A AÇÃO 6 DO BEPS E SUA INFLUÊNCIA NO BRASIL

BEPS ACTION 6 AND ITS INFLUENCE IN BRAZIL


Caio César Morato


Mestrando em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário IBDT. LL.M. em Direito Tributário pelo INSPER/SP. Especialista em Direto Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários IBET. Advogado em São Paulo/SP. E-mail: ccmorato@gmail.com



Recebido em: 15-12-2019

Aprovado em: 04-06-2020


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n7-5


RESUMO


Uma das principais preocupações do sistema tributário internacional está relacionada ao deslocamento dos rendimentos das empresas multinacionais entre países a fim de reduzir artificialmente a sua carga tributária por meio da manipulação de disposições legais e dos tratados em matéria tributária. Outra preocupação é a competição entre países para atrair a tributação dos rendimentos deslocados. Diante desse cenário a Ação 6 do BEPS foi apresentada pela OCDE com sugestões para que os Estados ajustem suas convenções internacionais de forma a evitar esses problemas. Neste trabalho nos debruçaremos sobre os possíveis reflexos destas recomendações no sistema tributário brasileiro.

PALAVRAS - CHAVE: TRIBUTÁRIO, INTERNACIONAL, ACORDOS, ABUSO, EVASÃO, BEPS


ABSTRACT


One of the main concerns of the international tax system is related to the dis-placement of income of multinational companies between countries to artificially reduce their tax burden by manipulating legal provisions and tax treaties. Another apprehension is the competition between countries to attract the taxation of displaced income. In this scenario, BEPS Action 6 was presented by the OECD with guidelines for states to adjust their international conventions to avoid these problems. In this paper we will look at the possible consequences of these recommendations in the Brazilian tax system.

KEYWORDS: TAXATION, INTERNATIONAL, TREATY, ABUSE, EVASION, BEPS


INTRODUÇÃO

Não é necessário fazer novas apresentações acerca do Projeto BEPS, basta retomar a lembrança de que se trata de um plano com 15 ações específicas destinadas ao aperfeiçoamento da legislação fiscal, o qual foi encomendado à OCDE pelos 20 países de maior economia no mundo (G-20), em razão de alguns arranjos estruturados por organizações multinacionais que acabaram sendo apontados como “abusivos”, injustos, ou mesmo “evasivos”. O referido estudo teve início em 2013 e seu relatório final foi entregue ao final de 2015.


O foco do presente trabalho é a Ação de n. 6 – “Prevenindo a concessão de benefícios por tratados em circunstâncias inapropriadas” – que ocupa uma posição de destaque, dedicando-se a medidas contra o abuso de tratados em especial para o treaty shopping, espécie de planejamento tributário que envolve estratégias através das quais uma pessoa que não é residente de um Estado tenta obter benefícios que uma convenção fiscal celebrada por esse Estado garante exclusivamente aos seus residentes.


Considerando que essas condutas acabam prejudicando a arrecadação fiscal, os países engajados no BEPS concordaram em incluir previsões antiabuso em seus tratados, inclusive um padrão mínimo de regras para conter o treaty shopping, assim como flexibilizar a sua implementação diante das especificidades de cada país e das circunstâncias de negociação das convenções fiscais.


A Ação em referência apresentou três sugestões de medidas contra os abusos de tratado: (i) uma declaração clara de que os países que celebram os tratados fiscais têm por objeto evitar a não tributação ou a tributação reduzida através de evasão ou elisão; (ii) uma regra específica antiabuso, a Regra de Limitação de Benefícios (LOB – Limitation of Benefits rule), que limita a disponibilidade de benefícios em tratados fiscais para entidades que se enquadrem em condições específicas, e que foi incluída na Convenção Modelo da OCDE com o objetivo final de assegurar que existe uma relação efetiva entre a entidade e o seu Estado de residência; e (iii) uma regra geral antiabuso baseada no propósito principal das transações (PPT – Principal Purposes Test), que foi incluída na Convenção Modelo da OCDE, a fim de tratar de outras formas de abuso de tratado, incluindo o treaty shopping, não cobertas pela regra LOB, pela qual os benefícios de um tratado fiscal serão negados caso a sua obtenção seja um dos principais propósitos da transação.


