ARTIGO 2º DA CONVENÇÃO-MODELO DA OCDE E A TRIBUTAÇÃO DA ECONOMIA DIGITAL: POLÍTICA BRASILEIRA E PERSPECTIVAS
Mestrando em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Especialista em Direito Tributário Brasileiro pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado em São Paulo. E-mail: lpignatari@rivittidias.com.br
Recebido em: 29-09-2019
Aprovado em: 09-11-2019
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n6-9
O artigo 2º da Convenção-Modelo da OCDE possui papel significativo na aplicação dos acordos de bitributação, na medida em que delimita quais tributos estão submetidos às cláusulas convencionais. Embora tenha mantido sua redação intacta durante a história, este dispositivo traz dificuldades quanto à tributação da economia digital, considerando que muitos Estados vêm adotando medidas unilaterais para assegurar a tributação desse mercado em detrimento da segurança jurídica nas relações internacionais. Nesse sentido, este estudo busca analisar a compatibilidade desse artigo com o “Digital Services Tax” proposto pela Comissão Europeia. Para tanto, passar-se-á pelo exame do artigo 2º e seus parágrafos, em especial do “teste de similaridade substancial”, bem como pela política brasileira para esse dispositivo a fim de verificar se esse tributo estaria coberto pelos acordos de bitributação brasileiros. Ao final, serão apresentadas conclusões que denotam o cabo de guerra entre unilateralismo e consenso internacional, marcado pelo surgimento desses “tributos digitais”.
Article 2 of the OECD Model Convention plays a significant role in the application of tax treaties, insofar as it defines which taxes are subject to convention-al clauses. Although it has kept its wording intact throughout its history, this article presents difficulties regarding the digital economy taxation, since many States are adopting unilateral measures to ensure the taxation of this market to the detriment of legal certainty in international relations. In this sense, this study seeks to analyze the compatibility of this article with the “Digital Services Tax” proposed by the European Commission. Moreover, it will examine Article 2 and its paragraphs, in particular the “test of substantial similarity”, as well as the Brazilian policy for this provision in order to verify if this tax would be covered by the Brazilian tax treaties. Finally, conclusions will be presented denoting the tug of war between unilateralism and international consensus, characterized by the emergence of these “digital taxes”.
UNILATERALISM
INTRODUÇÃO
Com o advento de uma economia digital e globalizada, marcada pela facilidade no oferecimento de bens e serviços e pelo emprego contínuo de ativos intangíveis, as mudanças e seus respectivos efeitos são sentidos em uma velocidade muito maior, o que exige um acompanhamento mais próximo por parte dos operadores do Direito e uma resposta igualmente rápida das administrações tributárias. Nesse contexto, os Estados buscam alterar seus sistemas tributários de modo a seguir os novos modelos de negócios, bem como a lidar com os fenômenos contemporâneos, tais como, a economia digital.
Assim, os Estados estão criando tributos a fim de suprir, unilateralmente, a ausência de regras internacionais claras e objetivas acerca da tributação da economia digital, assegurando sua “fatia do bolo” em detrimento de um consenso internacional1. A adoção de medidas unilaterais apenas contribui para o robustecimento de um cenário dominado pela insegurança jurídica, na medida em que não se sabe se esses novos tributos estão cobertos
pelos acordos de bitributação ou se constituem um “treaty override”, dada sua natureza
eminentemente híbrida (renda e consumo).
Nessa linha, este estudo visa analisar justamente a tributação da economia digital nos acordos de bitributação, notadamente, se a estrutura do artigo 2º da Convenção-Modelo da OCDE – CM-OCDE, a qual quase não sofreu alterações durante sua história, é compatível com essa evolução. Objetiva-se verificar se essa cláusula convencional abarca ou não o “Digital Services Tax” proposto pela Comissão Europeia à luz dos tratados brasileiros. Para tanto, o trabalho está esquematizado em quatro partes.
Na primeira, pretende-se examinar o artigo 2º da CM-OCDE e seus respectivos parágrafos, em especial, o parágrafo 4º, que possui vital importância na discussão ora proposta, já que confere caráter dinâmico ao escopo material dos tratados através do denominado “teste de similaridade substancial”. Esse teste adquire grande relevância para a compreensão do que é um “tributo substancialmente similar” a outro, e, por conseguinte, para a inclusão desse tributo no escopo do tratado.
Posteriormente, será apresentado um panorama da política brasileira em torno do artigo 2º, isto é, do escopo material dos acordos de bitributação. Neste ponto, busca-se mapear os tratados brasileiros para fins de identificar as particularidades nacionais e suas implicações no tocante à aplicação do “teste de similaridade substancial” e à interpretação do artigo 2º como um todo.
A terceira parte consiste na verificação sobre se o “Digital Services Tax”, o qual se assemelha, em grande parte, à COFINS, e cuja natureza será mais bem detalhada nessa seção, está coberto ou não pelos acordos de bitributação brasileiros.
Por fim, algumas reflexões e conclusões são apresentadas em torno do conflito existente entre unilateralismo e consenso internacional para a tributação na economia digital, propondo-se alternativas que fujam do unilateralismo pernicioso e do difícil consenso internacional, reduzindo a insegurança jurídica tanto para os Estados Contratantes quanto para os contribuintes.
O ARTIGO 2º DA CONVENÇÃO-MODELO DA OCDE: ESTRUTURA E FUNÇÃO Apesar das raras mudanças realizadas no artigo 2º ao longo dos anos, o que justifica, em certa medida, a pouca atenção da doutrina a essa matéria, tal dispositivo vem ganhando
importância com as discussões em torno da tributação na economia digital e,
principalmente, com o surgimento dos “tributos digitais”, criados por muitos Estados para suprir uma lacuna no Direito Tributário Internacional. Dessa forma, antes de adentrar nos pormenores da economia digital, cumpre examinar o artigo 2º e seus parágrafos, conferindo especial preocupação ao parágrafo 4º.
“Artigo 2º Tributos Visados
A presente Convenção aplica-se aos tributos sobre a renda e sobre o capital exigidos por cada um dos Estados contratantes, suas subdivisões políticas e suas autarquias locais, seja qual for o sistema usado para a sua cobrança.
São considerados tributos sobre a renda e sobre o capital todos os tributos incidentes sobre o total da renda, sobre a totalidade do capital ou sobre parcelas da renda ou do capital, incluindo os tributos sobre os ganhos derivados da alienação de bens mobiliários ou imobiliários, os tributos sobre o montante global dos salários pagos pelas empresas, bem como os tributos sobre as mais-valias.
Os tributos atuais a que a Convenção se aplica são, em particular, os seguintes:
a) (No Estado A): ……………………………………
b) (No Estado B): ……………………………………
A Convenção se aplica também aos tributos de natureza idêntica ou similar que entrem em vigor posteriormente à data da assinatura da Convenção, seja em adição aos tributos atuais, seja em sua substituição. As autoridades competentes dos Estados contratantes comunicarão uma à outra as modificações significativas ocorridas nas respectivas legislações tributárias”2.
Trata-se de artigo vital para o equilíbrio acordado pelos Estados Contratantes ao determinar quais tributos estão cobertos pelos acordos de bitributação, ou seja, delimitar o âmbito material dos tratados. Além disso, detém uma dupla relevância: para um Estado, o tributo coberto deverá ser aplicado de acordo com a regra distributiva; e para o outro, a importância reside nas medidas para eliminar a dupla tributação (métodos de crédito e isenção)3.
