores pagos a título de insumos e nas demais hipóteses em que a lei permite o creditamento, a fim de obter o montante a ser pago. Assim, há uma forte aproximação do método “base contra base” e distanciamento do método “imposto contra imposto”, sendo irrelevante saber quanto incidiu efetivamente na etapa anterior.

Analisada a não cumulatividade tributária em seus aspectos gerais, passemos à análise da não cumulatividade do PIS/Cofins, a fim de estabelecer seus limites normativos.

2. O Regime não Cumulativo da Contribuição para o PIS e da Cofins

2.1. Considerações iniciais

As contribuições sociais sobre o faturamento possuem diferentes fundamentos constitucionais de validade. A previsão para a cobrança da contribuição para o PIS encontra-se no artigo 239 da Constituição Federal de 1988, destinando-se a financiar o pagamento do seguro-desemprego, do abono salarial e a participação na receita dos órgãos e entidades dos trabalhadores públicos e privados. Já a “Cofins” possui previsão no artigo 195, I, b, do mesmo texto, destinando-se a financiar a seguridade social. Ambos os tributos incidem sobre o faturamento mensal, entendido como a receita auferida pela pessoa jurídica, consoante os artigos 1º das Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003.

Historicamente, estes tributos sempre foram plurifásicos e cumulativos. É dizer, incidiam sobre o faturamento/receita de cada contribuinte, pouco importando o tamanho do ciclo econômico. Tal sistemática influenciava na formação do preço final e trazia todas as demais desvantagens já abordadas. Demandava-se, portanto, tal como no ICMS e no IPI, um regime não cumulativo, que permitisse alinhar a incidência de tais contribuições aos princípios da livre concorrência e da neutralidade.

Foi então editada a Medida Provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002, que instituiu o regime não cumulativo para a contribuição para o PIS, sendo convertida, posteriormente, na Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002. O regime foi estendido à Cofins por meio da Medida Provisória nº 135, de 30 de outubro de 2003, mais tarde convertida na Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003.

Neste interregno, entrou em vigor a Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003 que, dentre outras alterações, incluiu o parágrafo 12 ao artigo 195 do texto constitucional de 1988, prescrevendo que: “A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não cumulativas.”

As Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003 instituíram regimes de não cumulatividade similares. O critério material da hipótese de incidência tributária consiste em auferir faturamento, entendido como as receitas obtidas pela pessoa jurídica que compreendem “a receita bruta da venda de bens e serviços nas operações em conta própria ou alheia e todas as demais receitas auferidas pela pessoa jurídica” (parágrafo 1º do artigo 1º). A base de cálculo é o valor do faturamento, tal como definido no caput (parágrafo 2º do artigo 1º), excluídos os valores mencionados no parágrafo 3º do mesmo enunciado prescritivo.

Alterações substanciais ocorreram em relação à alíquota: se antes os tributos implicavam carga de 3,65% (3% de Cofins e 0,65% de PIS), o regime de não cumulatividade impôs a majoração para 9,25% (7,6% de Cofins e 1,65% de PIS, conforme o artigo 2º das leis em comento). Em conformidade com o método subtrativo indireto, o contribuinte aplica a alíquota de 9,25% sobre a sua receita e também sobre as despesas11 direta ou indiretamente vinculadas à geração da receita mencionada nos artigos 3º das Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003. Da diferença obtida entre ambos, tem-se o valor a ser recolhido no mês de competência.

A não cumulatividade do PIS/Cofins revela-se distinta da prevista para o IPI e o ICMS. Com efeito, pouco importa se a operação da entrada gerou o dever de pagar o tributo ou a alíquota a que se submeteu o elemento anterior do ciclo econômico. Relevante é que valores tributados como receita em etapas anteriores, não sejam novamente tributados, surgindo a complicada questão de se saber quais gastos, custos ou despesas podem servir de base para o cálculo de créditos. Assim, não se tem por objetivo desonerar o ciclo econômico de industrialização e comercialização, mas sim o próprio faturamento dos contribuintes, individualmente considerados, de modo que a receita tributada na etapa anterior seja considerada custo ou despesa na etapa seguinte, a fim de ser excluída da nova incidência12. Elucidativas, nesse sentido, as lições de Schoueri e Viana13:

“(…) a não cumulatividade para fins de PIS/Pasep e Cofins não leva em conta a ‘cadeia comercial’ ou a ‘cadeia produtiva’, mas tão somente o contribuinte em si considerado, no mais das vezes pouco importando o que aconteceu na etapa anterior.”