A intenção do presente trabalho é a de verificar o alcance e a aplicação das soluções indicadas no relatório final da Ação 6 ao ordenamento jurídico brasileiro e o reflexo dos mesmos nos tratados bilaterais assinados pelo Brasil. Além disso, buscaremos identificar



quais medidas já foram adotadas pelo Brasil diante das recomendações apresentadas e apresentar críticas sobre estas.


Para melhor aproveitamento, após esta introdução apresentaremos um breve histórico das razões que ensejaram a OCDE a se debruçar sobre o tema, depois verificaremos as medidas sugeridas por aquele órgão no Relatório Final e por fim abordaremos as suas implicações no direito tributário brasileiro.


  1. BREVE HISTÓRICO SOBRE O USO ABUSIVO DE TRATADOS PARA EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO

    O treaty shopping e o treaty abuse são expressões que despertam a atenção das autoridades fiscais há mais de quarenta anos. Conforme salientam Avi-Yonah e Panayi (2010), ao estudar o fenômeno do treaty shopping fica a impressão de que quanto mais os países tentam lidar com a questão, mais acentuadas são as discrepâncias sobre quais seriam os limites do treaty abuse e do planejamento tributário legítimo.


    A expressão treaty shopping tem origem nos Estados Unidos, na década de 1970, quando o país se deparou com o aumento significativo de estratégias de planejamentos tributários envolvendo tratados contra a dupla tributação e empresas interpostas em paraísos fiscais (REINHOLD; 2000). A expressão foi inspirada na expressão forum shopping, termo utilizado naquele país para descrever a situação em que um litigante tenta “comprar”, utilizar um artifício, para deslocar a competência para o julgamento de um processo a uma jurisdição que tenha um entendimento mais favorável ao seu interesse (AVI-YONAH; PANAYI; 2010).

    Naquela época, a expressão treaty shopping passou a ser utilizada para descrever uma prática específica de abuso dos tratados, consistente na prática realizada por parte de certos investidores, de “pegar emprestado” um tratado por meio de uma estruturação que envolvia a interposição de uma entidade, usualmente uma empresa, em um terceiro país que tivesse um tratado mais favorável com o país da fonte. Considerando que a interposição dessa entidade permite a utilização de disposições de um tratado que de outra forma não seria utilizado, diz-se, por analogia, que estaria “comprando” (shopping) os benefícios do tratado (treaty) contra dupla tributação.

    David Duff (2008) explica que o treaty shopping é uma das diversas formas possíveis de elisão fiscal decorrentes da globalização e da existente rede de tratados internacionais em matéria tributária, o que remete de maneira inevitável à questão de que até qual ponto a utilização de normas gerais antielisivas tem o potencial de solucionar as situações de abuso no âmbito dos tratados internacionais.

    Em seu glossário de termos tributários, a OCDE define como treaty shopping como “uma

    análise das disposições de tratados tributários com o objetivo de estruturar uma transação



    ou operação internacional de modo a tomar vantagem de um tratado tributário em particular” (OCDE; 2019)1. Essa definição ampla nos remete ao que entendemos de forma mais ampla como treaty abuse, termo este que é encontrado na doutrina, mas não no glossário da OCDE.


    A questão torna-se mais complexa quando a expressão passa a designar outras situações fáticas e passam ocorrer em paralelo discussões a respeito dos limites da legitimidade de tal forma de planejamento tributário. Assim, tão logo começaram a se verificar as situações de uso impróprio de tratado, os Estados e organizações internacionais se preocuparam mais no combate ao problema do que em sua delimitação, situação que se perdura até hoje, como poderemos ver no desenvolvimento deste trabalho.