Os parágrafos 1º e 2º do artigo 2º: considerações gerais
Como já adiantado, o artigo 2º constitui peça-chave para a efetiva operacionalidade dos acordos de bitributação4, envolvendo dois tipos de tributos: sobre a renda e sobre o capital, independentemente da forma pela qual são cobrados. O artigo 2(1) visa traçar um limite geral, restringindo-se aos tributos sobre a renda e sobre o capital, o que, por conseguinte, limita as regras distributivas (artigos 6º a 22) e os métodos para evitar a dupla tributação.
O parágrafo 2º, a seu turno, objetiva “definir” o que são os “tributos sobre a renda e sobre o capital”, assim como apontado pelos Comentários da OCDE5. Ocorre que, na verdade, esse parágrafo representa mais uma observação ou ampliação do parágrafo precedente do que uma definição propriamente dita, haja vista que possui uma redação bastante vaga, conforme apontado por diversos autores6.
Como bem observado por Guilherme Galdino, essa suposta “definição” dos tributos cobertos pelos tratados configura uma verdadeira tautologia, pois “estabelece que deverão ser considerados todos os tributos aplicados sobre a renda, o capital total, ou sobre elementos da renda e do capital”7. O próprio conceito utiliza termo a ser definido, isto é, nada define, consubstanciando mais uma complementação do disposto no parágrafo 1º8.
De todo modo, não se pode negar a importância do artigo 2(2), na medida em que, juntamente com o artigo 2(1), descreve o escopo material dos acordos de bitributação, sem fazer qualquer referência à legislação doméstica dos Estados Contratantes. Assim, esses dispositivos apresentam, a princípio, um sentido autônomo, ou seja, independente das leis internas dos Estados Contratantes9.
Contudo, é mister recordar que os tratados não criam obrigação tributária, mas apenas limitam as jurisdições dos países10. Nesse contexto, há intensa discussão na doutrina acerca da prevalência da legislação doméstica ou das cláusulas convencionais diante do disposto no artigo 3(2), CM-OCDE11. Apesar de não ser objeto deste estudo, adoto a posição de que se deve recorrer à legislação interna apenas em último caso, privilegiando-se os acordos de bitributação como instrumentos de limitação da jurisdição doméstica.
Feito este breve parêntese, nota-se que a análise conjunta dos artigos 2(1) e 2(2) fixa um limite geral à aplicação dos acordos de bitributação, aplicável independentemente da lista
exemplificativa prevista no parágrafo 3º. Vale dizer que a generalidade e vagueza desses dispositivos não retiram sua substância e importância para a aplicação dos tratados.
Considerando que alguns tratados, dentre eles, a maioria dos acordos brasileiros, excluem os parágrafos 1º e 2º, cumpre examinar, separadamente, o artigo 2(3), o qual pode ter um efeito restritivo ou ampliativo dos parágrafos anteriores, influenciando diretamente o escopo substantivo dos tratados.
O parágrafo 3º do artigo 2º: lista taxativa ou exemplificativa?
O artigo 2(3) é fruto das negociações realizadas para a celebração dos acordos de bitributação, durante as quais os Estados Contratantes analisam seus sistemas tributários de modo a verificar quais tributos serão cobertos pelos tratados. Este dispositivo lista os tributos visados pelos acordos de bitributação, cabendo aos Estados definir a lista conforme suas legislações domésticas, razão pela qual este parágrafo está sendo tratado de forma separada neste estudo.
A despeito de os Comentários da OCDE ao artigo 2(3) sustentarem que a lista é exemplificativa, afirmam que, em princípio, a lista deve ser completa, o que demonstra uma certa contradição na posição da OCDE. A natureza exemplificativa está ligada ao próprio processo de negociação dos tratados, o qual envolve diversas rodadas e pode durar muitos anos em virtude das divergências e exigências entre os países12.
Nessa toada, Michael Lang sustenta que os tributos listados pelo Estados Contratantes deveriam ser interpretados de acordo com seu conteúdo material à época de conclusão do acordo13. Com a devida vênia, essa posição acaba engessando a aplicação das cláusulas convencionais em diversas situações, uma vez que prende o tratado no tempo, limitando-o apenas ao momento de sua celebração.
Caso não sejam realizadas mudanças significativas na estrutura do tributo listado à época de conclusão do tratado, tais como, alterações de alíquota, forma de pagamento, entre outras, é plenamente possível sua interpretação de acordo com a nova realidade (interpretação dinâmica), sem qualquer prejuízo ao acordado pelos Estados. Admitir o contrário significaria ignorar mudanças na legislação doméstica, a qual é, sem sombra de dúvidas, o instrumento responsável pela criação da obrigação tributária.
Por outro lado, aludido entendimento apenas faria sentido caso fossem promovidas modificações substanciais na estrutura do tributo listado, as quais colocam em dúvida se esse “novo tributo” estaria coberto pelos acordos de bitributação. Todavia, não cabe aos
Estados introduzir novos tributos dentro do escopo convencional por meio de modificações em tributos já existentes, abusando do poder ampliativo do artigo 2(3), ou adotar medidas unilaterais para fugir do âmbito dos acordos (“treaty override”).
Assim, não há que se falar em interpretação estática ou dinâmica dos tributos nessa situação, pois eles sequer estariam cobertos pelos tratados. Em última instância, a inclusão desse tributo modificado dependeria do “teste de similaridade substancial” previsto no parágrafo 4º, o que já afasta sua aplicação na forma do artigo 2(3).
Os Estados Contratantes detêm um poder limitado para decidir unilateralmente se um imposto recentemente instituído se enquadra no tratado, sendo a eles defeso interferir no equilíbrio de um tratado por outros meios. A título exemplificativo, imagina-se que, quando o tratado foi concluído, os Estados Contratantes cobraram um imposto sobre o patrimônio líquido e, posteriormente, um Estado extinguiu seu imposto sobre patrimônio líquido, enquanto o outro o manteve, mas entendeu que tal tributo não estava coberto pelo tratado, uma vez que não há mais qualquer possibilidade de dupla tributação. Todavia, a não aplicação do tratado pode até levar à dupla não tributação14.
A fim de exemplificar a interpretação dinâmica supracitada, a doutrina15 menciona o caso australiano Virgin Holdings SA vs. Federal Commissioner of Taxation16, envolvendo o tratado Austrália-Suíça concluído em 1980 que incluía o “Australian Income Tax” na lista de tributos visados. A discussão se referia à possibilidade de este tratado cobrir também a tributação de ganhos de capital, introduzida apenas em 1986.
Embora esse caso seja, frequentemente, apresentado como um exemplo de interpretação dinâmica dos tributos listados, a Corte australiana entendeu, expressamente, ser desnecessário o debate acerca da prevalência de uma interpretação estática ou dinâmica17, concluindo apenas que a tributação sobre ganhos de capital seria parte do próprio “Australian Income Tax”, apesar de inexistirem os correspondentes parágrafos 1º e 2º da CM-OCDE. Austrália e Suíça adotaram uma lista taxativa dos tributos visados.
Por outros torneios, o Tribunal decidiu que o tributo sobre ganho de capital está incluído
no “Australian Income Tax”, mesmo que tenha sido criado após a conclusão do tratado.
Interessante notar que a Corte considerou irrelevante a aplicação do artigo 2(2) do tratado (parágrafo 4º na CM-OCDE) – “It also follows that it is unnecessary, on my view, to consider the Art 2(2) issue” –, o que me parece bastante criticável, ainda mais quando o tratado não possui os parágrafos 1º e 2º (adota uma lista taxativa).
De qualquer forma, apesar de seus principais fundamentos serem criticáveis por tomarem como desnecessário o “teste de similaridade substancial”, a Corte australiana adotou, mesmo se furtando da discussão, uma interpretação dinâmica dos tributos visados, independentemente da taxatividade da lista. Dentro desse contexto, surgem problemas hermenêuticos sobre se determinado tributo foi ou não intencionalmente afastado do escopo substantivo do tratado.
