Serviços Digitais, Dados de Usuários e as Limitações do IRRF sobre a Renda de não Residentes

Digital Services, User Data and the Limitations of Withholding Taxes on Income Derived by Non-residents

Omar Freire

Mestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

Procurador do Estado do Pará. Advogado. E-mail: omarffreire@gmail.com.


Recebido em: 24-2-2021

Aprovado em: 4-10-2021


Resumo

O artigo aborda os desafios dos novos modelos de negócios surgidos na era da economia digital para o regime de retenção na fonte adotado pelo Brasil para a tributação de não residentes. Esse mecanismo de tributação é defendi- do em importantes estudos de direito tributário internacional como uma so- lução corretiva para as dificuldades de tributação dos serviços digitais. Este artigo propõe uma avaliação da maneira como esses serviços geram valor a partir da utilização de dados de usuários, como importante ativo intangível, para verificar se a renda produzida por grandes empresas digitais de fato pode ser tributada mediante retenção na fonte. Pôde-se constatar que o regi- me de retenção na fonte, por si só, não seria suficiente para alcançar essa renda.

Palavras-chave: economia digital, dados de usuários, retenção na fonte, não

residentes, Imposto sobre a Renda.


Abstract

This article addresses the challenges raised by the new business models that have emerged in the digital economy for the Brazilian withholding income tax regime applied to non-residents. This mechanism has been proposed in important international tax law studies as a remedial tool for the difficulties raised by the digital services. This article proposes an investigation on how theses services generate value from user data, as an important intangible as- set, in order to verify if income derived by big digital companies may be in- deed reached by withholding taxes. It was possible to conclude that a withhol- ding tax regime, by itself, proved to be insufficient to reach that income.

Keywords: digital economy, user data, withholding at source, non-residents, Income Tax.

Introdução

Em 2013 o jornal inglês The Financial Times publicou uma singela matéria informando que a rede social Twitter estaria planejando minerar dados de seus usuários, especialmente sobre quem eles seguem e o que tuitam, com o escopo de gerar receitas por meio da venda de anúncios direcionados1. O mesmo documen- to comentava que a plataforma de pesquisa Google, desde 2003, usava dados de toda sua rede de parceiros para vender anúncios em sites de terceiros. Pouco tempo mais tarde, o jornal The Washington Post divulgou que a rede varejista ame- ricana RadioShack listara sua base de dados de usuários como ativo a ser vendido para geração de receitas para pagamento de credores2.

Essas duas notícias, mencionadas apenas a título ilustrativo, servem para elu- cidar um dos mais importantes aspectos dos novos modelos de negócios propor- cionados pelo desenvolvimento da tecnologia da informação e da comunicação: a coleta, armazenamento, tratamento e venda de dados de usuários como ativo in- tangível essencial para a geração de renda através da prestação de serviços digi- tais. Os dados fornecidos pelos usuários se tornaram recursos cruciais no processo de criação de valor da economia digitalizada, além de ativos estratégicos para a aquisição ou manutenção de vantagens competitivas em mercados relevantes3.

Diante desse novo cenário, os Estados passaram a discutir maneiras de ade- quar os sistemas tributários tradicionais ao século XXI e evitar a erosão de suas bases tributáveis, tanto por meio de medidas unilaterais quanto cooperativas. O Brasil há muito tempo adota regimes de tributação de não residentes que lhe conferiram uma posição relativamente confortável em termos de preservação de nível adequado de tributação. A imposição do dever de retenção do imposto sobre a renda na fonte – IRRF, entre outras medidas, serviu como meio para tributar a renda decorrente da comercialização de bens tangíveis e intangíveis sem uma presença física significativa em território nacional.

Não obstante, tais regras foram criadas em épocas em que os serviços digi- tais ainda eram objeto de obras de ficção científica. O surgimento de serviços como publicidade on-line e venda de dados de usuários alteraram profundamente as relações jurídicas nos mais diversos setores da economia. O adquirente de uma mercadoria ou tomador de um serviço passou a ser ao mesmo tempo consumidor e produtor e seus dados podem ser utilizados para geração de renda por não re- sidentes.


image

1 BRADSHAW, Tim; KUCHLER, Hannah; STEEL, Emily. Twitter looks to mine user data to help sell advertising on other sites. Financial Times, 15 de out. de 2013. London: Financial Times Ltd., 2013, p. 15.

2 PETERSON, Andrea. Bankrupt RadioShack wants to sell off user data. But the bigger risk is if a Facebook or Google goes bust. The Washington Post, 26 de mar. de 2015. Washington: The Washin- gton Post, 2015.

3 BECKER, Johannes; ENGLISCH, Joachim. Taxing where value is created: what’s ‘user involve- ment’ got to do with it? Intertax vol. 47, n. 2. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2019, p. 166.

O objetivo deste artigo, então, é demonstrar que os novos modelos de negó- cios proporcionados na era digital permitem que parcela considerável da riqueza produzida pela exploração do mercado consumidor brasileiro seja mantida fora do alcance das normas tributárias nacionais.

Não se propõe, nos exíguos limites deste estudo, discutir se o local onde são coletados dados de usuários configura elemento suficiente para legitimar a tribu- tação por um Estado em face do direito tributário internacional, assim como não se propõe uma análise das diversas soluções discutidas pela comunidade interna- cional, unilaterais ou multilaterais, para os desafios da economia digital. O que se busca é verificar até que ponto as regras brasileiras de fato alcançam os rendi- mentos de empresas digitais que exploram o mercado consumidor brasileiro.


  1. Do comércio eletrônico à economia digital

    Francisco Neves Dornelles, em texto publicado em 1988, já alertava que o desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação, aliados ao aperfei- çoamento de institutos jurídicos no campo comercial, permitiam que empresas auferissem lucros em Estados diversos de sua residência sem a necessidade de manter uma presença física4. Implícita nesse alerta estava a preocupação com a justa alocação de jurisdição tributária entre os Estados, já que as normas de tribu- tação internacional estavam assentadas sobre o local de residência como principal critério para a repartição de poder tributário entre os Estados5. À jurisdição onde estivesse a fonte de produção caberia o direito de tributar apenas quando confi- gurado um estabelecimento permanente.

    Tradicionalmente, os Estados importadores de capital eram considerados os mais vulneráveis a planejamentos tributários internacionais destinados a contor- nar as regras que definiam estabelecimentos permanentes. Assim, esses arranjos permitiam que a entidade residente no exterior interagisse com consumidores de outro país e auferisse renda sem que a jurisdição respectiva pudesse exercer seu poder de tributar6.

    Entretanto, desde fins dos anos 90, o desenvolvimento e a expansão acelera- dos da tecnologia da informação e da comunicação permitiram o surgimento de novos modelos de negócios totalmente digitais. Isso fez com que a atuação global de empresas multinacionais, de maneira remota, e os planejamentos tributários por elas adotados, passassem a afetar não apenas os Estados em desenvolvimento,


    image

    4 DORNELLES, Francisco Neves. O modelo da ONU para eliminar a dupla tributação da renda, e os países em desenvolvimento. In: TAVOLARO, Agostinho Toffoli; MACHADO, Brandão; MAR- TINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Princípios tributários no direito tributário e comparado. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 209.

    5 ROCHA, Sergio André. Tributação internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 89.

    6 HONGLER, Peter; PISTONE, Pasquale. Blueprints for a new PE nexus to tax business income in the era of the digital economy. WU International Taxation Research Paper Series vol. 2015 – 15. Wien: Wirtschaftsuniversität Wien University of Economics and Business, 2015, p. 10.

    mas também os Estados desenvolvidos, exportadores de capital, a ponto de os países europeus figurarem entre os principais defensores de reformas na tributa- ção internacional da renda7.

    Nessa mesma época surgiu o conceito de comércio eletrônico, o qual pode ser definido como a venda e aquisição de bens e serviços por meio da internet, com a utilização de servidores seguros e serviços de pagamento on-line8. Em com- paração com o comércio convencional, Reuven Avi-Yonah aponta três principais distinções do e-commerce: (i) interatividade entre consumidor e fornecedor, permi- tindo que este ofereça uma gama de bens e serviços personalizados ao gosto e à capacidade de pagamento daquele; (ii) velocidade do processo produtivo propor- cionada pela internet, permitindo a dispersão dos fatores produtivos pelo mundo; e (iii) o pagamento eletrônico diretamente e de maneira segura pela internet9.

    Ocorre que o comércio eletrônico é um conceito limitado que abrange ape- nas a compra e venda de bens e serviços por intermédio de sistemas eletrônicos, como a internet e outras redes de computador10. A tecnologia da informação e da comunicação permitiu o surgimento de empresas digitais, ou seja, que desenvol- vem uma nova geração de negócios a respeito dos quais a quase totalidade das atividades são conduzidas on-line e com base em informação altamente especiali- zada de seus usuários11. A expressão “economia digital”, assim, é um conceito guarda-chuva bem mais amplo, usado para descrever mercados com foco em tec- nologias digitais12. Nos termos utilizados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento – OCDE, a economia digital está cada vez mais se tornando a própria economia13.

    O relatório apresentado pela OCDE em 2015, em relação à Ação 1 do Proje- to Base Erosion and Profit Shifting – BEPS, “Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy, Action 1 – Final Report”, reconheceu que a economia digital se


    image

    7 DALE, Stephen. La numérisation de l’économie – quelques réflexions sur les conséquences pour les régimes de taxation et leur administration. ERA Forum. Trier: Europäische Rechtsakademie, 2018, p. 241; COLLIN, Pierre; COLLIN, Nicolas. Task force on taxation of the digital economy: report to the Minister for the Economy and Finance, the Minister for Industrial Recovery, the Minister Delegate for the Budget and the Minister Delegate for Small and Medium-Sized Enterprises, Innovation and the Digital Economy, 2013, p. 61.

    8 MONTALCINI, Fabio; SACCHETTO, Camillo. Diritto tributario telematico. Torino: G. Giappi- chelli Editore, 2015, p. 111.

    9 AVI-YONAH, Reuven. International taxation of electronic commerce. Tax Law Review vol. 52, fascículo 3. New York: New York University School of Law, p. 511-512.

    10 GAOUA, Noah. Taxation of the digital economy: French reflections. European Taxation vol. 54, n. 1 (cópia digital). Amsterdam: IBFD, jan./2014, p. 2.

    11 GAOUA, Noah. Taxation of the digital economy: French reflections. European Taxation vol. 54, n. 1 (cópia digital). Amsterdam: IBFD, jan./2014, p. 2.

    12 GAOUA, Noah. Taxation of the digital economy: French reflections. European Taxation vol. 54, n. 1 (cópia digital). Amsterdam: IBFD, jan./2014, p. 2.