É com base nesta premissa que a não cumulatividade da contribuição para o PIS e da Cofins deve ser analisada.

2.2. Objetivos

A Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 135/2003 justifica a instituição do regime não cumulativo para a Cofins (plenamente aplicável à contribuição para o PIS), vejamos:

“1.1. O principal objetivo das medidas ora propostas é o de estimular a eficiência econômica, gerando condições para um crescimento mais acelerado da economia brasileira nos próximos anos. Neste sentido, a instituição da Cofins não cumulativa visa corrigir distorções relevantes decorrentes da cobrança cumulativa do tributo, como por exemplo a indução a uma verticalização artificial das empresas, em detrimento da distribuição da produção por um número maior de empresas mais eficientes - em particular empresas de pequeno e médio porte, que usualmente são mais intensivas em mão de obra. (Destaques nossos)

Sem prejuízo do mencionado na Exposição de Motivos, outras vantagens podem ser verificadas pela adoção de tal sistemática: (i) a tributação plurifásica, outrora cumulativa, não prestigiava suficientemente o Princípio da Livre Concorrência, tendo em vista os malefícios que este tipo de incidência causa; (ii) diante da não cumulatividade, o preço final do produto ou serviço passa a ser o mesmo para o consumidor final, independentemente do número de etapas anteriores, o que já se buscava com o ICMS e o IPI (maior neutralidade); e (iii) equiparação do produto nacional com o produto importado que entrava no território nacional desonerado.

Conquanto as Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003 sejam frutos da conversão das Medidas Provisórias nos 66/2002 e 135/2003, editadas anteriormente à inserção do parágrafo 12 ao artigo 195 da Carta Magna de 1988, quer parecer que a não cumulatividade destes tributos encontra limites constitucionais que devem ser observados pelo legislador infraconstitucional. É o que buscaremos demonstrar a seguir.

2.3. Limites constitucionais impostos ao legislador quando da adoção do regime da não cumulatividade

A Constituição Federal de 1988, em sua redação original, já exigia que o IPI, o ICMS, e os impostos e contribuições residuais se submetessem à sistemática da não cumulatividade, inexistindo qualquer exigência neste sentido em relação aos demais tributos passíveis de instituição pelo legislador infraconstitucional. Daí ser possível entender que o constituinte reconhece o problema da incidência cumulativa, mas, por decisão, não a proibiu para todos os tributos.

Se antes da alteração constitucional já se poderia sustentar a existência de parâmetros no trato da não cumulatividade, é inegável que, após a Emenda Constitucional nº 42/2003, quis o constituinte impor prescrições e limites a serem observados pelo legislador infraconstitucional. Nesse diapasão, torna-se imprescindível perquirir quais são eles.

O parágrafo 12 do artigo 195 da Lei Maior de 1988 prescreve que “a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não cumulativas”. A partir do enunciado transcrito, vê-se que o constituinte derivado permitiu que o legislador infraconstitucional: (i) mantenha a tributação cumulativa das contribuições incidentes sobre o faturamento; ou (ii) defina, por meio de lei, os setores de atividade econômica que se submeterão ao regime da não cumulatividade.

Não há dúvidas de que a expressão “não cumulativas” apresenta um conteúdo semântico mínimo, que deve pautar a atividade do legislador infraconstitucional. Paulo de Barros Carvalho14, nesse sentido, leciona que:

“(…) a não cumulatividade da contribuição ao PIS e da Cofins, que havia sido instituída por liberalidade do legislador ordinário, com os permissivos e vedações pelos quais livremente optou, passou a apresentar conteúdo mínimo de significação. Por imperativo constitucional, pretendendo-se a aplicação do regime não cumulativo àqueles tributos, coube ao legislador apenas indicar os setores da atividade econômica em que deseja fazê-lo, sem, no entanto, autorizar que este limite o direito ao crédito, mitigando os efeitos da não cumulatividade.”