Michael Lang esclarece que a ausência de um tributo na lista prevista no artigo 2(3) não significa que esse tributo está excluído do escopo material dos tratados se ele se enquadrar nos artigos 2(1) e 2(2)18. Tal visão é alterada apenas se existirem evidências suficientes que comprovem a intenção dos Estados Contratantes de excluir certo tributo do escopo do tratado.
Outrossim, a mera exclusão de um tributo da lista constante no parágrafo 3º não pode afastar a aplicabilidade dos parágrafos 1º e 2º, sendo indispensável a menção expressa pelos Estados Contratantes, conforme apontado pelo Working Party n. 30, grupo de trabalho da OCDE19.
Muitos países decidem omitir os parágrafos 1º e 2º a fim de limitar o escopo amplo do artigo 2º, situação na qual somente os tributos listados no parágrafo 3º estarão cobertos pelo tratado. Caso os Estados Contratantes decidam por uma lista taxativa, resta evidente a intenção de não confiar nas expressões genéricas e vagas trazidas pelos parágrafos 1º e 2º, o que torna significativa a análise da política de cada país quanto a esse dispositivo.
De todo modo, a redação original do artigo 2º, desenhada para conferir uma interpretação ampla dos tributos cobertos pelo tratado, apresenta um caráter dinâmico justamente em seu parágrafo 4º, o qual impede o engessamento dos acordos de bitributação, assegurando sua funcionalidade a despeito das constantes alterações nas legislações de cada Estado Contratante.
O parágrafo 4º do artigo 2º: função, aspectos principais e o teste de similaridade substancial
Considerando que o tratado somente pode prever os tributos existentes à época de sua assinatura, a redação do parágrafo 4º ganha importância não apenas em um cenário de
economia digital marcado pelo surgimento de novos tributos, mas também para impedir a obsolescência dos acordos de bitributação.
Nesse sentido, o artigo 2(4) visa evitar a renegociação do tratado sempre quando forem realizadas mudanças significativas nas leis domésticas dos Estados Contratantes20, sendo aplicável independentemente de a lista prevista no artigo 2(3) ser exaustiva ou exemplificativa. Assim, sua principal função é, sem sombra de dúvidas, assegurar a operatividade dos acordos de bitributação a despeito de mudanças nas legislações internas, conferindo uma extensão automática do escopo objetivo dos acordos de bitributação aos tributos instituídos após a conclusão dos tratados.
Os parágrafos 3º e 4º dialogam e se complementam na medida em que ambos trazem um elemento temporal. O primeiro aponta os tributos à época da conclusão do tratado, enquanto o segundo inclui no escopo substantivo tributos idênticos ou substancialmente similares introduzidos após a sua assinatura21.
Essa complementariedade é indispensável para manter o funcionamento ótimo dos acordos de bitributação, assegurando sua vida útil inobstante alterações legislativas derivadas de uma evolução natural do Direito ou de medidas unilaterais tomadas pelos Estados Contratantes com o intuito de afastar as cláusulas convencionais (“treaty override”22).
Verifica-se, pois, que o artigo 2(4) possibilita a ampliação do escopo material dos tratados aos tributos criados após a celebração do acordo de bitributação e que sejam substancialmente idênticos ou similares àqueles já incluídos. Esse dispositivo não possibilita, contudo, a inclusão de tributo não previsto no artigo 2(3) a menos que se torne substancialmente similar a algum tributo listado, sendo este um papel reservado apenas aos artigos 2(1) e 2(2).
Sobre esse aspecto, convém apontar que o artigo 2(4) e os Comentários da OCDE não esclarecem se apenas podem ser utilizados como referência os tributos existentes no Estado Contratante que os instituiu ou alterou. Tomando em conta o caráter bilateral dos acordos de bitributação e as negociações que levaram a sua celebração, as quais analisaram os sistemas tributários dos dois países, parece-me inquestionável que um tributo existente em um Estado Contratante pode ser comparado com um tributo criado ou modificado no outro Estado23.
Patricia Brandstetter ressalva que esse entendimento apenas poderia ser afastado através de previsão expressa no próprio acordo de bitributação ou em protocolo24, situação na qual os Estados buscariam evitar eventuais assimetrias no tratado de modo a resguardar o equilíbrio dantes pactuado25. Vale dizer que a função ampliativa do artigo 2º não elimina o caráter bilateral do tratado26, servindo, na verdade, como mecanismo de proteção dos contribuintes que se valem dos benefícios ofertados pelo tratado27.
Outro ponto interessante do artigo 2(4) se refere à exigência de notificação dos Estados Contratantes quando realizadas mudanças significativas em suas legislações tributárias.
Tal notificação não é requisito para a abrangência dos tratados, sob pena de ignorar o efetivo cumprimento das cláusulas convencionais, permitindo que o Estado infrator não observe o teste de similaridade substancial28. Admitir que a ausência de notificação possa obstar que determinado tributo esteja coberto pelo tratado significa subverter a própria função e redação ampliativa do artigo 2º em razão de elemento meramente formal.
Contudo, o Conselho Administrativo de Recurso Fiscais – CARF decidiu de forma diversa no Acórdão n. 1102-001.247, entendendo que sobredita notificação condiciona o escopo material dos tratados29. O equívoco da decisão é tamanho a ponto de colocar em xeque a aplicação da cláusula convencional a certo tributo e o próprio caráter bilateral do tratado em virtude do “descumprimento” por um único Estado, isto é, confere-se ao Estado violador o poder de obstaculizar unilateralmente a abrangência do acordo, em contrariedade ao princípio da boa-fé e ao pacta sunt servanda insculpidos na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.
Um exemplo da desnecessidade de notificar o outro Estado Contratante envolve o tratado Brasil-Chile. As autoridades brasileiras notificaram o Chile a respeito da edição da Lei n. 13.202/2015, que incluiu a CSLL nos acordos brasileiros para fins de interpretação. Todavia, o órgão fiscal chileno informou, através do Ofício n. 86930, que a CSLL já estaria coberta pelo acordo em virtude da redação conferida aos artigos 2(1) e 2(2), isto é, a “notificação serviu apenas para esclarecer a aplicação do artigo sobre o método para evitar a bitributação também para a CSLL”31.
Desse modo, a ausência da notificação prevista no parágrafo 4º não constitui impeditivo para a aplicação do tratado a tributos introduzidos após sua assinatura.
Outrossim, o artigo 2(4) se aplica independentemente de a lista constante no parágrafo 3º ser exaustiva ou exemplificativa. Como bem apontado por Galdino32, essa observação é importante, já que os Comentários da CM-OCDE, ao considerarem uma lista meramente exemplificativa, destacam que o tratado deve ser aplicado para todos os tributos idênticos ou substancialmente similares criados após a sua celebração33. Essa visão da OCDE pode ser interpretada como se o artigo 2(4) não fosse necessário quando o tratado prevê uma lista taxativa.
No entanto, na existência de tratados que adotam uma lista exaustiva, a importância do artigo 2(4) é ainda maior de modo a garantir a funcionalidade do tratado para tributos surgidos após sua celebração, evitando, inclusive, a ocorrência de situações de dupla tributação. Por outro lado, não se pode ignorar que os Estados Contratantes, ao optarem por uma lista taxativa, adotaram uma interpretação restritiva do artigo 2º, fato que deve ser levado em consideração no momento de aplicação do “teste de similaridade substancial”, assim como se propõe neste estudo.
