CASO APPLE: ESTRATÉGIAS PARA DUPLA NÃO TRIBUTAÇÃO
LLM in International Tax Law pela University of Leiden. Advogado em São Paulo. E-mail: andrey.biagini@ldr.com.br
Doutoranda em Direito Tributário e Financeiro pela Universidade de São Paulo. Advogada em São Paulo. E-mail: helenatrentini@gmail.com
Recebido em: 30-04-2020
Aprovado em: 10-06-2020
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n7-1
Esse artigo objetiva analisar o planejamento tributário internacional da empresa multinacional Apple. Os autores partem da descrição do caso para analisar os artifícios utilizados pela Apple para reduzir a tributação devida, para explicá-los à luz dos princípios aplicáveis à tributação internacional e das medidas adotadas nos últimos anos pela comunidade internacional para coibir tais práticas. Com isso, os autores concluem que no cenário atual do direito tributário internacional foram publicadas regras que possibilitarão que as Autoridades Fiscais reduzam as possibilidades de empresas utilizarem planejamentos tributários como esse da Apple.
This article aims to analyze the international tax planning used by the multi-national company Apple. From the description of the measures taken by Apple to reduce the due taxation, the authors explain them in light of the principles of international taxation and the actions adopted in the past few years by the international community to fight against such practices. Thereby, the authors conclude that, in the actual scenario, the
international community developed new standards that can prevent aggressive tax planning like this one from Apple.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar os termos do planejamento tributário internacional da multinacional Apple, que ensejou contra ela a acusação de ter evitado o pagamento de 44 bilhões de dólares de impostos em todo o mundo nos anos de 2009 a 2012, conforme revelou uma audição parlamentar (parliamentary hearing) ocorrida nos Estados Unidos da América (EUA) em 20141.
O planejamento foi amplamente discutido tanto nos EUA, sede global da empresa, como também na Europa, pois parte relevante das operações do grupo envolvia países da União Europeia, em especial a República da Irlanda (Irlanda).
Foi objeto de investigação pela Comissão Europeia (European Comission – “CE”), que decidiu, em 30 de agosto de 2019, que as vantagens tributárias obtidas pela Apple na Irlanda ofenderam o disposto no art. 107(1) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”)2. Com isso, a CE determinou que a Irlanda cobrasse aproximadamente 13 bilhões de euros da Apple, acrescidos de juros, relativos aos tributos que deixaram de ser pagos pela empresa. A Irlanda apresentou recurso contra essa decisão ao Tribunal de Justiça Europeu, que ainda está pendente de julgamento3.
Esse dispositivo determina a declaração de incompatibilidade de qualquer ato e/ou omissão governamental que, ao auxiliar/beneficiar determinado grupo empresarial, resulte em ameaça a um ambiente de competição saudável entre as empresas, que é um dos objetivos centrais da União Europeia (“UE”).
Os Senadores norte-americanos questionaram a validade e, sobretudo, a moralidade de todos os atos planejados pelos dirigentes da Apple para viabilizar essa relevante economia tributária em um contexto global.
Os objetivos do presente artigo são (i) analisar criticamente o planejamento tributário internacional da Apple, apontando as principais estratégias utilizadas pela empresa nos EUA e na Europa; (ii) comentar algumas das soluções propostas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para minimizar os danos à arrecadação decorrentes desse tipo de planejamento tributário dito “abusivo” em uma perspectiva global.
Desde já os autores esclarecem que não é objetivo do presente artigo detalhar as estratégias e legislações utilizadas pela Apple. Buscou-se oferecer ao leitor uma visão geral desse planejamento tributário internacional que, assim como outros envolvendo multinacionais norte-americanas (Google, Starbucks, Microsoft etc.), gerou grande repercussão midiática nos últimos anos4.