Trata-se de norma de eficácia limitada de princípio institutivo facultativo, como afirma André Mendes Moreira15. O legislador infraconstitucional pode ou não optar pela instituição do regime não cumulativo, contudo, uma vez feita a escolha, sua atuação deve se limitar à definição dos setores da atividade econômica, observando o princípio da igualdade, a fim de não gerar desequilíbrios concorrenciais e discriminações injustificadas. O legislador, portanto, deve ser coerente, consoante preconiza Humberto Ávila16, isto é, não pode, ao menos a princípio, instituir um regime de não cumulatividade mitigado, que crie embaraços ao aproveitamento de créditos, ou, pior, desiguale contribuintes que se encontram em situação equivalente.

Por outro lado, deve-se reconhecer que o texto constitucional não prescreveu qual método deveria ser utilizado, ao contrário do que fez com o IPI e o ICMS, restando certa margem de liberdade ao legislador infraconstitucional para defini-lo, respeitadas as características do PIS e Cofins.

Não se pode olvidar que a instituição deste regime impõe ao legislador a observância das demais normas constitucionais que balizam o exercício da competência tributária, em especial os princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da livre concorrência e da neutralidade. Ao definir os setores que devem se submeter ao regime em tela, deveria o legislador pautar-se em critérios que justifiquem a diferenciação. Assim, por exemplo, deveriam ser escolhidos setores em que os contribuintes possuam despesas consideráveis (capazes de gerar créditos para abatimento) e reduzida capacidade contributiva, viabilizando a desoneração pretendida. A sensação que se tem é a de que o legislador se utilizou de casuísmos e não elegeu critérios que justifiquem as desigualações feitas.

Por fim, mas não menos importante, a instituição de um regime não cumulativo, que busca desonerar o faturamento dos contribuintes, deve conformar-se com a livre concorrência e com a neutralidade. Afinal, o que se busca é justamente o fomento à livre iniciativa (evitar a verticalização da produção em razão da cumulatividade causada por tais tributos), bem como a mínima interferência na formação dos preços. Desta forma, o legislador deve garantir que o efeito “cascata” seja eliminado, ou seja, que a receita tributada na etapa anterior, posteriormente transformada em custo ou despesa na etapa seguinte, não sofra nova tributação17. O aproveitamento de créditos, portanto, não pode ser condicionado ao rol criado pelo legislador, pelo que a lista existente no artigo 3º da Lei nº 10.637/2002, repetida pela Lei nº 10.833/2003, em nosso entendimento, é meramente exemplificativa. Deste modo, todo e qualquer gasto, custo ou despesa que seja indispensável ao processo produtivo, à venda ou à prestação do serviço (e, consequentemente, à própria geração da receita) deve permitir o creditamento.

Verifica-se, portanto, que há uma significação mínima acerca da expressão “não cumulativas” que, em conexão com outras normas constitucionais, impõe limitações à atuação do legislador infraconstitucional caso este opte por instituir tal regime para as contribuições em análise. Traçados estes limites normativos, cabe agora analisar algumas inconsistências existentes nas Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003.

3. (Im)possibilidade de Restrição ao Aproveitamento de Créditos no Regime não Cumulativo da Contribuição para o PIS e Cofins

3.1. A adoção de créditos físicos ou financeiros pelo legislador infraconstitucional

Muito se discute acerca da adoção pelo constituinte do crédito físico ou financeiro para o IPI e o ICMS. O crédito físico, segundo Ricardo Lobo Torres18, é aquele “em que se deduzem do imposto a pagar as quantias correspondentes aos tributos que anteriormente incidiram sobre as mercadorias empregadas fisicamente na industrialização ou comercialização”. Já o crédito financeiro, segundo o autor, consiste na dedução de “todas as despesas necessárias à produção do bem”.