De todo modo, diante da generalidade dos parágrafos 1º e 2º, a doutrina majoritária entende que a aplicação do artigo 2(4) tem como referência o parágrafo 3º34. Mário Tenore adota posicionamento diverso35. O jurista italiano defende que os artigos 2(1) e 2(2) servem de
referência ao artigo 2(4), desconsiderando o parágrafo 3º em virtude da natureza exemplificativa. Contudo, vale destacar que ainda que o tributo indicado no artigo 2(3) não se enquadre nos artigos 2(1) e 2(2), é possível que haja um tributo idêntico ou substancialmente similar a ele36.
Além disso, os artigos 2(1) e 2(2) podem ser aplicados para abarcar tributos que não constam no artigo 2(3) e que não passaram pelo “teste da similaridade substancial”, já que aqueles dispositivos não estão condicionados a um elemento temporal. Um exemplo dessa situação foi o caso Kinsella vs. The Revenue Commissioners37. A Corte irlandesa entendeu que o tributo sobre ganho de capital estaria coberto pelo tratado Irlanda-Itália em razão do artigo 2(2), que traz a expressão “taxes on gains from the alienation of movable or immovable property”.
Ora, a redação e a função ampliativa do artigo 2º não podem ser ignoradas, sob pena de retirar o caráter dinâmico do artigo 2(4), tornando, por conseguinte, os tratados completamente inoperáveis. Apesar de sua relevância para a funcionalidade dos tratados, esse dispositivo adota uma expressão demasiadamente genérica, afinal, o que seria “substancialmente similar”?
Essa pergunta adquire maior relevância no contexto de uma economia digital, no qual surgem tributos dotados de características híbridas, ou seja, tanto tributos cobertos pelos tratados quanto tributos não visados, colocando em dúvida a aplicação das cláusulas convencionais.
O artigo 2(4) traz o denominado “teste de similaridade substancial”, cujo principal objetivo consiste em identificar os tributos “de natureza idêntica ou similar que entrem em vigor posteriormente à data da assinatura da Convenção, seja em adição aos tributos atuais, seja em sua substituição”.
Ocorre que, além de incluir elementos vagos e genéricos, a Convenção-Modelo e seus respectivos Comentários não fornecem quaisquer critérios para interpretar o que seria um tributo substancialmente similar. Dessa forma, o teste proposto pelo artigo 2(4) apresenta três problemas principais: (i) o conceito de “substancialmente similar” é indeterminado – não sabemos se estamos falando da natureza do tributo ou de outros elementos que compõem sua regra-matriz de incidência tributária; (ii) a definição do peso atribuído a cada um dos elementos considerados na aplicação do teste38; e (iii) o teste não é definitivo, uma
vez que o tributo, a princípio, coberto pelo tratado pode sofrer alterações que o retirem do escopo material39.
De todo modo, Brandstetter destaca que a aplicação do “teste de similaridade substancial” deve passar, precipuamente, pela análise da essência do tributo, e não por seus aspectos formais a fim de compará-lo com os tributos listados pelos Estados Contratantes40. Caso fosse dada maior relevância aos aspectos formais, tais como, denominação, alíquota, forma de cobrança, entre outros, os Estados Contratantes teriam o poder de modificar o escopo material dos tratados por meio de mudanças meramente pró-forma, o que levaria a situações de dupla tributação e à distorção da própria função ampliativa do artigo 2º.
Seguindo o entendimento supra, Galdino resume, de forma precisa, a discussão proposta acima41:
“Sobre essa possibilidade de um Estado Contratante poder, por meio de simples medidas unilaterais, interferir no escopo do ADT, deve-se afastar uma interpretação do art. 2(4) nesse sentido. Quando o art. 2(4) dispõe que estarão cobertos tributos instituídos além ou no lugar dos tributos existentes, poderia ser depreendido que esse dispositivo só cobre novos tributos e não meramente modificações dos tributos vigentes. Isso, entretanto, levaria à possibilidade de os Estados Contratantes modificarem substancialmente seus tributos, sem alterar suas denominações. As partes, então, poderiam, de maneira unilateral, afetar o propósito do ADT. Assim sendo, faz sentido observar, não o nome do tributo, mas sua essência e compará-lo aos diferentes tipos de tributos listados pelas duas partes”.
O próprio artigo 2(1) demonstra a irrelevância de aspectos formais para a delimitação do escopo substantivo dos acordos de bitributação ao trazer a expressão “irrespective of the manner in which they are levied”42. Nesse sentido, a alíquota, que está sujeita a variações econômicas e políticas, não constitui um elemento decisivo, já que apenas quantifica o montante pago, sem atestar a natureza jurídica do tributo devido.
Acrescenta-se, ainda, que a intenção dos Estados Contratantes, a destinação do tributo avaliado e o critério pessoal (sujeição passiva43) não representam elementos definidores da existência de um “tributo substancialmente similar”44. A natureza do tributo e o objeto da
tributação45 são os fatores-chave para a aplicação do “teste de similaridade substancial”,
uma vez que permitem distinguir materialmente determinado tributo dos demais.
A título exemplificativo, menciona-se a CSLL, a qual, embora incida sobre o lucro (tratados preveem tributos sobre a renda ou o capital), é vista como um mero “adicional” do IRPJ, isto é, trata-se de tributo substancialmente similar, o que possibilita sua inclusão nos acordos de bitributação brasileiros.
Essa questão foi decidida com a edição da Lei n. 13.202/2015, cujo art. 11 estabelece que “Para efeito de interpretação, os acordos e convenções internacionais celebrados pelo Governo da República Federativa do Brasil para evitar dupla tributação da renda abrangem a CSLL”. Embora inexista discussão judicial ou administrativa sobre a legalidade dessa previsão46, é bastante criticável a possibilidade de um Estado Contratante definir unilateralmente o escopo material do tratado tanto para incluir quanto para excluir algum tributo, fato que coloca em risco o equilíbrio convencional e a própria bilateralidade do instrumento, assim como defendido neste estudo para os tributos inseridos no contexto da economia digital.
Além do critério material, a base de cálculo é colocada como um dos, senão, o mais importante elemento para a aplicação do “teste de similaridade substancial”47, já que está diretamente relacionada à natureza da exação tributária.
Desse modo, pode-se concluir que o “teste de similaridade substancial” tem como
elementos-chave: (i) o objeto da tributação; (ii) o critério material da hipótese tributária; e
(iii) a base de cálculo. Destaca-se que a presença de apenas uma dessas características não é suficiente per se para aplicação do artigo 2(4), e a dificuldade acerca do peso de cada um desses elementos permanece48.
Definidos os principais elementos que integram o artigo 2(4), cumpre discutir a forma de aplicação do teste. Essa tarefa pode levar a interpretações diferentes a depender do método utilizado pelo operador do Direito, o que traz maiores dificuldades na medida em que a Convenção-Modelo da OCDE se limita a mencionar elementos genéricos, cuja compreensão e aplicação dependem de construções doutrinárias e jurisprudenciais.
Nessa toada, é interessante a posição de Blank e Ismer, os quais apresentam duas abordagens: (i) microabordagem; e (ii) macroabordagem49. Esses métodos não são conflitantes, podendo ser utilizados em conjunto para a aplicação do artigo 2(4) em circunstâncias que demandam uma análise individual e uma análise global.
Consoante o primeiro método, a comparação se dá em relação a somente um tributo ou aos elementos que o compõem, o que pode, a meu ver, desconsiderar as particularidades dos sistemas tributários caso seja adotado exclusivamente, pois deixaria de analisar as demais materialidades previstas no ordenamento jurídico dos Estados Contratantes.
Galdino menciona dois casos em que foi aplicada a microabordagem50. O primeiro envolveu o tributo municipal da Áustria (“Kommunalsteuer”), e o Tribunal austríaco entendeu que esse tributo era substancialmente similar ao Gewerbesteuer em virtude do objeto tributável51.