    Luís Eduardo Schoueri (1995) afirma que não é possível falar em treaty shopping quando o contribuinte não possui razões fiscais, ou seja, vantagens advindas da interposição do terceiro e a aplicação de um tratado antes indisponível. Assim, o treaty shopping seria uma deliberada estruturação de negócios, realizada com o objetivo de se beneficiar de um tratado contra a dupla tributação, por meio da interposição, entre si e a fonte de rendimento, de pessoa ou estabelecimento permanente que façam jus aos benefícios previstos nos acordos.

    As estruturas mais comuns de treaty shopping, e que vêm merecendo maior destaque nos estudos apresentados pela OCDE até o momento, são as chamadas “empresas canais” ou conduit companies. Explicando, se o Estado A, de residência, não tem um tratado com o Estado B, de fonte, cria-se uma empresa canal no Estado C, que tem tratado com ambos os países, por onde serão transferidos os recursos entre as empresas dos Estados A e B. Outro exemplo as chamadas stepping stone companies (empresas trampolins), que constituem sobre a forma holdings e são interpostas entre o Estado da Fonte e o terceiro Estado do Investidor, sujeita a tributação, mas que justifica erosão da base tributária, deduzindo, por exemplo, despesas (SCHOUERI; 2005).


    Porém, o treaty shopping não é a única espécie de planejamento tributário abusivo. A própria Ação 6 do BEPS aborda que o uso abusivo de tratados (treaty abuse) destinados a evitar a dupla tributação é encontrado em duas situações: (i) aquelas em que o contribuinte tenta evitar as limitações contidas no próprio tratado; e (ii) aquelas em que a pessoa tenta evitar as disposições da legislação doméstica tributária usando benefícios previstos no tratado (OCDE; 2014).


    O treaty abuse, conforme afirma Stef van Weeghel (1997), ocorre nas situações em que o uso de um tratado contra dupla tributação tem a única intenção de elidir o tributo de um ou de ambos os Estados Acordantes e esse uso frustra as expectativas e os objetivos


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    1. Original: “An analysis of tax treaty provisions to structure an international transaction or operation so as to take advantage of a particular tax treaty.”



      diplomáticos fundamentais e duradouros compartilhados por ambos os Estados Acordantes – e, portanto, o propósito do tratado como um todo. Esse propósito, segundo o autor, englobaria tanto o objetivo de evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal quanto as expectativas e objetivos diplomáticos dos Estados Acordantes.

      Assim, podemos afirmar que o treaty abuse é gênero do qual o treaty shopping é espécie. Melhor explicando, o treaty abuse é a expressão genérica para definir qualquer espécie de abuso dos tratados internacionais com a finalidade de reduzir a sua carga tributária, seja por meio da aplicação da legislação interna de um determinado Estado, seja pelo arranjo de um ou mais tratados que não poderia utilizar se não pela criação de arranjo abusivo. Já o treaty shopping indica uma espécie específica de abuso, qual seja a criação de uma estrutura específica em um determinado Estado visando se aproveitar exclusivamente de um benefício específico decorrente de determinado arranjo possibilitado pela sua específica rede de tratados.


      Deve-se ter atenção para o fato de que o termo “abuso de tratado” é utilizado muitas vezes em conjunto, ou até de forma indistinta, com expressões como “evasão fiscal”, “elisão fiscal”, “uso impróprio dos tratados” e “planejamento tributário abusivo”. Porém esses termos não se referem às mesmas coisas, e muitas vezes os critérios delimitadores desses conceitos são estabelecidos de formas diferentes por cada Estado, de acordo com suas especificidades (NETO; 2011).


      Outro fato que possibilita aos contribuintes realizarem esses planejamentos tributários é o de que o regime tributário internacional é caracterizado pelo deslocamento da renda das empresas multinacionais e das companhias globais através das já mencionadas manipulações de disposições das legislações e dos tratados em matéria tributária e também pela competição entre os países para atrair a tributação destes rendimentos (TODER; 2012).