Parece-nos que, no caso da contribuição para o PIS e da Cofins, só poderia ser admitido o crédito financeiro, tendo em vista a diferença existente em relação ao IPI e ao ICMS no tocante à materialidade destes tributos. Se a ideia da não cumulatividade aplicada a estas contribuições é a de evitar a incidência cumulativa sobre receitas, não haveria lógica em se adotar créditos físicos, estritamente relacionados à industrialização e à comercialização de produtos e serviços. Em outras palavras: se a não cumulatividade da contribuição para o PIS e da Cofins volta-se para a receita/faturamento, não haveria razão para que se permitisse o aproveitamento de créditos apenas em relação aos insumos empregados fisicamente na industrialização ou comercialização. Daí por que somente cabe a adoção de créditos financeiros.

As Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003 andaram bem nesse sentido, posto que, inegavelmente, adotaram o chamado crédito financeiro. Com efeito, uma simples análise do artigo 3º de ambas as legislações permite chegar a esta conclusão. Os incisos IV a X, por exemplo, denotam a opção do legislador, que permite o aproveitamento de créditos em relação aos valores pagos a título de aluguéis de prédios, máquinas e equipamentos; bens do ativo imobilizado; energia elétrica; vale-transporte; valores de operações de arrendamento mercantil, dentre outros.

Assim, o aproveitamento de créditos é muito mais amplo na contribuição para o PIS e na Cofins do que no IPI e no ICMS. A adoção do crédito financeiro não se resume a uma opção do legislador infraconstitucional, mas é decorrência lógica da própria materialidade de tais tributos (faturamento/receita), vedada qualquer restrição nesse sentido.

3.2. O conceito do termo “insumos” previsto nos artigos 3º, II, das Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003

Alvo de inúmeras controvérsias no âmbito do Carf - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e do próprio Judiciário, os artigos 3º, II, das Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003 possuem a seguinte redação:

“Art. 3º Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:

(…)

II - bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes, exceto em relação ao pagamento de que trata o art. 2º da Lei nº 10.485, de 3 de julho de 2002, devido pelo fabricante ou importador, ao concessionário, pela intermediação ou entrega dos veículos classificados nas posições 87.03 e 87.04 da Tipi.” (Destaque nosso)

Permite-se ao contribuinte o desconto de créditos calculados em relação a: (i) bens utilizados como insumo na prestação de serviços; (ii) bens utilizados como insumo na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda; (iii) serviços utilizados como insumo na prestação de outros serviços; e (iv) serviços utilizados na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda. A celeuma reside em saber qual é o significado do vocábulo “insumo”, já que, a depender do conteúdo atribuído, pode-se restringir ou alargar a possibilidade de aproveitamento de créditos para fins de cálculo das contribuições devidas.

A Receita Federal do Brasil conceituou o termo “insumo” por meio das Instruções Normativas nos 247/2002 e 404/2004. Pela interpretação do Fisco, enquadrar-se-ia no conceito de “insumo”, (i) o bem que sofresse alterações em razão de seu contato com o bem fabricado ou produzido; (ii) o bem aplicado ou consumido na prestação de serviços; e (iii) o serviço aplicado ou consumido na prestação de outro serviço. Equiparou-se o “insumo” das Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003 àquele utilizado para fins de crédito do IPI, exigindo-se, portanto, o seu contato físico com o bem fabricado ou produzido destinado à venda, ou com o serviço prestado.

Esta equiparação, no entanto, não se sustenta, pois, como alertam Luís Eduardo Schoueri e Matheus Cherulli Alcântara Viana19, “se a própria legislação determina que o serviço pode vir a ser insumo, para fins de PIS e Cofins, é forçoso admitir que o termo insumo aqui possui conotação diversa”. Com efeito, as próprias leis ora analisadas permitem que o insumo seja um bem ou serviço, afastando a possibilidade de conceituá-lo tal como o fez a legislação do IPI.

Como já se apontou anteriormente, a materialidade da contribuição para o PIS e da Cofins (receita/faturamento) é diferente da materialidade do IPI ou do ICMS (operação com produtos industrializados ou com mercadorias/prestação de serviços). Daí ser possível falar-se em insumo que entre em contato físico com bem industrializado, comercializado ou utilizado na prestação de serviços de comunicação ou transporte interestadual e intermunicipal. Nas contribuições incidentes sobre a receita deve-se levar em conta as despesas que o contribuinte teve para gerá-la20. O conceito de “insumo” para fins de apuração do PIS e da Cofins, portanto, é outro, não sendo possível aplicar aquele oriundo do IPI, como pretendeu a Receita Federal.

