O Princípio da Segurança Jurídica no Exercício da Competência Fiscalizadora: a Atuação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação na Fiscalização dos Projetos de Pesquisa e Desenvolvimento Submetidos ao Regime de Incentivos Fiscais da Lei nº 11.196/2005

The Legal Certainty Principle within the Execution of the Enforcement Authority: the Role of the Ministry of Science, Technology and Innovation in the Audit of the Research and Development Projects Subject to the Tax Incentives Regime of the Federal Law nº 11.196/2005

Aristóteles Moreira Filho

Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. LL.M. Kandidat na Ludwig-Maximilians Universität München. Doutorando em Direito Tributário pela USP. Advogado. E-mail: amf@aristotelesmoreira.com.

Resumo

O trabalho analisará, à luz do princípio da segurança jurídica em matéria tributária, a competência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação na aplicação dos incentivos fiscais às atividades de pesquisa e desenvolvimento, da Lei nº 11.196/2005, e a eficácia dos atos administrativos praticados pelo ministério na fiscalização do regime de benefícios.

Palavras-chave: pesquisa, desenvolvimento, incentivo fiscal, fiscalização, Ministério da Ciência e Tecnologia, Lei nº 11.196/2005, Portaria MCTI nº 715/2014.

Abstract

This article discusses, in the light of the legal certainty principle of tax law, the authority of the Ministry of Science, Technology and Innovation in the application of the research and development tax incentives in Brazil, of Federal Law no. 11.196/05, and the legal effects that derive from the administrative acts of the federal organ within the audit procedure of the tax incentive regime.

Keywords: research, development, tax incentives, audit process, Ministry of Science, Technology and Innovation, Federal Law nº 11.196/2005, Portaria MCTI nº 715/2014.

1. Introdução

A Lei nº 11.196/2005 (Lei do Bem), concretizando uma política de fomento à competitividade da economia brasileira e ao desenvolvimento nacional, valor que permeia toda a ordem constitucional, instituiu incentivos fiscais às atividades de pesquisa e desenvolvimento destinadas à geração de inovação tecnológica dentro do território brasileiro.

A chamada Lei do Bem veio instituir benefícios sob a forma de reduções de tributos federais, o principal dos quais é a possibilidade de exclusão do lucro líquido, na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, do valor correspondente a até 60% (sessenta por cento) da soma dos dispêndios realizados no período de apuração com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, classificáveis como despesa pela legislação do IRPJ (art. 19).

São elegíveis para a apropriação dos benefícios os projetos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico que visem à concepção de novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado.

As atividades de P&D que se subsomem à hipótese legal são, como projetos de tecnologia, altamente complexas, exigindo, para sua análise e compreensão, vasto espectro de conhecimento técnico sobre as respectivas áreas do conhecimento e setores da economia. Por sua vez, o domínio de tal conhecimento, e a consequente aplicação segura da legislação, é pilar fundamental do regime incentivado como política de Estado para o desenvolvimento nacional, na medida em que os benefícios excepcionam o padrão de isonomia dos contribuintes frente à norma tributária, ou seja, excluem, para aqueles que se enquadrarem na sistemática incentivada, a aplicação do regime geral de recolhimento dos tributos federais, para dar-lhes um tratamento favorecido.

Tais circunstâncias levaram o legislador a promover um controle específico do caráter de inovação tecnológica dos projetos de pesquisa e desenvolvimento em relação aos quais o contribuinte pretenda se apropriar de incentivos fiscais. De fato, assim o fez o legislador ao determinar ao contribuinte o dever de remeter anualmente informações técnicas sobre os projetos submetidos ao regime de benefícios fiscais (parágrafo 7º do art. 17 da Lei nº 11.196/2005); e ao outorgar ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) a competência para analisar tais projetos quanto ao seu caráter tecnológico vis-à-vis os critérios de elegibilidade da legislação (art. 14 do Decreto nº 5.798/2006).

No exercício de tal competência, o MCTI, desde o início da aplicação da legislação, mais precisamente no ano base de 2007, emite relatório anual no qual, além de fazer um balanço dos investimentos em P, D & I realizados com base no regime incentivado, sintetiza o resultado da auditoria sobre os contribuintes que fizeram uso do regime de incentivos, indicando a sua regularidade ou irregularidade.

Após anos em que aferiu a elegibilidade dos projetos de pesquisa e desenvolvimento via procedimento informal, o MCTI editou, finalmente, em 16.07.2014, a Portaria nº 715, a partir da qual passou a contar com procedimento específico e devidamente regulamentado para a realização da auditoria nos projetos de P, D & I, desanuviando a competência do órgão e desdobrando-a em atos específicos, sujeitos a um procedimento determinado e, dessa forma, ao escrutínio do contribuinte, dos órgãos de controle e da sociedade.

Nada obstante a regulamentação do MCTI quanto à definição de sua competência nesta seara, não se pode afirmar que haja um entendimento consolidado acerca do âmbito de atuação dos diversos órgãos dotados de competência vis-à-vis a fiscalização da aplicação da Lei do Bem, especialmente quanto à elegibilidade dos projetos submetidos ao regime de incentivos. Do contrário, paira ainda a sombra da possibilidade de que a Receita Federal venha, mesmo após o referendo do MCTI, negar a elegibilidade dos projetos. A insegurança é maior ainda quando se constata que as autoridades fiscais têm pouco ou nenhum conhecimento ou experiência com os aspectos técnicos e tecnológicos dos projetos sujeitos ao regime incentivado; o que potencializa as chances de erros, injustiças e falta de coerência e previsibilidade na aplicação da norma.

Tais circunstâncias desenham um cenário de elevado déficit de certeza e previsibilidade na relação entre o Estado e o particular, que demanda um estudo a partir da perspectiva do princípio de segurança jurídica em matéria tributária, sendo esta a empreita a que nos propomos.

2. A Confiança como Mecanismo do Sistema Jurídico

A segurança jurídica como vetor que pauta o ordenamento jurídico e sua aplicação precede a própria conformação deste valor como princípio jurídico-positivo.

Efetivamente, prover segurança é, antes de mais nada, uma prestação fundamental do sistema jurídico vis-à-vis o sistema social.

O ser humano maneja a complexidade do ambiente com o qual interage construindo projeções visando o futuro da experimentação. A interação humana perante o meio ambiente social e natural é construída sensorialmente; a contingência e a complexidade captadas pela experiência são gerenciadas via expectativas1.

As múltiplas possibilidades com que a realidade pode se apresentar (complexidade) e a incerteza sobre estas, gerando o risco da frustração (contingência), exigem do ser humano a seleção de possibilidades visando à organização da sua ação atual e futura.

Num cenário de infinitas individualidades agindo de acordo com suas convicções e circunstâncias pessoais, que é o das sociedades modernas, a necessidade de coordenação das ações e das expectativas sobre as ações próprias e alheias é um desafio gigantesco. Este desafio, de gerar e manter expectativas comportamentais, de forma objetiva, abstrata e institucionalizada, é o múnus do sistema jurídico, a função que o Direito cumpre no sistema social.

Ser uma estrutura condensadora de expectativas comportamentais institucionalizadas significa figurar, num dado contexto social, como depositário fiel da confiança dos indivíduos, o que traz esse conceito ao cerne do ordenamento jurídico, como elemento que lhe dá sentido e função.

De fato, a confiança é uma moeda fundamental que conduz as ações humanas em meio à sociedade complexa, induzindo ações convergentes frente ao risco inerente às interações sociais2. A confiança opera, assim, como uma condição necessária à capacidade de ação dos indivíduos em meio à relação complexa com o ambiente social, um mecanismo para a redução da complexidade social3.

A confiança que é relevante para o sistema social não é apenas e exatamente aquela que tem como objeto o comportamento individual do outro, mas sim aquela que mira o próprio sistema de valores e normas que pautam a sociedade. De fato, desvendar o outro é, num universo de miríades de individualidades, algo no mais das vezes impossível; os indivíduos devem almejar, neste quadro, não a certeza de comportamentos específicos (expectativas imediatas), senão que aquelas expectativas objetivadas e institucionalizadas num sistema de normas sejam consideradas como tais pelos demais indivíduos (expectativas sobre expectativas)4. A confiança sistêmica se baseia na crença em princípios e regras que são válidos dentro do sistema social e que geram, em nível abstrato, a segurança de expectativas no meio social5. A confiança no ordenamento permite que o indivíduo atue e assuma riscos, seja na economia, na política, na ciência, na família, na religião e demais subsistemas da sociedade.

É essa confiança sistêmica que é um ativo inalienável do sistema jurídico, sendo um elemento que preexiste a dimensão jurídico-positiva de determinada ordem jurídica válida num dado espaço-tempo; um atributo da sua natureza e função dentro do sistema social.

3. O Princípio da Segurança Jurídica

3.1. O princípio da segurança jurídica no Estado Democrático de Direito: funções (i) certeza, (ii) confiança, e (iii) estabilidade do sistema jurídico e tributário

Deixando a análise funcional do sistema jurídico e ingressando numa hermenêutica jurídico-positiva, a dimensão de segurança do ordenamento jurídico se converte no princípio da segurança jurídica.

Aqui vale a advertência de Heleno Tôrres6, segundo a qual o princípio da segurança jurídica, não sendo um elemento universal do sistema jurídico, mas substrato normativo integrante de uma ordem jurídica historicamente determinada, é objeto de uma teoria jurídica contingente (dogmática), produzida em cada ordenamento jurídico e sob cada paradigma de Estado, seja de Direito, seja Democrático de Direito.