    13 OECD, Addressing the tax challenges of the digital economy, Action 1 – 2015 Final Report, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. Paris: OECD Publishing, 2015, p. 11.

    caracteriza: (i) pela dependência sem precedentes de intangíveis, com uso maciço de dados (notadamente dados pessoais); (ii) pela adoção generalizada de modelos de negócios multifacetados, que capturam valor a partir de externalidades geradas por produtos gratuitos; e (iii) pela dificuldade de se determinar a jurisdição em que ocorre a geração de valor14. Os principais modelos de negócios que reúnem essas características são: lojas virtuais de aplicativos (app stores), empresas de anúncios virtuais (on-line advertising), intermediários de pagamento on-line (payment services), portais de pesquisa, computação em nuvem (cloud computing), entre outros15.

    A análise dos novos negócios digitais foi refinada nos anos subsequentes com o estabelecimento, pela OCDE, do Inclusive Framework on BEPS, composto por mais de 135 países, com o objetivo de discutir e encontrar soluções para os desa- fios remanescentes relativos a BEPS, com especial atenção à digitalização da eco- nomia16. As diversas propostas apresentadas foram então divididas em dois pila- res: o Pilar 1 confere especial atenção ao Estado do mercado consumidor para estabelecer um novo equilíbrio na alocação da jurisdição tributária, enquanto o Pilar 2 foca em regras sobre competição fiscal internacional com o objetivo de estabelecer um patamar mínimo de tributação da renda17.

    O principal documento decorrente do Pilar 1, intitulado Pillar One Blue- print, a par de conceituar serviços digitais e instituir uma lista positiva desses serviços, contribuiu para a compreensão de como esses negócios geram renda, através de um ou mais dos seguintes modelos de monetização18:

    1. manutenção de uma plataforma digital mediante recebimento de co- missão de outras empresas que veiculam propaganda virtual nesse espaço (advertising-based revenue);

    2. cobrança de taxa pela assinatura de usuários que buscam o conteúdo

      on-line fornecido (subscription-based revenue);

    3. venda de bens corpóreos ou virtuais (sales revenue model) ou venda de serviços, incluindo serviços tradicionais que podem ser fornecidos on-

      -line (service revenue model);


      image

      14 OECD, Addressing the tax challenges of the digital economy, Action 1 – 2015 Final Report, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. Paris: OECD Publishing, 2015, p. 16.

      15 TAMANAHA, Rodolfo Tsunetaka. Tributação e economia digital: análise do tratamento tributário dos rendimentos de computação em nuvem. Série Doutrina Tributária vol. XXX. São Paulo: IBDT, 2020, p. 65.

      16 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 3.

      17 SCHOUERI, Luís Eduardo; SCHOUERI, Pedro Guilherme Lindenberg. Novas fundações do direito tributário internacional? A OCDE, seus Pilares I e II e a Covid-19. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; FLÁVIO NETO, Luís; SILVEIRA, Rodrigo Maito da (Coord.). Anais – VIII Congresso Brasileiro de Direito Tributário Internacional: novos paradigmas da tributação internacional e a Covid-19. São Paulo: IBDT, 2020, p. 245.

      18 TAMANAHA, Rodolfo Tsunetaka. Tributação e economia digital: análise do tratamento tributário dos rendimentos de computação em nuvem. Série Doutrina Tributária vol. XXX. São Paulo: IBDT, 2020, p. 66.

    4. venda de dados pessoais e de pesquisas de mercado customizadas a partir da coleta e tratamento de dados (selling of user data and customi- zed market research); ou

    5. recebimento de comissão pela viabilização ou execução de transações (transaction fee revenue model).

      Um exame exauriente de cada um desses modelos transbordaria aos limites deste artigo. Por esse motivo, os tópicos seguintes deste estudo concentrar-se-ão sobre aqueles que mais diretamente dependem da coleta e processamento de da- dos de usuários, quais sejam, os de advertising-based revenue e selling of user revenue.


  2. A geração de valor e renda a partir de dados de usuários

    Um dos objetivos declarados do projeto BEPS da OCDE era a garantia de que a renda seja tributada onde as atividades econômicas são desenvolvidas e onde valor é criado pelas grandes empresas multinacionais19. A escolha da orga- nização em focar no local em que o valor é criado foi bastante criticada em diver- sos estudos acadêmicos, segundo os quais o conceito é incoerente e mal definido e não houve acordo entre os países sobre os critérios preponderantes na alocação de direitos tributários sobre essa nova base conceitual20.

    Ainda que não haja consenso sobre o que mais agrega valor às empresas di- gitais, parece haver certa concordância de que os usuários de serviços digitais participam do processo produtivo e efetivamente contribuem para a criação de valor da empresa e geração de renda21. Essa opinião foi compartilhada expressa- mente pela OCDE e pela Comissão Europeia ao afirmarem que usuários de pla- taformas on-line fornecem inputs que contribuem para o lucro das empresas22.

    Para se entender a maneira como essas entidades da era digital auferem renda, é preciso primeiro compreender como se forma um dos principais ativos por elas utilizados para obter o acréscimo patrimonial que configura a renda. Nesse sentido, a contribuição dos usuários para a geração de valor pode ser divi- dida em três partes: realçar os efeitos de rede; facilitar a mineração de dados; e engajamento no processo de produção de conteúdo.

    Quando se fala em efeito de rede, está-se referindo ao fenômeno das exter- nalidades de consumo, presentes em diversos aspectos da vida moderna. Exter- nalidades de consumo significam que o consumo de um bem econômico por ou-


    image

    19 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 3.

    20 HERZFELD, Mindy. The case against BEPS: lessons for tax coordination. Florida Tax Review vol. 21, n. 1. Gainesville: University of Florida Press, 2017, p. 32.

    21 HERZFELD, Mindy. The case against BEPS: lessons for tax coordination. Florida Tax Review vol. 21, n. 1. Gainesville: University of Florida Press, 2017, p. 9.

    22 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – interim report 2018. Paris: OECD Publishing, 2018, p. 39; EU COMISSIO. Time to establish a modern, fair and efficient taxation standard for the di- gital economy. Brussels: European Comission, 2018, p. 1.

    tras pessoas pode aumentar ou diminuir o valor desse mesmo bem23. Esse fenô- meno pode ser observado, por exemplo, em um festival de música, em que parte da experiência depende do entusiasmo do público. Quanto maior o número de pessoas presentes, melhor a experiência para os demais, aumentando o valor aos olhos dos consumidores do serviço. Por esse motivo, a quantia cobrada pelos in- gressos seria menor se o evento fosse transmitido apenas por um canal de televi- são. O mesmo ocorre com a economia digital. O valor que um consumidor atribui a uma rede social, por exemplo, depende da quantidade de familiares, amigos ou colegas que a utilizam; ao mesmo tempo, quando um consumidor se registra e usa a rede social, está tornando-a mais valiosa para seus conhecidos24.

    A segunda forma de contribuição dos usuários decorre da coleta de dados e do uso de feedback de consumidores para melhoria de produtos e serviços. Tanto os dados coletados passivamente de usuários de plataformas digitais quanto elo- gios e reclamações de consumidores constituem, não raro, um dos principais ati- vos geradores de valor em negócios altamente digitalizados25.

    A terceira forma de contribuição dos usuários decorre do fornecimento de conteúdo digital à rede operada pela empresa, como fotos e vídeos em uma rede social, contribuição para características do design de um produto customizado e gerado por uma impressora 3D, contribuição com melhorias no código de um software, como é o caso do navegador Firefox da Mozilla, entre outras formas de atuação26.

    Para ilustrar essas três formas de participação dos usuários no processo de produção de valor e geração de renda, tome-se o exemplo da rede social Goo- dreads, voltada à troca de experiências de leitura, avaliação e catalogação de li- vros em “estantes pessoais”. Os usuários do serviço podem publicar resenhas so- bre suas leituras e atribuir-lhes nota, o que significa fornecer conteúdo digital continuamente. Fora isso, a utilidade da plataforma para apontar experiências passadas com determinada obra é diretamente proporcional à quantidade de usuários da plataforma, gerando os efeitos de rede mencionados. Comentários e avaliações por poucas pessoas poderiam indicar experiências isoladas. Quando, porém, as opiniões de milhares de pessoas convergem no mesmo sentido, o usuá- rio pode melhor prever como seria sua própria experiência com a leitura. Ainda, a plataforma parte das leituras realizadas pelo usuário e oferece indicações seme-



    image

    23 BECKER, Johannes; ENGLISCH, Joachim. Taxing where value is created: what’s ‘user involve- ment’ got to do with it? Intertax vol. 47, n. 2. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2019, p. 11.

    24 BECKER, Johannes; ENGLISCH, Joachim. Taxing where value is created: what’s ‘user involve- ment’ got to do with it? Intertax vol. 47, n. 2. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2019, p. 12.

    25 PETRUZZI, Raffaele; BURIAK, Svitlana. Addressing the tax challenges of the digitalization of the economy – a possible answer in the proper application of the transfer pricing rules? Bulletin for International Taxation vol. 72, n. 4a./Special Issue. Amsterdam: IBFD, 2018, p. 25.

    26 BECKER, Johannes; ENGLISCH, Joachim. Taxing where value is created: what’s ‘user involve- ment’ got to do with it? Intertax vol. 47, n. 2. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2019, p. 17-18.

    lhantes, além de permitir o redirecionamento direto à página na internet da Amazon, sua atual controladora, para aquisição dos livros.

    Feitos esses esclarecimentos, é possível tratar, doravante, de como esses ati- vos permitem a geração de renda de forma bastante peculiar na economia digital. Isso decorre de uma característica comumente encontrada nos serviços digitais, que é a sua natureza bifacetada ou multilateral. Significa dizer que as empresas fornecem simultaneamente diferentes tipos de serviços para diferentes conjuntos de usuários e assim o fazem por causa de externalidades específicas dentre esses conjuntos: um grupo de usuários se preocupa com o que fazem outros grupos de usuários de outros serviços digitais27. A diversidade de atividades e público-alvo permite que as empresas manipulem a estrutura de preços cobrados de cada gru- po de usuários para maximizar o volume de transações e os seus lucros28.

    Dito de maneira mais simples, uma empresa digital pode oferecer preços abaixo de custo para um grupo de usuários em um determinado país, ao passo em que usuários de outro serviço, no mesmo ou em outro país, são cobrados pelo acesso aos sujeitos do primeiro grupo, ou ao menos aos dados deles coletados29. Ilustrativamente, seria o caso do Google, que oferece uma ferramenta gratuita de pesquisa na internet e usa os dados de pesquisa dos usuários para vender espaço de publicidade altamente direcionada conforme os interesses de quem acessa sua interface.