DESCRIÇÃO DO CASO
A estrutura tributária da Apple pode ser assim resumida: a matriz, Apple Inc. (1), tão logo constituída nos EUA (lá estabelecendo residência fiscal), passou a atuar na Europa por intermédio de três subsidiárias irlandesas: a Apple Operations International (“AOI” – 2), a Apple Operations Europe (“AOE” – 3) e a Apple Sales International (“ASI” – 4). O diagrama abaixo ajudará a compreender a estrutura societária do Grupo Apple e o papel de cada empresa:
A AOI é uma holding do Grupo Apple, com a função de administrar e coordenar as operações das diversas subsidiárias e centros de distribuição e revenda ao redor do mundo5.
Vale acrescentar que, embora constituída na Irlanda, a AOI sempre manteve sua administração central e controle nos EUA.
Segundo os relatos contidos na audição parlamentar ocorrida nos EUA, a AOI (i) é uma shell company (empresa veículo ou de fachada); (ii) não possui funcionários; (iii) dois dos três diretores de fato da empresa eram empregados diretos da norte-americana Apple Inc. e residiam nos EUA; (iv) todas as reuniões de diretoria ocorriam em território norte- americano; (v) a maior parte dos ativos da AOI consistiam em dinheiro em espécie (caixa), depositados em instituições financeiras nos EUA; e (vi) não possui residência fiscal nos EUA nem na Irlanda.
No Testimony6 apresentado pela Apple Inc. ao Senado Americano, antes da instauração do Subcomitê permanente de investigações, a Apple esclarece que a AOI exerce funções (i) de estruturação dos importantes negócios que facilitam e melhoram o sucesso da venda nos mercados internacionais; (ii) de gestão do caixa e investimentos das receitas da Apple, após a tributação; e (iii) de controle eficiente e consolidado do fluxo de fundos. Nega se tratar de empresa de fachada e esclarece que a sua existência não acarreta diminuição da tributação e que é tratada como uma Controlled Foreign Company pela legislação norte-americana.
A AOI recebeu das suas subsidiárias (dentre elas, a ASI) valores expressivos de dividendos entre 2009 e 2011, não tendo oferecido valores à tributação nem nos EUA (local onde se concentra sua administração central), nem na Irlanda (local onde a empresa foi constituída).
A ASI, subsidiária da AOE, também foi constituída na Irlanda e, segundo os relatos contidos na audição parlamentar ocorrida nos EUA, contratava empresas chinesas (independentes) para fabricação e montagem de produtos Apple.
Posteriormente, esses produtos eram vendidos para centros de distribuição e revenda em diversos países. Segundo depoimentos, na maioria dos casos os produtos sequer transitaram pela Irlanda; ou seja, havia uma remessa direta da China para esses centros de distribuição e revenda.
Conforme observado por Ting, a Apple criou uma estrutura “trilateral”, na qual as subsidiárias Irlandesas foram inseridas nas transações que poderiam ser bilaterais (entre a Apple Inc. e as subsidiárias que atuavam na distribuição dos produtos). Com isso, permitiu- se que as subsidiárias na Irlanda recebessem parte substancial dos lucros da transação7.
Não obstante, em seu Testimony of Apple Inc. a Apple informa que a ASI emprega aproximadamente 4000 funcionários, em relação aos quais recolhe os tributos devidos na Irlanda. Ressalte-se que esses funcionários foram alocados à ASI após a reorganização societária da Apple ocorrida de 2012, pois antes disso a ASI não tinha funcionários. Note-se, ainda, que a quantidade de funcionários das empresas localizadas na Irlanda representa apenas 4% do número de empregados que a Apple possui no mundo. Essa desproporção se mostra ainda mais patente quando se verifica que 60% da receita está alocada na Irlanda.
Vale frisar que, também segundo os relatos ocorridos no parlamento norte-americano, a ASI estabeleceu um contrato de rateio de despesas (Cost Sharing Agreement) com a Apple Inc, cujos termos determinavam, por exemplo, o pagamento de 60% das despesas com Pesquisa e Desenvolvimento (R&D) suportadas pela Apple Inc. em nome de todas as empresas do grupo.