No direito europeu e, em especial, no direito alemão, em que encontrou particular desenvolvimento, o princípio da segurança jurídica surge exatamente no contexto da doma da política pelo Direito, por um lado como proteção às expectativas dos cidadãos perante o ordenamento (Rechtssicherheit), por outro como limite à produção de normas pelo sistema político (Vertrauensschutz). A premissa fundamental que impõe a construção deste princípio é de que é incompatível com o Estado de Direito, sob o jugo do princípio democrático e sob a garantia da efetividade dos direitos fundamentais, que o Estado maneje a ordem jurídica em detrimento da confiança depositada pelos cidadãos no próprio ordenamento. Tal constatação conduziu à construção pretoriana do princípio da segurança jurídica como subprincípio do Estado de Direito7, do qual seria imediatamente decorrente, em países cujos ordenamentos não detêm sequer limitação expressa à retroatividade normativa8. Aqui a hermenêutica constitucional tutela a própria função do Direito, acima descrita: não há ordenamento jurídico digno do nome, é dizer, não há Estado Democrático de Direito, se o cidadão não puder pôr fé na ordem jurídica, orientando-se com base nos seus preceitos (certeza) e planejando suas ações com base nas suas normas (estabilidade) e nos atos concretos constitutivos de direitos (confiança)9.

No Brasil, a aplicação do princípio da segurança jurídica historicamente foi pautada pelo protagonismo da norma constitucional de proteção ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito, do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal10. O plexo normativo do qual exsurge o princípio da segurança jurídica em nosso sistema constitucional confunde-se, contudo, como demonstra Heleno Tôrres11, com o todo sistêmico do ordenamento jurídico, nos limites do qual a segurança jurídica é não apenas fundamento para subprincípios expressos e implícitos, mas também e principalmente um princípio síntese, que parte do Preâmbulo constitucional para figurar como objetivo do próprio Estado de Direito que a ordem constitucional inaugura12.

Num paradigma de ordem constitucional garantista como é o nosso, a segurança jurídica é instrumento fundamental do Estado de Direito, servindo ela própria como garantia de efetividade dos direitos fundamentais; num ordenamento jurídico voltado para a tutela dos direitos fundamentais, o princípio da segurança jurídica, como garantia da sua efetividade, consubstancia o próprio direito fundamental à ordem jurídica do Estado Constitucional de Direito13.

Essa tomada de consciência é absolutamente relevante quando se analisam as diversas manifestações expressas da segurança jurídica na ordem constitucional, notadamente o princípio da irretroatividade, geral (art. 5º, XXXVI) e tributária (art. 150, III, a); como também em nível infraconstitucional, com os limites à revisibilidade do ato administrativo (Lei nº 9.784/1999, arts. 2º, caput e parágrafo único, XIII, e 54), do próprio ato de lançamento tributário (CTN, arts. 100 e parágrafo único, 146 e 149) e a modulação dos efeitos de decisão em controle concentrado de inconstitucionalidade (Lei nº 9.868/1999, art. 27, e Lei nº 9.882, art. 11); constatando-se que, vis-à-vis a cláusula de recepção dos princípios, direitos e garantias não expressos, do art. 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, tais expressões do vetor da segurança jurídica projetam apenas uma fração do fenômeno sistêmico que é a segurança no nosso ordenamento jurídico, no bojo do qual diversas manifestações do princípio exsurgem da implicitude constitucional.

Fato é que, seja aquela segurança jurídica com matriz no princípio de proteção à confiança, de base alemã, seja aquela segurança jurídica baseada numa pauta jurídico-positiva de direitos fundamentais, que é o caso da ordem constitucional brasileira, tem-se no princípio da segurança jurídica um substrato genealógico e semântico comum remetendo ao Estado de Direito14. A confiabilidade da ordem jurídica é uma condição fundamental de constituições liberais15. O indivíduo carece de segurança para conduzir de forma estável e autônoma a sua vida, ou seja, necessita que, vis-à-vis o sistema jurídico, possa confiar em que aos seus atos e suas decisões, tendo como objeto os seus direitos, posições e relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas, liguem-se os efeitos previstos na ordem jurídica: os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança são elementos constitutivos do Estado de Direito16.

Ser confiável significa conferir proteção à confiança depositada pelo destinatário normativo, exigindo do legislador que as leis sejam claras (quanto ao que é lícito e o que é ilícito), precisas e determinadas, tanto quanto o seu objeto permita: o indivíduo deve poder extrair da lei o sentido daquilo que é lícito e o que é ilícito; quais são seus direitos e suas obrigações; e sob quais condições a Administração e os tribunais podem intervir na sua esfera jurídica17.

Dentre as múltiplas possibilidades de sentido que o princípio da segurança jurídica pode assumir, destacam-se três vertentes principais, quais sejam as funções (i) certeza, da dimensão formal da segurança jurídica, voltada ao controle da produção e aplicação do direito; (ii) confiança, da dimensão material da segurança jurídica, voltada à segurança jurídica das relações e dos direitos subjetivos dos particulares frente ao Estado; (iii) e estabilidade, dirigida à estabilidade de sentido e expectativas garantidas pelo ordenamento ao longo do tempo18.

A função certeza da segurança jurídica consubstancia a dimensão formal do princípio, no bojo da qual a confiabilidade tutelada pelo sistema é aquela que advém da própria estrutura sintática e semântica da ordem jurídica. O controle da produção normativa, via regras de competência, como demais subprincípios que projetam limites e garantias à atuação normatizante do Estado, asseguram segurança, identidade e institucionalidade de sentido ao ordenamento jurídico. A dimensão formal da segurança jurídica equivale à certeza das fontes do Direito, tanto do ponto de vista do reconhecimento e legitimação das autoridades legiferantes (certeza como acessibilidade formal) quanto da perspectiva da identificação e compreensão da mensagem legislada (certeza como acessibilidade cognitiva ou segurança na orientação). Do acervo da função certeza da segurança jurídica pertencem instrumentos como o princípio da legalidade, o controle da constitucionalidade das leis e atos normativos e o controle de legalidade dos atos administrativos.

A função confiança da segurança jurídica, dimensão material ou subjetiva do princípio, projeta a perspectiva individual do particular frente à tutela da segurança jurídica pelo ordenamento. Trata-se do princípio da proteção à confiança legítima, de forte tradição na Alemanha (Vertrauensschutz), segundo o qual os valores de previsibilidade e calculabilidade se voltam para a tutela de posições jurídicas individuais, ou seja, dos interesses do particular no bojo de relações jurídicas: a proteção da confiança significa a proteção de direitos subjetivos19. A proteção da confiança, dessarte, tem como escopo de aplicabilidade o âmbito de eficácia jurídica de atos de aplicação da lei em detrimento de posições jurídicas consumadas em prol do cidadão20. Neste contexto, a segurança jurídica como proteção à confiança legítima encontra diversas vertentes de manifestação, dentre as quais se destacam (i) a proibição à retroatividade e (ii) a proteção da boa-fé objetiva do particular, seja pelo (a) venire contra factum proprium, (b) pela suppressio ou (c) pela autovinculação da administração.

Por fim, a função estabilidade da segurança jurídica se põe num ponto intermédio entre o plano de estrutura da ordem jurídica (abstrato), típico da função certeza, e o plano do direito subjetivo (concreto), típico da função de confiança. A estabilidade da ordem jurídica introduz uma eficácia de bloqueio relativamente às pretensões de alteração de regimes normativos que têm o potencial de comprometer os valores de confiabilidade, previsibilidade e calculabilidade da ordem jurídica vis-à-vis as expectativas do particular. A função estabilidade opera num plano abstrato da ordem jurídica, porém em vez de aplicar critérios pré-definidos de constitucionalidade, legalidade e validade em geral, concretiza a segurança jurídica pelo exame da dinâmica normativa sob a perspectiva da proteção dos direitos fundamentais, em cada iniciativa de alteração da ordem jurídica, segundo parâmetro de proporcionalidade. Sua aplicação tem especial relevo no controle da liberdade do legislador na revogação de regimes de benefícios fiscais: pode surgir uma questão de proteção da confiança quando uma lei incentivadora de determinada conduta induz ao planejamento e à organização dos esforços do contribuinte em determinada direção, e posteriormente as expectativas daí erigidas são frustradas por alterações bruscas do regime jurídico em cuja estabilidade o particular foi levado a confiar21. Sob a função estabilidade também é reconhecida, neste contexto de dinâmicas normativas que induzem uma ruptura de regime jurídico, a necessidade de aplicação de regimes de transição (Übergangsregelung), como garantia de segurança jurídica dos direitos fundamentais22.

Feita a análise geral das manifestações do princípio da segurança jurídica, veremos especificamente aquelas que são relevantes para o tema objeto deste trabalho.

4. O Princípio da Segurança Jurídica na Atividade de Administração e Fiscalização Tributária

O princípio da segurança jurídica, vimos, permeia toda a ordem jurídica em seus vetores mais fundamentais. As demandas de certeza, estabilidade e confiança são virtualmente ubíquas no sistema jurídico: sua disseminação engloba não apenas os diversos ramos do Direito, como também todas as funções do Estado. Legislativo, Judiciário e Executivo estão igualmente submetidos aos parâmetros da segurança jurídica23.

Na atuação da administração tributária, as demandas de segurança são ainda mais candentes, na medida em que sob seu jugo se realizam os atos de concretização da lei tributária, que por via da administração tributária adquire o máximo de sua eficácia. No iter de positivação da lei tributária, da norma abstrata até a norma individual e concreta que constitui a relação jurídica tributária, para, em grau crescente de eficácia, afinal roçar a conduta do contribuinte e seu patrimônio, cada vez mais intenso é o estado de sujeição do contribuinte, seus bens, interesses e direitos subjetivos. Portanto, maior é o substrato de confiabilidade depositado no ordenamento; maior o campo de aplicabilidade e a demanda por segurança jurídica.

Voltando sua competência para a aplicação da lei tributária, a administração fiscal enfrenta todas as questões de segurança jurídica inerentes à realização do crédito tributário, via atos, procedimentos e processos: desde a legalidade, passando pela tipicidade, pelo devido processo legal, contraditório, ampla defesa, verdade material, boa-fé administrativa, vinculação da administração, são todas manifestações da segurança jurídica em sede de administração e fiscalização tributária, da qual são subprincípios24.