      Isso quer dizer que, da mesma forma que as empresas brigam por espaços nos mercados específicos, os países brigam, utilizando inúmeras formas de atração dos referidos lucros das empresas multinacionais e das companhias globais para os tributar em seus territórios (BAISTROCCHI; 2017).


      A OCDE há anos vem sugerindo diversas medidas destinadas a combater o uso abusivo de tratados. Alberto Xavier (2015), analisando o relatório Double Taxation Conventions and the Use of Conduit Companies, assinala as seguintes:


      • Look-through approach – que nega a aplicação dos benefícios previstos em tratado fiscal a sociedades que sejam diretas ou indiretamente controladas por pessoas que não residam em um dos Estados Contratantes;

      • Exclusion approach – excluir da proteção dos tratados as empresas que, em conformidade com a legislação interna de cada país, gozem de tratamento similar ao dos não residentes;


      • Subject-to-tax approach condicionar a fruição dos benefícios previstos em um tratado ao fato de o rendimento ter sido tributado noutro Estado;

      • Channel approach excluir a aplicação de cláusulas do tratado que concedam

      isenção ou redução do imposto a sociedades residentes em um Estado, mas contratadas por não residentes, quando mais de 50% do rendimento for empregado no pagamento de créditos de tais pessoas, inclusive, juros, royalties, publicidade, despesas de viagem etc.


      Entretanto, a despeito das cláusulas já sugeridas pela OCDE noutras oportunidades, a Ação 6 do BEPS propõe, dentre outras medidas, um regra geral antiabuso baseada no propósito principal das transações (PPT), que foi incluída na Convenção Modelo a fim de tratar de outras formas de abuso de tratado, incluindo situações de treaty shopping não acobertadas pela regra LOB, pela qual os benefícios de um tratado fiscal serão negados caso a sua obtenção seja um dos principais propósitos da transação.


  2. O RELATÓRIO FINAL DA AÇÃO 6 DO BEPS

    Quando da entrega do Relatório Final da Ação 6, a OCDE afirmou que estariam lançadas “as fundações de uma moderna estrutura tributária internacional, sob a qual os lucros seriam tributados onde a atividade econômica e a criação de valor ocorrem” (OCDE; 2015). O relatório final foi dividido em três seções (A, B e C), cada uma apresentando questões específicas indicadas no plano de ação.


    Na Seção A do relatório elaborado pela OCDE é dedicado espaço para desenvolver disposições “modelo” e recomendações no sentido de evitar a concessão inadequada de benefícios previstos em tratados contra a dupla tributação, combatendo o treaty shopping e outras formas de uso abusivo de tratados, bem como tratar da interação entre regras antiabuso convencionais e domésticas (OCDE; 2015).


    Como já destacado, a OCDE apresentou sua recomendação dividida em três partes, com inclusão em sua Convenção Modelo, de uma regra antiabuso específica nos moldes da cláusula LOB, uma regra mais geral, chamada de cláusula PPT e modificações textuais no preâmbulo e no título da Convenção.


    A inclusão simultânea de duas regras antielisivas na Convenção Modelo decorre, segundo a OCDE, do fato de que cada regra possui seus pontos fortes e fracos. A cláusula LOB seria direcionada a combater situações de treaty shopping identificáveis com base em critérios como a natureza jurídica ou atividades desenvolvidas por certas pessoas, o que garantiria maior segurança jurídica. Entretanto, segundo a organização, tal cláusula não lidaria com outras formas de uso abusivo de tratados, o que necessitaria de uma regra mais genérica. Então foi apresentada a regra PPT que, por sua vez, seria mais ampla e abarcaria as situações de uso abusivo dos tratados não alcançadas pela cláusula LOB, mas sua aplicação é mais complexa e requer uma análise caso a caso.