    O caráter bifacetado ou multilateral de um negócio não é a novidade trazida pela economia digital. Essa característica já se manifestava em jornais de notícias em empresas de radiodifusão sustentados por publicidade30. O elemento real- mente novo é a coleta e utilização dos dados coletados de usuários de serviços digitais como ativos intangíveis essenciais para a geração de valor pelas maiores empresas multinacionais31. Ativos intangíveis são definidos pelo Pronunciamento Técnico CPC n. 04 como um ativo não monetário identificável sem substância fí- sica. Como todo ativo, é controlado pela entidade como resultado de eventos pas- sados e do qual se espera que resultem benefícios econômicos futuros para a en- tidade. Ainda que o efetivo reconhecimento contábil de um ativo não seja tão simples diante das regras atuais32, é fácil entender por que os dados de usuários são referidos, ainda que informalmente, como intangíveis da empresa.


    image

    27 CUI, Wei. The superiority of the digital services tax over significant digital presence proposals.

    National Tax Journal vol. 72, n. 4. Washington: National Tax Association, 2019, p. 847-848.

    28 CUI, Wei. The superiority of the digital services tax over significant digital presence proposals.

    National Tax Journal vol. 72, n. 4. Washington: National Tax Association, 2019, p. 848.

    29 CUI, Wei. The superiority of the digital services tax over significant digital presence proposals.

    National Tax Journal vol. 72, n. 4. Washington: National Tax Association, 2019, p. 848.

    30 CUI, Wei. The superiority of the digital services tax over significant digital presence proposals.

    National Tax Journal vol. 72, n. 4. Washington: National Tax Association, 2019, p. 848.

    31 CUI, Wei. The superiority of the digital services tax over significant digital presence proposals.

    National Tax Journal vol. 72, n. 4. Washington: National Tax Association, 2019, p. 848-849.

    32 COLLIN, Pierre; COLLIN, Nicolas. Task force on taxation of the digital economy: report to the Mi- nister for the Economy and Finance, the Minister for Industrial Recovery, the Minister Delegate

    Dentre os serviços digitais que operam dessa maneira, desponta em relevân- cia a publicidade on-line. Estudos mostram que entre fins da década de 90 e 2013 a renda decorrente de publicidade em meios digitais se tornou a segunda maior entre todas as mídias comparadas, perdendo apenas para a TV a cabo33. Ademais, segundo relatórios da Organização Mundial do Comércio, tomando-se dados de Alphabet/Google do ano de 2016, 71% da renda do grupo decorreu de serviços de publicidade e quase 45% da renda foi obtida fora dos Estados Unidos e do Reino Unido34. Ainda que sejam esperadas variações desse percentual entre empresas que atuam no mesmo ramo, pode-se supor que, na atualidade, a publicidade on-

    -line é a origem de parte considerável da renda.

    O conceito utilizado pela OCDE para definir essas atividades é amplo o su- ficiente para incluir serviços automatizados ao longo de toda a cadeia de geração de valor do ramo de publicidade. Assim, são abrangidos desde a venda de espaço nas interfaces digitais operadas por redes sociais, ferramentas de pesquisa on-li- ne, plataformas de intermediação on-line e provedores de conteúdo digital, até atividades de monitoramento da publicidade e medidores de performance35.

    Grandes empresas que exploram as atividades publicitárias on-line coletam continuamente informações pessoais de seus usuários, como localização, interes- ses, atividades de pesquisa, interações com anúncios, as quais são refinadas, pro- cessadas e analisadas por algoritmos sofisticados desenvolvidos pelas próprias empresas36. Meios muito comuns de coleta são ferramentas de pesquisa on-line, redes sociais, plataformas de intermediação on-line, sites de notícias etc.37 O traba- lho de coleta é facilitado pela utilização de cookies, arquivos salvos localmente na máquina dos usuários os quais geram informações sobre quantidade de acessos a uma página na internet e preferências, além de registrarem produtos e serviços de interesse e até a localização do navegador38. Com base nas informações coleta- das, tais entidades conseguem promover propagandas direcionadas conforme os


    image

    for the Budget and the Minister Delegate for Small and Medium-Sized Enterprises, Innovation and the Digital Economy, 2013, p. 77-79.

    33 NAKAMURA, Leonard; SAMUELS, Jon; SOLOVEICHIK, Rachel. Valuing “ free” media in GDP: an experimental approach. Philadelphia: Research Department, Federal Reserve Bank of Phila- delphia, 2016, p. 16.

    34 WTO. World Trade Report 2018: the future of the world trade: how digital technologies are trans- forming global commerce. Geneva: World Trade Organization, 2018, p. 57.

    35 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 25.

    36 SILVA, Priscila Stela Mariano da; BOMFIM, Tatiana. Publicidade on-line sob a perspectiva inter- nacional: uma análise dos casos Google no mundo. In: PISCITELLI, Tathiane (coord.). Tributação da economia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 129.

    37 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 86.

    38 AGUIAR, Luciana Ibiapina Lira. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MON- TEIRO, Alexandre Luiz Moraes do Rêgo (coord.). Tributação da economia digital: desafios no Bra- sil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 573-574.

    interesses dos usuários39, melhorando a performance dos anúncios e, com isso, permitindo-lhes cobrar um preço mais alto pelo seu serviço digital.

    Contribuem também com a geração de renda decorrente da prestação dos serviços os efeitos de rede e a produção contínua de conteúdo digital, pois quanto mais tempo os usuários permanecerem na plataforma, maior a probabilidade de serem submetidos a anúncios40.

    image

    Estado X Estado Y


    Serviço de Publicidade

    Coleta, armazenamento e análise de dados

    Pagamento pelo serviço

    Acesso pago ou gratuito

    Estado U

    Usuário

    Empresa Y

    Empresa X

    Normalmente, as entidades adotam estruturas complexas destinadas a transferir os lucros para jurisdições de baixa ou nenhuma tributação da renda. Como essas estratégias de planejamento tributário internacional fogem ao escopo deste estudo, interessa apenas uma parte dessas estruturas que pode ser assim esquematizada:



    Como se vê, o usuário da interface digital não é o mesmo que consome o serviço de publicidade. Ele consome um outro serviço, que pode ser uma ferra- menta de pesquisa on-line (como Google e Yahoo!), um fornecedor de conteúdo digital (como Netflix, Amazon Prime, Disney+, Spotify, Deezer etc.), uma rede social (a exemplo de Facebook, Instagram, LinkedIn) e assim por diante. Esse outro serviço é fornecido gratuitamente ou mediante pagamento de uma taxa, caso em que constituirá outra fonte de renda para o prestador. Porém, não se confunde com o tomador do serviço de publicidade. Portanto, sequer é correto utilizar a expressão “Estado do mercado consumidor” para se referir à jurisdição em que os dados coletados, porque o consumidor de on-line advertising, no sentido de alguém que extrai para si uma utilidade de um bem econômico41, é o tomador desse serviço.


    image

    39 SILVA, Priscila Stela Mariano da; BOMFIM, Tatiana. Publicidade on-line sob a perspectiva inter- nacional: uma análise dos casos Google no mundo. In: PISCITELLI, Tathiane (coord.). Tributação da economia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 129.

    40 BECKER, Johannes; ENGLISCH, Joachim. Taxing where value is created: what’s “user involve- ment” got to do with it? Intertax vol. 47, n. 2. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2019, p. 17.

    41 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a Renda – pessoas jurídicas. Rio de Janeiro: Justec, 1979. vol. 1, p. 110.

    Algo semelhante ocorre com o serviço de venda, licenciamento ou qualquer forma de alienação, a terceiros não relacionados, de dados coletados de usuários da interface digital42. Em certos casos, essas informações são coletadas à medida que os usuários geram conteúdo para ser compartilhado com outros usuários, a exemplo do que ocorre com as redes sociais. Em outros, como no uso de interfaces de pesquisa em certos bancos de dados, o software fornece o produto final solicita- do pelo usuário, baseado nas instruções e parâmetros incluídos por este nos cam- pos de busca, mas, ao mesmo tempo, coleta, armazena e analisa os dados deixados pelo usuário de maneira voluntária ou compulsória durante o uso do software43.

    A partir da coleta dos dados, estes podem ser usados internamente para in- crementar o funcionamento de plataformas, algoritmos ou softwares, customizar serviços prestados ou viabilizar novas atividades, inclusive a de publicidade, aci- ma comentada44. Exemplo interessante é o pacote de direção autônoma da Tesla, cujos algoritmos são “treinados” pela compilação de dados de uso dos adquirentes dos veículos comercializados pela empresa, dados esses que são estocados em nu- vem e compartilhados com os demais veículos45.

    Ou os dados podem, ainda, ser disponibilizados para terceiros, configuran- do um serviço digital novo. Adaptando-se o esquema exibido acima, ter-se-ia o seguinte:

    Estado C Estado X Estado Y

    image

    Dados pessoais

    Venda de dados

    Empresa Y

    Empresa X

    Usuário

    Acesso à ferramenta ou plataforma

    Pagamento pelo serviço


    image

    42 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 26.

    43 ZHU, Yansheng. Proposed changes to the UN Model tax convention dealing with the cyber-based services. Report to the Committee of Experts on International Cooperation in Tax Matters. Geneva: Uni- ted Nations Department of Economic and Social Affairs, 2014, p. 4-5.

    44 COLLIN, Pierre; COLLIN, Nicolas. Task force on taxation of the digital economy: report to the Mi- nister for the Economy and Finance, the Minister for Industrial Recovery, the Minister Delegate for the Budget and the Minister Delegate for Small and Medium-Sized Enterprises, Innovation and the Digital Economy, 2013, p. 41-42.

    45 MARR, Bernard. The amazing ways Tesla is using artificial intelligence and big data. Forbes, 08 de jan. de 2018. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/bernardmarr/2018/01/08/the-ama- zing-ways-tesla-is-using-artificial-intelligence-and-big-data/?sh=71e392604270. Acesso em: 04 fev. 2021.

    A alienação dos dados de usuários permite a diversificação das fontes de renda do negócio: (i) pela cobrança do usuário de uma taxa para permitir o aces- so à interface ou à ferramenta digital (subscription-based revenue); e/ou (ii) pela venda, licenciamento ou qualquer forma de alienação dos dados coletados (selling of user data and customized market research). É possível, igualmente, que a venda, li- cenciamento ou qualquer forma de alienação de dados esteja associada a um ser- viço de publicidade on-line, caso em que constituirá fonte de renda distinta da disponibilização dos dados a terceiros (advertising-based revenue).