Neste quadro, e encampando a abordagem holística de segurança jurídica desenvolvida por Vogel25, não há segurança jurídica tributária se sua aplicação se restringir ao plano abstrato das leis impositivas, da regra-matriz de incidência, em nível, portanto, de controle da atividade do legislador, sem assegurar-se, no plano concreto, da aplicação da lei tributária, do ato administrativo que lhe dá efetividade; segurança jurídica, dessarte, de controle da atividade de administração e fiscalização tributária.

A segurança e a confiança do particular perante a administração tributária é, ademais, uma seara em que o sistema tributário brasileiro revela uma de suas maiores deficiências, o que só reitera a necessidade de se propor a construção hermenêutica da segurança jurídica nessa fronteira do ordenamento. Aqui já vale vislumbrar que as funções da segurança jurídica que têm maior repercussão em sede de fiscalização tributária são exatamente a certeza (plano abstrato da competência das autoridades fiscalizadoras) e a confiança (plano concreto da própria aplicação da lei material e formal tributária).

Todas as contingências inerentes à concretização da imposição tributária, seja quanto à autoridade emissora da norma concreta, especialmente no procedimento observado e a necessidade de integração do contribuinte e da garantia da sua participação26, seja quanto ao conteúdo da norma veiculada, inclusive quanto aos referenciais quantitativos e de tempo da relação jurídica tributária efetivada, dão ensejo a reflexões à luz da segurança jurídica e a manifestações do princípio correspondente, o que passaremos a analisar.

4.1. A função certeza como confiança na atuação dos órgãos produtores de normas: acessibilidade formal e acessibilidade cognitiva

A dimensão formal da segurança jurídica tem especial relevância em sede de aplicação da lei tributária.

É no plano concreto da administração tributária que se dá de forma mais prolífica a produção normativa no sistema tributário, por meio, dentre outras possibilidades, de atos de lançamento, autos de infração, procedimentos de fiscalização, processos administrativos, atos administrativos de concessão, fiscalização e controle de aplicação de regimes especiais e de incentivos fiscais.

O controle formal da produção normativa é, num sistema de direito positivo, no qual se origina o valor de segurança jurídica em sua versão mais visceral, notadamente no ordenamento dotado de rigidez, supremacia e, particularmente em matéria tributária, hipertrofia constitucional.

Nessa vertente de segurança jurídica das fontes do direito tributário, que é da função certeza como acessibilidade formal, a preservação da confiança do particular exige a certeza quanto à definição dos critérios competenciais de produção do direito, particularmente de aplicação da lei tributária pela autoridade administrativa. Aqui, a estrutura sintática do ordenamento, tão decantada por Kelsen, permite à ordem jurídica alavancar a segurança da sua própria dinâmica: o sistema de hierarquia de competências e normas promove nos indivíduos um efeito de orientação e de certeza sobre como a autoridade pode habilitar-se no exercício competencial e como as regras jurídicas são aplicadas vis-à-vis a generalidade e abstração das leis27.

A segurança jurídica da realização do direito tributário, contudo, vai além da mera legalidade formal. É fato que, no Estado de Direito, os atos normativos, inclusive os atos administrativos e judiciais, devem ser proferidos com base no padrão ditado pela lei. A lei deve, contudo, não apenas se projetar hierarquicamente acima dos atos concretos expedidos pela Administração, mas deve ainda conter todos os critérios de produção normativa a serem aplicados no ato concreto de enunciação normativa (legalidade material): imprescindível a definição de critérios de competência (autoridade) e procedimento, com os quais a atividade concreta das autoridades e órgãos possa ser cotejada e por via dos quais possa ser controlada28.

Aí a função certeza como acessibilidade formal se conecta com a função certeza como acessibilidade cognitiva, sob a unidade da segurança jurídica das fontes do Direito: reconhecendo-se que a lei deve determinar os critérios de autoridade e procedimento a serem observados no exercício da competência administrativa, deve-se reconhecer, como consectário, que a garantia de segurança e previsibilidade nesta seara exige que tais definições possam ser extraídas da ordem jurídica de forma clara, precisa e determinada29. Os princípios da determinabilidade (Bestimmtheitsgebot) e da clareza (Grundsatz der Normenklarheit) dos atos normativos constituem paradigma consolidado na prática jurisprudencial alemã30: a norma deve ser passível de ser interpretada e ter seu sentido construído de forma segura (determinabilidade); e a norma não deve gerar, pela sua interpretação, diversos sentidos entre si contraditórios ou ambíguos (clareza)31.

Premissa fundamental ao cumprimento da função certeza como acessibilidade cognitiva, e, portanto, integrante do seu conteúdo mínimo, é a publicidade dos atos normativos. A publicidade viabiliza não apenas a comunicação da norma, como processo do qual decorre a própria construção de sentido do ordenamento e as expectativas formadas pelos cidadãos, mas introduz um viés democrático e de ampla controlabilidade aos atos normativos, também manifestações do postulado da segurança jurídica32.

O contribuinte, sob o amparo da segurança jurídica na sua função certeza, deve, em face da administração tributária, sua atuação e sua competência, poder identificar de forma clara, objetiva e segura, quem é a autoridade investida da atribuição de exercer determinada competência fiscalizatória, e qual a extensão dessa competência. Para tanto, são fundamentais tanto a clareza (cognoscibilidade) como a densidade (regulamentação) normativas na atribuição da competência administrativa e fiscalizatória33.

4.2. A confiança legítima strictu sensu e a vedação à contradição na atuação da Administração

A proteção da confiança legítima strictu sensu tem particular aplicabilidade em sede de administração e fiscalização tributária, na medida em que essa função da segurança jurídica, de viés subjetivo, volta-se à tutela das posições jurídicas individuais do particular vis-à-vis os efeitos jurídicos concretos das normas jurídicas.

A calculabilidade e a previsibilidade que o particular há de auferir do ordenamento devem também e principalmente se estender aos atos concretos de aplicação da lei tributária, sendo, como é, nestes, que os direitos subjetivos dos contribuintes são efetivamente feridos pela potestade impositiva do Estado.

Se a lei, enquanto norma geral e abstrata, já tem posto impessoal, contundente efeito de geração de expectativas, na comunidade de destinatários normativos, mais ainda aqueles atos concretos e individuais, dirigidos aos respectivos contribuintes, criando deveres jurídicos e direitos subjetivos. Sob o princípio da segurança jurídica, a aplicação da lei tributária através do ato administrativo individual e concreto projeta sua relevância jurídica para além da sua própria eficácia relacional, alcançando horizonte de tempo prospectivo, na medida em que, a partir do sentido que constrói da lei; a partir da interpretação, autêntica, adotada e imposta através da norma expedida; gera no contribuinte expectativa de que, nas mesmas condições, é aquele o sentido prescritivo do ordenamento jurídico para as dadas circunstâncias, firmando as bases de confiança para que o contribuinte organize suas atividades correspondentemente.

Efetivamente, a confiabilidade, como pressuposto da calculabilidade e da previsibilidade, é valor tutelado na ordem jurídica em geral e no direito tributário em particular, na medida em que as normas tributárias, pelo impacto financeiro que ensejam, impõem aos contribuintes a necessidade de organizar os seus recursos e planejar as suas atividades em cotejo com o regime impositivo em vigor, o que requer horizonte de tempo de largo prazo34. No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal assegura ao particular a autonomia privada e o livre exercício da atividade econômica, inclusive e nomeadamente aqueles exercidos a título de legítima economia de tributos35. E sem segurança jurídica, previsibilidade e confiança, não há planejamento tributário viável.

Neste espectro, é central o papel da atuação da administração fiscal na geração de expectativas na classe de contribuintes. Os atos administrativos de aplicação da lei tributária geram, na interpretação que promovem do sistema tributário, expectativas futuras de legitimação e imunização contra o risco. O resultado é que o ato administrativo conduz, a partir da confiança que gera, o contribuinte a enfrentar o risco, agindo em conformidade com o sentido normativo expressado no ato concreto exarado pela autoridade administrativa. Esta circunstância, que caracteriza a boa-fé, é ela mesma objeto de proteção da ordem jurídica, a tutelar o direito do contribuinte na hipótese em que a própria administração frustre a expectativa que gerou, produzindo ato que venha contrapor-se a ato anterior. A proteção à boa-fé do contribuinte deve ser ainda mais contundente na hipótese de benefícios fiscais, em que o contribuinte é deliberadamente induzido a, empregando seus recursos e esforços, assumir o risco de determinadas expectativas geradas em atendimento a uma política envergada pelo próprio ordenamento jurídico, de modo a assumir a ordem jurídica, mais do que nunca, a responsabilidade pela proteção do contribuinte na hipótese de posterior frustração das expectativas incentivadas.

Daí por que a vedação à atuação da administração em geral, e da administração fiscal em especial, contra os seus próprios atos, é um dos postulados fundamentais da função confiança da segurança jurídica, comportando manifestações diversas, algumas das quais se aplicam ao tema deste trabalho e serão abordadas a seguir.

4.2.1. Non venire contra factum proprium e a vedação à prática de atos contraditórios na administração tributária

A proteção da confiança legítima em face de atos da administração encontra manifestação especial na proibição do venire contra factum proprium.

Derivada da boa-fé objetiva, a tutela da confiança gerada a partir de comportamentos em face do Direito, originária do direito privado, encontrou no direito público campo de muito própria aplicação. Se na relação entre particulares a conduta individual já é reconhecida pelo Direito como geradora de expectativas legítimas no futuro, para além da eficácia relacional de origem contratual ou legal preexistente, mais ainda se tratando da Administração Pública, cujos atos se revestem dos atributos da presunção de legitimidade, imperatividade e autoexecutoriedade.

É dessarte corolário dos princípios da boa-fé e da moralidade administrativas, em cópula com o próprio princípio da segurança jurídica em sua função de proteção à confiança legítima, a vedação a que a administração tributária atue em contradição com ato anteriormente emitido: não se admite a convivência, sob o Estado de Direito, de contradições entre decisões de órgãos ou de autoridades entre si36.

