EFEITOS DA DIGITALIZAÇÃO DA ECONOMIA SOBRE A ALOCAÇÃO DO DIREITO DE TRIBUTAR
Professor Associado de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Visiting Scholar da Queen Mary University of London e do Max-Planck-Institüt für Steuerrecht. Advogado. E-mail: andreelali@me.com
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil. E-mail: jaircabral@gmail.com
Recebido em: 09-11-2020
Aprovado em: 14-12-2020 DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n8-1
A globalização e a economia digital transformaram o modo de atuar das empresas multinacionais. Os novos modelos de negócio, além de potencializarem o risco de evasão e elisão fiscal internacionais, escapam às regras atuais do sistema tributário internacional. Essa conjuntura, cuja responsabilidade pode ser atribuída tanto às empresas quanto aos Estados, permite às empresas mais eficientes se eximirem do pagamento do imposto sobre a renda, causando prejuízos aos Estados, aos cidadãos e às empresas concorrentes. O Projeto BEPS, conduzido pela OCDE, tem apresentado propostas de melhorias que poderão atender aos interesses dos Estados do mercado consumidor e amenizar as atuais distorções existentes. Apesar das propostas em andamento, a complexidade na implementação de uma solução global de longo prazo baseada no consenso tem estimulado dezenas de países a adotarem medidas unilaterais para tributar as empresas multinacionais da economia digital.
Globalization and digital economy have changed the way in which multinational enterprises (MNE’s) operate. New business models, beyond increasing tax evasion’s and tax avoidance’s risk, escape the current rules of the
international tax system. This situation, whose responsibility can be attributed to both MNE’s and States, allows the most profitable companies of the world to avoid paying income tax. The BEPS Project, led by the OECD, has presented proposals for significant improvements, which could meet the interests of consumer market States and ease current distortions. Despite proposals in progress, the complexity in accomplishing a consensus-based and long-term global solution has encouraged dozens of countries to adopt unilateral measures to tax the digital economy’s MNEs.
INTRODUÇÃO
Os fenômenos da globalização e da digitalização da economia estão transformando radicalmente o modo de vida da sociedade, impactando a forma como as pessoas e empresas desenvolvem suas relações econômicas, profissionais e sociais. O advento da economia digital ampliou ainda mais o processo de integração global ao dispensar a proximidade física entre empresa e consumidor para a realização de diversos negócios. Essa nova estrutura socioeconômica traz impactos significativos em questões sensíveis do Estado e sociedade, dentre as quais a tributação.
No contexto da reorganização dos negócios em nível global, as características do processo de digitalização da economia – intangibilidade, participação do usuário e mobilidade – potencializam a capacidade das empresas multinacionais de se organizarem dentro dos parâmetros legais para não pagarem o imposto sobre a renda ou reduzirem consideravelmente a sua base tributável.
As informações coletadas a partir das trocas de informações tributárias internacionais revelaram a existência de 84 milhões de contas financeiras mantidas no exterior cujo valor em ativos representa mais de 10 trilhões de euros. A perda de arrecadação no montante de R$ 240 bilhões de dólares a nível global, divulgada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2015, p. 103) certamente será atualizada para cima após o aumento contínuo no acesso às informações compartilhadas.
Diante desse quadro, se o projeto do Base Erosion and Profit Shifting (BEPS), promovido pela OCDE, teve o seu surgimento e importância impulsionados pela crise fiscal que vivenciavam os Estados ainda afetados pela crise financeira de 2008 (TEIJEIRO, 2015, p. 1- 4), bem como reflexo da agenda contra a chamada international tax competition (ELALI, 2010, p. 267), a crise econômica global experimentada pela sociedade em função dos efeitos da pandemia da Covid-19 intensifica a relevância de garantir uma tributação justa e eficiente das empresas multinacionais.
Tomando como base esse contexto, o presente artigo tem como objeto de pesquisa a compreensão do fenômeno da economia digital, como ela altera os paradigmas estabelecidos no direito tributário internacional e as respostas que estão sendo
desenvolvidas por especialistas em escala global para contar essas questões, especialmente no que se refere à criação de novos elementos de conexão e realocação do direito de tributar a renda internacional.
Dentro dessa perspectiva, esta análise tem como hipótese que as ações empreendidas pelo Projeto BEPS, visando adequar o sistema tributário internacional às novas estruturas socioeconômicas trazidas pela economia digital, poderão contribuir para corrigir distorções existentes no regime tributário internacional, dentre elas um nível de tributação mais adequado para as empresas multinacionais que operam nesse segmento, bem como uma repartição mais justa do direito de tributar a renda internacional. Para realizar as reflexões necessárias, o trabalho retratou as contribuições jurídicas e econômicas que fundamentaram o desenvolvimento das regras atuais do direito tributário internacional, demonstrando, a partir de pesquisa bibliográfica e documental, que os elementos da economia digital não se compatibilizam com o framework vigente.
Ficou demonstrado, ainda, que as propostas formuladas e mecanismos vislumbrados para concretização de um novo quadro normativo apresentam a semelhança de atribuir maior participação do Estado da fonte na tributação internacional da renda. Além disso, verificou-se que a complexidade da implementação de uma solução global tem encorajado vários Estados a adotarem medidas unilaterais de tributação sobre a economia digital.
A DISCIPLINA JURÍDICA DA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL DA RENDA
O direito tributário internacional se aplica sobre os fatos econômicos que apresentam conexão com duas ou mais ordens jurídicas dotadas de poder de tributar, desencadeando a incidência e aplicação da lei tributária interna de mais de um Estado (XAVIER, 2010, p. 3-4). Nesses termos, quando uma empresa A, residente no Estado X, obtém rendimentos oriundos da prestação de serviço no Estado Y, surge uma cumulação de pretensão tributária entre os Estados X e Y sobre a renda da empresa A.