    1. A inclusão da cláusula LOB


      A discussão em torno da cláusula LOB é debatida desde 1981 quando os Estados Unidos incorporaram esta espécie de norma antielisiva em sua Convenção Modelo. De acordo com sua redação original, a cláusula tinha a função de restringir a concessão de determinados benefícios previstos no tratado destinado a evitar a dupla tributação, que só poderiam ser utilizados se a sociedade em questão cumprisse uma série de requisitos objetivos.


      A verificação destes requisitos possibilitaria, em tese, comprovar que a empresa não foi estabelecida com o único intuito de aproveitar os benefícios fiscais decorrentes do uso dos tratados assinados por aquele Estado.


      A própria OCDE relata, em seu relatório, que a adoção da cláusula LOB teve origem na análise da cláusula estadunidense e de outros países como o Japão e a Índia, que introduziram dispositivos dessa natureza em seus tratados contra a dupla tributação. Deveras, ao se comparar a redação sugerida para os dispositivos presentes nos Comentários à Convenção Modelo, com a redação da cláusula LOB constante da Convenção Modelo dos Estados Unidos, é possível verificar uma grande semelhança.


      A cláusula LOB acrescentada na atual versão da Convenção Modelo da OCDE conta com a seguinte redação (OCDE; 2017):


      “Artigo 29

      Direito a benefícios previstos no tratado

      1. [Dispositivo que, observados os parágrafos 3 a 5, restringe os benefícios dos tratados a um residente de um Estado Contratante que seja uma ‘pessoa qualificada’, como definido no parágrafo 2];

      2. [Definição de situações em que um residente é uma pessoa qualificada, o que abarca:

        • um indivíduo;

        • um Estado Contratante, suas subdivisões políticas, órgãos e repartições;

        • certas empresas e pessoas jurídicas com ações na bolsa de valores;

        • certas afiliadas de empresas e pessoas jurídicas públicas;

        • certas organizações sem fins lucrativos e fundos de pensão;

        • outras pessoas que atendem a certos requisitos de propriedade e erosão da base tributária;

        • certos veículos de investimentos coletivos];

      3. [Dispositivo que garante benefícios previstos no tratado em relação a certa renda auferida por pessoa não considerada como ‘pessoa qualificada’, se a pessoa conduzir negócios ativamente no seu Estado de residência e a renda advenha, ou seja relacionada, desses negócios];



      4. [Dispositivo que garante benefícios previstos no tratado a uma pessoa que não é uma ‘pessoa qualificada’, se uma quantia mínima de seu patrimônio, acordada entre as Partes, é detida por certas pessoas que fazem jus a benefícios equivalentes];

      5. [Dispositivo que garante benefícios previstos no tratado a uma pessoa qualificada

        como ‘sede de empresa’];

      6. [Dispositivo que permite que a autoridade competente de um Estado Contratante garanta certos benefícios a uma pessoa quando esses benefícios seriam, de outra forma, negados nos termos do parágrafo 1];

      7. [Definições aplicáveis aos parágrafos 1-7].”2


        De acordo com a OCDE, o dispositivo foi elaborado propositalmente de maneira genérica para assegurar aos Estados a possibilidade de estabelecer os parâmetros por meio dos quais se deseja combater a evasão e a elisão fiscal. Ao mesmo tempo, a própria OCDE incorpora sugestões de redação desses dispositivos e comentários a seu respeito nos Comentários à Convenção Modelo.


        O conceito de “pessoa qualificada” apresentado no dispositivo, é uma das modificações mais relevantes, considerando que restringe o escopo do art. 1 da Convenção Modelo. Não é mais suficiente apenas ser residente de um dos Estados Acordantes para se beneficiar das disposições previstas no tratado, como propõe o artigo: deve ser considerado também uma “pessoa qualificada”, de acordo com o § 2 do art. 29 da Convenção Modelo. Essa limitação se estende a todos os tributos abrangidos pelos tratados contra a dupla tributação (arts. 6 a 22 da Convenção Modelo), bem como aos métodos de eliminação da dupla tributação (art. 23), com exceção dos poucos dispositivos da Convenção Modelo que não requerem obediência ao princípio da residência (art. 1) para garantirem benefícios (OCDE; 2017).