A aplicação da proibição do venire contra factum proprium requer a identificação da contradição de dois atos da administração tributária, que tenham como objeto o mesmo contribuinte. Como demonstra Heleno Tôrres37, são quatro os critérios para identificação da hipótese de aplicação do princípio: (i) um primeiro ato administrativo, dotado de eficácia declaratória ou constitutiva de vínculo jurídico (factum proprium); (ii) expectativa de confiança no ato anterior mais benéfico; (iii) segundo ato administrativo, cuja interpretação esteja em contradição com o factum proprium; e (iv) a comprovação de prejuízo ou dano ao direito do contribuinte, em decorrência do segundo ato, contraditório, pela perda de benefício, modificação de regime jurídico, exigência de obrigação nova, aplicação de sanção administrativa, dentre outras possibilidades detrimentosas aos interesses do particular.

O princípio limita a ação no tempo do ato contraditório, obstando que possa produzir efeitos para o passado, ainda que pretenda aplicar lei em vigor ao tempo do factum proprium. Sua aplicabilidade se estende, por sua vez, a atos de natureza diversa, desde atos de lançamento, passando por atos jurisdicionais38 e também para aqueles que outorgam benefícios fiscais39.

O nosso sistema tributário detém no art. 146 do CTN norma específica que tutela a confiança legítima contra atos de lançamento que sejam contraditórios com atos normativos concretos, administrativos ou judiciais, anteriores. Determinando que novos critérios jurídicos de lançamento se apliquem apenas aos fatos geradores posteriores ao ato que introduzir o novo critério jurídico, contraditório com o anterior, o dispositivo protege a confiança que o contribuinte depositou no factum proprium, primeiro ato normativo com base no qual conduziu a interpretação da lei e pautou sua conduta.

Como se vê, seja do teor da regra, seja do próprio art. 146 do CTN, a contraditoriedade que é vedada pelo ordenamento, a bem de realizar a função confiança legítima da segurança jurídica, não é apenas aquela entre dois atos da mesma autoridade; mas também entre atos de autoridades diferentes do mesmo órgão, da administração tributária, por exemplo; ou de autoridades de órgãos diferentes ou mesmo de poderes diferentes, como a que se dá entre um ato administrativo e uma decisão judicial40. Tal constatação é particularmente relevante na hipótese em que determinada atividade é objeto de fiscalização por um concurso de órgãos, como é o caso da fiscalização dos incentivos da Lei nº 11.196/2005 pelo MCTI e pela Receita Federal.

5. O Regime de Fiscalização da Lei nº 11.196/2005 em Face do Princípio da Segurança Jurídica em Matéria Tributária

A Lei nº 11.196/2005 instituiu incentivos fiscais às atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, consubstanciando o mais abrangente e estratégico programa brasileiro de incentivos fiscais à inovação, de aplicação automática e englobando todos os setores da economia.

Concretizando uma pauta constitucional de desenvolvimento do país através da tecnologia, a lei irá induzir a atuação da iniciativa privada no desenvolvimento de atividades geradoras de inovação, através dos seguintes incentivos fiscais, previstos em seu art. 17: (i) dedução adicional de IRPJ e CSLL correspondente a 60% dos dispêndios com pesquisa, desenvolvimento e inovação; (ii) redução de IPI para aquisição de máquinas e equipamentos empregados nas atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico; (iii) depreciação acelerada de máquinas, equipamentos empregados nas atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico; (iv) amortização acelerada dos ativos intangíveis adquiridos para utilização em atividades de pesquisa e desenvolvimento; (v) crédito do imposto sobre a renda retido na fonte incidente sobre os valores pagos, remetidos ou creditados a beneficiários residentes ou domiciliados no exterior, a título de royalties, de assistência técnica ou científica e de serviços especializados41; (vi) redução a 0 (zero) da alíquota do imposto de renda retido na fonte nas remessas efetuadas para o exterior destinadas ao registro e manutenção de marcas, patentes e cultivares.

A circunstância de que os benefícios sejam contabilizados e apropriados pelo contribuinte sem a necessidade de prévia autorização dos órgãos de controle, mas sim dentro das rotinas típicas de apuração sob regime de lançamento por homologação, ou seja, sujeita a posterior fiscalização, foi fundamental para a consolidação do programa e para o êxito alcançado até agora.

O regime instituído pela lei não surge no sistema jurídico e tributário brasileiro de forma fortuita ou graciosa. Trata-se de marco normativo instituído pelo legislador ordinário em cumprimento a vetores constitucionais fundamentais, conformadores do nosso modelo de sociedade e de Estado. A sistemática indutora instituída pela chamada Lei do Bem conforma uma resultante de uma gama de princípios de eficácia transversal na ordem constitucional brasileira: sua raiz constitucional está em servir de instrumento ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional (art. 218, parágrafo 4º); de promoção da autonomia tecnológica do país (art. 219); de desenvolvimento científico e tecnológico do país (art. 218, caput); e, enfim, do desenvolvimento nacional (art. 3º, II), aportando competitividade à indústria, pujança à economia e ao mercado interno do país, e trazendo bem-estar e prosperidade ao povo42.

Trata-se de hipótese típica em que o Estado executa uma política estratégica, a serviço dos programas constitucionais, fazendo-o através de uma intervenção na ordem econômica de viés indutor: o Estado se utiliza dos efeitos jurídicos da norma para incitar, estimular, incentivar uma opção econômica do particular que venha ao encontro do interesse social e coletivo condensado nos princípios constitucionais43.

Se o Estado está, utilizando-se da norma tributária, conduzindo o cidadão deliberadamente a promover determinadas escolhas econômicas, é seu dever proteger este mesmo cidadão, quanto à confiança depositada nesta escolha. Aqui, no terreno dos incentivos fiscais, a proteção à confiança ganha uma forma qualificada, como já vem reconhecendo a prática jurisprudencial e doutrinária alemã: o contribuinte não está pautando sua conduta pautado apenas no cálculo individual do risco econômico e jurídico, mas sim induzido e conduzido pelo próprio Estado, enquanto próprio ente tributante (sujeito ativo e órgão regulamentador e fiscalizador) e enquanto ordenamento jurídico (normas instituidoras e regulamentadoras). É, portanto, responsabilidade deste mesmo Estado proteger o particular que se conduziu segundo as escolhas induzidas pelo ente público, sendo esta uma dimensão já reconhecida do princípio da confiança legítima em sede de benefícios fiscais, que não lhe atribui sentido distinto, mas sim uma eficácia qualificada, baseada no princípio da boa-fé e da confiança sistêmica como uma função do sistema jurídico44.

O contribuinte, portanto, que investe em inovação e se apropria dos incentivos fiscais oferecidos na legislação, está, antes de mais nada, concretizando a política de Estado constitucionalizada via princípios e implementada pela legislação. Antes de meramente excepcionar um regime geral de isonomia, sob o qual todos recolhem seus tributos na integralidade, o particular que se pauta induzido pela lei e sacrifica os seus recursos e esforços no desenvolvimento de ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação está, sob a perspectiva político-constitucional, atuando em nome do Estado brasileiro e como tal deve ser reconhecido.

São, essas, premissas fundamentais para a contextualização da atuação do contribuinte nesta seara, e do papel desenvolvido pela confiança num contexto indutor, vis-à-vis a atuação dos órgãos de controle e fiscalização em geral, e do MCTI em particular.

5.1. A competência do MCTI

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi criado, ainda como Ministério da Ciência e Tecnologia, pelo Decreto nº 91.146/1985, editado à época pelo vice-presidente José Sarney.

Dentre as premissas que pautaram a sua instituição, conforme seu preâmbulo, estava a de que se impunha a necessidade do “estímulo à atividade empresarial no setor, bem como o desenvolvimento de um patrimônio de conhecimentos científicos e de uma tecnologia nacional que atenda às necessidades do País”, sendo então necessário estabelecer “os instrumentos e os canais indispensáveis a uma política nacional no setor, capaz de servir aos mais altos interesses econômicos, sociais e políticos da comunidade brasileira”.

Atualmente regulada pelo Decreto nº 5.886/2006, a atuação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação tem a si atribuídas as competências para, nos termos do seu art. 1º, determinar “a política nacional de pesquisa científica, tecnológica e inovação” e “o planejamento, coordenação, supervisão e controle das atividades da ciência e tecnologia”.

Decerto que, dentre as ações que integram a política nacional de pesquisa científica, tecnológica e inovação, o regime de incentivos da Lei do Bem é, ao lado dos incentivos financeiros (Finep, BNDES), um dos vetores fundamentais da atuação do Estado brasileiro nesta seara. Daí que a reivindicação competencial do MCTI para atuar no âmbito da aplicação do regime de incentivos da Lei do Bem seria uma decorrência natural e direta da sua competência administrativa.

Sem embargo, o Decreto nº 5.886/2006 é expresso ao dispor que compete à Secretaria de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, órgão do MCTI, “coordenar e supervisionar os programas de incentivos fiscais e financiamentos para o desenvolvimento tecnológico e de formação de recursos humanos respectivos”.

Por sua vez, o Decreto nº 5.798/2006, que regulamenta a Lei do Bem, irá incluir expressamente o MCTI no processo de aplicação da lei, ao determinar, em seu art. 14, que “a pessoa jurídica beneficiária dos incentivos de que trata este Decreto fica obrigada a prestar ao Ministério da Ciência e Tecnologia, em meio eletrônico, conforme instruções por este estabelecidas, informações sobre seus programas de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, até 31 de julho de cada ano”.

Por fim, a partir da edição da Portaria nº 715, de 16 de julho de 2014, a competência do MCTI ganhou um procedimento específico por meio do qual atua o órgão federal no controle da aplicação da Lei do Bem vis-à-vis os contribuintes que desenvolvem projetos sob o regime incentivado.