Embora o Carf - então Conselho de Contribuintes - tenha inicialmente proferido algumas decisões no sentido de aplicar o conceito veiculado pela Receita Federal, evoluiu no sentido de ampliar o alcance do termo, equiparando-o ao conceito de “despesa necessária”, previsto no artigo 299 do Decreto nº 3.000/1999, utilizado para fins de dedução da base de cálculo do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas. Ainda que o conceito fosse aplicado por analogia, inegável a sua aproximação da base tributável pelas contribuições sociais em questão.

Se a aplicação do conceito de “insumo” utilizado pelo IPI é equivocada, como já demonstrado, também não se apresenta correta a aplicação da legislação do IRPJ. Nosso entendimento é de que o conceito do signo “insumo” previsto nas Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003 é autônomo e, portanto, deve ser construído à luz das características próprias das contribuições sociais em destaque.

Salvo melhor juízo, a aplicação do conceito de despesa necessária aproximaria a contribuição para o PIS e a Cofins da base tributável do IRPJ (lucro). Há que se ter em mente que as contribuições mencionadas incidem atualmente sobre a receita, que nada mais é do que um estágio anterior à verificação do lucro. Assim, embora o lucro pressuponha a existência de receita, os momentos de tributação são distintos, de modo que não se pode tomar o termo “insumo” como sendo toda e qualquer despesa necessária.

A despesa é necessária quando possui relação com a atividade da empresa e a manutenção da fonte produtora da renda. No caso da contribuição para o PIS e da Cofins, deve-se perquirir se o insumo é relevante ou não para a obtenção da receita (e não do lucro). Estabelecido o vínculo, ainda que indireto, entre o insumo e a geração da receita, impõe-se o aproveitamento do crédito. Nota-se, portanto, a impossibilidade de se utilizar o conceito de “despesa necessária” do IRPJ: esta deve possuir vínculo com a atividade desenvolvida ou com a fonte produtora da renda; o “insumo”, no entanto, deve possuir vínculo com a prestação do serviço, com a fabricação, a produção ou a venda do bem, que viabilizarão a geração da receita tributável.

Nossa proposta, portanto, é a de entender o termo “insumo”, constante nos artigos 3º, II, das Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003, como aquele que, uma vez retirado do processo produtivo ou da prestação do serviço, inviabiliza-os, impedindo, por conseguinte, a obtenção da riqueza tributável.

O exemplo das despesas com propaganda parece confirmar a tese exposta. O artigo 366 do RIR/1999 permite a dedução da base de cálculo do IRPJ das despesas com propaganda, desde que relacionadas diretamente com a atividade da empresa. Por outro lado, não temos dúvidas de que estas despesas não poderão gerar créditos, vez que além de não contribuírem decisivamente para a produção do bem ou para a prestação do serviço, não inviabilizarão a geração de receita, malgrado admitamos que ela poderá ser menor, caso não se veicule qualquer publicidade do bem ou serviço. Há que se verificar, portanto, a existência de um liame entre o insumo e o bem ou serviço.

Encontra-se em julgamento, pelo STJ - Superior Tribunal de Justiça, o REsp nº 1.246.317 (2ª Turma, Rel. Min. Campbell Marques) no qual se discute a amplitude do conceito de “insumo”. A prevalecer o voto do Ministro Relator, deverá ser utilizado o critério da “essencialidade” como forma de se verificar se a despesa deve ou não conferir crédito, podendo ser estendido também a toda e qualquer despesa que seja indispensável à geração da receita, tendo em vista que o rol do artigo 3º é meramente exemplificativo. Esta interpretação, além de conferir maior plenitude ao instituto da não cumulatividade, também se conforma com os princípios da livre concorrência e da neutralidade.

3.3. Vedação legal ao aproveitamento de créditos nos casos de mão de obra paga a pessoa física

Os artigos 3º, parágrafo 2º, I, das Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003, incluído pela Lei nº 10.865/2004, vedam o direito ao crédito quanto aos valores pagos à pessoa física a título de mão de obra.