        Já o § 2 traz um rol das pessoas que devem ser classificadas como “pessoas qualificadas” para efeitos do art. 29, ou seja, pessoas que fazem jus aos benefícios convencionais sem ter de passar por uma aprovação da autoridade administrativa. Este parágrafo é responsável por delimitar, efetivamente, a abrangência do art. 1, e a definição de quais seriam as pessoas


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        1. Original: “Article 29 – Entitlement to benefits

          1. [Provision that, subject to paragraphs 3 to 5, restricts treaty benefits to a resident of a Contracting State who is a ‘qualified person’ as

            defined in paragraph 2]

          2. [Definition of situations where a resident is a qualified person, which covers

            • an individual;

            • a Contracting State, its political subdivisions and their agencies and instrumentalities;

            • certain publicly-traded companies and entities;

            • certain affiliates of publicly-listed companies and entities;

            • certain non-profit organisations and recognised pension funds;

            • other entities that meet certain ownership and base erosion requirements;

            • certain collective investment vehicles.]

          3. [Provision that provides treaty benefits to certain income derived by a person that is not a qualified person if the perso n is engaged in the active conduct of a business in its State of residence and the income emanates from, or is incidental to, that business]

          4. [Provision that provides treaty benefits to a person that is not a qualified person if at least more than an agreed propor tion of that entity is owned by certain persons entitled to equivalent benefits]

          5. [Provision that provides treaty benefits to a person that qualifies as a ‘headquarters company’]

          6. [Provision that allows the competent authority of a Contracting State to grant certain treaty benefits to a person where b enefits would otherwise be denied under paragraph 1]

          7. [Definitions applicable for the purposes of paragraphs 1 to 7].”



            “qualificadas” é bastante variável. Nesse ponto, os Comentários à Convenção Modelo da OCDE oferecem diversos critérios a serem possivelmente adotados, especialmente no que diz respeito às empresas, o que deverá ser negociado entre os Estados Acordantes.


            Por sua vez, o § 3 insere uma exceção à regra da “pessoa qualificada”, oferecendo um teste alternativo que garanta benefícios previstos no tratado a um residente de um dos Estados Acordantes e não considerando, à primeira vista, uma “pessoa qualificada”. Essa providência chamada de “teste de conduta ativa” (active-conduct test) parte da ideia de que se uma pessoa residente em um Estado Acordante conduz, de forma ativa, atividades econômicas nesse Estado (seja diretamente ou por meio de pessoas), e aufere renda no outro Estado relativa a essas atividades econômicas, essa pessoa não estará praticando treaty shopping e os benefícios previstos no tratado deverão ser garantidos, independentemente de sua natureza jurídica ou de que detenha a sua propriedade.


            O § 4 traz um teste por meio do qual certas empresas, residentes em um dos Estados Contratantes, mas não consideradas “pessoas qualificadas” segundo o § 2, possam obter os benefícios previstos no tratado em relação a determinada renda, se obedecidos certos critérios. Ao menos 75% de suas ações ou quotas (shares) detidas, direta ou indiretamente, por pessoas consideradas “beneficiárias equivalentes”, nos termos do § 7.


            O § 5 traz um teste que visa permitir que sedes ou matrizes de empresas, residentes em um dos Estados Contratantes e não consideradas como pessoas qualificadas, nos termos do § 2, possam obter benefícios previstos no tratado em relação a juros e dividendos pagos por membros do grupo multinacional da empresa. Para tanto, seis condições bastante restritas deverão ser obedecidas.


            Conforme dispõe o § 6, quando um Estado negar benefícios previstos nos tratados a um residente, verificando os §§ 1 a 5 do art. 29, essa pessoa poderá requisitar à autoridade administrativa do Estado a concessão desses benefícios, desde que comprove satisfatoriamente que a constituição, aquisição ou manutenção de seu estabelecimento e suas condutas relacionadas às operações negociais tiveram por finalidade a obtenção de benefícios não estritamente fiscais decorrentes dos tratados internacionais.