Como se vê, a atuação do MCTI na aplicação dos incentivos federais à inovação em geral, e da Lei do Bem em particular, é estratégica, como órgão líder e protagonista, dotado de competência não apenas técnica, mas também gerencial e fiscalizadora. Vejamos como se dá a atuação do MCTI na pragmática da execução da lei, desde a sua edição, institucionalizada pela Portaria nº 715/2014.

5.2. A atuação do MCTI no âmbito da aplicação da Lei nº 11.196/2005 e à luz da Portaria MCTI nº 715/2014

No amplo perfil competencial do MCTI, conforme definido pelo Decreto nº 5.886/2006, e na determinação do art. 14 do Decreto nº 5.798/2006, integrando o ministério especificamente no âmbito da aplicação do regime de incentivos fiscais à inovação, podem se incluir amplas atribuições competenciais ao MCTI nesta seara, desde o acompanhamento estratégico da política, visando aferir a sua eficácia no longo prazo, até o controle específico das atividades dos contribuintes, através de uma atividade de fiscalização propriamente dita.

Por outro lado, o MCTI não monopoliza a competência administrativa em sede de fiscalização da aplicação da Lei do Bem. A Receita Federal do Brasil, como haveria de ser em matéria de relevância para a relação jurídica tributária, também detém esfera competencial neste âmbito, nos termos dos parágrafos 1º e 2º do art. 14 do Decreto nº 5.798/2006, ao determinar (i) que os contribuintes deverão manter à disposição da RFB a documentação relativa à utilização dos incentivos fiscais à inovação e também (ii) que o MCTI deverá remeter à RFB as informações a ele enviadas pelos contribuintes relativas aos incentivos fiscais referidos.

A análise do microssistema normativo que regula os incentivos fiscais à inovação, em cotejo com a pragmática da aplicação do regime incentivado, desde a sua instituição, aponta e demarca as atribuições de cada órgão no âmbito da gestão, aplicação, fiscalização e controle do regime incentivado, como veremos.

Concretizando o comando do art. 14 do Decreto nº 5.798/2006, o MCTI instituiu um meio pelo qual os contribuintes beneficiários dos incentivos fiscais são obrigados a prestar as informações relativas aos seus programas de pesquisa tecnológica e desenvolvimento tecnológico.

O chamado Formulário MCTI45 é exigido anualmente com a finalidade de coletar e remeter ao MCTI os dados de todas as ações de pesquisa e desenvolvimento e inovação desenvolvidas pela empresa no ano anterior. O formulário é amplo e exaustivo no volume de informações, incluindo-se, em suas inúmeras páginas, dados, entre outros, a respeito de: (i) programa de P, D & I e os respectivos projetos, inclusive com destaque, quanto a cada um deles, do seu elemento tecnologicamente novo ou inovador, se existe aplicação de conhecimento ou técnica de uma nova fórmula, avanços científicos alcançados, métodos utilizados e data de início e fim de cada projeto; (ii) quais foram os produtos e processos tecnologicamente novos ou substancialmente aperfeiçoados desenvolvidos pela empresa, com a respectiva descrição; (iii) patentes e registros; iv) estrutura de P, D & I da empresa; (v) dispêndios em P, D & I, inclusive sua origem (própria ou de terceiros) e sua aplicação; (vi) quadro de pessoal responsável pelos projetos de P, D & I e respectiva qualificação acadêmica; (vii) volume financeiro de incentivos apurados e contabilizados.

Como se vê, longe de se voltar para uma gestão genérica e meramente estratégica, de longo prazo, do regime de incentivos, o Formulário MCTI, pela sua abrangência, minúcia, volume e qualidade de informações, destina-se claramente a instrumentalizar um controle da aplicação da legislação, especificamente quanto à conduta do contribuinte que desenvolve projetos sob os efeitos dos incentivos fiscais. A finalidade do Formulário é clara: controlar e verificar se o contribuinte que está se apropriando dos benefícios fiscais está efetivamente desenvolvendo pesquisa tecnológica nos termos da lei.

Trata-se de autêntica obrigação acessória, instituída no exercício do poder de fiscalização e polícia, a apontar a atuação do MCTI como um órgão fiscalizador no âmbito da aplicação da Lei do Bem, quanto ao controle de sua aplicação pelos contribuintes. A circunstância de que os benefícios da Lei do Bem sejam de apuração e apropriação pelo próprio contribuinte, sem requerimento e autorização prévios do ente público, em sistemática típica do regime de lançamento por homologação, reitera o papel fundamental da fiscalização pelas autoridades administrativas, sendo esta a forma pela qual a Administração Pública atua no âmbito da aplicação da lei, quanto à sua dimensão especificamente tributária46.

A natureza fiscalizadora da atuação do MCTI é confirmada pelo procedimento adotado pelo órgão, desde a entrada em vigor do regime, no processamento das informações enviadas pelo contribuinte via formulário. Efetivamente, o MCTI recebia e recebe os formulários preenchidos e, ato contínuo, realiza uma auditoria dos projetos desenvolvidos pelo contribuinte, conforme relatados no formulário, em face dos requisitos da legislação. Da auditoria realizada pelo MCTI resultava parecer emitido pelo órgão, pela aprovação ou rejeição dos projetos, com a notificação do contribuinte interessado.

Até o ano de 2009, o MCTI chegou a inclusive publicar, no seu relatório anual, uma lista das empresas que tiveram seus projetos rejeitados, por terem apresentado “informações imprecisas e/ou incompatíveis ao atendimento dos dispositivos da Lei nº 11.196/2005”47. Posteriormente, apesar de a lista negativa deixar de ser publicada, os contribuintes que tiveram projetos rejeitados continuaram sendo notificados, com a possibilidade, inclusive, de, informalmente, junto ao órgão, quando possível, retificar ou complementar informações, visando obter ulterior aprovação dos seus projetos à luz da legislação de regência.

Com a edição da Portaria MCTI nº 715, de 16 de julho de 2014, o procedimento adotado até então de maneira informal pelo órgão federal adquiriu institucionalidade pela sua versão em direito positivo. De logo, a norma veio demarcar de forma precisa a atuação do MCTI tendo como objeto, nos termos do seu art. 3º, parágrafo 1º, o controle da conformidade dos projetos, dos gastos, dos custos, dos investimentos, das despesas, dos incentivos fiscais com os conceitos dispostos na legislação de incentivos fiscais para inovação tecnológica.

A Portaria, nos termos do seu art. 1º, vem exatamente criar um procedimento por meio da qual o órgão desempenha a análise de conformidade dos projetos com as categorias de inovação incentivadas pela legislação.

Se dúvida houvesse, a Portaria MCTI nº 715/2014 vem reafirmar a aptidão competencial do órgão, para, no âmbito da aplicação da Lei do Bem, realizar não apenas uma missão subsidiária junto ao Fisco, provendo a autoridade tributária com informações, acompanhando e instrumentalizando o planejamento e a implementação da política, mas sim de efetivamente atuar perante os próprios contribuintes, em sede de auditoria da aplicação da lei de incentivos, numa função efetivamente de controle e fiscalizadora.

O instrumento utilizado pelo MCTI para o exercício de sua competência no âmbito da Lei do Bem é, nos termos do art. 3º da Portaria MCTI nº 715/2014, o Parecer circunstanciado. O Parecer circunstanciado, emitido pelo MCTI, contudo, difere do típico parecer opinativo que, via de regra, exsurge no contexto da Administração Pública.

Com efeito, pareceres são tipicamente opinativos produzidos por consultorias que assessoram autoridades administrativas, às quais são destinados. Neste contexto, a autoridade administrativa consulta o expert acerca de determinada questão, sobre a qual é emitida opinião de especialista, vertida no parecer, a nutrir a Administração com informações técnicas que eventualmente irão instrumentalizar um ato administrativo que, este sim, irá tocar a esfera jurídica da Administração e do particular. Por consubstanciar um mero opinativo que não vincula a Administração Pública, é dizer, não gera direitos ou obrigações para o ente público ou para o particular, o parecer, não sendo uma decisão, não é passível de recurso administrativo ou judicial, tampouco pode ser objeto de mandado de segurança48.

Por sua vez, caráter distinto detém o parecer quando é ele voltado não internamente à própria Administração como um opinativo técnico facultativo, mas sim ao próprio administrado, como ato administrativo mandatório em determinado procedimento, tangenciando a esfera jurídica subjetiva do particular, como ato propriamente decisório. Essa é precisamente a hipótese do Parecer circunstanciado emitido pelo MCTI nos termos do art. 3º da Portaria MCTI nº 715/2014. O Parecer circunstanciado não apenas decorre do exercício da aptidão do MCTI enquanto órgão titular de competência no bojo dos programas de incentivos fiscais para o desenvolvimento tecnológico, mas é especificamente ato obrigatório no procedimento de fiscalização da Lei do Bem, e, mais ainda, sujeito, nos termos do parágrafo 5º do art. 3º da Portaria MCTI nº 715/2014, a recurso de iniciativa do particular, na hipótese em que conclua pela desconformidade dos projetos do contribuinte vis-à-vis os critérios de elegibilidade da legislação49.

De fato, o contribuinte que tenha seus projetos considerados pelo MCTI, em Parecer circunstanciado, desconformes aos critérios legais definidores de inovação tecnológica para efeito do regime de benefícios, pode, conforme previsto no parágrafo 5º do art. 3º da Portaria MCTI nº 715/2014, interpor pedido de reconsideração, e assim o é apenas porque, da decisão do MCTI, seja o parecer originário, seja o parecer complementar, emitido em análise do recurso interposto, exsurge eficácia jurídica da qual derivam direitos e obrigações para a Administração e o particular, servindo de fundamento para expectativas jurídicas e pretensões recíprocas, e, por conseguinte, para eventual pretensão recursal e o interesse jurídico que dela se exige.