No caso Virgin Holdings SA vs. Federal Commissioner of Taxation, mencionado anteriormente, a Corte australiana, apesar de ressaltar a desnecessidade de realização do “teste de similaridade substancial”, assentou que o tributo sobre ganho de capital é substancialmente similar ao tributo sobre a renda em função da base de cálculo.
O segundo método, a seu turno, consiste em uma evolução da microabordagem, tendo em vista que considera um conjunto de tributos para identificar a similaridade substancial com determinado tributo instituído após a conclusão do tratado. Vale dizer que esse método analisa o sistema tributário como um todo, fato que não resulta em uma comparação com todos os tributos existentes nos Estados Contratantes, afinal, sempre haverá alguma semelhança entre um tributo e outro.
Nessa toada, Vogel destaca que a aplicação do artigo 2(4), cuja redação permanece intacta até os presentes dias, exige o exame de todos os tipos de tributos historicamente desenvolvidos nos Estados Contratantes, em especial, naquele que instituiu o tributo analisado52.
Em suma, a questão se cinge a verificar não se um tributo é similar a outro, porque sempre existirão semelhanças, mas sim a identificar, dentro do sistema tributário, qual tributo mais se aproxima daquele criado após a assinatura dos tratados.
Dentro desse contexto, este estudo buscará mais adiante, ao empregar os métodos supracitados, avaliar se o “Digital Services Tax”, proposto pela União Europeia e cuja materialidade se aproxima da COFINS, está inserido no escopo substantivo dos acordos de bitributação brasileiros. No entanto, antes, cumpre examinar a política brasileira em relação ao artigo 2º, a qual possui certos distanciamentos da Convenção-Modelo da OCDE, importantes para a conclusão deste estudo.
A POLÍTICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO AO ARTIGO 2º: TAXATIVIDADE E INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Embora o Brasil venha se movimentando para a ampliação de sua rede de tratados, motivado pelo pleito de ingresso na OCDE, fato é que sua rede ainda é pequena, o que limita o volume de investimentos no território brasileiro e reduz as oportunidades de novos negócios53. No tocante ao artigo 2º, observa-se que a política brasileira se distancia da Convenção-Modelo da OCDE, uma vez que os tratados brasileiros54, em sua maioria, não possuem os artigos 2(1) e 2(2), além de adotarem uma lista taxativa no artigo 2(3).
Em relação ao artigo 2(1), 20 (vinte) tratados não possuem esse dispositivo55, destacando-se os tratados com os Emirados Árabes Unidos e a Suíça, assinados recentemente e ainda pendentes de aprovação pelo Congresso Nacional. Por outro lado, o acordo com a Argentina passou, após o Protocolo assinado em 2018 (Decreto n. 9.482/2018), a ter o artigo 2(1), assim como os acordos recém-celebrados com Singapura e Uruguai, e outros 14 (catorze) acordos56.
As divergências em relação ao artigo 2(1) se resumem a três aspectos: (i) tributação apenas da renda (exclui-se o capital); (ii) exclusão da referência às subdivisões políticas e autarquias locais57, com exceção do acordo com a Itália; e (iii) ausência da menção à irrelevância das formas de cobrança do tributo. Apesar de os tratados com Singapura e Uruguai trazerem o artigo 2(1), não se pode falar em uma eventual mudança de direção na política de tratados, já que o recém-firmado acordo com a Suíça carece desse dispositivo.
No que tange ao artigo 2(2), que representa mera observação ou ampliação do parágrafo 1º, apenas 7 (sete) tratados brasileiros58 possuem esse dispositivo, os quais, em sua maioria, excluem os tributos sobre o capital. Interessante notar que, embora o artigo 2(2) atue, normalmente, em conjunto com o parágrafo precedente, o acordo Brasil-Suíça não detém o parágrafo 1º, mas tão somente o parágrafo 2º.
Outro ponto que vale destaque consiste no fato de que somente o tratado Brasil-Uruguai, assinado recentemente, apresenta artigo 2(2) idêntico à redação proposta pela OCDE59.
Nessa linha, considerando que os acordos de bitributação brasileiros não possuem, em sua maioria, os artigos 2(1) e 2(2), verifica-se que a política brasileira em relação ao artigo 2º adota uma lista taxativa em seu parágrafo 3º, o que é corroborado pela ausência da expressão “in particular”. Essa lista exaustiva apresenta como tributo brasileiro apenas o “imposto federal sobre a renda”, com a exclusão de algumas incidências em determinados tratados60.
Sobre a inclusão da CSLL no escopo substantivo dos acordos de bitributação, nota-se que apenas 5 (cinco) tratados apresentam protocolo61 ou convenção adicional62 incluindo a CSLL na lista de tributos visados. Em que pese o governo brasileiro preferir assinar protocolos ou celebrar convenções adicionais para modificar sua rede de tratados, o que fica claro com a ausência de adesão ao MLI – Multilateral Instrument63, nada impede que a CSLL integre os demais tratados, seja em razão da criticável Lei n. 13.202/201564, seja em virtude da aplicação do artigo 2(4), já que consiste em mero tributo “substancialmente similar” ao “imposto federal sobre a renda”65.
Os acordos recém-celebrados pelo Brasil com Emirados Árabes Unidos, Singapura, Suíça e Uruguai já incluíram essa contribuição em seu artigo 2º. Contudo, interessante notar que as versões em inglês desses tratados (no caso do Uruguai, a versão espanhola) expõem uma suposta mudança da política brasileira, já que adotam uma lista meramente
exemplificativa no parágrafo 3º, suscitando dúvidas sobre qual versão deve ser aplicada (em português – lista taxativa, ou, em inglês e espanhol, lista exemplificativa).
Os tratados assinados com os Emirados Árabes Unidos e a Suíça preveem expressamente que, em caso de divergência de interpretação entre as versões, prevalecerá a versão em inglês66. Em relação aos acordos com Uruguai e Singapura, que não fazem essa ressalva, será admitido, para fins deste estudo, que a versão em português prevalece, considerando- se a política brasileira para o artigo 2º.
Não é objeto deste estudo discutir qual a versão aplicável, mas cumpre chamar atenção para esse fato, no mínimo, interessante, parecendo-me que ocorreu mero erro na redação do acordo em língua estrangeira, o que atrairia a aplicação do artigo 79 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados67.
Ainda é cedo para verificar se o Brasil mudará sua política de forma definitiva em relação ao artigo 2(3), passando a adotar uma lista exemplificativa, porém é inegável que se trata de uma alteração histórica e que merece acompanhamento nos próximos acordos a serem celebrados pelo governo brasileiro. De qualquer forma, os demais acordos brasileiros mantiveram a lista exaustiva de tributos visados em todas as suas versões.
Nesse sentido, Marcelo Rosa sustenta que o objetivo brasileiro com a adoção da lista exaustiva é justamente “diminuir a possibilidade de interpretação extensiva”, garantindo uma interpretação mais restrita tanto aos tributos futuros quanto a outros tributos existentes no momento da conclusão do acordo68.
A política brasileira para o artigo 2(4) apresenta pequenas modificações em relação à Convenção-Modelo da OCDE, tais como a desnecessidade de notificação periódica. A título exemplificativo, os tratados com Japão, Luxemburgo e França excluem a necessidade de notificação do outro Estado Contratante caso sejam realizadas modificações significativas nas legislações domésticas.
Dessa forma, é evidente que o Brasil, ao excluir os artigos 2(1) e 2(2) na maioria de seus tratados e adotar uma lista taxativa, optou por uma interpretação restritiva do artigo 2º. Assim, diante de uma lista exaustiva, tributo não listado no artigo 2(3), mesmo que incidente sobre a renda ou capital, estará fora do escopo material do tratado, a menos que seja substancialmente similar ao “imposto federal sobre a renda” ou à CSLL nos tratados em que ela foi diretamente incluída na lista de tributos visados.