Para compreender esse cenário, Avi-Yonah (2007, p. 19-20) ilustra um contexto ideal onde só existem dois países no mundo, Estados X e Y. Ambos possuem a pretensão legítima para tributar o lucro gerado pelas empresas sediadas em seu território – inclusive os lucros obtidos no exterior –, assim como possuem o direito de tributar o lucro obtido a partir de fontes localizadas no seu território por empresas residentes no exterior. Nesse caso, se esses dois países exercessem o direito de tributar o lucro auferido no exterior pelas empresas que residem em seu território, bem como o direito de tributar o lucro gerado em seu território auferido por empresas residentes no exterior, observaríamos a seguinte situação: as empresas que operam em escala transnacional seriam tributadas tanto no Estado X quanto no Estado Y, e as empresas que operam exclusivamente em escala nacional seriam tributadas somente em seu Estado de residência.
Duas consequências adviriam desse diagnóstico. A primeira delas reside na desigualdade da tributação entre as empresas em função do mercado em que atuam, isto é, nos mercados nacional e/ou internacional. Duas empresas brasileiras que atuam no setor de varejo, por exemplo, seriam tratadas com carga tributária distinta a depender se ela atua ou não no mercado internacional. A segunda consequência da dupla tributação se dá no sentido de que as empresas seriam estimuladas a operar somente em âmbito interno, desestimulando o investimento internacional, o que afetaria o fluxo de negócios transnacionais.
Diante da possibilidade de dois ou mais Estados poderem tributar o mesmo fato econômico, juristas e economistas debatem há mais de um século qual seria o modelo mais adequado para afastar a dupla tributação internacional e, dessa forma, manter atrativo o comércio e o investimento internacional. Uma das questões mais relevantes desse debate é: qual Estado tem maior legitimidade à pretensão para exercer o direito de tributar e receber a alocação da renda tributável, e qual o Estado que deve renunciar ao seu direito de tributar? Afinal, se coloca em conflito a soberania fiscal de dois Estados.
A Liga das Nações foi precursora na discussão sobre a alocação do direito de tributar a renda internacional. Em 1923, um grupo de 4 economistas, liderados por Edwin Seligman, expôs um relatório identificando quais critérios deveriam ser seguidos nesse fim, com fundamento na teoria da pertinência econômica – economic allegiance. A partir da análise de um conjunto de fatores que indicaria qual o cenário mais revelador de intimidade entre o Estado e a renda produzida, os 4 especialistas concluíram que a legitimidade ao direito de tributar deveria ser atribuída ora ao Estado da residência da pessoa titular da renda, ora ao Estado que originou a riqueza, a depender da natureza da renda em questão (BRUINS, et. al., 1923).
No caso dos lucros empresariais, o grupo considerou que a jurisdição com maior legitimidade para exercer o direito de tributar seria aquela onde a renda foi produzida, atribuindo grande importância à conexão entre a renda corporativa e o local físico que contribuiu para a sua produção (Ibid).
Ainda de acordo com o trabalho desses especialistas, destaca-se a importância atribuída à atividade econômica desempenhada para avaliar os elementos entre a renda e o Estado, de maneira que uma renda originada a partir da produção rural estaria intrinsecamente vinculada ao local da terra produtora, da mesma forma que a renda da atividade mineradora está atrelada ao local da mina. Já empreendimentos comerciais ou industriais, embora tenham maior influência do fator pessoal, teriam os seus elementos de conexão preponderantemente atrelados ao local onde estariam situados os fatores de produção, como máquinas e empregados.
De acordo com Avi-Yonah (2007, p. 21-26), a disciplina jurídica da alocação do direito de tributar atribuindo ao Estado da fonte a legitimidade para tributar os lucros empresariais
– rendas ativas – e, de outro modo, atribuindo ao Estado da residência da empresa a legitimidade para tributar os rendimentos oriundos de royalties, juros e dividendos – rendas passivas – privilegia o “Princípio do Benefício”, um dos pilares do regime jurídico da tributação internacional em conjunto com o Princípio da “Tributação Singular”. Nesse sentido, o “Princípio do Benefício” garante ao Estado que mais cria condições favoráveis para o contribuinte gerar a sua riqueza o direito de receber a receita tributária advinda dessa riqueza gerada. Inter alia, deve-se analisar os custos incorridos pelos Estados para oferecer, entre outros benefícios, infraestrutura, instituições jurídicas e o próprio mercado consumidor. Essa conclusão parece acertada dentro da coerência que deve haver entre o Estado Fiscal e o mercado (SCHOUERI, 2005).
Para objetivar a teoria do benefício, Dourado (2018, p. 42) menciona a fórmula dos três fatores: (a) de onde parte o capital; (b) onde está localizado o trabalho; e (c) em que local se realizam as vendas. A construção doutrinária proveniente da Liga das Nações aponta no sentido de atribuir mais importância para a localização do fator trabalho no caso de rendas ativas, e para a origem do capital, no caso das rendas passivas.
No decorrer do século XX, a teoria do benefício enquanto base para alocação do direito de tributar foi aperfeiçoada pela proposta de Mitchell Carroll, segundo o qual os benefícios conferidos pelo Estado da fonte somente guardam um vínculo estreito com a renda gerada quando da existência de um estabelecimento permanente do contribuinte naquele Estado (Avi-Yonah, 2005, p. 320). Sem a caracterização de um estabelecimento permanente, portanto, os benefícios conferidos pelo Estado da fonte seriam muito reduzidos para lhe atribuir a principal legitimidade para tributar.
O conceito de estabelecimento permanente atua como limite ao mensurar o nível de presença econômica de uma empresa estrangeira em um dado Estado por meio de critérios objetivos, informando as circunstâncias em que uma empresa estrangeira pode ser considerada suficientemente integrada em uma economia para justificar a sua tributação.
Outras teorias econômicas e institutos jurídicos foram criados ao longo das últimas décadas e incorporados ao direito tributário internacional, mas a estrutura de sua disciplina jurídica e alocação do direito de tributar permanecem fortemente ligadas às contribuições teóricas da Liga das Nações, acrescida do instituto do Estabelecimento Permanente. Essa construção, inclusive, foi incorporada à Convenção Modelo da OCDE para evitar a dupla tributação internacional – criada em 1963, reformulada em 1977 e novamente remodelada em 2017 – a qual estabeleceu diretrizes para a elaboração dos mais de 3.000 tratados bilaterais celebrados sobre o tema. Em tal contexto, o art. 7 da Convenção Modelo (OCDE, 2017) estabelece: “Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante deverão ser tributados somente nesse Estado ao menos que a empresa realize negócios em outro Estado Contratante por meio de um Estabelecimento Permanente situado neste.”