    Esses dois serviços são os mais pervasivos entre os serviços digitais, pois po- dem ser associados aos demais, ainda que com algumas variações. Tomem-se exemplificativamente os serviços de pesquisa on-line, os quais permitem que os usuários realizem pesquisa na internet por páginas na web ou informação hospe- dada em interfaces digitais46. Esses serviços podem cobrar uma taxa dos seus usuários para permitir o acesso, mas podem também ser monetizados por meio da disponibilização de espaço para publicidade e pela venda, licenciamento ou qualquer forma de alienação de dados de usuários. O mesmo pode ser dito a res- peito de aplicativos e jogos on-line, os quais muitas vezes são disponibilizados de maneira gratuita aos usuários, e suas receitas decorrem basicamente da inserção de publicidade paga pelos anunciantes47.

    Muito semelhante é o funcionamento das redes sociais, definidas como pla- taformas disponíveis em interfaces digitais que possuem o objetivo de facilitar a interação entre usuários ou entre usuários e conteúdo produzido por outros usuá- rios48. Nesse conceito se incluem não apenas redes sociais (como Facebook e Ins- tagram) e profissionais (como LinkedIn), mas também sites de relacionamento, plataformas de micro-blogging, de compartilhamento de imagens ou de vídeos, de compartilhamento de avaliações de clientes, além de plataformas de ligações ou de envio de mensagens on-line49. Novamente, ainda que possa ser cobrada uma taxa pela utilização, a viabilidade econômica do serviço pode basear-se sobretudo na publicidade ou venda de dados de usuários.

    Vale ainda mencionar aos serviços de fornecimento de conteúdo digital, as- sim entendidos os meios de fornecimento automatizado de conteúdo digital, seja por meio de streaming, seja por acesso ou download de conteúdo digital (e.v. de li- vros, música, vídeos, textos, jogos, aplicativos, programas de computador, softwa-


    image

    46 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 26.

    47 DIAS, Karem Jureidini; BARBOSA, Fernanda Possebon. Publicidade em aplicativos e jogos: tri- butação. In: PISCITELLI, Tathiane (coord.). Tributação da economia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 144.

    48 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 27.

    49 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 27.

    res, jornais e revistas on-line, bibliotecas virtuais e bancos de dados on-line)50. Os rendimentos desses serviços podem decorrer diretamente do usuário, em um sis- tema de cobrança por assinaturas, ou de um dos demais serviços digitais comen- tados, nomeadamente publicidade digital e venda ou licenciamento de dados de usuários. É comum, inclusive, que o acesso à plataforma digital seja gratuito, mas o usuário seja obrigado a assistir a publicidades periódicas, a menos que adquira “assinaturas premium”. É o caso de serviços prestados por YouTube, Crunchyroll, Twitch, entre outros.

    Para finalizar, é preciso esclarecer que o serviço de cloud computing foi pro- positalmente deixado de fora do presente estudo, pois sua análise, com os três tipos de contratação (Infrastructure as a Service – IaaS, Platform as a Service – PaaS e Software as a Service – SaaS) e seus impactos tributários, não seriam possível den- tro dos exíguos limites do artigo.

    As utilidades dos dados de usuários, tratadas acima, às quais diversas outras poderiam ser adicionadas, demonstram a importância desse “ativo intangível” para os serviços digitais. Esclarecidas as diversas maneiras pelas quais as empre- sas que os prestam podem gerar valor e auferir renda, cabe agora ver de que maneira elas são alcançadas pelas regras de retenção na fonte, especificamente aquelas presentes na legislação brasileira.


  3. Imposto de Renda Retido na Fonte de não residentes

    A legislação brasileira sobre tributação de não residentes carece de um tra- tamento sistematizado. Inobstante a falta de sistematicidade, é possível divisar regimes tributários diferentes conforme a intensidade da atuação em território nacional e a origem do rendimento tributado. Neste artigo, serão tratados dois deles: o regime geral de retenção na fonte e o regime específico para ganhos de capital de fonte de produção brasileira.


      1. Regime de retenção na fonte

        O regime de retenção na fonte, como mecanismo de tributação dos rendi- mentos de não residentes, vem sendo adotado pela legislação brasileira há muito tempo, como se depreende do art. 99 do Decreto-lei n. 5.844/1943. O regime encontra também fundamento no próprio art. 43 do CTN, o qual, ao tratar do fato gerador do imposto sobre a renda, define-o como sendo a aquisição da dis- ponibilidade econômica ou jurídica (i) de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; ou (ii) de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos na hipótese anterior.

        Na primeira hipótese, que corporifica a teoria da renda-produto, considera- se renda o fruto periódico de uma fonte permanente, ao passo que a segunda


        image

        50 OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint. Paris: OECD Pu- blishing, 2020, p. 28.

        hipótese decorre da teoria da renda-acréscimo, identificada por meio da compa- ração da situação patrimonial do contribuinte em dois momentos distintos51. Se- gundo lição de Luís Eduardo Schoueri, o art. 43 do CTN, ao adotar ambas as teorias econômicas da renda, permitiu a tributação de qualquer acréscimo patri- monial, assim como de rendimentos em que não seja possível demonstrar o efeti- vo acréscimo52.

        Como a renda-produto não exige uma comparação de patrimônio em dois momentos, permite-se a tributação de forma isolada e instantânea, sem conside- rar o rendimento em conjunto com os demais acréscimos e decréscimos experi- mentados pelo contribuinte53. Exemplo clássico de tributação instantânea é justa- mente o rendimento do não residente mediante retenção na fonte, em que a ad- ministração tributária teria mais dificuldade de obter informações precisas e completas sobre o comportamento patrimonial do beneficiário do rendimento, além de elevadas despesas de compliance para o não residente que tivesse que re- portar suas informações ao Fisco brasileiro.

        Esse tratamento diferenciado conferido ao não residente não entra em con- flito com o princípio da isonomia tributária, pois, como esclarece Luís Eduardo Schoueri, contribuintes que atuam em mercados distintos estão submetidos a ris- cos completamente díspares, não se podendo afirmar que estejam em situação equivalente54.

        O conceito de não residente é obtido, em princípio, por exclusão, isto é, de- pois de analisadas as condições da legislação doméstica para que uma pessoa físi- ca ou jurídica seja considerada residente, todos aqueles que não preencherem essas condições serão considerados não residentes55. O art. 97 do Decreto-lei n. 5.844/1943, assim como o Regulamento do Imposto sobre a Renda – RIR, apenas indicam que estão sujeitos à retenção na fonte as pessoas físicas ou jurídicas resi- dentes ou domiciliadas no exterior, sem mencionar, contudo, o que indica a resi- dência ou o domicílio no Brasil.


        image

        51 SCHOUERI, Luís Eduardo. O mito do lucro real na passagem da disponibilidade jurídica para a disponibilidade econômica. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (org.). Controvérsias jurídico-contábeis: aproximações e distanciamentos. São Paulo: Dialética, 2010, p. 243.

        52 SCHOUERI, Luís Eduardo. O mito do lucro real na passagem da disponibilidade jurídica para a disponibilidade econômica. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (org.). Controvérsias jurídico-contábeis: aproximações e distanciamentos. São Paulo: Dialética, 2010, p. 246.

        53 SANTOS, Ramon Tomazela. A realização da renda no direito tributário brasileiro – reflexões à luz do direito comparado. In: ZILVETI, Fernando Aurelio; FAJERSZTAJN, Bruno; SILVEIRA, Rodrigo Maito da (coord.). Direito tributário – princípio da realização no Imposto sobre a Renda

        – estudo em homenagem a Ricardo Mariz de Oliveira. São Paulo: IBDT, 2019, p. 7.

        54 SCHOUERI, Luís Eduardo. Imposto de Renda e o comércio eletrônico. Revista Direito Tributário Atual vol. 16. São Paulo: Dialética, 2001, p. 152.

        55 UTUMI, Ana Claudia. O não-residente na legislação do Imposto de Renda. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito tributário internacional aplicado. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2004. vol. 5, p. 138.

        Os critérios para identificação do domicílio das pessoas naturais e jurídicas encontram-se nos arts. 70 e 75, IV, do Código Civil. Para as pessoas naturais, será o lugar onde estabelecerem sua residência com ânimo definitivo; para as pessoas jurídicas, será o local eleito em seus estatutos ou atos constitutivos e, na ausência de especificação, o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e adminis- trações. Logo, domicílio e residência, no Direito Civil, não se confundem. Já no âmbito da legislação tributária, os conceitos de “residência” e “domicílio” são em- pregados como sinônimos para indicar a pessoa física ou jurídica que se sujeita à tributação no país em razão de sua permanência56. Inicialmente, haveria corres- pondência entre o conceito de residência ou domicílio fiscal e o conceito civilista comentado, pois o art. 127 do CTN permite que o contribuinte eleja seu local de domicílio. Porém, o inciso II dispõe que, não havendo eleição, o local em que se considera domiciliado o contribuinte será o de sua residência habitual, para pes- soas físicas. Para as pessoas jurídicas, será o local de sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que deram origem à obrigação tributária, o local do estabelecimen- to. O § 1º do mesmo artigo prevê, ainda, a possibilidade de se considerar como domicílio fiscal o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação, quando não for aplicável qualquer dos conceitos de residência habitual, sede ou estabelecimento.

        Percebe-se, então, que os critérios da legislação tributária nem sempre serão

        coincidentes com aqueles da legislação privatista. Havendo divergência, deve pre- valecer o domicílio fiscal para fins de identificação do residente ou não residente, pois é a residência fiscal que legitima um Estado a tributar uma pessoa em bases universais57. Já aqueles que não satisfizerem as condições para configuração de domicílio no Brasil serão enquadrados no conceito de não residentes, sujeitando- se ao regime de retenção do imposto sobre a renda na fonte, conforme os arts. 741 e 748 do RIR/2018:

        “Art. 741. Ficam sujeitos à incidência do imposto sobre a renda na fonte, ob- servado o disposto neste Capítulo, a renda e os proventos de qualquer natureza provenientes de fontes situadas no País, quando percebidos:

        I – pelas pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior; [...]

        Art. 744. Os rendimentos, os ganhos de capital e os demais proventos pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, por fonte situada no País, a pessoa física ou jurídica residente no exterior, ficam sujeitos à incidência na fonte, à alíquota de quinze por cento, quando não tiverem tributação específica pre- vista neste Capítulo, inclusive nas seguintes hipóteses.”


        image

        56 UTUMI, Ana Claudia. O não-residente na legislação do Imposto de Renda. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito tributário internacional aplicado. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2004. vol. 5, p. 133.

        57 UTUMI, Ana Claudia. O não-residente na legislação do Imposto de Renda. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito tributário internacional aplicado. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2004. vol. 5, p. 134.