Daí que é o Parecer circunstanciado ato administrativo de cunho decisório, produzido no contexto de uma atividade fiscalizadora, direcionado ao próprio particular, e sujeito a recurso, de molde a, não apenas por fundamento de segurança jurídica, sob a forma da proteção da confiança legítima e da proibição do venire contra factum proprium, mas também e principalmente de sua própria natureza e regime jurídicos, dotar-se de caráter vinculante para a própria Administração, inclusive a Receita Federal, cujos atos de fiscalização não podem contrariar o seu conteúdo50.

Fica delineada, como se vê, desde o perfil competencial do MCTI, dado pelo Decreto nº 5.886/2006, passando pela atribuição conferida no âmbito da própria Lei do Bem pelo art. 14 do Decreto nº 5.798/2006, desembocando por fim no procedimento de fiscalização determinado pela Portaria nº 715/2014, uma divisão do trabalho administrativo entre Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e Receita Federal, em que ambos detêm competência na fiscalização da Lei do Bem, cada um em sua seara técnica: o MCTI fiscalizando os projetos de P, D & I quanto ao seu caráter de inovação e sua elegibilidade para efeito da legislação; e a Receita Federal fiscalizando a apuração na dimensão estritamente tributária, quanto a valores, contabilização do benefício e apuração do saldo de imposto a pagar.

Aqui a segurança jurídica já intervém para assegurar a atuação congruente dos dois órgãos, cada um na sua esfera competencial. O princípio da segurança jurídica não apenas exige, na sua vertente da função certeza, tanto do ordenamento quanto do feixe de órgãos do Estado, uma segurança quanto à definição clara, no plano abstrato, das regras de competência, seu exercício, a autoridade nela investida e o procedimento aplicável51; mas também impõe, na sua função estabilidade do ordenamento jurídico, que, no plano concreto da produção de normas, seja verificada a atividade dos órgãos competentes, visando identificar o cumprimento das normas competenciais e procedimentais, evitando conflitos positivos ou negativos de competência52.

O Estado de Direito orientado pela moralidade e pela impessoalidade, fiador da confiança que suas normas geram na comunidade de cidadãos, não pode conviver com contradições de decisões de órgãos ou de autoridades entre si53. Desse modo, a atuação congruente e complementar do MCTI e da Receita Federal no âmbito da aplicação e fiscalização da Lei do Bem, cada um em sua seara técnica e administrativa própria, articula um paradigma de segurança jurídica com os princípios da desconcentração e da especialização da Administração Pública54.

De efeito, o conteúdo dos projetos de P, D & I e, ainda mais, as categorias técnicas da inovação, empregadas pela lei na emolduração do tipo incentivado, são altamente complexos55, com grandes variações pragmáticas, nas formas como se manifesta, em cada setor da economia, seja em serviços, na indústria tradicional ou tecnológica, nos variados níveis da atividade econômica, seja em grandes ou pequenas empresas. Tornar-se-ia então hercúleo o desafio de atribuir ao órgão arrecadador a tarefa de auditar essa gama de tecnicalidades que lhe são por tudo estranhas, o que torna legitimada e justificada, segundo parâmetros de segurança e eficiência, a atribuição de tal competência ao órgão técnico que é o MCTI.

Daí que a expertise técnica do MCTI vem, empregada na fiscalização da elegibilidade dos projetos de P, D & I, atender não apenas à competência administrativa do órgão, mas também a demanda dos postulados de especialização e eficiência administrativas, numa seara técnica em que o domínio do MCTI é muito superior ao do órgão arrecadador, que, contudo, mantém a sua atuação na fiscalização da dimensão estritamente fiscal dos benefícios, de apuração, contabilização e pagamento do imposto devido.

5.3. O parecer circunstanciado do MCTI e sua eficácia em sede de fiscalização tributária

Analisado o procedimento de atuação do MCTI no âmbito de aplicação e fiscalização da Lei do Bem, impende escrutinar-se o resultado de tal agir do órgão de implementação da política de inovação, especificamente quanto à eficácia jurídica daí decorrente.

Como resultado da auditoria levada a cabo pelo MCTI nos projetos de P, D & I desenvolvidos pelo contribuinte, o ministério (i) emite o Parecer circunstanciado, notificando o contribuinte do seu teor e (ii) publica o Relatório Anual de Utilização dos Benefícios Fiscais, em que são arroladas as empresas cujos projetos foram aprovados.

A questão que surge é: qual a eficácia, relativamente à relação jurídica tributária, quanto à fiscalização da apuração dos benefícios, da atuação do MCTI, culminada com a elaboração do Parecer circunstanciado, notificação do contribuinte e publicação do Relatório Anual?

Num tributo sujeito ao regime de lançamento por homologação em geral, a atuação da autoridade fiscal, em princípio, enfrenta dois extremos de possibilidades: (i) a homologação do pagamento, pelo reconhecimento, como lícita, da conduta do contribuinte que identifica o fato gerador, apura o tributo devido e efetua o recolhimento do tributo devido; ou (ii) a rejeição de tal atividade do contribuinte, que registra o fato gerador e efetua determinado pagamento, por ilícita, por contrária à lei, aos fatos, ter sido feita a destempo ou em montante inferior ao devido, implicando a lavratura de Auto de Infração para exigência de imposto e multa.

A atuação do MCTI, contudo, não endereça, é dizer, não tem como objeto especificamente, o auditamento da relação jurídica tributária de forma holística, desde o seu fato imponível, passando pela dedução dos incentivos e concluindo com o recolhimento do saldo a pagar. O MCTI se restringe a coletar, processar, controlar e fiscalizar os projetos de P, D & I especificamente quanto à sua elegibilidade como atividade de pesquisa tecnológica vis-à-vis a Lei do Bem. Não tendo, portanto, como conteúdo56 a contabilização fiscal dos benefícios em toda a sua dimensão, a eficácia da atuação do MCTI se restringe ao seu objeto, que é o controle da elegibilidade dos projetos de P, D & I e os respectivos dispêndios.

Aqui a envergadura eficacial do ato do MCTI emerge da própria eficácia do ato administrativo per se: como manifestação de vontade da lei e do Estado, o ato administrativo é vinculante para o ente que o emite, não se esvaindo seus efeitos na mera enunciação57.

Na mesma esteira, tendo como objeto e conteúdo uma relação jurídica, o ato jurídico não visa senão produzir jurídicos efeitos nos termos do conteúdo nele veiculado, o que não se pode negar.

Tais dimensões sintáticas do ato administrativo já se apresentam sob a tutela da segurança jurídica na sua função certeza, atribuindo à relação implicacional do ato administrativo, enquanto norma jurídica concreta, uma fonte de efeitos jurídicos que, sendo fonte de confiança dos cidadãos, é amparada pelo ordenamento jurídico. De fato, a função certeza enquanto acessibilidade formal se manifesta no ato administrativo, como não se manifesta em atos privados em geral, na medida em que, dotado de atributos qualificadores de sua eficácia, sejam a imperatividade, a presunção de legitimidade e a autoexecutoriedade, veicula a vontade do Estado e da lei, encarnando o interesse público primário, acima dos interesses individuais do cidadão e do próprio Estado.

Todo este acervo eficacial de que é dotado o ato administrativo é fonte de onde emana confiança legítima a motivar os administrados e atrair a proteção da ordem jurídica. Daí que, se o MCTI, via Parecer circunstanciado, enuncia que o contribuinte está aprovado quanto à elegibilidade, para efeito da Lei do Bem, dos seus projetos de P, D & I do exercício anterior, tal ato tem eficácia vinculante relativamente à fiscalização dos projetos no âmbito da sua elegibilidade e assegura ao contribuinte, quanto os seus efeitos, proteção sob o postulado da segurança jurídica, como ato concreto gerador de confiança legítima nos limites do conteúdo veiculado. Mais ainda na hipótese em que, passível como é, nos termos do parágrafo 5º do art. 3º da Portaria MCTI nº 715/2014, o ato administrativo de recurso e objeto de decisão a endereçar a eventual pretensão recursal do particular, são confirmadas expectativas normativas e interesses jurídicos de parte a parte, com eficácia jurídica específica, geração de direitos subjetivos e deveres jurídicos.

Que a Receita Federal pudesse, via ato posterior, desqualificar elegibilidade de projeto de pesquisa tecnológica, para efeito da Lei do Bem, em contraposição a ato anterior do MCTI que houvesse reconhecido a sua conformidade, seria não apenas contradição flagrante na atuação da Administração Pública, mas também e principalmente malferimento da confiança legítima adquirida pelo contribuinte a partir da atuação do órgão técnico, e tutelada pelo ordenamento jurídico sob o primado da segurança jurídica. Tratar-se-ia, como já vimos, de típico venire contra factum proprium, atuação da Administração Pública, ainda que por órgãos distintos, contraditória e incompatível com o Estado de Direito: não se admite, sob a perspectiva do cidadão, a coexistência de dois atos da Administração, inclusive a tributária, contraditórios entre si, mormente quando o contribuinte já inspirou a sua conduta em um ato originário e é surpreendido, a posteriori, por ato contrário que lhe põe sob o risco de sanções, perdas ou restrições de direitos, interesses e posições jurídicas individuais.

Por fim, a atuação do MCTI no controle e fiscalização da elegibilidade dos projetos de P, D & I adquire ainda uma eficácia de estabilidade das expectativas ao longo no tempo que também é substrato para a tutela da segurança jurídica, na medida em que, numa seara altamente complexa que é o enquadramento das atividades de desenvolvimento tecnológico nos conceitos da Lei nº 11.196/2005, consolida pragmaticamente um sentido expectável para os contribuintes sobre o que é e o que não é inovação sob os efeitos da lei. De fato, pode-se afirmar que, nos quase dez anos de aplicação da lei, diante da atuação restrita da Receita Federal nesta seara, seja no perfil competencial que assumiu, como já demonstrado acima, restrito a aspectos estritamente tributários, seja na própria prática da aplicação e da fiscalização do regime legal, em que pouco se imiscuiu nos aspectos técnicos da inventividade, toda a segurança de sentido dos conceitos legais e da sua aplicação prática, consolidada entre os contribuintes, vem da atuação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Portanto, vê-se, a envergadura da atuação do MCTI em termos de consolidação de expectativas e, consequentemente, de confiança dos contribuintes na aplicação da lei, gera uma incidência do postulado da segurança jurídica não apenas em face de um eventual ato administrativo posterior contraditório, por exemplo, oriundo da Receita Federal do Brasil, mas também, mesmo na ausência desse, ao longo do tempo como fonte de estabilidade sistêmica e reconhecimento de práticas consolidadas e critérios jurídicos reconhecidos e aplicados pela administração em face da lei, o que assegura os contribuintes contra mudanças inadvertidas de critério, especialmente quanto a pretensões para a sua aplicação retroativa (art. 146 do CTN).