Retomando-se a ideia de que a não cumulatividade das contribuições incidentes sobre o faturamento se operacionaliza pelo método de base sobre base, pouco importando se o insumo, custo ou despesa foi ou não tributado na etapa anterior, é de se concluir que a vedação em questão não possui critérios razoáveis que a justifiquem.

Os prestadores de serviços, por exemplo, sujeitos ao regime da não cumulatividade ficam impossibilitados de aproveitar créditos em relação aos valores desembolsados com mão de obra de pessoas físicas, gastos que, diga-se de passagem, são extremamente comuns e relevantes na geração da receita destes contribuintes. Daí não se justificar a inserção do prestador de serviço no regime não cumulativo se lhe é vedado aproveitar créditos em relação à mão de obra paga a pessoa física, insumo necessário à prestação de seus serviços e, consequentemente à geração de sua receita.

Há aí uma incoerência do legislador: pretendeu evitar a incidência cumulativa das contribuições sobre o faturamento, mas a admite quando proíbe que se descontem créditos calculados em relação a estes valores. Evidentemente, o prestador de serviço que somente incorra nestes gastos, acabará por integrá-los ao preço final de seu produto, frustrando-se, desta forma, a neutralidade tributária desejada.

Assim, se o insumo (mão de obra) é relevante (ou essencial, para utilizar o termo empregado pelo STJ) na prestação do serviço e consequente geração da receita, não há motivos para se impedir o aproveitamento do crédito.

3.4. Vedação legal ao aproveitamento de créditos nos casos de imunidade, isenções, alíquota zero e não incidência

Ainda o parágrafo 2º do artigo 3º de ambas as legislações veicula outra hipótese de restrição ao aproveitamento de créditos. É o caso do inciso II, que dispõe não conferir direito ao crédito o valor “da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição, inclusive no caso de isenção, esse último quando revendidos ou utilizados como insumo em produtos ou serviços sujeitos à alíquota 0 (zero), isentos ou não alcançados pela contribuição”.

Se a aquisição do bem ou serviço é isenta da contribuição para o PIS e da Cofins, não se permitirá o crédito quando houver revenda ou utilização no processo produtivo ou na prestação de serviços, cujo faturamento não seja tributado em razão de alíquota zero, isenção ou situação de não incidência (em sentido amplo). É pertinente a disposição legal, pois, se a aquisição é desonerada e o faturamento oriundo do bem ou serviço prestado também, não há possibilidade de incidência cumulativa e, consequentemente, não há motivo para se permitir o crédito.

Caso a receita do contribuinte seja tributada, a interpretação em contrário admite o desconto de créditos calculados sobre aquisições isentas, diferentemente do que ocorreria com o IPI ou com o ICMS. Considera-se o faturamento do contribuinte e a necessidade de se descontar da base de cálculo os gastos incorridos na sua produção, pouco importando se eles foram ou não tributados em momento anterior (enquanto receita do alienante ou prestador do serviço). Retomemos, neste ponto, que o método de cálculo é o indireto subtrativo (base sobre base), ganhando relevo, portanto, o que será abatido da base tributável.

Por outro lado, veda-se o direito ao crédito quando a aquisição não se sujeita ao pagamento das contribuições sociais, incluindo-se as hipóteses de imunidade ou não incidência, por exemplo. Nova incoerência do legislador se verifica, pois proibir o aproveitamento do crédito em tais casos significa distorcer a neutralidade que se busca, sem qualquer motivo justificável.

Imagine-se a hipótese de uma empresa que aluga prédio de entidade de assistência social, imune à contribuição para o PIS e à Cofins, por força do disposto no parágrafo 7º do artigo 195 da Constituição Federal de 1988. Se não se veda o aproveitamento de crédito em situação de isenção, menor razão há para se vedar o aproveitamento em razão de imunidade. Nesse caso, pensamos que a empresa poderá descontar de sua base tributável os valores pagos a título de aluguel, com base no artigo 3º, IV, das Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003. O mesmo raciocínio desenvolvido estende-se às hipóteses de não incidência (em sentido estrito). Sempre que o faturamento for passível de tributação, deve ser descontada da base todos os gastos necessários para a sua obtenção.