Sobre esse ponto, a Apple esclarece em seu Testimony of Apple Inc. que a sua planilha de custos é auditada pelo Internal Revenue Service (“IRS”) e que o percentual de rateio visa compartilhar o risco de desenvolvimento de novos produtos com suas controladas no exterior e que a participação da empresa no rateio de custos observa a participação relativa da receita auferida fora dos EUA. A título de exemplo, comenta que em 2012, por exemplo, aproximadamente 61% da receita foi auferida internacionalmente e 39% nos EUA. Assim, a Apple Inc. teria contribuído com 40% dos custos incorridos com R&D e a ASI com 60%, conforme se verifica do Memorandum elaborado pelos Membros do Subcomitê Permanente de Investigações do Senado americano (“Memorando”), datado de 21 de maio de 20138.
Não obstante, há estudos que revisaram os custos partilhados pela Apple no âmbito do seu contrato de rateio e verificaram que o rateio não se justificava comercialmente. Isso porque a ASI teria destinado parte desproporcional de sua receita para o pagamento dos custos com R&D. De acordo com o Memorando, a ASI lucrou o dobro da Apple Inc. e a sua propriedade intelectual foi desenvolvida nos EUA por funcionários da Apple Inc. Assim, não parecer haver outro motivo para que 74% do lucro da Apple fosse alocado na ASI relativa às vendas fora dos EUA, senão por conta da não tributação pela falta de residência fiscal da ASI.
Além disso, a Apple não teria explicado o motivo não tributário da transferência dos direitos econômicos sobre a propriedade intelectual para a ASI, considerando, ainda, que as decisões corporativas eram tomadas em território norte-americano. Frise-se que a Apple possui operação em diversos outros países e isso não se mostrou relevante para alterar os referidos direitos para outra jurisdição. Some-se a isso o fato de a maior parte dos produtos
ser industrializada por terceiros na China, que negociam diretamente com a Apple Inc., na Califórnia.
A Apple, ainda, comenta em diversos pontos de seu Testimony que não utilizou de países ou regiões com tributações favorecidas para diminuir artificialmente a tributação de seus negócios e que todas as mediadas adotadas estavam em conformidade com a legislação tributária dos países em que as suas subsidiárias foram constituídas.
ASPECTOS RELEVANTES DA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL NO CASO CONCRETO
O que levou à dupla não tributação?
Passaremos a analisar, nos itens a seguir, como essa estrutura mencionada acima resultou em uma não tributação dos lucros registrados pela AOI e ASI. Basicamente, demonstraremos que quatro temas foram os principais responsáveis por essa não tributação: (1) definição de residência fiscal nos EUA e Irlanda; (2) regras de Preço de Transferência aplicáveis especialmente aos bens intangíveis; (3) regimes de Controlled foreign corporation (CFC) e check-the-box nos EUA; e (4) utilização de jurisdição fiscal de tributação favorável.
Definições de residência fiscal nos EUA e na Irlanda
O ponto central do planejamento tributário da Apple envolve o fato de a legislação dos EUA e da Irlanda estabelecer regras diversas para a configuração da residência para fins fiscais de uma empresa.
O critério para definição de residência fiscal nos EUA é, como em muitos outros países no mundo, o local de constituição de uma empresa (local onde são arquivados os atos constitutivos).
A Irlanda, por outro lado, adota um critério menos usual, sendo a empresa residente no local onde está localizada a sua administração e controle central: simplificando, as autoridades irlandesas consideram que uma empresa possui residência fiscal no país onde residem e atuam seus principais diretores (ou seja, local de onde emanam as decisões gerenciais da empresa).
Como mencionado no item acima, a AOI e a ASI, embora constituídas na Irlanda, possuíam administração e controle central nos EUA; de fato, conforme visto acima, o corpo diretivo dessas empresas residia e atuava nos EUA e não na Irlanda.