A despeito de ser apenas um modelo de convenção, a OCDE ocupa o espaço vazio de uma governança global institucionalizada e exerce influência definitiva na criação e interpretação do direito tributário internacional, bem como nos instrumentos de cooperação jurídica em matéria tributária, partindo de suas recomendações e análises a maioria dos trabalhos acadêmicos que conduzem o debate acerca dos assuntos relevantes nessa temática (DOURADO, 2018, p. 19-20).
Como bem observado por Tarcísio Magalhaes (2018, p. 28-30) em sua teoria crítica às instituições da tributação internacional, os rumos das políticas, regras e modelos tributários praticados pelos planetas foram determinados por um grupo restrito de países desenvolvidos, amparados inicialmente pela Liga das Nações e atualmente pela OCDE. Conforme argumenta o autor, a exclusão da maioria dos países de uma participação efetiva na tomada de decisões no que se refere a quem deve tributar, onde e como acarretou consequências relevantes para a repartição dos recursos globais, contribuindo inclusive para a ampliação da desigualdade internacional entre os Estados.
O Projeto BEPS é uma das agendas conduzidas pela OCDE como resposta aos desafios econômicos globais recentes e como resultado da agenda anti-incentivos fiscais e subsídios, inaugurada pela OCDE na década de 90. A agenda BEPS tem como principal escopo promover alterações no regime jurídico-tributário internacional visando eliminar a evasão fiscal praticada por grupos societários transnacionais e impedir a ocorrência do fenômeno da dupla não tributação. Em teoria, a proposta do projeto é tornar menos distorciva a não tributação de grupos econômicos com atuação global em detrimento da despesa pública cada vez maior dos Estados Fiscais.
Apesar da vagueza e da generalidade de seus primeiros relatórios, a OCDE logrou êxito em despertar a atenção da imprensa e da doutrina especializada e dar visibilidade ao problema da evasão e da elisão fiscal praticadas por empresas multinacionais. Logo, os termos BEPS e planejamento tributário agressivo se tornaram o centro do objeto de pesquisas de estudiosos da tributação internacional (TEIJEIRO, 2005, p. 1-4).
Uma das ações do Projeto BEPS compreende um trabalho específico voltado para a compreensão do fenômeno da economia digital, incluindo-se as possibilidades que ele abre para os chamados planejamentos tributários abusivos das empresas multinacionais e quais os desafios que ele traz ao regime tributário internacional. No primeiro momento, a ação pouco trouxe de novidade, retomando princípios da tributação sobre o comércio eletrônico desenvolvidos em conferências anteriores da OCDE, mas reconhecendo-se nesse momento que a economia digital não consiste em mera virtualização do serviço, mas em um modelo de negócio inteiramente novo que demanda a revisão de institutos da tributação internacional (OCDE, 2015, p. 16).
Constatou-se que a evolução das estruturas econômicas criou um cenário onde uma empresa pode ter presença econômica significativa em um Estado, sem necessariamente ter presença física neste mesmo local. Em função dessa quebra de paradigma, foi reconhecida a necessidade de se adequar a tributação internacional a novos parâmetros que alocassem a tributação ao local que evidenciar substância econômica (OCDE, 2013).
Trata-se de uma transformação estrutural da economia que evoluiu a forma como as empresas geram valor e obtêm o seu lucro. Portanto, institutos do direito tributário internacional que predominaram por quase 100 anos, como a alocação do direito de tributar, passam a ser revisitados.
CARACTERÍSTICAS DA ECONOMIA DIGITAL
A teoria da pertinência econômica foi decisiva na conformação da política tributária internacional, contribuindo sobretudo na definição da alocação do direito de tributar com base na classificação dos tipos de rendimento e no vínculo entre o modelo de negócio e os Estados envolvidos. As escolhas dos Estados em suas políticas tributárias, no entanto, não foram uniformes ao longo do tempo. Ao contrário, as estratégias adotadas quanto à forma de tributar as transações internacionais passaram por mutações e variaram de acordo com as estruturas econômicas globais vigentes e de acordo com os interesses nacionais que preponderaram em cada espaço de tempo (Avi-Yonah, 2005).
Avi-Yonah (Ibid) retrata a evolução da política tributária internacional norte-americana enquanto um movimento pendular, em que se se alterna entre um regime ora voltado preponderantemente para ampliar a base da arrecadação nacional e ora voltado especialmente para a atração de investimentos estrangeiros. Em continuidade a esse movimento pendular, observa-se que o ambiente de competição tributária internacional, no qual Estados atuam como agente de mercado disputando o capital internacional por meio da oferta de benefícios tributários, dá passagem a um ambiente de cooperação e coordenação, retomando a primazia da arrecadação tributária na política fiscal internacional.
Essa mudança de postura está atrelada inicialmente à crise econômica disseminada entre vários Estados na última década, decorrente da crise financeira de 2008, que afetou profundamente os Estados Unidos, praticamente todos os Estados europeus e, posteriormente, pelos impactos do fluxo financeiro, os Estados periféricos. Diante da política de austeridade adotada pelos Estados em crise, que combinou corte de gastos públicos com o aumento da carga tributária, a divulgação do baixo nível de tributação efetiva sobre as empresas multinacionais causou grande frustração e descontentamento da população (TEIJEIRO, 2008, p. 1-4).
Essa conjuntura legitimou as ações do G-20 no sentido de direcionar os seus esforços de ampliação das bases tributárias nacionais – o que TEIJEIRO (Ibid) chamou de “frustrações
fiscais” – para as empresas multinacionais, utilizando do argumento moral para anunciar uma política de maior participação dessas empresas na carga tributária (fair share of taxes), o qual se constituiu no fundamento do Projeto BEPS.