Observa-se, pois, que a política adotada por cada Estado impacta no escopo substantivo dos tratados, consistindo em um fator dificultador do consenso e da cooperação internacional buscados, aparentemente, pela OCDE e pela Comissão Europeia para a tributação na economia digital, o que aumenta o cenário de insegurança jurídica e intensifica a importância do artigo 2º nos debates acadêmicos atuais.
Tal fato corrobora a ideia aqui defendida de que a instituição de uma “COFINS digital”, nos moldes propostos pela União Europeia com o “Digital Services Tax”, não estaria, a princípio, coberta pelo escopo material dos acordos de bitributação brasileiros em virtude da exclusão dos artigos 2(1) e 2(2) e da lista exaustiva no artigo 2(3).
A APLICAÇÃO DO TESTE DE SIMILARIDADE SUBSTANCIAL AO “DIGITAL SERVICES TAX” PERANTE OS ACORDOS DE BITRIBUTAÇÃO BRASILEIROS
A economia digital e a proliferação de “tributos digitais”: unilateralismo x cooperação internacional
Existem diversos modelos de negócio relacionados à economia digital69, porém todos eles possuem em comum a criação de valor descentralizada e desvinculada de uma presença física, característica que levanta dúvidas sobre como tributar as transações realizadas pelos agentes desse mercado.
Nesse contexto, em 2015, a OCDE apresentou a Ação n. 1 do Projeto BEPS – “Addressing the tax challenges of the digital economy”70, na qual afasta a possibilidade de tratamento diferenciado à economia digital em relação aos setores tradicionais, e discute três principais
reformas: (i) extensão do nexo para tributação na fonte – “significant economic presence”;
(ii) retenções em transações digitais; ou (iii) “equalization levy”71. Contudo, a OCDE não fez nenhuma recomendação, demonstrando a ausência de consenso entre os países participantes do Projeto, o que pode levar à inefetividade dos estudos realizados72.
Em março de 2018, foi apresentado um Interim Report73, no âmbito dos trabalhos desenvolvidos pelo Inclusive Framework (iniciativa da OCDE para o estudo e a implementação do Projeto BEPS), o qual, embora reconheça a dificuldade política da missão, reafirma o compromisso de construir uma “consensus-based solution by the end of 2020”. Após a realização de consultas públicas, a OCDE lançou, em maio de 2019, o “Programme of Work to Develop a Consensus Solution to the Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy” para a divulgação de um Report final em 2020.
Este último trabalho divulgado pela OCDE busca estipular diretrizes para os grupos técnicos responsáveis pelos estudos em torno da tributação na economia digital, focando em dois pilares: (i) alocação dos lucros nas jurisdições e as regras de conexão; e (ii) regras que possibilitem a algumas jurisdições o direito de “tax back” em situações nas quais o outro Estado não exerceu seu direito de tributar ou o pagamento está sujeito a baixos níveis de tributação efetiva.
Nota-se que a OCDE incorre no mesmo equívoco cometido quando da divulgação da Ação
n. 1, já que, a despeito de rejeitar o tratamento distinto para a economia digital, coloca como um dos principais focos de seu trabalho, no âmbito de implementação do BEPS, a alocação de jurisdição sobre a tributação na economia digital em vez de simplesmente definir critérios gerais dissociados de uma presença física e aplicáveis à economia como um todo74. Não se discute a relevância da alocação de lucros na economia digital, mas sim a inserção desse tema no combate a “planejamentos tributários agressivos” e à erosão da base tributária quando inexistem regras definidas para essa nova realidade.
Diante da obsolescência das regras tributárias internacionais e a fim de assegurar uma tributação justa e eficiente da economia digital, a Comissão Europeia, a seu turno, parece
favorecer a criação de um novo imposto sobre determinados serviços digitais como medida provisória (“quick fix”), antes de acordar uma definição do que é estabelecimento permanente digital (“significant digital presence”) como objetivo da política fiscal a longo prazo75.
A proposta europeia identifica dois desafios76: (i) a criação de valor pode ser atribuída a uma jurisdição na qual a empresa de tecnologia não possui presença física, o que impediria a tributação; e (ii) ainda que tenha uma presença física no Estado do usuário, o valor criado pela participação do usuário não é considerado para a definição do quantum a ser pago.
Em que pese a Comissão entender que são necessárias soluções multilaterais/internacionais para lidar com a economia digital, há uma pressão política para a tomada de medidas que evitem a erosão das bases tributáveis, uma vez que soluções globais demoram e dependem do difícil consenso entre os países. Nessa linha, a Comissão propõe o “Digital Services Tax”, o qual é “levied on the revenues resulting from the supply of certain digital services characterised by user value creation” (artigo 3º da Diretiva proposta), incluindo os serviços nos quais a participação dos usuários é vital.
No discurso, privilegia-se o consenso internacional, mas tanto a OCDE quanto a Comissão Europeia reconhecem as dificuldades de atingi-lo, motivo pelo qual discutem medidas temporárias que podem levar, contudo, a uma maior insegurança jurídica e a desafios quanto à inclusão dos novos tributos no escopo substantivo dos tratados.
Apesar das iniciativas promovidas pela OCDE e pela Comissão Europeia para a adoção de uma solução em torno da tributação na economia digital, diversos países, no afã de assegurarem suas “fatias do bolo” sobre um mercado com regramento tributário ainda incerto, introduziram ou pretendem introduzir novos tributos em seus ordenamentos jurídicos para combater a erosão fiscal e os “planejamentos tributários agressivos”, seja lá o que se entenda por “agressivo”. Dentro desse contexto, destacam-se o “Indian Equalization Levy” (cobrado em transações digitais – os pagadores são obrigados a reter 6% quando o pagamento é feito para empresas não residentes), o “UK Diverted Profits Tax”77, o “Australian Diverted Profits Tax”, o “Netherlands Excessive Severance Tax” e o “Belgian Fairness Tax”78.
Esses tributos foram criados, notadamente, para escaparem do escopo do tratado, consubstanciando uma vontade dos Estados de adotarem medidas unilaterais em vez de esperarem por um consenso de difícil alcance, ou de atuarem pela construção de uma cooperação internacional. Ismer e Jescheck sustentam que os tributos indiano e britânico se aproximam do “corporate tax” previsto nos acordos de bitributação, razão pela qual, ainda que não se considere que esses tributos constituam “taxes on income”, eles são substancialmente similares a um “income tax” na forma do artigo 2(4)79.
Desde 1963, a redação do artigo 2º, CM-OCDE, não sofreu alterações significativas, e a adoção de um escopo amplo dos tributos cobertos pelo tratado evitou o surgimento de conflitos interpretativos sobre a matéria até o advento da era digital, já que nem mesmo uma redação ampla é capaz de impedir que certos tributos não estejam cobertos pelos tratados. Esses novos tributos podem constituir “treaty overrides” ou estar fora do escopo dos acordos de bitributação.
Verifica-se, pois, a existência de um “cabo de guerra” entre a urgência na adoção de medidas para a tributação na economia digital e a obtenção de um consenso internacional sobre a matéria que promova a segurança jurídica necessária às relações internacionais. No meio dessa encruzilhada, novos tributos estão sendo criados sem a menor segurança de que estarão cobertos pelos acordos de bitributação, deixando de lado a imprescindível cooperação internacional.