        O art. 741 se refere expressamente a “renda e os proventos de qualquer na- tureza provenientes de fontes situadas no País”, ao passo que o art. 744, ao definir o momento da retenção do imposto, menciona os rendimentos, ganhos de capital e demais proventos “pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, por fonte situada no País, a pessoa física ou jurídica residente no exterior”. Conforme entende a doutrina58, o primeiro dispositivo exige que a fonte de produção esteja localizada no território brasileiro, enquanto o segundo se traduz em requisito de que a fonte de pagamento esteja localizada no Brasil.

        Fonte de produção e fonte de pagamento são conceitos que não se confun- dem e merecem a devida distinção. A chamada fonte de produção, econômica ou objetiva indica o lugar em que é exercida a atividade geradora da renda, o lugar onde estão os fatores de produção empregados no desenvolvimento da atividade, ou mesmo os bens ou direitos de que provém a renda59. Diversos critérios podem ser utilizados pela lei interna para identificar a fonte de uma categoria reditual60. Tomando-se como exemplo os rendimentos da prestação de serviços, a fonte po- deria ser o local onde eles são prestados, onde os serviços produzem seus efeitos, onde o contrato é assinado, onde o contrato é executado, ou, ainda, onde vigem as leis que regem o contrato61.

        De outro lado, a chamada fonte de pagamento, financeira ou subjetiva de- signa a origem dos recursos pagos ao beneficiário estrangeiro62. A escolha da fonte de pagamento como critério legítimo para exercício do poder de tributar decorre da circunstância de que ao recebimento de um rendimento pelo benefi- ciário no exterior corresponde a redução do patrimônio de um titular em outro Estado. Como este último Estado sofrerá uma redução nos bens e direitos sobre os quais exerce sua soberania, justifica-se a conexão do rendimento com sua juris- dição. Impende ressaltar, porém, que o conceito de fonte de pagamento não deve ser entendido como aquele que simplesmente efetuou o mero fluxo financeiro, mas, sim, como o titular do patrimônio ao qual são imputáveis os respectivos pa- gamentos63.



        image

        58 XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 269.

        59 ROTHMANN, Gerd Willi. Tributação internacional sem sujeito passivo: uma nova modalidade do Imposto de Renda sobre ganhos de capital? In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2006. vol. 10, p. 112.

        60 CAVALCANTI, Flávia. Contribuição ao estudo do estabelecimento permanente. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013, p. 115.

        61 CAVALCANTI, Flávia. Contribuição ao estudo do estabelecimento permanente. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013, p. 115.

        62 ROTHMANN, Gerd Willi. Tributação internacional sem sujeito passivo: uma nova modalidade do Imposto de Renda sobre ganhos de capital? In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2006. vol. 10, p. 112.

        63 SANTOS, Ramon Tomazela. As pensões nos acordos internacionais para evitar a dupla tributa- ção da renda celebrados pelo Brasil – análise do artigo 18 da Convenção Modelo da OCDE. Re- vista Dialética de Direito Tributário n. 232. São Paulo: Dialética, 2015, p. 133.

        Muito se discute na doutrina se qualquer dos tipos de fonte seria suficiente para provocar a incidência do imposto sobre a renda retido na fonte. Heleno Tôr- res defende que o único critério relevante para estabelecer a efetiva conexão entre a renda e o território da pessoa tributante é a localização da fonte de produção64. Segundo o autor, não se pode confundir a regra de incidência do imposto sobre a renda, que toma o não residente como contribuinte, com a regra atributiva de responsabilidade tributária à fonte de pagamento, a qual depende do aperfeiçoa- mento da hipótese da primeira65. No mesmo sentido, Gerd Willi Rothmann ado- tou a interpretação de que a legislação brasileira exigiria, como regra, que estives- sem em território brasileiro, cumulativamente, a fonte de produção e a fonte de pagamento. Ou seja, além de o bem, atividade ou negócio estar localizado nos limites das fronteiras nacionais, é preciso que a fonte de pagamento também seja brasileira66.

        Vale ressaltar, contudo, que essa interpretação não é unânime. Luciana Ro- sanova Galhardo, por exemplo, tomando como base os arts. 743 e 745 do RIR/1994 (correspondentes aos arts. 741 e 748 do RIR/2018), entende que a fonte pagadora brasileira já era elemento de conexão suficiente, sendo irrelevante para as autori- dades fiscais o local da produção dos rendimentos ou da prestação dos serviços67. Alberto Xavier, mesmo concluindo que o mais importante é a fonte de pagamen- to estar localizada no Brasil, pois do contrário não seria possível o enforcement das regras tributárias, admite a existência de casos em que a lei torna desnecessário perquirir sobre a localização da fonte de produção, bastando que o responsável pelo fluxo financeiro seja residente no Brasil68.

        De fato, existem situações em que a lei se contenta com a localização da fon- te de pagamento em território brasileiro. É o caso da prestação de serviços por residentes no exterior, para os quais a Lei n. 9.779/1999 possui regra específica. Segundo o art. 7º deste ato normativo, os rendimentos da prestação de serviços pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domici- liados no exterior sujeitam-se à incidência do IRPJ retido na fonte à alíquota de 25%.


        image

        64 TÔRRES, Heleno Taveira. Princípio da territorialidade e tributação de não-residentes no Brasil. Prestações de serviços no exterior. Fonte de produção e fonte de pagamento. In: TÔRRES, Hele- no Taveira (coord.). Direito tributário internacional aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 94.

        65 Princípio da territorialidade e tributação de não-residentes no Brasil. Prestações de serviços no exterior. Fonte de produção e fonte de pagamento. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito tributário internacional aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 94.

        66 ROTHMANN, Gerd Willi. Tributação internacional sem sujeito passivo: uma nova modalidade do Imposto de Renda sobre ganhos de capital? In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2006. vol. 10, p. 113.

        67 GALHARDO, Luciana Rosanova. Serviços técnicos prestados por empresa francesa e Imposto de Renda na Fonte. Revista Dialética de Direito Tributário n. 31. São Paulo: Dialética, 1998, p. 39.

        68 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil, 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 518.

        Não é preciso, no âmbito deste estudo, tomar posição a respeito do elemento de conexão suficiente para provocar a tributação, se exclusivamente a fonte de pagamento ou se esta deve ser cumulativa com a fonte de produção. O que se busca é verificar se a fonte de pagamento é critério adequado para tributar a ren- da produzida pelos serviços digitais. Assim, partindo-se da premissa de que a fonte de pagamento é suficiente, importa saber o que significam crédito, entrega, pagamento, emprego ou remessa, já que são elementos nucleares do critério tem- poral do imposto sobre a renda.

        Para tanto, deve-se partir do art. 43 do CTN, já aludido acima, o qual exige, para considerar-se ocorrido o fato gerador do imposto, que a renda esteja dispo- nível para o beneficiário. Essa condição imposta pela lei complementar se estende a toda e qualquer hipótese de incidência desse tributo, abrangendo, portanto, o imposto cobrado na fonte69. Outrossim, Gilberto de Ulhôa Canto salienta que as formas verbais utilizadas pelo legislador deixam claro que só se torna obrigatória a retenção do imposto diante de um facere da fonte de pagamento, que age por uma das maneiras escolhidas para exteriorização do fato gerador70 e que configu- ram também disponibilidade para o beneficiário. E como as formas verbais são todas ativas, e o vencimento do prazo independe de qualquer atuação da fonte, o fato de a obrigação ser exigível ainda não obriga à retenção71. É preciso, em suma, atuação da fonte mais exigibilidade da obrigação.

        Com base nessas premissas, e iniciando-se pelo conceito de “pagamento”, este é definido pelo art. 304 do Código Civil como o ato jurídico de extinção da obrigação. Não por outro motivo, o pagamento é elencado pelo art. 156 do CTN como hipótese de extinção do crédito tributário. E como a configuração do paga- mento depende da exigibilidade da obrigação, não bastam para considerar ocor- rido o fato gerador a simples antecipação da liquidação de dívida futura ou de dívida ainda não vencida, casos em que o beneficiário não teria ainda adquirido o direito ao pagamento72.

        Já em relação ao conceito de “crédito”, após período de divergência entre contribuintes e Fisco, em que este considerava ocorrido o fato gerador com o sim- ples lançamento contábil nominal ao beneficiário73, o entendimento prevalente


        image

        69 OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Os importantes conceitos de pagamento, crédito, remessa, entrega e emprego da renda (a propósito do Imposto de Renda na Fonte e de lucros de controladas e coli- gadas no exterior). Revista Fórum de Direito Tributário vol. 22, cópia digital. Belo Horizonte: Fó- rum, 2006, p. 4.

        70 CANTO, Gilberto de Ulhôa. Estudos e pareceres de direito tributário. São Paulo: RT, 1975, p. 376.

        71 CANTO, Gilberto de Ulhôa. Estudos e pareceres de direito tributário. São Paulo: RT, 1975, p. 377.

        72 OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Os importantes conceitos de pagamento, crédito, remessa, entrega e emprego da renda (a propósito do Imposto de Renda na Fonte e de lucros de controladas e coli- gadas no exterior). Revista Fórum de Direito Tributário vol. 22, cópia digital. Belo Horizonte: Fó- rum, 2006, p. 11.

        73 Cf.: Solução de Divergência COSIT n. 26/2013; Ato Declaratório Interpretativo RFB n. 8/2014; Solução de Consulta COSIT n. 153/2017.

        firmou-se no sentido de ser necessário não apenas o reconhecimento em rubrica de contas a pagar, mas também que os valores já sejam exigíveis pela parte credo- ra74.

        Quanto à remessa, à entrega e ao emprego, Ricardo Mariz de Oliveira escla- rece que eles correspondem, no fundo, a maneiras ou espécies de efetivação do pagamento, tanto que foram omitidos em leis tributárias mais recentes, as quais se referem apenas ao pagamento e ao crédito75. Não obstante, é possível diferen- ciá-los conceitualmente da seguinte maneira: a remessa é termo reservado nor- malmente para transferência de moeda para o exterior, por isso consiste no envio de dinheiro para o beneficiário localizado em outro país; entrega é o ato físico de passar o dinheiro em mãos ao beneficiário ou ao seu representante; e o emprego significa o uso do dinheiro em nome e por conta do beneficiário, em finalidade de interesse deste76. Todas essas definições são perfeitamente condizentes com a exigência contida na legislação complementar de que a renda esteja disponível, jurídica ou economicamente.