Mais recentemente, a crise econômica decorrente da pandemia do Covid-19 potencializou a conjuntura de necessidade de novas fontes de receitas tributárias para fazer face às despesas incorridas no enfrentamento dessa crise de saúde global, sendo uma dessas fontes a tributação sobre empresas multinacionais, com especial destaque para os negócios da economia digital.
A economia digital surge como resultado do processo de transformação trazido pela tecnologia de informação e comunicação, que envolve desde o desenvolvimento de infraestrutura até a criação de standards de protocolos e linguagens de comunicação. Essa “estandardização” de recursos tecnológicos facilita a interoperabilidade entre diversos componentes e resulta na produção de tecnologias cada vez mais baratas e poderosas, o que por sua vez gera melhorias contínuas nos processos de trabalho e garante inovação ao longo de todos os setores da economia (OCDE, 2015).
Abordando especificamente as empresas que atuam no segmento da tecnologia enquanto serviço ou produto final, é possível apontar-se ao menos três fatores relevantes que caracterizam o que se denomina de economia digital: (a) a presença de intangíveis como principal ativo do negócio; (b) a participação do usuário como insumo do negócio e a captação de seus dados para a geração de valor da empresa; e (c) a capacidade de expansão dos negócios em escala global sem a necessidade de aumento de estruturas físicas (OCDE, 2018, p. 24).
Detalhando um pouco melhor essas três características, o ativo intangível consiste na espécie de ativo que, embora identificável e com potencial de gerar benefícios econômicos, não possui substância física ou corpórea. Entram nesse conceito as marcas, patentes, licenças, direitos autorais, direitos de propriedade intelectual e softwares, os quais são intrinsecamente móveis e voláteis, dada a sua condição de incorpóreo, e representam invariavelmente o ativo mais importante das empresas da economia digital.
A segunda característica mencionada da economia digital é a importância dos dados e a participação do usuário na construção do negócio da empresa. Uma vez criado o ambiente virtual pela empresa, são os próprios usuários que irão gerar conteúdo próprio ou interagir com conteúdo publicado por outros usuários. São exemplos corriqueiros de interação a publicação de imagens; a avaliação de estabelecimentos comerciais; indicativo de satisfação ou insatisfação; o compartilhamento de comentários de terceiros; a pesquisa por um produto ou destino; e a aquisição de uma mercadoria. Em alguns modelos de negócio, como a rede social do Facebook e do Twitter e o buscador do Google, conteúdos gerados pelos usuários permitem que se conheçam o perfil e o interesse do usuário, e a partir da
exploração dos gerados são extraídos conhecimentos para direcionamento personalizado de peças publicitárias e outros produtos. Nesse segmento, especificamente, sem a participação do usuário, a empresa é incapaz de gerar qualquer valor para o negócio. Em vista disso, embora não seja uma unanimidade, é cada vez maior o grupo de especialistas e gestores de políticas tributárias que sustentam a importância do usuário para a criação do valor do negócio (CHAND, 2019).
A terceira característica mencionada sobre a economia digital é a capacidade que a empresa desse segmento possui de expandir seus negócios em escala global sem a necessidade de aumento de estruturas físicas, o que os especialistas atribuem a designação de scale without mass (OCDE, 2018, p. 24).
Esse fator decorre de a própria essência do negócio se basear em ativos intangíveis e serem explorados por meio de plataformas on-line. Dessa forma, uma vez realizados investimentos iniciais para atrair uma quantidade sustentável de usuários, a empresa é capaz de expandir suas operações para outros países, sem a necessidade de instalações físicas ou mesmo prescindindo de pessoas para condução do negócio.
Diante dessa conjuntura, as empresas da economia digital são capazes de envolver a vida econômica de diferentes jurisdições, sem a necessidade de se fazerem fisicamente presentes nessas sociedades.
Há que se fazer, aqui, duas ponderações importantes sobre a economia digital. A primeira delas é o necessário destaque para a heterogeneidade do universo desse segmento econômico. Para muito além das redes sociais, esse segmento pode incluir plataformas de vendas on-line de bens tangíveis ou intangíveis, a oferta de serviços digitais e a produção de bens de alta intensidade tecnologia. Cada um desses ramos apresenta peculiaridades que podem ser relevantes do ponto de vista da tributação internacional. A segunda ponderação se refere aos negócios tradicionais que se valem da digitalização da economia para dar nova roupagem aos seus negócios. Nesse sentido, o desenvolvimento tecnológico não se verifica somente no segmento específico das empresas cujo produto é um recurso tecnológico.
Todos os setores da economia adotaram tecnologias para aumentar a produtividade, ampliar o alcance dos mercados e reduzir custos operacionais. Além de gerar novos produtos e serviços, esses avanços possibilitam uma nova forma de produzir, de organizar o negócio e de interagir com o consumidor. Portanto, a digitalização da economia vai muito além do que aqui se denomina de economia digital.
A respeito da reestruturação de toda economia em face do desenvolvimento tecnológico, necessário esclarecer que as bases do direito tributário internacional foram lançadas e desenvolvidas em um contexto no qual os negócios transnacionais se organizavam de maneira totalmente distinta. Cada subsidiária de uma multinacional que desenvolvesse
suas atividades em determinado Estado possuía funcionamento total do negócio, com condução plena das atividades principais e acessórias, refletindo o negócio como um todo (FARIA, 2008).
Essa estrutura era ditada por fatores como lenta comunicação entre os territórios; alto custo de transportes; barreiras alfandegárias, entre outras questões que tornavam difícil a implementação de uma cadeia global. Os avanços tecnológicos, ao garantir velocidade na comunicação e movimentação de pessoas e bens, permitiram que as empresas modificassem a forma de organizar seu negócio ao longo do espaço, passando a repartir funções específicas em diferentes jurisdições e operar como uma única estrutura empresarial global.
Feitas essas duas ponderações, é patente que seja aprofundado o debate acerca da diferenciação da economia digital do restante da economia, tendo em vista que toda a economia parece convergir para um processo de digitalização, com a reestruturação da sua organização em função do espaço. Não obstante qualquer conclusão a que se chegue, as características da economia digital, sejam exclusivas ou não, mostram-se fundamentais para questionar se os conceitos clássicos do direito tributário internacional ainda têm aplicabilidade atualmente.