Os resultados dessa situação inusitada foram: (i) uma empresa constituída na Irlanda, mas com administração e controle central nos EUA, simplesmente não possui residência em nenhum dos países envolvidos; por consequência lógica, (ii) somente as receitas auferidas
na própria Irlanda (vendas locais) foram tributadas naquele país (princípio da tributação na fonte); e (iii) as receitas auferidas fora da Irlanda simplesmente não são alcançadas pela tributação irlandesa.
Conforme evidencia o Memorandum9, “por mais de trinta anos, a Apple tem adotado a posição de que a AOI não possui residência fiscal, de modo que a AOI não apresentou nenhuma declaração de imposto de renda nos últimos 5 anos. Embora os EUA geralmente determinem a residência fiscal baseado no local de constituição da empresa, uma empresa de fachada constituída em uma jurisdição estrangeira poderia ser desconsiderada para fins de legislação tributária norte-americana se essa entidade for controlada pela sua matriz de uma tal maneira que a empresa de fachada nada mais seria que um instrumento da sua matriz. Enquanto a IRS e os tribunais têm mostrado relutância em aplicar esse teste para desconsiderar a forma corporativa e atribuírem a renda de uma empresa para outra, os fatos aqui [perante o Senado] merecem um exame.”
Em síntese, essa condição de empresa “sem residência fiscal” permitiu que a AOI e ASI permanecessem em um verdadeiro “limbo”, de modo que nenhum país estivesse apto a tributar os lucros auferidos pela empresa em bases universais (independentemente do local de sua geração).
Os autores destacam que, segundo o relato acima transcrito, as autoridades fiscais norte- americanas não realizaram uma análise mais pormenorizada das reais atividades conduzidas pela AOI na Irlanda.
Regras de Preços de Transferência de ativos intangíveis
Conforme também consta da audição parlamentar já mencionada, o contrato de rateio de despesas estabelecido entre a ASI e a Apple Inc. foi outro ponto chave do planejamento.
Esse contrato estabeleceu que 60% dos custos com R&D relacionados ao aprimoramento do intangível seriam suportados pela ASI, de modo que os lucros decorrentes dessa propriedade intelectual seriam atribuídos à empresa irlandesa nessa mesma proporção, muito embora todo o R&D fosse desenvolvido em polos tecnológicos nos EUA e todos os riscos inerentes a esse tipo de pesquisa fossem suportados pela Apple Inc. e não pelas demais empresas do grupo, inclusive a ASI.
Em síntese, por meio do contrato de rateio de despesas, os frutos do intangível da Apple foram transferidos em grande parte para a jurisdição irlandesa, país com tributação mais vantajosa em comparação com os EUA.
Além disso, segundo estudos conduzidos pelo Comitê de tributação do Congresso dos EUA, a legislação norte-americana de preço de transferência durante muito tempo não era eficaz
9 Testimony of Apple Inc. before the Permanent Subcommittee on Investigations. Op. cit. 6, p. 23.
na aplicação do princípio arm’s lenght aos contratos de rateio de despesas, de modo que diversas multinacionais norte-americanas estabeleceram esse tipo de contrato com claro objetivo de transferir direitos sobre intangíveis para jurisdições com tributação mais branda10.
Não se sabe ao certo a principal razão para essa “deficiência” do legislador norte-americano em captar planejamentos tributários ditos “abusivos”. Um dos motivos pode ser simplesmente de ordem política: nem sempre é do interesse do Governo dos EUA contrariar interesses de grandes conglomerados multinacionais, até mesmo para se evitar a fuga definitiva de empresas e a consequente queda na geração de novos empregos etc.
Também é importante mencionar a posição de Avi-Yonah e Xu, que expressamente mencionam que os EUA permitiam que o custo da pesquisa fosse compartilhado com as subsidiárias no exterior, pois o contribuinte perderia o direito à dedução dos custos enviados para a subsidiária no exterior caso a pesquisa falhasse. Essa lógica, na visão dos autores, faria sentido para o caso de empresas farmacêuticas que têm medicamentos em fase de testes, que podem falhar, mas não para a Apple, considerando que entendem certo o fato de que a nova versão do Iphone da Apple seria vendida11.