      2. Regime de tributação do ganho de capital do não residente

    Em tempos passados, a legislação do imposto sobre a renda determinava a submissão dos ganhos de capital do não residente ao regime de retenção na fonte tal qual os outros rendimentos por ele auferidos de fonte brasileira (e.v. dos arts. 97 do Decreto-lei n. 5.844/1943, 30 da Lei n. 2.354/1954 e 77 da Lei n. 3.470/1958). A entrada em vigor da Lei n. 9.249/1995 modificou o tratamento desses ren- dimentos e os ganhos de capital auferidos pelo residente ou domiciliado no exte- rior passaram a obedecer às mesmas regras de apuração e tributação aplicáveis aos residentes no País (art. 18). Àquela época, o imposto era calculado pela apli- cação de alíquota fixa de 15% sobre a base de cálculo, devendo ser recolhido pelo alienante até o último dia do mês subsequente àquele em que os rendimentos fossem percebidos. Quer isso dizer que, mesmo que o alienante fosse estrangeiro, a fonte pagadora no Brasil não era mais responsável pela retenção e recolhimento

    do tributo.

    Consoante lições de Gerd Rothmann, a justificativa para essa mudança nor- mativa foi o reconhecimento de que a tributação do ganho de capital depende de um procedimento prévio de apuração, com a fixação do custo de aquisição do


    image

    74 Cf. REsp n. 1.864.227/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 18.08.2020.

    75 OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Os importantes conceitos de pagamento, crédito, remessa, entrega e emprego da renda (a propósito do Imposto de Renda na Fonte e de lucros de controladas e coli- gadas no exterior). Revista Fórum de Direito Tributário vol. 22, cópia digital. Belo Horizonte: Fó- rum, 2006, p. 13.

    76 OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Os importantes conceitos de pagamento, crédito, remessa, entrega e emprego da renda (a propósito do Imposto de Renda na Fonte e de lucros de controladas e coli- gadas no exterior). Revista Fórum de Direito Tributário vol. 22, cópia digital. Belo Horizonte: Fó- rum, 2006, p. 13.

    bem ou direito e do seu valor de alienação77. Em contrapartida, quando o benefi- ciário do rendimento residia no exterior, tornava-se problemática a fiscalização e arrecadação do imposto pela administração tributária, a qual, em razão do prin- cípio da territorialidade em sentido formal, não poderia atuar no território de outro Estado. O Brasil já experimentava, então, alguns dos desafios que mais tarde seriam potencializados na era da economia digital.

    Em razão das dificuldades decorrentes da equiparação do ganho de capital do não residente, durante o processo de conversão da Medida Provisória n. 135, de 30 de outubro de 2003, a qual disciplinava o regime não cumulativo da Con- tribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS, foi inserido o art. 26 no que passou a ser a Lei n. 10.833/2003, com a seguinte redação:

    “Art. 26. O adquirente, pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil, ou o procurador, quando o adquirente for residente ou domiciliado no exterior, fica responsável pela retenção e recolhimento do imposto de renda incidente sobre o ganho de capital a que se refere o art. 18 da Lei n. 9.249, de 26 de dezembro de 1995, auferido por pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior que alienar bens localizados no Brasil.”

    Desse enunciado podem ser extraídas duas situações distintas, uma em que apenas o alienante é residente no exterior e outra em que tanto alienante quanto o adquirente residem fora do território nacional. Em ambas o bem ou direito alienado está localizado no Brasil. Na primeira hipótese, a solução era simples: como o adquirente reside no Brasil, este foi reinserido como responsável pela re- tenção e recolhimento, o que não representa maiores problemas pois tanto a fon- te de produção quanto a fonte de pagamento estariam em território nacional. Contudo, na segunda hipótese, como não haveria fonte de pagamento brasileira e de bens outros que pudessem ser apreendidos pelo Fisco para responder pelo crédito, a solução do legislador foi a atribuição de responsabilidade tributária ao procurador.

    Esse dispositivo foi alvo de diversas críticas doutrinárias, dentre as quais merece destaque, porque será retomada mais à frente, a possível violação ao art. 128 do CTN. O dispositivo é relevante ao exigir vinculação do terceiro com o fato gerador da obrigação tributária, impondo limites à liberdade do legislador de compor o critério pessoal da regra de incidência do tributo. Porém não é qual- quer relação que justifica a escolha.

    Segundo Geraldo Ataliba, deve existir um vínculo fático de significação eco- nômica suficiente com o contribuinte ou com o fato nuclear da hipótese de inci- dência, de modo a permitir ao responsável ressarcir-se do valor pago junto ao



    image

    77 ROTHMANN, Gerd Willi. Tributação internacional sem sujeito passivo: uma nova modalidade do Imposto de Renda sobre ganhos de capital? In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2006. vol. 10, p. 120.

    contribuinte78. Assim, seja porque o responsável é detentor de dinheiros do con- tribuinte e entrega parte destes ao Fisco, seja porque conta com meios expeditos, ágeis e céleres para reaver a quantia que antecipou, o importante é que o terceiro não assuma o ônus do tributo, tendo seu patrimônio reduzido79. Por esse motivo, Gerd Rothmann entendeu que o procurador não poderia ser inserido como res- ponsável porque não possui qualquer relação com o fato jurídico, já que não par- ticipa da alienação do bem ou ativo80.

    Por outro lado, a atribuição de responsabilidade ao procurador poderia ser justificada pela exigência da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil de que a entidade domiciliada no exterior possua inscrição no CNPJ quando for ti- tular, no País, de direitos sobre imóveis, veículos, embarcações, aeronaves, contas- correntes bancárias, aplicações no mercado financeiro ou de capitais ou partici- pações societárias constituídas fora do mercado de capitais (art. 4º, XV, a, da IN RFB n. 1.863/2018). É que, para a entidade domiciliada no exterior, o represen- tante indicado na sua inscrição deverá ser seu procurador ou representante legal- mente constituído no Brasil, com poderes para administrar os bens e direitos da entidade no País e representá-la perante a Receita Federal (art. 7º, § 1º). Logo, como o estrangeiro titular desses bens e direitos já deveria ter um procurador ou representante legal constituído, a nova regra, em tese, não geraria maiores entra- ves aos investimentos externos.

    Foge ao objetivo deste estudo uma análise mais aprofundada das diversas críticas endereçadas à atribuição de responsabilidade ao procurador, ou sobre sua constitucionalidade. Basta ter-se em mente que a ausência de uma fonte de paga- mento apresentou sérias dificuldades para a eficácia das normas tributárias, exi- gindo soluções criativas e bastante criticáveis por parte do legislador. O surgi- mento dos novos modelos de negócios viabilizados pela digitalização da econo- mia, então, representa nível muito maior de desafios, colocando à prova as regras brasileiras comentadas. É o que se passa a analisar no tópico seguinte.


  4. As limitações da retenção do Imposto sobre a Renda na Fonte na tributação dos serviços digitais

Tributos retidos na fonte vêm sendo indicados como uma ferramenta corre- tiva para as dificuldades arrecadatórias enfrentadas por países no mundo todo, pois contornariam as limitações decorrentes da necessidade de presença física


image

78 ATALIBA, Geraldo. Sujeição direta e indireta – responsabilidade tributária – destinatário legal tributário – aspecto pessoal da hipótese de incidência. Revista de Direito Público vol. 29. São Paulo: RT, 1974, p. 249.

79 ATALIBA, Geraldo. Sujeição direta e indireta – responsabilidade tributária – destinatário legal tributário – aspecto pessoal da hipótese de incidência. Revista de Direito Público vol. 29. São Paulo: RT, 1974, p. 250.

80 ROTHMANN, Gerd Willi. Tributação internacional sem sujeito passivo: uma nova modalidade do Imposto de Renda sobre ganhos de capital? In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2006. vol. 10, p. 134.

significativa atualmente prevista nos tratados internacionais para evitar a bitribu- tação da renda81.

De fato, algumas operações relacionadas à economia digital ainda podem ser alcançadas pelo regime, a saber: pagamentos pelo uso de redes sociais, plata- formas de pesquisa, cursos de ensino on-line, jogos on-line, cloud computing e quaisquer outros serviços em que o usuário seja o consumidor final do serviço digital; compras dentro de aplicativos; pagamentos por publicidade on-line quan- do o anunciante for residente no Brasil; pagamentos pela aquisição de dados de usuários, quando o adquirente for residente no Brasil; aquisição de bens ou servi- ços em marketplaces por residente no Brasil; além de tantos outros. O que todas elas possuem em comum é o fato de que quem consome o serviço possui residên- cia em território brasileiro. Porém, não é esse sempre o caso e parte considerável da renda produzida pelas empresas digitais com base nos dados de usuários bra- sileiros pode permanecer fora do alcance do IRRF.

Em primeiro lugar, porque se um dos maiores efeitos da economia digital é o acesso a qualquer mercado consumidor sem a necessidade de presença física, regras de retenção da fonte podem ser facilmente circundadas. Esse grupo de normas não se mostra adequado diante do caráter bifacetado ou multilateral dos serviços digitais, pelo qual os diferentes grupos de usuários contratam serviços diferentes e sequer precisam estar na mesma jurisdição. Assim, quem consome os serviços de maior remuneração (ou os únicos remunerados) não é necessariamen- te o mesmo consumidor residente no Brasil de um serviço não remunerado.

Na contratação de serviços de publicidade on-line prestados pelo Facebook, por exemplo, não se pode afirmar que o patrimônio dos usuários da rede social foi diminuído para que os rendimentos dos serviços fossem pagos. Sobretudo porque esses usuários acessam a plataforma gratuitamente. Cabe, neste ponto, lembrar o quanto mencionado acima de que a empresa pode oferecer o acesso à rede social sem qualquer tarifa de assinatura, compensando-se com a cobrança dos anunciantes pela disponibilização de espaço publicitário. A utilização da rede social em si, se fosse remunerada, seria alcançada pelo IRRF; como normalmente não há tal cobrança, a renda gerada com base nas informações pessoais coletadas dos usuários brasileiros só será alcançada pelo imposto sobre a renda se o contra- tante for residente no Brasil.

Igualmente, na publicidade disponibilizada em ferramentas de pesquisa, como Google, o consumidor do serviço de busca não se confunde com o consumi- dor do serviço publicitário. Um usuário do segundo paga ao operador da plata- forma para aparecer na lista de resultados de pesquisa sempre que um usuário do primeiro grupo insere determinadas palavras-chave82. A transação, então, é tipi-


image

81 BRAUNER, Yariv; BAEZ, Andrés. Withholding taxes in the service of BEPS Action 1: address the tax challenges of the digital economy. WU International Taxation Research Paper Series vol. 2015 –

14. Wien: Wirtschaftsuniversität Wien University of Economics and Business, 2015, p. 6.

82 Jochimsen-von Gfug, Claus; BALL, Andreas; BERBERICH, Jens; ARJES, André. Does Bavaria introduce withholding tax for digital advertising services? KPMG, 2019. Disponível em: https://home.

camente processada por um programa de computador que dispensa participação humana83.