A falta de coordenação global e a adoção de medidas unilaterais pelos Estados contribuem para um cenário de forte insegurança jurídica e elevam o risco de situações com dupla tributação80. Abordagens multilaterais reduziriam o risco de dupla tributação e aumentariam a segurança jurídica, porém exigem vontade política para promover uma cooperação internacional cujo objetivo precípuo consiste na repaginação das regras existentes81, abandonando, de um lado, a busca por um consenso ainda distante e, do outro, a tomada de iniciativas unilaterais.
O enquadramento de determinado “tributo digital”, o qual combina elementos da tributação da renda e da tributação do consumo (híbrido), no escopo material dos acordos de bitributação depende de sua estrutura, materialidade e base de cálculo. Tal enquadramento pode se dar por dois caminhos: (i) artigo 2(1), com sua delimitação esparsa
pelo artigo 2(2); ou (ii) pela lista exaustiva do artigo 2(3), a qual ganha um dinamismo com a redação do artigo 2(4).
Nesse sentido, este estudo se propõe verificar se o “Digital Services Tax” criado pela Comissão Europeia está coberto pelos acordos de bitributação brasileiros, levando em consideração o “teste de similaridade substancial” e as peculiaridades da política brasileira.
4.1. O (des)enquadramento do “Digital Services Tax” no escopo material dos acordos de
bitributação brasileiros
Esta seção visa analisar se o “Digital Services Tax” – DST, nova proposta da Comissão Europeia82, está coberto pelos acordos de bitributação brasileiros, valendo-se, assim, do “teste de similaridade substancial” previsto no artigo 2(4). Não se pretende ingressar nas discussões relativas à legalidade desse tributo, à concessão de tratamento discriminatório entre as empresas83 e à controversa efetividade da criação de regras específicas para a economia digital, mas tão somente verificar a compatibilidade desse tributo com a redação brasileira para o artigo 2º.
A tributação proposta pela Comissão Europeia está limitada a dois aspectos previstos no artigo 4º da Diretiva proposta: (i) empresas com receitas globais anuais acima de 750.000.000,00 euros; e (ii) empresas com receitas tributáveis obtidas na União Europeia superiores a 50.000.000,00 euros. Essa limitação tem origem na baixa tributação efetiva de multinacionais com operações na Europa, tais como Google, Apple e Facebook, o que motivou a União Europeia a estudar medidas para combater a erosão da base tributária e os “planejamentos tributários agressivos” construídos por essas empresas.
O DST incide sobre a receita bruta derivada de serviços digitais prestados por empresas que se enquadrem nas condições acima84, sendo devido ao Estado onde está localizado o usuário, com alíquota de 3% (três por cento), em observância à própria ideia central que originou esse tributo, qual seja, “user value creation”. Nota-se que a proposta europeia se assemelha à COFINS brasileira instituída pelas Leis n. 9.718/1998 e 10.833/2003, cujo fato gerador consiste na receita bruta derivada da venda de mercadorias e da prestação de serviços.
Como já adiantado, questões formais (forma de cobrança, obrigações acessórias, fiscalização, destinação, entre outras) não são relevantes para a aplicação do “teste de similaridade substancial”, razão pela qual não serão abordadas nesta seção85. Nesse sentido, limitar-se-á às particularidades da política brasileira, ao objeto da tributação, ao critério material e à base de cálculo do tributo86.
De início, cumpre destacar que um mesmo tributo pode estar coberto por determinado tratado, mas não por outro, já que depende da estrutura do artigo 2º adotada por cada convenção. Anteriormente, verificou-se que o Brasil, ao excluir os artigos 2(1) e 2(2) na maioria de seus tratados e adotar uma lista taxativa, escolheu uma interpretação restritiva do artigo 2º.
Desse modo, o enquadramento do DST nos acordos de bitributação brasileiros depende da estrutura de cada um dos tratados, podendo ocorrer pela aplicação dos artigos 2(1) e 2(2) ou do artigo 2(4), o que representa outro fator de insegurança jurídica causado pela adoção de medidas unilaterais.
Assim, para esta análise, divide-se a rede brasileira em dois grupos: (i) acordos sem os parágrafos 1º e 2º, isto é, que adotem uma lista taxativa dos tributos visados, a qual possui caráter dinâmico com a aplicação do parágrafo 4º; e (ii) acordos que contenham os artigos 2(1) e 2(2), ou, pelo menos, um deles.
O primeiro grupo é formado por 19 (dezenove) tratados87, os quais não apresentam o artigo 2(1) nem o artigo 2(2). Dessa forma, o único meio de incluir um tributo criado após a assinatura do tratado em seu escopo substantivo é através do “teste de similaridade substancial”, o qual ganha importância nessas circunstâncias, não se podendo, por outro lado, rejeitar a interpretação restritiva escolhida pelos Estados Contratantes.
Enquanto, no segundo grupo, composto por 18 (dezoito) acordos88, todos os tratados possuem o parágrafo 1º, o 2º ou ambos, mesmo que com pequenas variações quanto à presença da expressão “seja qual for o sistema usado para a sua cobrança”. Destaca-se que, dentro desse grupo, chama atenção o fato de que o tratado com a Suíça não possui o parágrafo 1º, mas apresenta o parágrafo 2º.
Considerando que o Brasil adota uma lista exaustiva, qualquer tributo não listado no artigo 2(3), ainda que incidente sobre a renda ou capital, não integrará o escopo material do tratado, a menos que seja substancialmente similar ao “imposto federal sobre a renda” ou à CSLL nos tratados em que ela foi diretamente incluída na lista de tributos visados. Com exceção dos tratados com Emirados Árabes Unidos, Singapura, Suíça e Uruguai (versão em inglês/espanhol), todos os acordos brasileiros possuem uma lista taxativa dos tributos visados.
Repisa-se que a aplicação do “teste de similaridade substancial” consiste em verificar não se um tributo é similar a outro, porque sempre existirão semelhanças, mas sim identificar, dentro do sistema tributário, qual tributo mais se aproxima daquele criado após a conclusão dos tratados. Nessa linha, cumpre avaliar se o DST é “substancialmente similar” ao “imposto federal sobre a renda” e à CSLL, na forma do artigo 2(4).
Como narrado acima, o DST, criado pela Comissão Europeia, incide sobre a receita bruta derivada da “prestação de serviços digitais”, sob uma alíquota de 3% (três por cento). Observa-se, pois, que o objeto de tributação é o serviço digital, o critério material consiste na obtenção de receita oriunda da “prestação de serviços digitais”, e sua base de cálculo é a receita bruta.
A partir dessa estrutura, dos principais critérios para a aplicação do “teste de similaridade substancial”, e dos métodos da micro e macroabordagem89, o DST, embora possua características híbridas e incida sobre um dos componentes da renda (receita), quando analisado dentro do sistema tributário brasileiro como um todo, assemelha-se à COFINS, instituída pelas Leis n. 9.718/1998 e 10.833/2003, em sua materialidade e base de cálculo, aproximando-se muito mais de um “turnover tax” (tributo sobre volume de negócios) do que de um “income tax”.
Mesmo raciocínio foi empregado por Luís Eduardo Schoueri90. O professor, ao analisar o Imposto sobre Serviços – ISS, afirmou que “o fato de o ‘novo’ ISS ser próximo do imposto de renda não exclui o fato de que o imposto também é próximo do ‘velho’ ISS, já existente quando da celebração dos tratados de bitributação, mas ali não incluídos”, concluindo que “para determinar se um imposto novo é substancialmente semelhante ao imposto de renda (objeto dos acordos de bitributação), deve-se considerar a totalidade do sistema tributário”.