Aliás, a defesa do CEO da Apple, conforme é possível verificar na audição parlamentar, pretendeu exatamente apontar que eventual proibição desse tipo de contrato de rateio de despesas poderia causar uma busca por novos polos de pesquisas (fora dos EUA) e, por consequência, uma diminuição brusca da contratação de novos profissionais norte- americanos com altos salários.
Conforme os autores demonstrarão no item 3.2, a OCDE direcionou alguns de seus estudos para captar e buscar formas de impedir que esses tipos de estratégias acarretem erosão da base tributária.
Regime de “Controlled Foreign Corporations” (“CFC”) e o regime “check-the-box” nos
EUA
Conforme nos ensina João Francisco Bianco, o regime CFC é basicamente “aquele em que os lucros auferidos por determinadas pessoas jurídicas, sediadas em um país, passem a ser tributados diretamente na pessoa de seus sócios, residentes em outro país, como se estes últimos os tivessem auferido diretamente”12.
A aplicação dessa medida antielisiva se dá pela instituição de regras internas (de cada País) que visam coibir o abuso dos contribuintes nos investimentos no exterior. Isso porque, conforme nos ensina Raffaele Russo, a possibilidade de exercer o controle de entidades no exterior permite que as empresas multinacionais canalizem renda para jurisdições com tributação favorável e posterguem indefinidamente a distribuição de lucros (em forma de dividendos) para o país da empresa matriz (parent company)13.
Por sua vez, o regime check-the-box, de acordo com Richard L. Doernberg14, é um regime de classificação de entidades previsto no ordenamento dos EUA, o qual permite que os contribuintes escolham se eles gostariam de ser tratados como uma sociedade empresarial (corporation) ou entidade transparente (pass-through entity) para fins da legislação tributária norte-americana.
Segundo esse regime, quaisquer entidades (nacionais ou estrangeiras) podem ser consideradas “elegíveis” como sociedades empresariais ou transparentes, desde que preencham determinados requisitos previstos na legislação. Richard L. Doernberg, ainda, ensina que esse tipo de legislação favoreceu o surgimento de entidades híbridas, que é o sustentáculo de diversos planejamentos tributários internacionais.
No caso específico da Apple, a utilização do regime check-the-box teve por finalidade impedir que a legislação CFC norte-americana “capturasse” as rendas decorrentes das vendas realizadas dentro do grupo Apple, especialmente as rendas passivas (dividendos, royalties etc.) auferidas pelas ASI, empresa subsidiária da AOI.
O Memorandum15 mencionado anteriormente esclarece didaticamente a estratégia adotada pela Apple, ao mencionar que a utilização do regime do check the box foi subvertida, de forma que o regime foi utilizado com o objetivo de converter a renda passiva tributável em renda não tributável.
A legislação permite que uma multinacional trate a renda passiva (dividendos, royalties ou outras comissões) recebida de uma subsidiária relacionada como ocorrida dentro de uma única entidade (no caso, da AOI), por meio da desconsideração de subsidiárias de nível inferior (no caso, da ASI).
O resultado disso é o tratamento dos dividendos pagos como receita da AOI, sujeita à legislação irlandesa e não americana, pois IRS não trata esses dividendos como pagamento entre duas entidades legalmente separadas.
Em síntese, a aplicação do regime check-the-box fez com que todas as subsidiárias da AOI (dentre elas, a ASI) fossem simplesmente desconsideradas para fins tributários (disregarded entities). Em outras palavras, o Fisco norte-americano passou a enxergar as entidades irlandesas como uma única entidade, de modo que todos os pagamentos realizados pelas subsidiárias da AOI a título de dividendos e royalties (rendas passivas de aproximadamente US$ 29,9 bilhões) passaram a ser considerados pagamentos internos de natureza diversa não “capturados” (abrangidos) pela legislação CFC dos EUA.