Em ambas as situações, não há dúvidas de que a empresa digital experimen- ta um acréscimo de riqueza, mas essa riqueza envolve partes de uma relação jurí- dica que se processa totalmente fora do território nacional.

Em segundo lugar, porque a remuneração desses serviços não se subsome aos conceitos de pagamento, crédito, remessa, entrega ou emprego. Com efeito, tomando-se novamente o exemplo da rede social, não há pagamento por parte do seu usuário, o qual sequer compõe a relação jurídica decorrente do contrato de publicidade on-line e, portanto, não pratica ato que provoque a extinção de uma obrigação. Da mesma forma, o usuário não credita valor algum em benefício do residente no exterior, remete moeda ao exterior, entrega dinheiro em mãos para o beneficiário ou seu representante, nem utiliza em finalidade de interesse do beneficiário, em nome e por conta deste. Portanto, sequer incidiria o art. 748 do RIR/2018. Quem se enquadra em algum desses conceitos é o consumidor do ou- tro serviço, como de publicidade, mas que não poderá ser identificado como uma fonte de pagamento brasileira.

A situação é análoga àquela vislumbrada pelo legislador quanto ao ganho de capital decorrente de operações em que alienante e adquirente são residentes no exterior. Sabe-se que existe um acréscimo de riqueza (realizado, inclusive), mas a dificuldade reside em como alcançá-la, já que o fluxo de patrimônio de uma pes- soa para outra se opera fora do território nacional. Só que solução encontrada para a tributação do ganho de capital já enfrentava impedimentos jurídicos e práticos, quando o ativo alienado se encontrava no Brasil. Portanto, muito mais problemática seria a atribuição de responsabilidade a terceiro para viabilizar a tributação da renda do não residente, já que os dados são coletados e transmitidos pela internet, sequer podendo-se afirmar com certeza que eles “se encontram” dentro da jurisdição brasileira.

Ademais, diferentemente daquela situação, em que muitas vezes o não resi- dente já deveria ter um procurador constituído, o tomador do serviço digital não teria necessariamente que atuar no País, ainda que de forma isolada, para justifi- car a existência de um procurador. Sua efetiva atuação na economia brasileira será ditada por fatores de mercado.

Por fim, mesmo que se considerasse existente uma fonte de pagamento no território brasileiro, o avanço tecnológico permite que a regra seja circundada pela utilização de moedas digitais. O sucesso de um tributo retido na fonte depen-


image

kpmg/de/en/home/insights/2019/03/withholding-tax-for-digital-advertising-services.html. Acesso em: 20 jan. 2021.

83 Jochimsen-von Gfug, Claus; BALL, Andreas; BERBERICH, Jens; ARJES, André. Does Bavaria introduce withholding tax for digital advertising services? KPMG, 2019. Disponível em: https://home. kpmg/de/en/home/insights/2019/03/withholding-tax-for-digital-advertising-services.html. Acesso em: 20 jan. 2021.

de de dois fatores: da capacidade de enforcement das autoridades públicas, isto é, da sua capacidade de sancionar e aplicar coercitivamente a legislação, poder esse cujo exercício não pode ocorrer no território de outro Estado, sob pena de viola- ção à sua soberania84; e da atribuição do dever de recolhimento do tributo a ter- ceiros, como instituições financeiras85. Ocorre que a tecnologia da informação e da comunicação permitiu o surgimento das criptomoedas, as quais, se usadas para pagamento das operações on-line, não permitiria a retenção e recolhimento pelo terceiro responsável86.

Conforme o Comunicado n. 31.379/2017 do Banco Central, que contém aler- tas sobre os riscos decorrentes de operações de guarda e negociação das moedas virtuais, as criptomoedas não são emitidas nem garantidas por qualquer autori- dade monetária e seu valor decorre exclusivamente da confiança conferida pelos indivíduos ao seu emissor. Elas não se confundem com as moedas eletrônicas, definidas pelo art. 6º, VI, da Lei n. 12.865/2013 como recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento.

Entre as características das criptomoedas podem ser citadas as seguintes87:

(i) são emitidas em meio digital e sua existência está pouco ou nada comprometi- da por vontade de uma autoridade ou agente público ou privado; (ii) estão dispo- níveis a partir de qualquer local com acesso à internet; utilizam criptografia para garantir a segurança da transação entre remetente e destinatário; (iii) indepen- dem da autorização de qualquer autoridade ou instituição; (iv) preservam o sigilo sobre a identidade dos usuários.

Em tese, o momento da transformação da moeda de curso forçado para a criptomoeda seria uma transação identificável pelas autoridades fazendárias. Tanto que a Secretaria da Receita Federal do Brasil considera que essa operação consiste na aquisição de um novo bem, o qual deve ser declarado na ficha “outros bens e direitos”, pois se equipara a um ativo financeiro, e registrado pelo valor de aquisição88.


image

84 SCHOUERI, Luís Eduardo; BARBOSA, Mateus Calicchio. Da antítese do sigilo à simplicidade do sistema tributário: os desafios da transparência fiscal internacional. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de; CHRISTOPOULOS, Basile Georges; ZUGMAN, Daniel Leib; BASTOS, Frederico Silva (coord.). Transparência fiscal internacional: homenagem ao Professor Isaias Coelho. São Paulo: Fiscosoft, 2013, p. 502.

85 SANTOS, Ramon Tomazela; ROCHA, Sergio André. Tax sovereignty and digital economy in post-BEPS times. In: ROCHA, Sergio André; CHRISTIANS, Allison (Ed.). Tax sovereignty in the BEPS era. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2017, p. 41.

86 SANTOS, Ramon Tomazela; ROCHA, Sergio André. Tax sovereignty and digital economy in post-BEPS times. In: ROCHA, Sergio André; CHRISTIANS, Allison (Ed.). Tax sovereignty in the BEPS era. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2017, p. 41.

87 KADAMANI, Rosine. Criptomoedas são moedas? In: PISCITELLI, Tathiane (coord.). Tributação da economia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 206-207.

88 BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil. Imposto sobre a Renda – pessoa física – perguntas e respostas. Exercício 2020. Ano-calendário 2019, Pergunta 445, p. 186.

Contudo, uma vez realizada a conversão da moeda de curso forçado em criptomoeda, o titular poderia utilizar esse ativo digital em inúmeras transações através da internet sem precisar convertê-lo novamente em moeda emitida por uma autoridade monetária89. Além de não haver qualquer intervenção das auto- ridades tributárias nas operações com criptomoedas, o pagador e o beneficiário podem permanecer anônimos na relação90, impedindo a identificação dos possí- veis contribuintes do imposto sobre a renda e das fontes de pagamento.

Deve-se reconhecer que, em momento futuro, quando ocorrer a conversão da criptomoeda de volta para moeda de curso forçado, poderá haver ganho de capital a ser apurado91, cuja tributação seria, então, submetida à retenção na fon- te da mesma forma que os ganhos realizados com a venda de quaisquer outros bens ou direitos. Ocorre que essa seria riqueza diversa daquela tratada acima, decorrente dos serviços digitais, e já reduzida em função do pagamento por esses serviços.

Além disso, mesmo quando os serviços digitais forem prestados a consumi- dor brasileiro, que reuniria também a condição de fonte pagadora, ainda assim haveria sérias dificuldades para que a administração tributária identificasse o sujeito passivo e pudesse cobrar o tributo. Esse problema não deve ser subestima- do, pois o mercado de criptomoedas apresentou crescimento significativo nos últimos anos, chegando a movimentar R$ 8,3 bilhões somente no ano de 201792. Por tudo isso, o regime de retenção na fonte poderia ser associado a outras medidas discutidas em âmbito internacional para lidar com os desafios da econo- mia digital, como um tributo sobre o consumo de serviços digitais (os digital ser- vices tax), o bit tax, cuja base de cálculo é a quantidade de bytes usados por um site, ou a alocação formular de lucros por meio de tributação a nível de grupo, não mais por entidade. É possível que economia digital tenha provocado desafios tão formidáveis aos sistemas tributários nacionais e às regras de tributação interna- cional que nenhum país possa enfrentá-los sozinho e sem uma visão global das empresas digitais. A avaliação dos aspectos positivos e negativos dessas propostas

é, porém, um ponto para outros estudos.


5. Conclusão

O Brasil possui um longo histórico de tributação de não residentes mediante a retenção do imposto sobre a renda na fonte. Esse mecanismo, durante quase um


image

89 SANTOS, Ramon Tomazela; ROCHA, Sérgio André. Tax Sovereignty and Digital Economy in Post-BEPS Times. In: ROCHA, Sérgio André; CHRISTIANS, Allison (Ed.). Tax Sovereignty in the BEPS Era. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2017, p. 41.

90 FALCÃO, Tatiana. Tributação das criptomoedas: uma perspectiva comparada. In: PISCITELLI, Tathiane (coord.). Tributação da economia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 222.

91 PISCITELLI, Tathiane. Criptomoedas e os possíveis encaminhamentos tributários à luz da legis- lação nacional. Revista Direito Tributário Atual vol. 40. São Paulo: IBDT, 2018, p. 548.

92 PISCITELLI, Tathiane. Criptomoedas e os possíveis encaminhamentos tributários à luz da legis- lação nacional. Revista Direito Tributário Atual vol. 40. São Paulo: IBDT, 2018, p. 537-538.

século, mostrou-se bastante eficiente na geração de receitas públicas, até porque a alíquota aplicável para a prestação de serviços é de 25% sobre o rendimento bruto. Talvez por isso o Brasil tenha desfrutado de posição relativamente confor- tável desde o início dos debates internacionais sobre os desafios da economia di- gital, quando o foco ainda era apenas o comércio eletrônico.

Ocorre que os novos modelos de negócios surgidos alteraram a maneira como grandes empresas digitais geram valor e auferem renda. O reconhecimento dos dados de usuários como poderoso ativo intangível foi um passo importante, sem o qual não seria possível discutir em bases sólidas a alocação do poder tribu- tário entre os Estados. Por outro lado, acabaram demonstrando que parcela con- siderável da renda dessas empresas não é alcançada pelas regras tradicionais bra- sileiras, uma vez que não apenas a fonte de pagamento não pode ser localizada no território nacional, como não se faz presente nenhum dos elementos verbais uti- lizados pelo legislador para gerar a obrigatoriedade de retenção.