A restrição ao aproveitamento de créditos pode causar efeito contrário ao pretendido, pois além de influenciar no preço final do bem ou serviço, induz à verticalização da produção, como forma de se evitar os efeitos da cumulatividade. Com o posicionamento ora adotado, não se sustenta a impossibilidade de o legislador infraconstitucional vedar o aproveitamento de créditos, muito menos que a neutralidade e a livre concorrência devem ser preservadas a qualquer custo. Admitimos ser possível a vedação se existente uma razão que supere a necessidade de se promoverem estes princípios ou que justifiquem sua mitigação. O que não se pode admitir é que o legislador infraconstitucional distorça a não cumulatividade sem motivos plausíveis, vedando o aproveitamento de créditos injustificadamente.

Síntese Conclusiva

A não cumulatividade aplicada aos tributos plurifásicos é medida que se impõe na atual configuração do mercado, pois além de conferir maior neutralidade aos preços de bens e serviços, viabiliza a livre concorrência. Nesse sentido, a instituição de um regime não cumulativo para as contribuições incidentes sobre o faturamento poderia trazer benefícios ao Sistema Tributário Nacional, tornan­do-o muito mais racional e coerente.

Não foi, no entanto, o que ocorreu. A realidade nos mostra o contrário, vez que aumentaram-se os custos de conformidade e a complexidade do Sistema Tributário. Não obstante, o legislador infraconstitucional instituiu um regime mitigado, que dificulta o aproveitamento de créditos e cria divergências entre Fisco e contribuintes. Continua, nesse diapasão a permitir a cumulatividade de tais tributos, embora sua competência se resuma a definir os setores da atividade econômica que se submeterão ao regime em questão. Não fosse o suficiente, as Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003 aumentaram as alíquotas e definiram os contribuintes submetidos ao regime casuisticamente, sem critérios minimamente razoáveis.

Superando todas estas inconsistências, buscamos traçar os limites impostos ao legislador na configuração deste regime, a fim de conferir maior coerência ao sistema e prestigiar as regras e princípios constitucionais. Com efeito, uma vez tomada a decisão pelo legislador quanto à instituição da técnica da não cumulatividade às contribuições sociais incidentes sobre a receita, há que respeitar as normas constitucionais que orientam o exercício da competência tributária.

Dada a materialidade própria de tais tributos, não se pode veicular um regime parecido com o do IPI e do ICMS. Minimamente, portanto, o legislador deve: (i) inserir no regime os contribuintes que incorram em gastos substanciais para a geração da receita, excluindo aqueles que poucos créditos gerariam se submetidos ao regime não cumulativo; (ii) atender aos princípios da igualdade e da capacidade contributiva; (iii) adotar o sistema de créditos financeiros, vedado o sistema de créditos físicos, em razão das características de tais contribuições; (iv) permitir o cálculo dos créditos sobre todos os insumos, gastos, despesas e custos que sejam indispensáveis à geração da receita, independentemente de ter sido a etapa anterior tributada ou não; e (v) adotar o método subtrativo direto ou indireto (“base contra base”), pois as etapas anteriores são irrelevantes para fins de aproveitamento de créditos, assim como o ciclo de produção ou industrialização.

Isto posto, verifica-se que o legislador não desenvolveu coerentemente a não cumulatividade, impondo-se uma interpretação à luz do texto constitucional, de modo a se garantir os princípio e regras que norteiam a tributação, mormente a livre concorrência, a neutralidade e a igualdade. Ampliar a possibilidade de aproveitamento de créditos, à luz dos critérios expostos, certamente traria melhoras ao sistema em questão, viabilizando a promoção e a realização de diversos valores prestigiados por nosso ordenamento jurídico.

1 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 364.

2 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1979, p. 7.

3 Op. cit., pp. 7-8.

4 É importante salientar que a neutralidade pura é um mito, na medida em que o próprio Texto Constitucional de 1988 permite, expressamente, a cumulatividade de tributos como o ICMS quando impõe o estorno dos créditos acumulados na saída isenta ou veda o aproveitamento quando as entradas não são oneradas pelo tributo. Como bem aponta Alcides Jorge Costa na obra já citada, amparado nas lições de Berliri, a concessão de isenções no meio da cadeia ou até mesmo as deduções financeiras pro rata que se verificam no IVA Europeu, acabam com a ideia de não cumulatividade plena. Analisando o Direito Positivo brasileiro, vê-se que a neutralidade, embora deva ser promovida pelo legislador, não é plena e absoluta, permitindo-se a sua mitigação.