Conforme mencionado acima, uma renda originalmente tributável segundo o regime CFC dos EUA simplesmente passou à condição de “renda não tributável” em face da aplicação do regime check-the-box.
Jurisdição de tributação favorável
De acordo com os ensinamentos de Chris J. Finnerty16, “uma holding europeia pode ser um meio efetivo para estruturar o domínio de subsidiárias europeias e também pode ser efetiva na estruturação de negócio envolvendo subsidiárias na América Latina, Ásia e Pacífico”.
Segundo o autor, as multinacionais não só verificam a efetiva carga tributária do país para fins de estruturação de holdings intermediárias, como também o acesso a tratados fiscais e Diretivas europeias que reduzem (ou até mesmo eliminam) o pagamento de withholding tax no pagamento de dividendos e royalties nas operações dentro do mercado comum da UE.
A Irlanda não só satisfaz esses requisitos (especialmente considerando que a alíquota do imposto de renda pessoa jurídica é de apenas 12,5%), como também é um par ideal para as multinacionais norte-americanas, pois, como visto acima, a diferença de como os EUA e a Irlanda classificam uma empresa como residente para fins fiscais oferece uma oportunidade única do ponto de vista tributário, ao permitir a manutenção de empresas “sem residência fiscal”.
Soluções propostas pela OCDE
As Ações do Base Erosion and Profit Shifting Project (BEPS) foram criadas no âmbito da OCDE visando estabelecer novos standards na discussão sobre a tributação internacional. O principal deles é atingir um sistema transparente, por meio da imposição de obrigações aos contribuintes de fornecer informações às Autoridades Fiscais, cumulada com a troca dessas informações pelos Fiscos dos países envolvidos, a fim de coibir práticas que podem levar à redução dos tributos supostamente devidos, como no caso da Apple17.
Os casos de planejamentos tributários de multinacionais como a Apple causaram grande preocupação na comunidade internacional, quando se tomou conhecimento do montante que os países de residência deixaram de arrecadar. Com isso, os países “prejudicados” perceberam a necessidade de reagir para enfrentar a questão e reduzir o risco de erosão da base tributária.
O cenário mostrou-se propício para que fosse discutida a possibilidade de criação de um regime de mandatory diclosure rules (regras que obrigam os contribuintes a divulgar ao Fiscos informações sobre os planejamentos tributários e estruturas que, potencialmente, puderem acarretar erosão da base tributária)18.
No contexto da necessidade de os países coibirem ativamente a proliferação de planejamentos tributários abusivos, estruturada em um cenário de transparência fiscal, a Ação 12 do BEPS foi criada com os objetivos específicos de:
fornecer uma estrutura básica para permitir que os países que não possuem Mandatory disclosure rules criem um regime que possibilite a obtenção de informações sobre potenciais aggressive tax planning (planejamentos tributários abusivos);
aumentar a transparência dos planejamentos por meio (a) de imposição de obrigações relativas a informações de planejamentos tributários agressivos; e (b) do desenvolvimento e implementação de trocas de informações e cooperação entre Administrações Tributárias;
identificar os contribuintes e planejadores (promoters ou advisors) que adotam
a prática;
permitir que as Autoridades Fiscais tenham acesso prévio (timely information) a informações sobre potenciais PTAs, a fim de possibilitar respostas rápidas sobre as mudanças dos comportamentos dos contribuintes, por meio de políticas operacionais ou mudanças legislativas19; e
desestimular os contribuintes a pensarem em implementar esse tipo de planejamento20.
Para alcançar esses objetivos, a Ação 12 traça diversas recomendações às Autoridades Fiscais para (i) formular as regras de divulgação obrigatória; (ii) focar no planejamento fiscal internacional e em transações que envolvam montantes relevantes; e (iii) criar e colocar em prática modelos de trocas automáticas de informações entre países.