Isso significa que a retenção na fonte não é mais suficiente para garantir que a renda produzida em razão da exploração do mercado consumidor brasileiro será aqui tributada. Mostra-se indispensável um debate mais amplo sobre a con- veniência e viabilidade jurídica de associação do regime atual a outras medidas que vêm sendo implementadas por outros países.


Referências bibliográficas

AGUIAR, Luciana Ibiapina Lira. In: FARIA, Renato Vilela; SILVEIRA, Ricardo Maitto da; MONTEIRO, Alexandre Luiz Moraes do Rêgo (coord.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas pers- pectivas. São Paulo: Saraiva, 2018.

ATALIBA, Geraldo. Sujeição direta e indireta – responsabilidade tributária – des- tinatário legal tributário – aspecto pessoal da hipótese de incidência. Revista de Direito Público vol. 29. São Paulo: RT, 1974.

AVI-YONAH, Reuven. International taxation of electronic commerce. Tax Law Review vol. 52, fascículo 3. New York: New York University School of Law.

BECKER, Johannes; ENGLISCH, Joachim. Taxing where value is created: what’s ‘user involvement’ got to do with it? Intertax vol. 47, n. 2. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2019.

BRADSHAW, Tim; KUCHLER, Hannah; STEEL, Emily. Twitter looks to mine user data to help sell advertising on other sites. Financial Times, 15 de out. de 2013. London: Financial Times Ltd., 2013.

BRAUNER, Yariv; BAEZ, Andrés. Withholding taxes in the service of BEPS Ac- tion 1: address the tax challenges of the digital economy. WU International Taxation Research Paper Series vol. 2015 – 14. Wien: Wirtschaftsuniversität Wien University of Economics and Business, 2015.

CANTO, Gilberto de Ulhôa. Estudos e pareceres de direito tributário. São Paulo: RT, 1975.

CAVALCANTI, Flávia. Contribuição ao estudo do estabelecimento permanente. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.

COLLIN, Pierre; COLLIN, Nicolas. Task force on taxation of the digital economy: report to the Minister for the Economy and Finance, the Minister for Indus- trial Recovery, the Minister Delegate for the Budget and the Minister Delega- te for Small and Medium-Sized Enterprises, Innovation and the Digital Eco- nomy, 2013.

CUI, Wei. The superiority of the digital services tax over significant digital pre- sence proposals. National Tax Journal vol. 72, n. 4. Washington: National Tax Association, 2019.

DALE, Stephen. La numérisation de l’économie – quelques réflexions sur les con- séquences pour les régimes de taxation et leur administration. ERA Forum. Trier: Europäische Rechtsakademie, 2018.

DIAS, Karem Jureidini; BARBOSA, Fernanda Possebon. Publicidade em aplica- tivos e jogos: tributação. In: PISCITELLI, Tathiane (coord.). Tributação da eco- nomia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

DORNELLES, Francisco Neves. O modelo da ONU para eliminar a dupla tribu- tação da renda, e os países em desenvolvimento. In: TAVOLARO, Agostinho Toffoli; MACHADO, Brandão; MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Prin- cípios tributários no direito tributário e comparado. Rio de Janeiro: Forense, 1988.

EU COMISSIO. Time to establish a modern, fair and efficient taxation standard for the digital economy. Brussels: European Comission, 2018.

FALCÃO, Tatiana. Tributação das criptomoedas: uma perspectiva comparada. In: PISCITELLI, Tathiane (coord.). Tributação da economia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

GALHARDO, Luciana Rosanova. Serviços técnicos prestados por empresa fran- cesa e Imposto de Renda na Fonte. Revista Dialética de Direito Tributário n. 31. São Paulo: Dialética, 1998.

GAOUA, Noah. Taxation of the digital economy: French reflections. European Taxation vol. 54, n. 1 (cópia digital). Amsterdam: IBFD, jan./2014.

HERZFELD, Mindy. The case against BEPS: lessons for tax coordination. Florida Tax Review vol. 21, n. 1. Gainesville: University of Florida Press, 2017.

HONGLER, Peter; PISTONE, Pasquale. Blueprints for a new PE nexus to tax business income in the era of the digital economy. WU International Taxation Research Paper Series vol. 2015 – 15. Wien: Wirtschaftsuniversität Wien Univer- sity of Economics and Business, 2015.

JOCHIMSEN-VON GFUG, Claus; BALL, Andreas; BERBERICH, Jens; ARJES,

André. Does Bavaria introduce withholding tax for digital advertising services? KPMG, 2019. Disponível em: https://home.kpmg/de/en/home/insights/2019/03/ withholding-tax-for-digital-advertising-services.html. Acesso em: 20 jan. 2021.

KADAMANI, Rosine. Criptomoedas são moedas? In: PISCITELLI, Tathiane (coord.). Tributação da economia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

MARR, Bernard. The amazing ways Tesla is using artificial intelligence and big data. Forbes, 08 de jan. de 2018. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/ bernardmarr/2018/01/08/the-amazing-ways-tesla-is-using-artificial-intelligen- ce-and-big-data/?sh=71e392604270. Acesso em: 04 fev. 2021.

MONTALCINI, Fabio; SACCHETTO, Camillo. Diritto tributario telematico. Tori- no: G. Giappichelli Editore, 2015.

NAKAMURA, Leonard; SAMUELS, Jon; SOLOVEICHIK, Rachel. Valuing “ free” media in GDP: an experimental approach. Philadelphia: Research Depart- ment, Federal Reserve Bank of Philadelphia, 2016.

OECD. Addressing the tax challenges of the digital economy. Action 1 – 2015 Final Report, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. Paris: OECD Publishing, 2015.

OECD. Tax challenges arising from digitalisation – report on pillar one blueprint: inclusive framework on BEPS, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. Paris: OECD Publishing, 2020.

OECD. Tax challenges arising from digitalisation – interim report 2018. Paris: OECD Publishing, 2018, p. 39.

OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Os importantes conceitos de pagamento, crédito, remessa, entrega e emprego da renda (a propósito do imposto de renda na fonte e de lucros de controladas e coligadas no exterior). Revista Fórum de Di- reito Tributário vol. 22, cópia digital. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a Renda – pessoas jurídicas. Rio de Janeiro: Justec, 1979. vol. 1.

PETERSON, Andrea. Bankrupt RadioShack wants to sell off user data. But the bigger risk is if a Facebook or Google goes bust. The Washington Post, 26 de mar. de 2015. Washington: The Washington Post, 2015.

PETRUZZI, Raffaele; BURIAK, Svitlana. Addressing the tax challenges of the digitalization of the economy – a possible answer in the proper application of the transfer pricing rules? Bulletin for International Taxation vol. 72, n. 4a./ Special Issue. Amsterdam: IBFD, 2018.

PISCITELLI, Tathiane. Criptomoedas e os possíveis encaminhamentos tributá- rios à luz da legislação nacional. Revista Direito Tributário Atual vol. 40. São Paulo: IBDT, 2018.

ROCHA, Sergio André. Tributação internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. ROTHMANN, Gerd Willi. Tributação internacional sem sujeito passivo: uma nova modalidade do Imposto de Renda sobre ganhos de capital? In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Pau-

lo: Dialética, 2006. vol. 10.

SANTOS, Ramon Tomazela. A realização da renda no direito tributário brasilei- ro – reflexões à luz do direito comparado. In: ZILVETI, Fernando Aurelio; FAJERSZTAJN, Bruno; SILVEIRA, Rodrigo Maito da (coord.). Direito tributá- rio – princípio da realização no Imposto sobre a Renda – estudo em homena- gem a Ricardo Mariz de Oliveira. São Paulo: IBDT, 2019.

SANTOS, Ramon Tomazela. As pensões nos acordos internacionais para evitar a dupla tributação da renda celebrados pelo Brasil – análise do artigo 18 da Convenção Modelo da OCDE. Revista Dialética de Direito Tributário n. 232. São Paulo: Dialética, 2015.

SANTOS, Ramon Tomazela; ROCHA, Sergio André. Tax sovereignty and digital economy in post-BEPS times. In: ROCHA, Sergio André; CHRISTIANS, Alli- son (Ed.). Tax sovereignty in the BEPS era. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2017.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Imposto de Renda e o comércio eletrônico. Revista Direito Tributário Atual vol. 16. São Paulo: Dialética, 2001.

SCHOUERI, Luís Eduardo. O mito do lucro real na passagem da disponibilidade jurídica para a disponibilidade econômica. In: MOSQUERA, Roberto Quiro- ga; LOPES, Alexsandro Broedel (org.). Controvérsias jurídico-contábeis: aproxi- mações e distanciamentos. São Paulo: Dialética, 2010.

SCHOUERI, Luís Eduardo; BARBOSA, Mateus Calicchio. Da antítese do sigilo à simplicidade do sistema tributário: os desafios da transparência fiscal interna- cional. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de; CHRISTOPOULOS, Basile Geor- ges; ZUGMAN, Daniel Leib; BASTOS, Frederico Silva (coord.). Transparência fiscal internacional: homenagem ao Professor Isaias Coelho. São Paulo: Fisco- soft, 2013.

SCHOUERI, Luís Eduardo; SCHOUERI, Pedro Guilherme Lindenberg. Novas fundações do direito tributário internacional? A OCDE, seus Pilares I e II e a Covid-19. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; FLÁVIO NETO, Luís; SILVEIRA,

Rodrigo Maito da (coord.). Anais – VIII Congresso Brasileiro de Direito Tributá- rio Internacional: novos paradigmas da tributação internacional e a Covid-19. São Paulo: IBDT, 2020.

SILVA, Priscila Stela Mariano da; BOMFIM, Tatiana. Publicidade on-line sob a perspectiva internacional: uma análise dos casos Google no mundo. In: PISCI- TELLI, Tathiane (coord.). Tributação da economia digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

TAMANAHA, Rodolfo Tsunetaka. Tributação e economia digital: análise do trata- mento tributário dos rendimentos de computação em nuvem. Série Doutrina Tributária vol. XXX. São Paulo: IBDT, 2020.

TÔRRES, Heleno Taveira. Princípio da territorialidade e tributação de não-resi- dentes no Brasil. Prestações de serviços no exterior. Fonte de produção e fonte de pagamento. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito tributário interna- cional aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2003.

UTUMI, Ana Claudia. O não-residente na legislação do Imposto de Renda. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito tributário internacional aplicado. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2004. vol. 5.

WTO. World Trade Report 2018: the future of the world trade: how digital techno- logies are transforming global commerce. Geneva: World Trade Organization, 2018.

XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

ZHU, Yansheng. Proposed changes to the UN model tax convention dealing with the cyber-based services. Report to the committee of experts on international coope- ration in tax matters. Geneva: United Nations Department of Economic and Social Affairs, 2014.