A respeito disso, Dourado (2018, p. 27) menciona que, no contexto da economia digital, os Estados de residência deixaram de o ser quanto aos intangíveis e serviços desmaterializados, e os estados da fonte deixaram de o ser, por não conseguirem tributar as atividades empresariais aí desenvolvidas, por não ser possível identificar um estabelecimento estável, pressuposto da tributação. Nesse sentido, o standard do art. 7 da convenção modelo da OCDE, que prevê a tributação das rendas ativas pelo Estado da fonte somente quando aí houver a configuração de um estabelecimento permanente, enquanto limite mínimo para mensurar o nível de presença econômica, parece perder todo o sentido.
CRITÉRIOS PARA LEGITIMAR O DIREITO DE TRIBUTAR DO ESTADO DA FONTE SOBRE A RENDA PROVENIENTE DE EMPRESAS NÃO RESIDENTES
Partindo do argumento de viabilizar uma tributação justa sobre as empresas que operam em escala global, a OCDE mobilizou os Estados participantes do projeto BEPS, no contexto do grupo Inclusive Framework, para ir além das medidas antielisivas já trabalhadas nas 15 ações do plano de ação – e que já integravam a agenda da OCDE há mais de uma década –, passando a abordar as questões mais fundamentais do direito tributário internacional: o realinhamento entre as atividades econômicas e a legitimidade para tributar. Essa nova abordagem veio a público por meio do relatório Tax Challenges Arising from the Digitalisation – Interim Report (OCDE, 2018).
Após definir elementos característicos de diferentes segmentos da economia digital, o programa de trabalho apontou a necessidade de revisar os elementos de conexão que
ensejam a legitimidade de um determinado Estado para tributar a renda de uma empresa multinacional, ao mesmo tempo em que busca redefinir a alocação dos direitos de tributar com base nesse novo nexus.
Nesse sentido, a OCDE (2019-A) tem discutido sobre o melhor método para quantificar os lucros que poderiam ser alocados a cada jurisdição do mercado consumidor global. Essa construção normativa ganhou mais legitimidade a partir da participação da sociedade civil por meio de consultas públicas, com a contribuição de mais de uma centena de empresas, órgãos públicos, acadêmicos e outras entidades interessadas.
A discussão inicial desse grupo de trabalho partiu de três diferentes critérios para verificação da legitimidade de o Estado consumidor tributar o lucro gerado por uma empresa não residente: a participação do usuário; a presença econômica significada e a exploração de intangíveis de marketing.
A participação do usuário, enquanto critério para legitimar a tributação do estado da fonte sobre empresas não residentes, pressupõe que o engajamento e a participação ativa do consumidor são um componente crítico no processo de criação de valor de negócios digitais (OCDE, 2019-A, p. 9-11). Essa abordagem é defendida pelo Reino Unido e pela Comissão Europeia e parte de uma fórmula predeterminada que mediria o componente usuário na formação do lucro do negócio. Esse critério tem aplicação adequada para os negócios relativos a redes sociais, buscadores, publicidade on-line, jogos on-line, mas não é flexível o suficiente para abranger novos modelos de negócios como a impressão 3D, por exemplo, ou qualquer outro segmento fora do escopo da economia digital (SCHON, 2019, p. 2).
Uma segunda proposta defendida para legitimar a tributação pelo Estado da fonte sobre empresas não residentes se baseia nos intangíveis de marketing. Trata-se de uma espécie de ativo intangível relacionado às atividades de marketing que impactam diretamente na exploração comercial de um produto ou serviço, tais como marcas e nomes comerciais, listas de clientes e dados de clientes (OCDE, 2019-A, p. 11-16).
Defendida principalmente pelos Estados Unidos, essa proposta sustenta que se uma empresa não residente interage regularmente com um Estado consumidor e nesse Estado desenvolve ativos intangíveis que possibilitam exploração comercial, esse Estado consumidor tem o direito de tributar os lucros ligados a esses ativos intangíveis (SCHON, 2019, p. 2). Nesse contexto, o referido Estado se constitui, na verdade, como ente produtor dos ativos intangíveis e, portanto, contribui diretamente para a originação da riqueza a ser tributada.
A proposta baseada em intangible marketing se assemelha em muitos aspectos com a proposta baseada na participação do usuário, mas tem a característica essencial de ser mais abrangente, possibilitando ser aplicada tanto a negócios digitais como a negócios tradicionais que lidam com intangíveis de marketing. No entanto, essa proposta depende
de uma participação mais ativa do mercado consumidor, o que na prática dificultaria o exercício de sua pretensão tributária.
A terceira proposta arguida para legitimar a tributação do Estado da fonte sobre uma empresa não residente se refere à presença econômica digital e foi defendida por grupos de países em desenvolvimento (SCHON, 2019, p. 2). Por meio dessa proposta, busca-se mensurar a capacidade que uma empresa possui de interagir na vida econômica de um País mesmo sem possuir presença física nele. A implementação dessa proposta seria realizada mediante alteração da definição de Estabelecimento Permanente, garantindo-se a legitimidade para tributar do Estado consumidor quando houver fatores econômicos que indiquem vínculo estreito entre a empresa e o respectivo Estado. Esse vínculo seria mensurado a partir de elementos-chave de alocação – allocation keys– como, por exemplo, quantidade de usuários; volume de dados extraídos; plataforma no idioma e com modalidades de pagamento em moeda local; além de outros fatores que poderiam indicar responsabilidade da empresa naquela localidade, como a entrega de bens e serviços de apoio (CHAND, 2019, p. 1030).
A crítica a essa abordagem se reporta à utilização da importância do consumo como critério para tributação. Por meio dessa visão crítica, a referida proposta desloca da produção para o consumo a condição de fator determinante para a criação da riqueza, indo em direção oposta à teoria da pertença econômica. Argumenta-se, nesse raciocínio, qual a razão de o argumento do mercado consumidor não ter sido utilizado para o mercado não digital anteriormente e ser agora atribuída alta relevância (Id., p. 1032).