5 MOREIRA, André Mendes. A não cumulatividade dos tributos. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2012, p. 84.

6 O artigo 1º, III e IV, do Texto Constitucional de 1988 positiva-os como fundamentos do Estado Democrático de Direito.

7 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 330.

8 BOMFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 180.

9 DERZI, Misabel Abreu Machado. “Distorções do princípio da não cumulatividade no ICMS - comparação com o IVA Europeu”. In: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro et. al. (coords.). Temas de Direito Tributário - I Congresso Nacional da Associação Brasileira de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, pp. 107-151.

10 Evidentemente, nem sempre a repercussão econômica do tributo é possível. Luís Eduardo Schoueri demonstra que o tributo somente é integralmente repassado ao comprador em uma situação de elasticidade total da oferta ou inelasticidade de demanda (cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 46-58).

11 Utilizamos o termo “despesa” em sentido amplo, incluindo-se as noções de “custo” e “gasto”.

12 Imaginando que o contribuinte “A” venda um insumo ao contribuinte “B” por 100, haverá a incidência do PIS/Cofins à alíquota de 9,25% sobre a receita auferida (100), cabendo ao contribuinte “A” recolher 9,25 aos cofres da União. Na etapa seguinte, o contribuinte “B” aufere receita de 200, sendo que 100 correspondem ao custo com o insumo adquirido. Nesse caso, caberá ao contribuinte “B” calcular o crédito sobre o insumo (9,25) e descontar do valor por ele apurado (18,50), recolhendo, ao final, os mesmos 9,25. Nota-se, portanto, que a contribuição incide a cada etapa sobre o faturamento, descontando-se a receita anteriormente tributada, que na etapa atual, corresponde ao custo ou despesa de “B” para a geração de seu faturamento.

13 SCHOUERI, Luís Eduardo; e VIANA, Matheus Cherulli Alcântara. “O termo ‘insumo’ na legislação das contribuições sociais ao PIS/Pasep e à Cofins: a discussão e os novos contornos jurisprudenciais sobre o tema”. In: PEIXOTO, Marcelo M.; e MOREIRA JR., Gilberto de Castro (orgs.). PIS e Cofins à luz da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. São Paulo: MP, 2011, pp. 405-425.

14 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 3ª ed. rev. ampl. São Paulo: Noeses, 2009, p. 822.

15 Op. cit., p. 245.

16 Defende o jurista gaúcho que, se o legislador infraconstitucional toma a decisão de instituir o regime não cumulativo, então lhe cabe desenvolvê-lo plenamente, sem contradições. Do contrário, estar-se-ia violando o princípio da igualdade. Ver, nesse sentido, ÁVILA, Humberto. “O ‘postulado do legislador coerente’ e a não cumulatividade das contribuições”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do Direito Tributário. Vol. 11. São Paulo: Dialética, 2007, pp. 175-183.

17 LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. “Não cumulatividade do PIS e da Cofins - critérios jurídicos para apropriação de créditos. Análise dos atuais precedentes dos tribunais”. In: PEIXOTO, Marcelo M.; e MOREIRA JR., Gilberto de Castro (orgs.). PIS e Cofins à luz da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. São Paulo: MP, 2011, pp. 495-531.

18 TORRES, Ricardo Lobo. “O princípio da não cumulatividade e o IVA no Direito comparado”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Pesquisa Tributárias. Nova Série 10 - O princípio da não cumulatividade. São Paulo: RT, 2004, pp. 139-170.

19 Op. cit., p. 420.

20 FISCHER, Octavio Campos. “PIS-Cofins, a não cumulatividade e o problema dos ‘insumos’”. In: PEIXOTO, Marcelo M.; e MOREIRA JR., Gilberto de Castro (orgs.). PIS e Cofins à luz da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. São Paulo: MP, 2011, pp. 465-479.