6. Conclusões

O princípio da segurança jurídica, tutelando a confiança como base da concretização das liberdades individuais, por meio da proteção às expectativas do indivíduo frente ao ordenamento e do Estado, é de aplicação transversal no direito tributário em geral e no âmbito dos incentivos fiscais em particular.

No âmbito das normas tributárias que efetivam, via indução, vetores fundamentais do Estado brasileiro, a exemplo da Lei do Bem vis-à-vis a política desenvolvimentista baseada na tecnologia e na inovação, a segurança jurídica, seja na sua vertente certeza, seja na confiança ou na estabilidade, exige, como condição à sua concretização, que o particular não apenas seja apto a distinguir, a partir da lei, daquilo que é lícito o que é ilícito; quais são seus direitos e suas obrigações; mas também a fonte formal a partir da qual a pragmática da aplicação do regime consolidará a construção do seu sentido.

No contexto da aplicação da Lei do Bem, o papel do MCTI é essencial e se decanta desde o seu perfil competencial geral, dado pelo Decreto nº 5.886/2006, passando pela atribuição conferida no âmbito da própria Lei do Bem pelo art. 14 do Decreto nº 5.798/2006, desembocando por fim no procedimento de fiscalização determinado pela Portaria nº 715/2014. Daí exsurge uma divisão do trabalho administrativo entre Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e Receita Federal, em que ambos detêm competência na fiscalização da Lei do Bem, cada um em sua seara técnica: o MCTI fiscalizando os projetos de P, D & I quanto ao seu caráter de inovação e sua elegibilidade para efeito da legislação; e a Receita Federal fiscalizando a apuração na dimensão estritamente tributária, quanto a valores, contabilização do benefício e apuração do saldo de imposto a pagar. O arremate da competência do órgão responsável pela implementação das políticas de fomento à tecnologia e inovação no país se dá pelo perfil do Parecer circunstanciado, que é o instrumento de sua atuação por excelência na fiscalização da Lei do Bem: ato administrativo de cunho decisório, produzido no contexto de uma atividade fiscalizadora, direcionado ao próprio particular, e sujeito a recurso, de molde a, não apenas por fundamento de segurança jurídica, sob a forma da proteção da confiança legítima e da proibição do venire contra factum proprium, mas também e principalmente de sua própria natureza e regime jurídicos, dotar-se de caráter vinculante para a própria Administração, inclusive a Receita Federal, cujos atos de fiscalização não podem contrariar o seu conteúdo.

O êxito do regime incentivador requer que o contribuinte possa, sob a indução da lei e sob o controle e a liderança dos órgãos responsáveis pela sua aplicação, discernir, sob parâmetros razoáveis de certeza e segurança, o escopo das atividades incentivadas. Só assim poderá organizar os seus recursos e planejar as suas atividades para, não apenas no curto, mas também e principalmente no médio e longo prazo, gerar a tecnologia e a inovação preconizadas pelo ordenamento jurídico brasileiro como instrumentos fundamentais do desenvolvimento econômico e social do país.

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SILVA, Almiro do Couto E. “O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99)”. Revista Brasileira de Direito Público - RBDP ano 2, nº 6. Belo Horizonte, julho-setembro de 2004.

TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Steuerrecht. 21ª ed. Colônia: Otto Schmidt, 2013.

TÔRRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: RT, 2012.

–. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação e elusão tributária. São Paulo: RT, 2003.

VOGEL, Klaus. “Rechtssicherheit und Rückwirkung zwischen Vernunftrecht und Verfassungsrecht”. JuristenZeitung 43. Jahrg nº 18 (16 de setembro de 1988).

1 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 45.

2 BUDE, Heinz; FISCHER, Karsten; e HUHNHOLZ, Sebastian. Vertrauen: Die Bedeutung von Vertrauensformen für das soziale Kapital unserer Gesellschaft. Berlim: Herbert-Quandt-Stiftung, 2010, p. 16.

3 LUHMANN, Niklas. Vertrauen: Ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität. Stuttgart: Lucius & Lucius.

4 Luhmann ora fala em expectativas sobre expectativas em contraposição a expectativas [imediatas] (Sociologia do direito I. Op. cit., p. 52); ora sobre confiança sistêmica (Systemvertrauen), em contraposição à confiança pessoal (persönliches Vertrauen) (Vertrauen: Ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität. Op. cit., p. 50).

5 LONGMUß; SPANNER-ULMER; KULLMANN; e BULLINGER (orgs.). Das Konzept Systemvertrauen: Vertrauen als Grundlage von Zusammenarbeit und wirtschaftlichem Erfolg. Chemnitz: Technische Universität Chemnitz, 2012, p 11.

6 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: RT, 2012, pp. 126 e segs.

7 Na Alemanha, o Tribunal Federal Constitucional (Bundesverfassungsgericht - BVerfG) é protagonista na definição do conteúdo dos princípios constitucionais, não sendo diferente com o princípio da segurança jurídica. Dentre as diversas decisões em que aplica e constrói o sentido do princípio, citamos a seguinte: “Für den Bürger bedeutet Rechtssicherheit mithin in erster Linie Vertrauensschutz Dieser Vertrauensschutz wird zumal durch die Grundrechte verbürgt, in denen sich das Rechtsstaatsprinzip besonders nachdrücklich ausprägt.” (BVerfGE 45, 142). Tradução livre: “Para o cidadão, a segurança jurídica significa em primeira linha proteção da confiança. Essa proteção da confiança é garantida especialmente através dos direitos fundamentais nos quais o princípio do Estado de Direito se manifesta de forma especialmente intensa.”

8 É o caso do ordenamento alemão relativamente à retroatividade das normas tributárias, como destacam Tipke e Lang (Steuerrecht. 21ª ed. Colônia: Otto Schmidt, 2013, p. 121). Também em Portugal como anota Nabais (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 2004, p. 399).

9 BADURA, Peter. Staatsrecht. Munique: C. H. Beck, 2012, p. 371; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 257.

10 SILVA, Almiro do Couto e. “O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99)”. Revista Brasileira de Direito Público - RBDP ano 2, nº 6. Belo Horizonte, julho-setembro de 2004, pp. 7-58.

11 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Op. cit., pp. 194 e segs.

12 A função segurança é expressa no Preâmbulo constitucional na forma que segue: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.”

13 Sobre o conceito de garantismo, Dario Ippolito: “O garantismo, portanto, se configura como a teoria do sistema das garantias dos direitos fundamentais, que analisa, valoriza e elabora os dispositivos jurídicos necessários à tutela dos direitos civis, políticos, sociais e de liberdade sobre os quais se fundam as hodiernas democracias constitucionais.” (“O garantismo de Luigi Ferrajoli”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 3(1): 34-41, janeiro-junho 2011).

14 O Supremo Tribunal Federal, em decisões recentes, também tem aplicado o princípio da segurança e a proteção da confiança como consectários do princípio do Estado de Direito, a exemplo do julgado abaixo:

“Ementa: Mandado de segurança. 2. Acórdão do Tribunal de Contas da União. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária - Infraero. Emprego Público. Regularização de admissões. 3. Contratações realizadas em conformidade com a legislação vigente à época. Admissões realizadas por processo seletivo sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão anterior do TCU. 4. Transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança. 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público. 7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista. 8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contratações dos impetrantes. 9. Mandado de Segurança deferido.” (Tribunal Pleno, MS nº 22.357, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 27.5.2004, DJ de 5.11.2004, p. 6, Ement. Vol. 2171-01, p. 43, LEXSTF vol. 26, nº 312, 2005, pp. 135-148, RTJ vol. 192-02, p. 620)

15 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Steuerrecht. Op. cit., p. 121.

16 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Op. cit., p. 257.

17 BADURA, Peter. Staatsrecht. Op. cit., p. 371.

18 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 191. Enfatizando que não há segurança jurídica sem que todas as dimensões (objetiva e subjetiva) do princípio sejam asseguradas, Klaus Vogel: “Der Sicherheit der subjektiven Rechte geht aber die Sicherheit der objektiven Rechts voraus. Das ist ganz wörtlich gemeint: Sicherheit des objektiven Recths ist Voraussetzung für die Sicherheit subjektiver Rechte. Ohne Sicherheit des objektiven Rechts gibt es keinen Vertrauensschutz.” Em tradução livre: “A segurança do direito objetivo precede a segurança dos direitos subjetivos. Isso é afirmado literalmente: a segurança do direito objetivo é condição para a segurança do direito subjetivo. Sem segurança do direito objetivo não há proteção da confiança.” (VOGEL, Klaus. “Rechtssicherheit und Rückwirkung zwischen Vernunftrecht und Verfassungsrecht”. JuristenZeitung 43. Jahrg nº 18 (16 de setembro de 1988), p. 833)

19 VOGEL, Klaus. “Rechtssicherheit und Rückwirkung zwischen Vernunftrecht und Verfassungsrecht”. Op. cit., p. 833; Nabais: “A ideia de proteção da confiança não é senão o princípio da segurança jurídica na perspectiva do indivíduo, ou seja, a segurança jurídica dos direitos e demais posições e relações jurídicas dos indivíduos, segundo a qual estes devem poder confiar em que tanto à sua actuação como à actuação das entidades públicas incidente sobre os seus direitos, posições e relações jurídicas, adoptada em conformidade com normas jurídicas vigentes, se liguem efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas.” (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Op. cit., pp. 395-396)

20 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Op. cit., p. 257.