No que se refere às regras de divulgação obrigatória, a Ação 12 orienta as Autoridades Fiscais a criarem regras que obriguem os contribuintes e planejadores a fornecerem informações antecipadas sobre os potenciais planejamentos tributários abusivos, com regras (i) claras e inteligíveis; (ii) que balanceiem o aumento do custo de compliance que as empresas terão com os benefícios em prol da arrecadação; (iii) que indiquem precisamente as estruturas que devem ser informadas; e (iv) flexíveis e dinâmicas suficientemente para permitir que as Autoridades Fiscais tenham liberdade para ajustar o sistema para abranger novos riscos à medida em que fossem criados pelos contribuintes.
A Ação 12 propõe, ainda, que as Autoridades Fiscais visem obter apenas as informações que possam ser efetivamente utilizadas em prol do aumento da arrecadação e da descoberta de práticas que envolvam planejamentos tributários abusivos. Com isso, procura-se evitar que sejam coletadas informações irrelevantes.
O principal desafio da Ação 12 é estabelecer o que seria uma transação ou planejamento que deve ser reportado. Há menção ao planejamento tributário agressivo, mas não se conceituou o que poderia ser entendido como “agressivo”. A Ação 12 pode ter evitado tratar especificamente de um conceito fechado do que se deveria entender como planejamento tributário agressivo exatamente para evitar que a Ação se mostrasse incompatível com conceitos específicos da legislação local. Assim, ficaria a cargo de cada país conceituar o planejamento tributário agressivo.
Marta Caldas21 esclarece que o agressive tax planning envolve a adoção de comportamentos que se utilizam de disparidades e tecnicidades de diferentes ordenamentos jurídicos para
obter uma vantagem fiscal não prevista em lei, que vai além da justificativa negocial para a adoção da estrutura ou do esquema. Comenta que trata de planejamento fiscal legal, pois não é vedado pela legislação, mas se mostra imoral, à medida em que fere os princípios da equidade e da busca pela justiça fiscal.
No que se refere à tradução livre do termo agressive tax planning ao português, entendemos que a palavra agressivo seria mais bem substituída por abusivo. Isso porque, esse tipo de planejamento que tende a ser coibido abusa de conceitos da legislação para obter vantagens fiscais decorrentes de lacunas da lei.
Independentemente de sua denominação, o conceito deve ser global para que possa ser ajustado a diversos ordenamentos jurídicos com normas e princípios próprios, pois a Ação 12 busca atingir as estruturas de planeamentos fiscais que envolvem a utilização de uma ou mais jurisdições (transfronteiriços ou cross-border). Paulo Rosenblatt22 comenta que esse entendimento compreensível deve se referir a qualquer redução, diminuição ou diferimento de tributo.
Especialmente quando se está diante de planejamentos ou estruturas cross-border são maiores as possibilidades de utilização de junção de ordenamentos para a descoberta de lacunas da Lei, considerando que são inúmeros os sistemas tributários que podem ser combinados, tal qual ocorrera no caso da Apple (divergência do conceito de residência fiscal nos EUA e Irlanda, que fez com que empresas não possuíssem residência fiscal).
Some-se a isso o fato de as Autoridades Fiscais de um Estado muitas vezes não possuírem informações claras e precisas sobre a legislação tributária do outro país, o que acarreta aumento da utilização subvertida de esquemas e planejamentos com a intenção única de diminuir artificialmente a tributação (sem outro propósito econômico ou negocial). Isso claramente ocorreu no caso da Apple, tal qual retratado nos itens acima, uma vez que o conjunto de provas e declarações demonstra que não parecia negocialmente inteligente a decisão de atribuir a gestão de 60% da operação à Irlanda, considerando que todas as principais decisões da companhia eram tomadas nos Estados Unidos).
Além da necessidade de criação das regras de divulgação obrigatória, faz parte do escopo da Ação 12 do BEPS criar um sistema eficaz de trocas de informações automáticas entre países, já que as trocas mediante solicitação dos países não se mostram mais suficiente para coibir as práticas abusivas dos contribuintes no combate à evasão fiscal.