Apesar de possuírem diferenças quanto às justificativas e quanto aos negócios impactados, as três propostas carregam em si o argumento de que o valor criado pelo consumidor é um elemento determinante para os negócios da economia digital e, no entanto, não é reconhecido pelas regras atuais do direito internacional como elemento de conexão suficiente para gerar o direito de tributar do Estado da fonte.
Dadas as suas convergências, as três abordagens passaram a ser tratadas de forma conjunta. Essa agregação foi articulada sob o que a OCDE denominou de “Pilar Um” do programa de trabalho para estabelecer uma solução de longo prazo baseada no consenso que aborde a mudança dos critérios de conexão do Estado com a renda tributável e que redefina a alocação do direito de tributar (OCDE, 2019-B).
Alcançado um razoável consenso sobre as justificativas para a definição de novos elementos de conexão e realocação do direito de tributar em face das novas estruturas econômicas, o modelo de implementação ainda não encontrou o acordo político necessário e persistem as dúvidas, indefinições e incertezas quanto ao método mais adequado para concretizar essas novas regras. De acordo com a formulação em andamento, a OCDE e o Inclusive Framework (Ibid) previram as novas regras apenas para os chamados serviços
digitais automatizados, compreendendo negócios como: serviços de busca on-line; plataformas de redes sociais; plataformas de intermediação de vendas on-line, inclusive marketplaces; plataformas de conteúdo por streaming; jogos on-line; serviços por computação em nuvem e publicidade on-line. Outros negócios relevantes e com alto potencial de evasão e elisão fiscal, tal como os serviços financeiros, estão fora do escopo do projeto.
Ainda no desenho do escopo do novo nexus, somente as empresas multinacionais que alcançarem determinada receita bruta terão a sua renda alocada à jurisdição do mercado consumidor (OCDE, 2019-B, p. 12). Esse limite ainda não está definido, mas se cogita adotar o mesmo valor que recai na obrigatoriedade de apresentação do Country-by-Country reporting, ou seja, 750 milhões de euros de receita bruta por grupo empresarial.
O modelo de apuração e repartição do imposto pode seguir diferentes padrões. Dentre os métodos vislumbrados pelo grupo de trabalho da OCDE, com aprofundamento realizado por diversos acadêmicos, destaca-se o método da alocação do lucro residual – residual profit allocation (Devereux; et. al., 2019). Esse método consiste inicialmente em apurar o lucro global obtido pela empresa multinacional e, em um segundo passo, separá-lo em duas partes: lucro rotineiro e lucro não rotineiro ou residual. O lucro rotineiro, conforme definição pelo guia de preços de transferências da OCDE, consiste no lucro que uma terceira parte espera receber por desempenhar atividades determinadas em base de terceirização, sem que essa terceira parte compartilhe do risco geral do negócio. A partir da segregação do lucro global em duas categorias, decorre-se de que o tratamento jurídico para o lucro rotineiro será idêntico ao das regras atualmente vigentes. Por outro lado, os não rotineiros ou residuais, o que inclui todo o conjunto que não se inclui na qualificação de lucro rotineiro, serão repartidos entre o Estado onde reside a empresa e os estados onde estão localizados os usuários ou consumidores.
Valendo-se da ilustração citada por Chand (2019, p. 1038) para esclarecer o método, supondo- se um caso hipotético em que uma empresa A, residente fiscal no Estado X, desenvolve produtos e serviços nesse mesmo Estado X e os vende no Estado Y, em base remota – sem instalação física ou qualquer tipo de representação, apurando-se uma receita bruta total de R$ 1000,00, com margem de lucro de 45%. Pelo método da repartição do lucro residual, a partir do lucro total seriam retirados os lucros rotineiros. A primeira divergência entre os partícipes da elaboração da proposta se refere a apuração do lucro rotineiro, indagando-se se o cálculo deve ser feito mecanicamente, com base nos métodos atuais de preços de transferência, ou se seria mais prudente uma fórmula genérica que presuma esse montante. Supondo-se que seja definida uma fórmula que os lucros rotineiros devam ser 5%, esse percentual é retirado do lucro global da empresa e distribuído conforme as regras atuais, e o lucro residual será repartido levando-se em consideração também o mercado consumidor.
Seguindo o exemplo mencionado, restariam R$ 400,00 de lucros residuais para serem repartidos entre o Estado da residência e os Estados onde se localizam o consumidor. Surge então outra questão fundamental – e ainda controversa – sobre qual o elemento de conexão a ser utilizado, como medir a participação efetiva do Estado consumidor na apuração do lucro e qual o percentual atribuível a esses Estados em função do fator de alocação.
Enquanto alguns autores propõem a apuração mecânica da participação do Estado consumidor a partir de determinados elementos de conexão – quantidade de usuário, receita bruta, venda – parte da doutrina propõe uma divisão arbitrária, em percentual fixo, como forma de simplificar o processo, aumentar a previsibilidade da tributação e reduzir litígios (CHAND, 2019).
Continuando com o exemplo ilustrativo e supondo que seja definida globalmente uma repartição do lucro residual na proporção de 75% para o Estado de residência e 25% para o Estado da fonte, o próximo passo seria apurar o lucro obtido no respectivo Estado onde ocorreu o consumo. Supondo que todo o lucro residual – R$ 400 – tenha sido proveniente de vendas no Estado Y, e considerando a divisão estabelecida de 75-25%, desse lucro R$ 100 seriam destinados ao Estado Y, e R$ 300 seriam destinados ao Estado X, onde é residente a empresa.
Outros métodos de apuração e repartição estão em discussão, mas de forma geral todos esbarram nos pontos-chave destacados acima: definição do percentual atribuível a lucros rotineiros; e identificação, mensuração e repartição dos lucros residuais entre Estados de residência e estados onde ocorreu o consumo.