21 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Op. cit., p. 409. Chamando atenção para a impossibilidade de, em nome da segurança jurídica, reivindicar-se a imutabilidade do direito positivo, Vogel (op. cit., p. 835) e Tipke, Lang (op. cit., p. 121).

22 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Steurrecht. Op. cit., p. 125; BADURA, Peter. Staatsrecht. Op. cit., p. 373.

23 Canotilho: “Os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial.” (Op. cit., p. 257)

24 QUEIROZ, Mary Elbe. “Princípios que norteiam a constituição e o controle administrativo do crédito tributário”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (org.). Teoria geral da obrigação tributária: estudos em homenagem ao Prof. Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 497.

25 VOGEL, Klaus. Op. cit., p. 833.

26 Sobre esse tópico, cf. DI PIETRO, Juliano. A fiscalização tributária e o dever de colaboração: o direito de participação do contribuinte. Tese de Doutoramento. São Paulo: USP, 2013.

27 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 206.

28 Ibidem, p. 280: “Em vista disso, Henkel alude a uma segurança jurídica pela garantia de efetividade de aplicação, ao que chama de ‘segurança de realização’. Não tem que ver com subsunção ou certeza como controle do conteúdo aplicável (a certeza corresponde a segurança de orientação). Nesta, cabe verificar se a atividade dos órgãos competentes responsáveis pela aplicação encontra-se em atendimento às normas que lhes definem competências e procedimentos, como garantia de ausência de conflitos positivos ou negativos de competências.”

29 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Op. cit., p. 258.

30 Dentre os diversos precedentes do Tribunal Federal Constitucional: “Mit den rechtsstaatlichen Anforderungen an die Bestimmtheit und Klarheit der Norm soll die Verwaltung gebunden und ihr Verhalten nach Inhalt, Zweck und Ausmaß begrenzt werden. (...) Mängel hinreichender Normenbestimmtheit und - klarheit beeinträchtigen auch die Möglichkeit zur Beachtung des verfassungsrechtlichen Übermaßverbots. ” (BVerfGE 110,33) Tradução livre: “As demandas, do Estado de Direito, de claridade e determinabilidade da norma, devem vincular a Administração e limitar a sua conduta quanto a conteúdo, finalidade e dimensão. (...) A falta de suficiente determinabilidade e clareza normativas compromete ainda a possibilidade de observação da regra constitucional da proibição do excesso.”

31 TIPKE, Klaus; e LANG, Joachim. Steuerrecht. Op. cit., p. 118.

32 Heleno Tôrres: “Para conferir efetividade ao direito de acessibilidade ao conteúdo das regras jurídicas, a Administração tem o dever de promover a publicidade e estimular o acesso às fontes, e, igualmente, a cognoscibilidade do seu conteúdo, por mais complexo que seja. O sistema jurídico de um Estado Democrático deve garantir o amplo acesso ao conhecimento do direito porque suas regras são heterônomas, provenientes das mais diversas fontes, e o seu desconhecimento é inescusável.” (Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 249)

33 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Op. cit., p. 258.

34 Tipke fala em segurança do planejamento tributário (Steuerplanungssicherheit). Op. cit., p. 123.

35 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário e direito privado: autonomia privada, simulação e elusão tributária. São Paulo: RT, 2003, p. 174.

36 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 232.

37 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 233.

38 Nabais: “Á mesma ponderação haverá que proceder se, em vez de ser a administração, for o legislador a impor uma interpretação (autêntica formal) da lei fiscal, ou mesmo o juiz que, ao declarar a ilegalidade com eficácia erga omnes de regulamentos que suportem determinada interpretação da lei, reporte os efeitos duma tal declaração à entrada em vigor desta: também estes órgãos não podem passar sem mais por cima da confiança depositada pelos contribuintes no comportamento interpretativo de outro órgão do Estado - a administração.” (Op. cit., p. 409)

39 Tipke e Lang: “Subventionen, mit denen der Staat zu einer bestimmten Disposition angereizt hat, dürfen nicht nachträglich wieder entzogen werden. Das wäre ein mit dem verfassunsrechtlich gewährleisteten Vertrauensschutz unvereinbares venire contra factum proprium.” (Op. cit., p. 125) Tradução livre: “Subvenções, com as quais o Estado incentivou determinado planejamento, não podem ser posteriormente revogadas. Isto seria venire contra factum proprium, incompatível com a proteção da confiança garantida constitucionalmente.”

40 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 234; NABAIS, José Casalta. Op. cit., p. 409.

41 Item revogado pela Lei nº 12.350/2010.

42 MOREIRA FILHO, Aristóteles. “Os incentivos fiscais da Lei nº 11.196/05 e o caso da subcontratação das atividades de pesquisa e desenvolvimento: interpretação, validade e aplicação no tempo da Instrução normativa nº 1.187/11”. Direito Tributário atual vol. 29. São Paulo: Dialética e IBDT, 2013.

43 GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 150.

44 TIPKE, Klaus; e LANG, Joachim. Op. cit., p. 125.

45 Portaria MCT nº 327, de 29 de abril de 2010.

46 Anteriormente à edição da Lei do Bem, a Lei nº 8.661/1993 previa a concessão de incentivos fiscais para projetos de desenvolvimento de tecnologia nas áreas industrial (PDTI) e agrícola (PDTA), mediante requerimento e aprovação prévia, com abrangência, portanto, muito mais limitada do que o regime atual.

47 No início da aplicação da legislação, mais precisamente no ano base de 2007, objeto do relatório de 2008, o MCTI listou as “empresas que apresentaram informações imprecisas e/ou incompatíveis ao atendimento dos dispositivos da Lei nº 11.196/05”, ou seja, que tiveram a elegibilidade dos seus projetos rejeitada. No ano base de 2008, retratado no relatório de 2009, o MCTI novamente publicou uma lista com as empresas que tiveram seus projetos rejeitados quanto à elegibilidade para os benefícios da Lei do Bem; dessa vez, contudo, sem indicar os nomes, mas apenas os respectivos CNPJ. A partir de 2009, o MCTI deixou de publicar as listas de empresas que tiveram seu enquadramento rejeitado, passou, porém a informá-las diretamente da rejeição dos seus projetos quanto à elegibilidade aos benefícios.

48 Gasparini: “O parecer não pode ser atacado por recurso administrativo ou judicial, pois não se dispõe a declarar, a certificar, criar, alterar, transferir ou extinguir direitos e obrigações.” (GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 144) Efetivamente, se não há efeitos jurídicos decorrentes do ato, não há interesse jurídico, seja em recorrer administrativamente, seja em atacar o ato por via do mandado de segurança. Neste sentido, tem decidido o STJ: “Processual civil. Mandado de segurança. Cabimento. Resposta à Consulta. 1. Incabível mandado de segurança contra parecer ou resposta à consulta formulada. 2. O ato, por ser meramente opinativo, sem natureza decisória ou de executoriedade, não comporta a impetração de mandamus. 3. Recurso sem provimento.” (REsp nº 73.940/RS, rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, julgado em 20.2.2003, DJ de 24.3.2003, p. 164)

49 Quanto à relevância do caráter facultativo ou obrigatório do parecer, como aspecto determinante na identificação da sua natureza opinativa ou vinculante, demarcou o STF no julgamento do MS nº 24.631: “Controle externo. Auditoria pelo TCU. Responsabilidade de procurador de autarquia por emissão de parecer técnico-jurídico de natureza opinativa. Segurança deferida. Repercussões da natureza jurídico-administrativa do parecer jurídico: (i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo; (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer; (iii) quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídico deixa de ser meramente opinativa e o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir. No caso de que cuidam os autos, o parecer emitido pelo impetrante não tinha caráter vinculante. Sua aprovação pelo superior hierárquico não desvirtua sua natureza opinativa, nem o torna parte de ato administrativo posterior do qual possa eventualmente decorrer dano ao erário, mas apenas incorpora sua fundamentação ao ato. Controle externo: É lícito concluir que é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa.” (MS nº 24.631, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. em 9.8.2007, Plenário, DJ de 1º.2.2008)

50 Neste sentido: “Inovação tecnológica. Parecer técnico. O parecer técnico emitido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia vincula a Receita Federal, uma vez que aquele órgão é que tem a competência legal para opinar sobre matéria técnica a ele afeita. Artigo 14, do Decreto nº 5.798, de 2006.” (Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ; Decisão 12-44550; órgão Delegacia da Receita Federal de Julgamento no Rio de Janeiro I - 8ª Turma, Decisão: Delegacia da Receita Federal de Julgamento no Rio de Janeiro I/8ª Turma/Decisão 12-44550 em 16.3.2012; Data de decisão: Data de publicação: 16.3.2012 (16.3.2012 - publicado no site da Sec. Receita 16.3.2012 Federal)

51 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 206.

52 Ibidem, p. 280.

53 Ibidem, p. 232.

54 MELLO, Celso Antônio Bandeira de: “O fenômeno da distribuição interna de plexos de competências decisórias, agrupadas em unidades individualmente, denomina-se desconcentração. Tal desconcentração se faz em razão da matéria, isto é, do assunto (por exemplo, Ministério da Justiça, da Saúde, da Educação, etc.), como em razão do grau (hierarquia).” (Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 146)

55 MOREIRA FILHO, Aristóteles. “O conceito de inovação tecnológica na Lei do Bem: uma contextualização na taxonomia da inovação”. Direito Tributário atual vol. 30. São Paulo: Dialética e IBDT, 2014.

56 Sobre objeto do ato administrativo: ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 451: “Objeto ou conteúdo, que é a matéria de interesse público, ou seja, a relação jurídica administrativa sobre o que o ato administrativo dispõe.”

57 Ibidem, p. 450.