Alberto Xavier23 explica que o sistema de trocas automáticas de informações, conhecido como o novo standard global, consiste na criação de um sistema de trocas de informações periódicas e automáticas sobre rendimentos auferidos por contribuintes pelo país da fonte ao país de residência.
Ciente desse novo standard tributário global e de forma autônoma, os EUA, por sua vez, vêm, desde 2010, trabalhando na assinatura do Foreing Account Tax Compliance Act (FATCA) com diversos países. Esse Acordo obriga que as instituições financeiras internacionais enviem relatórios periódicos das contas mantidas por cidadãos americanos em outros países, sob pena de imposição de uma multa de 30% de imposto retido na fonte pelas instituições financeiras ao Governo Americano.
Ainda permanece dúvida sobre o sigilo que será dado às informações recebidas pelas Autoridades Fiscais. O receio dos contribuintes fica ainda mais evidente diante da intenção da OCDE ao alterar a redação do art. 26 da Convenção Modelo, em 2014, para permitir que a informação obtida por meio da troca internacional possa ser utilizada para outros fins, desde que observada a legislação do Estado. Confira-se a redação do referido § 2º do art. 26 do Modelo OCDE:
“Não obstante o atrás disposto, a informação recebida por um Estado contratante pode ser usada para outros fins quando essa informação possa ser usada para esses outros fins ao abrigo das leis de ambos os Estados e a autoridade competente do Estado fornecedor autorize o uso.”
Em prol do aumento da arrecadação, o movimento internacional tem se mostrado intenso no sentido de garantir às Administrações Fiscais um cenário de transparência fiscal, no qual os contribuintes são obrigados a dividir com o Fisco as suas intenções quando da elaboração do seu modo de operação (planejamento tributário), juntamente com a troca livre e automática de informações entre os Estados, visando reduzir a erosão da base tributária.
CONCLUSÃO
O Caso Apple é um ótimo exemplo de como os planejamentos tributários internacionais envolvendo as multinacionais norte-americanas têm se mostrado extremamente criativos, combinando sistemas diversos, visando encontrar inusitadas lacunas legislativas que possibilitassem a redução artificial da tributação envolvida na operação original.
Conforme os autores demonstraram na primeira parte deste artigo, os artifícios adotados pela Apple para evitar a tributação de quantias consideráveis tiveram por base a utilização
de assimetrias específicas das legislações de países diferentes, que resultaram em empresas subsidiárias irlandesas simplesmente sem residência fiscal.
Por sua vez, os autores demonstraram na segunda parte deste artigo que o momento atual requer a adoção de medidas para se atingir um standard de transparência fiscal em termos globais, o que envolve também a troca informações entre países, a fim de coibir planejamentos tributários ditos abusivos.
Nesse sentido, também foi examinada a orientação da OCDE por meio da Ação 12 do BEPS de as Autoridades Fiscais em todo mundo (i) formularem regras que tornem obrigatória a divulgação de planejamentos fiscais internacionais envolvendo quantias relevantes; e (ii) passarem a adotar o regime de troca automática de informações fiscais recentemente designado pela OCDE (chamado de Standard) como forma de impedir que a falta de informações fiscais dos contribuintes ofereça oportunidades tributárias para planejamentos tributários ditos “abusivos”.
Por fim, verificou-se que o cenário internacional acima descrito não mais permitirá que os contribuintes utilizem de lacunas da legislação para legitimar planejamentos tributários abusivos, como o da Apple, que acarretam diminuição relevante e artificial da arrecadação tributária.
Em outras palavras, o cenário atual previsto na Ação 12 tente a pautar a atuação das Autoridades Fiscais de maneira que, uma vez recebidas as informações antecipadas dos seus contribuintes, seja possível adotar medidas preventivas para evitar a erosão da base tributária e reduzir prejuízos ao sistema tributário dos países.
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