Fica evidente, pois, que os desafios a serem superados ainda são grandes em quantidade e complexidade. É natural que o debate e a construção da solução para alcançar um consenso requeira tempo e participação de todas as partes envolvidas. Além dos desafios intrínsecos do desenho jurídico em discussão, o consenso a ser alcançado pelos Estados no resenho do direito tributário internacional deve equilibrar a solução com padrões de justiça tributária, de eficiência econômica, de simplicidade e baixo custo de conformidade e de administração dos tributos.
IMPLEMENTAÇÃO DA AGENDA NO BRASIL
A complexidade do tema tratado, que envolve dificuldades de ordens jurídica, política, econômica e administrativa, naturalmente demanda maior tempo de construção para uma solução consensual e definitiva. Embora o Quadro Inclusivo formado pela OCDE reúna atualmente 137 jurisdições, e haja cada vez mais adeptos à necessidade de reformar o sistema tributário internacional pelos motivos expostos nesse trabalho, a necessidade de obter novas receitas tributárias tem se mostrado premente e mais um obstáculo na construção de uma solução global.
É cada vez maior o número de países que passaram a adotar medidas unilaterais para tributar os lucros provenientes das multinacionais ligados à economia digital. Iniciada pela Índia em 2016, e instituída por dezenas de países, inclusive com recomendação da União Europeia, é crescente a imposição de alguma espécie tributária sobre os lucros das atividades digitais, geralmente sobre a forma de tributo indireto sobre a venda de produto ou serviço (OCDE, 2018, p. 133-164).
O Brasil tem aderido pontualmente à agenda do Projeto BEPS. Até o momento, a principal adesão se deu em relação às medidas de troca de informações tributárias, tais como a implementação da “Declaração País-País”, que possibilita o intercâmbio de informações sobre as empresas multinacionais. Além disso, o Brasil revisou o seu tratado para evitar a dupla tributação com a Argentina, incluindo alguns tópicos trabalhados no Projeto BEPS. Também montou grupos de trabalhos em parceria com a OCDE para revisão das regras de preços de transferências.
Em relação à tributação sobre economia digital, até o início do ano de 2020 não houve qualquer sinalização de abordagem dessas questões pelo governo federal brasileiro. Essa inércia foi rompida em maio de 2020 pelo Projeto de Lei (PL) n. 2.358, que propõe a instituição de uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) sobre a receita bruta de serviços digitais prestados pelas grandes empresas de tecnologia, a CIDE- Digital (Câmara dos Deputados, 2020).
No documento de justificativa do referido projeto de lei, o autor do projeto contextualiza a criação da CIDE-Digital relacionando-a às mudanças nas estruturas econômicas provocadas pela digitalização da economia, que impactou diretamente na disciplina jurídica da tributação internacional, conforme abordado ao longo deste artigo.
Pautando-se pelas discussões e imposições verificadas em diversos países, propõe-se tributar pessoas jurídicas residentes no exterior que obtenham rendimentos a partir da venda de serviços e produtos de consumidores aqui localizados, mesmo sem verificação de estruturas físicas no País, mas em tal volume que permita caracterizar presença econômica relevante da empresa no Brasil. Segundo essa proposta, a CIDE-Digital incidiria somente sobre as empresas de tecnologia que operam em escala transnacional, especificamente em relação à prestação de serviços de publicidade digital, intermediação na aquisição de bens e serviços por meio de plataformas on-line ou venda de dados captados de usuários residentes no Brasil.
Além desses dois limites quanto à sujeição passiva – (a) empresa que opera tanto em escala local quanto internacional e (b) que exerce as atividades econômicas determinadas –, a proposta do PL n. 2.358/2020 apresenta ainda como limite de sujeição passiva a obtenção de três bilhões de reais de receita bruta anual para o grupo econômico em nível global, conjugado com o limite mínimo de 100 milhões de reais de receita bruta auferida no Brasil.
Essa limitação pelo faturamento para se sujeitar ao pagamento do tributo está em consonância com as discussões conduzidas no grupo de trabalho da OCDE na construção da solução global para tributar a economia digital. O valor específico de 3 bilhões de reais de faturamento global, por sua vez, se assemelha ao limite estabelecido pela OCDE para sujeitar as empresas multinacionais ao envio da declaração chamada de Country-by- Country Reporting, que no Brasil foi internalizada como Declaração País-País pela Instrução Normativa RFB n. 1.681, de 2016.
Pelas características relatadas, observa-se que a proposta de criação de uma CIDE-Digital está alinhada às experiências internacionais e tem o grande mérito de incluir as esferas de governo no debate público de um assunto de grande relevância para a tributação e finanças públicas nacionais.
Algumas disposições no projeto, no entanto, precisam ser ponderadas. A primeira ponderação necessária se refere à adequação da criação desse tributo à política tributária internacional brasileira. Diferentemente da maioria dos estados europeus que criaram um tributo sobre o consumo de bens e serviços digitais, o Brasil adota como critério de tributação nessas situações o local da fonte de pagamento, divergindo do standard modelado pela OCDE. Essa divergência de política tributária não significa que o Brasil deve deixar de lado a revisão das regras de tributação internacional em face do atual contexto, mas implica necessariamente que a criação de novos tributos deve ser acompanhada de uma revisão mais abrangente dos nossos institutos jurídicos e política tributária como um todo.
A partir daí surge uma segunda ponderação relevante, que é a escolha da CIDE como espécie tributária mais adequada para realizar essa tributação. A escolha de um instrumento de tributação do consumo como meio para tributar a renda não é apropriada, tendo em vista os riscos de distorções no sistema e geração de ineficiência econômica. Essa distorção é ampliada nesse caso específico da CIDE-Digital, uma vez que a CIDE pressupõe necessariamente uma finalidade de intervenção econômica para regular um mercado específico. Nesse sentido, o projeto de lei não prevê nenhuma finalidade regulatória para a economia digital ou qualquer outro segmento, e ainda deixa expresso na justificativa do projeto que se trata de uma instituição com viés arrecadatório, voltado para sanar um déficit de capacidade contributiva sobre as empresas desse segmento. Fica, portanto, caracterizado o eventual desvio de finalidade do uso desse instrumento para a obtenção de receitas de um determinado mercado, sem a devida contextualização do que e como se pretende regular.