Essa conclusão é reforçada pela própria interpretação restritiva adotada pelo Brasil quanto ao artigo 2º, a qual não pode ser subjugada pelo caráter dinâmico imposto pelo artigo 2(4). Dessa forma, o “teste de similaridade substancial” não é suficiente para que o DST, apesar de guardar semelhanças com o “imposto federal sobre a renda”, seja enquadrado no escopo
substantivo dos acordos de bitributação brasileiros, sendo necessária a aplicação independente dos artigos 2(1) e 2(2).
Com essa primeira análise, observa-se que os tratados inseridos no primeiro grupo, que
carecem dos parágrafos 1º e 2º, não abarcam definitivamente o “Digital Services Tax”.
Contudo, caso o Brasil adotasse uma lista exemplificativa, seria possível, a princípio, o enquadramento do DST no segundo grupo de acordos brasileiros, uma vez que a extensão do escopo substantivo dos tratados pode se dar pela aplicação independente dos artigos 2(1) e 2(2). O parágrafo 1º traça um limite geral para o escopo material, qual seja, apenas admite tributos sobre a renda ou capital (no caso brasileiro, exclui-se o capital).
O parágrafo 2º, a seu turno, busca delimitar o que são os “tributos sobre a renda e sobre o capital”, conforme indicado nos Comentários da OCDE91. No entanto, esse dispositivo, ao estabelecer que “impostos sobre a renda [são] aqueles que incidem sobre a totalidade da renda ou sobre parte da mesma”, representa mais uma observação ou ampliação do parágrafo precedente do que um conceito propriamente dito92.
Nessa toada, a presença dos artigos 2(1) e 2(2), tanto em conjunto quanto separados, permite que os tributos incidentes sobre a renda ou sobre os componentes da renda, tais como a receita, estejam cobertos pelos acordos de bitributação. Por outro lado, deve-se ponderar que o Brasil optou por uma interpretação restritiva do artigo 2º, com uma lista exaustiva, fator que não pode ser ignorado nesta análise e que impossibilita a aplicação independente dos artigos 2(1) e 2(2).
Assim, entendo que, apesar de os artigos 2(1) e 2(2) possibilitarem a inclusão do DST nos tratados brasileiros (segundo grupo), a escolha dos Estados Contratantes de limitar a função ampliativa do artigo 2º consubstancia um óbice ao efetivo enquadramento do DST, em consonância com o artigo 31(4) da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (Decreto n. 7.030/2009)93.
Essa conclusão muda de figura com os tratados recém-assinados com Emirados Árabes Unidos, Singapura, Suíça e Uruguai e pendentes de aprovação pelo Congresso Nacional, os quais abandonam, nas versões em inglês e espanhol, a lista taxativa do parágrafo 3º e adotam redação idêntica à da CM-OCDE. Nesse sentido, caso tal fato não represente mero erro na redação em língua estrangeira, haveria uma mudança na política brasileira, pelo menos para esses acordos, que impacta diretamente na construção do escopo substantivo, abrindo espaço para que tributos como o DST estejam cobertos por meio da aplicação dos
artigos 2(1) e 2(2), acompanhada de uma interpretação ampliativa do dispositivo, tal como apontado pela OCDE em seus Comentários.
Nota-se que, dentro de uma mesma rede de tratados, determinado tributo pode estar coberto por alguns, mas não por outros. Tal fato eleva a insegurança jurídica sobre a matéria, demonstrando que mesmo um consenso internacional acerca da forma de tributar a economia digital não esgotaria todos os problemas, ainda mais quando apenas 89 (oitenta e nove) países assinaram o MLI94.
Portanto, pensar em alternativas que fujam do difícil consenso internacional e do unilateralismo destrutivo é imprescindível para a construção de um ambiente de segurança jurídica e cooperação tanto para as autoridades tributárias quanto para os contribuintes.
CONCLUSÃO
Diante da adoção de medidas unilaterais por diversos países para a tributação da economia digital em detrimento da segurança jurídica e da cooperação internacional, este estudo buscou verificar a compatibilidade do artigo 2º dos acordos de bitributação brasileiros com o “Digital Services Tax” proposto pela Comissão Europeia. Nesse contexto, a análise do artigo 2º e de seus parágrafos, em especial do “teste de similaridade substancial”, foi fundamental para a delimitação do escopo material dos tratados, os quais detêm uma função ampliativa e um caráter dinâmico conferido por seu parágrafo 4º.
O dinamismo da redação do artigo 2º permite a funcionalidade dos acordos de bitributação, impedindo sua obsolescência apesar das constantes mudanças nas legislações domésticas dos Estados Contratantes. A expressão “substancialmente similar”, a qual tem como referência a lista de tributos visados constante no parágrafo 3º, deve considerar o objeto da tributação, o critério material e a base de cálculo do tributo instituído após a assinatura do tratado, critérios analisados diante do sistema tributário como um todo.
Ademais, verificou-se que o Brasil, ao excluir os artigos 2(1) e 2(2) na maioria de seus tratados e adotar uma lista taxativa, optou por uma interpretação restritiva do artigo 2º, afastando- se da CM-OCDE e de seus Comentários.
Dessa forma, o enquadramento do DST nos acordos de bitributação brasileiros depende da estrutura de cada um dos tratados, podendo ocorrer pela aplicação dos artigos 2(1) e 2(2) ou do artigo 2(4). Embora guarde semelhanças com o “imposto federal sobre a renda”, o DST se aproxima muito mais da COFINS, na medida em que também incide sobre a receita bruta
derivada da prestação de serviços, fato que impede sua inclusão no escopo material dos tratados brasileiros através do artigo 2(4).
Do mesmo modo, os artigos 2(1) e 2(2), presentes em alguns tratados brasileiros, não são suficientes para abarcar o DST, uma vez que a política brasileira quanto ao artigo 2º adotou uma lista exaustiva dos tributos visados e uma clara interpretação restritiva. Essa conclusão é alterada apenas nos tratados com Emirados Árabes Unidos, Singapura, Suíça e Uruguai, no qual se segue a redação da CM-OCDE com uma lista exemplificativa. Mesmo quanto a estes acordos, há dúvida sobre qual a versão aplicável (português – lista taxativa; inglês/espanhol – lista exemplificativa).
Um mesmo país pode ter tratados nos quais determinado tributo está coberto, mas em outros não. Tal fato demonstra a enorme insegurança jurídica em torno da tributação na economia digital, e o embate entre unilateralismo e consenso internacional, o qual, mesmo que fosse alcançado, seria de difícil implementação, como se constata pelas próprias complexidades do MLI95.
Nesse sentido, tanto a busca por um consenso quanto a tomada de medidas unilaterais contribuem para o aumento da incerteza nas relações internacionais, prejudicando as administrações tributárias e os próprios contribuintes. Ismer e Jescheck sugerem que a solução para a presente celeuma poderia se dar de duas formas: (i) inclusão da seguinte redação do artigo 2(4) – “The Convention shall apply also to any identical or substantially similar taxes that are imposed after the date of signature of the Convention in addition to, or in place of, the existing taxes where the competent authorities have reached a mutual agreement to this effect” (traria maior segurança jurídica objetiva, porém reduziria os direitos dos contribuintes); ou (ii) introdução de uma terceira sentença no artigo 2(3) que obrigue os Estados Contratantes a entrarem em um acordo (reforçaria o caráter bilateral dos tratados)96.
Desse modo, a cooperação internacional (países desenvolvidos e em desenvolvimento) e a evolução do procedimento amigável aparecem como alternativas para conferir maior segurança jurídica à matéria, evitando a tomada de medidas unilaterais, bem como abandonando discussões intermináveis destinadas à obtenção de um consenso de difícil alcance, que, mesmo que atingido, seria incapaz de resolver todos os problemas relacionados à inclusão dos “tributos digitais” no escopo material dos tratados.
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