Outro fator relevante a ser observado, ainda não detalhado pelo projeto, reporta-se ao modo de cumprimento e administração desse tributo, que em todo caso deve ser estruturado de modo a evitar a dupla tributação jurídica e econômica, devendo-se atentar para a criação de mecanismos de prevenção e solução de controvérsias nesse âmbito.
Considerando esse projeto de lei como um ponto de partida das discussões para a tributação sobre a economia digital no Brasil, e não como um produto pronto e acabado para ser instituído, o teor do PL n. 2.358/2020 poderá ser benéfico ao Brasil, garantindo melhorias no âmbito da justiça fiscal, arrecadação tributária e preservação da concorrência.
Ressalta-se, no entanto, que se trata de uma solução unilateral e que não pode significar o abandono do processo de construção de uma solução global de longo prazo para adaptação da tributação internacional à nova realidade econômica, tampouco pode-se implementar de maneira isolada desconsiderando-se os outros elementos relevantes da política tributária internacional brasileira.
CONCLUSÕES
O direito tributário internacional teve os seus fundamentos construídos na década de 1920, sob a influência do trabalho desenvolvido pela Liga das Nações. Naquele contexto, adotou- se o entendimento de que a legitimidade para tributar a renda oriunda de situações econômicas internacionais deve ser atribuída ao Estado que possua vínculo econômico mais estreito com a origem da renda gerada.
Essa construção, que atribui ao Estado da fonte a legitimidade para tributar os lucros empresariais – rendas ativas – e ao Estado da residência da empresa a legitimidade para tributar os rendimentos oriundos de royalties, juros e dividendos – rendas passivas –, foi aperfeiçoada pelo conceito de Estabelecimento Permanente, enquanto estrutura física e pessoal necessária para caracterizar ligação econômica da renda com o Estado da fonte. Essa compreensão da tributação internacional, que alguns autores chamam de “Princípio do Benefício”, perdurou por muitos anos, delineando inclusive a Convenção-Modelo da OCDE para evitar a dupla tributação da renda, cujos standards influenciaram diretamente a elaboração dos mais de 3 mil tratados bilaterais atualmente existentes sobre assunto.
A eficácia e efetividade dessas regras passaram a ser questionadas diante das transformações econômicas verificadas no século XXI com o advento da economia digital, que é caracterizada pela participação do usuário na criação de valor, pela presença maciça de ativos intangíveis e pela capacidade de expansão dos negócios em escala global sem a necessidade de aumento de estruturas físicas.
A essência dos novos modelos de negócios mais proeminentes da economia atual é destacada por prescindir de elementos físicos para a criação de riquezas. Em consequência, a previsão do art. 7º da convenção modelo da OCDE, que prevê a tributação de rendas ativas pelo Estado da fonte somente quando aí houver a configuração de um estabelecimento permanente, enquanto limite mínimo para mensurar um nível satisfatório de presença econômica, perdeu todo o sentido. Em face dessa constatação, mostra-se adequado o trabalho desenvolvido pelo Quadro Inclusivo da OCDE voltado para a revisão das regras
de tributação internacional, especialmente no tocante à revisão dos elementos de conexão necessários para garantir legitimidade da jurisdição para tributar.
As diferentes abordagens desenvolvidas por esse grupo de trabalho, apesar de possuírem diferenças quanto aos fundamentos e abrangência, assemelham-se no argumento de que o valor criado pelo consumidor é um elemento determinante para os negócios da economia digital e deve ser reconhecido como elemento de conexão suficiente para gerar o direito de tributar do Estado da fonte. Diversos mecanismos de tributação têm sido estudados pela OCDE e por diversos doutrinadores da tributação internacional em vários países, com foco na repartição de lucros entre Estado da residência e Estado da fonte. De maneira geral, todos os métodos em análise apresentaram como obstáculos a identificação e a mensuração dos lucros gerados no Estado consumidor, e a definição do percentual a ser repartido entre os Estados envolvidos.
A complexidade intrínseca da construção de uma solução de longo prazo baseada no consenso impede que sejam adotadas soluções globais no curto prazo. Esse cenário tem levado dezenas de Países a adotarem medidas unilaterais para tributação da economia digital, notadamente sob a forma de tributo indireto sobre a venda de serviço digital – digital services tax. Somente em maio de 2020, essa agenda foi introduzida no Brasil em nível de governo. O Projeto de Lei n. 2.358 propõe a criação de uma CIDE sobre determinados tipos de serviços digitais prestados por pessoas jurídicas residentes no Brasil ou no exterior para consumidores residentes no Brasil. Essa proposta mostra-se relevante para iniciar a discussão sobre a tributação da economia digital no Brasil e está alinhada às discussões conduzidas pela OCDE e às medidas adotadas por outros países. O PL n. 2.2358/2020 deve ser considerado como um ponto de partida, e não como um produto pronto e acabado para ser instituído. Além disso, o projeto não pode significar o abandono do processo de construção de uma solução global de longo prazo para adaptar a tributação internacional às novas estruturas econômicas.
A adoção de recomendações de organismos internacionais deve considerar a coerência dos países que vêm discutindo a evolução dos sistemas tributários e a preocupação com o que se chama de erosão das bases da tributação. A evolução da economia e a abertura que se verificou das fronteiras dos países geraram mobilidade elevada do capital ao mesmo tempo em que os Estados precisam financiar serviços públicos, despesas criadas com crises econômicas, sanitárias, bem como a previdência de seus cidadãos. A não tributação de empresas globais com alta capacidade contributiva gera uma distorção econômica e social. Essa distorção afeta também a liberdade de concorrência do mercado.
Entretanto, a não tributação de empresas globais não pode impor a cessação do uso de mecanismos de estímulo por parte do Estado brasileiro em situações de falhas de mercado e de implementação de objetivos econômicos e sociais alinhados com a ordem econômica. Em outros dizeres, deve-se adequar a tributação dos agentes econômicos globais e da
economia digital, sem que isso mude a adoção de eventuais políticas de regulação de falhas dos mecanismos de mercado, desde que pontuadas por adequação do custo-benefício, do efeito concorrencial e do impacto financeiro.
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