            Por fim, o § 7 é responsável por oferecer as definições dos termos constantes nos §§ 1 a 6. Assim, apresenta, por exemplo, o significado de “beneficiário equivalente”, “pessoa conectada”, “renda bruta” etc., para efeitos de aplicação da norma.


    2. A inclusão da norma geral antielisiva (PPT) nos tratados para evitar a dupla tributação


      O § 7º proposto pela OCDE na Ação de n. 6 do BEPS traz uma cláusula geral antiabuso (PPT) com a seguinte redação:


      “7. Não obstante as demais disposições da presente Convenção, um benefício no

      âmbito desta Convenção não será concedido em relação a um item do rendimento



      ou capital, se é razoável concluir, tendo em conta todos os fatos e circunstâncias relevantes, que a obtenção de benefício foi um dos principais efeitos de qualquer arranjo ou transação que resultou direta ou indiretamente nesse benefício, salvo se demonstrado que a concessão de benefício que, nestas circunstâncias estaria de acordo com o objeto e a finalidade das disposições relevantes da presente Convenção.”3


      A fim de obter a exata compreensão da regra, é necessário relembrar alguns dos comentários indicados pela OCDE no relatório final da Ação 6 do BEPS.


      De acordo com a própria OCDE, a regra PPT espelha a orientação dos §§ 9.5, 22, 22.1 e 22.4 dos Comentários ao art. 1 dos “Comentários sobre os artigos do Modelo de Tratado Tributário”, pela qual os benefícios de uma convenção não devem estar disponíveis onde um dos principais propósitos da transação ou do arranjo seja o de garantir o benefício sob a guarda daquela convenção. A obtenção do benefício nessas circunstâncias seria contrária ao objeto e a finalidade das disposições da convenção fiscal.


      A regra PPT vem incorporar esses princípios intrínsecos à convenção a fim de permitir aos Estados que abordem casos de uso impróprio da convenção mesmo quando suas legislações domésticas não permitirem, e confirmar a aplicação de tais princípios para aqueles Estados em que a legislação doméstica já autoriza.


      João Dácio Rolim (2016) explica que a aplicação de uma norma antielisiva, com uma cláusula de teste de propósito principal no bojo do próprio tratado tem o potencial de assegurar a utilização adequada das convenções internacionais.


      Em linha com o Comentário 7 do Relatório Final da Ação 6, o termo “benefício” deve incluir todas as limitações (exemplo: redução de tributos, isenção, diferimento ou reembolso) na tributação imposta no Estado Fonte de acordo com os arts. 6 a 22 da Convenção, a isenção de dupla tributação prevista no art. 23 e a proteção concedida para os residentes e nacionais de um Estado contratante sob o art. 24 ou qualquer outra limitação similar.


      Isso inclui, por exemplo, limitações nos direitos de tributação de um Estado contratante a respeito de dividendos, juros ou royalties gerados nesse Estado contratante sobre o ganho de capital oriundo da alienação de bens móveis situados nesse Estado por um residente de outro Estado sob o art. 13. Quando uma convenção tributária incluir outras limitações (tais como a previsão de tax sparing), as disposições desse artigo também são aplicáveis àquele benefício.


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      1. Original. “Notwithstanding the other provisions of this Convention, a benefit under this Convention shall not be granted in r espect of an item of income or capital if it is reasonable to conclude, having regard to all relevant facts and circumstances, that obtaining that benefit was one of the principal purposes of any arrangement or transaction that resulted directly or indirectly in that bene fit, unless it is established that granting that benefit in these circumstances would be in accordance with the object and purpose of the relevant provisions of this Convention.”



      Conforme o Comentário 10 do Relatório Final da Ação 6, para determinar se um dos principais objetivos de qualquer pessoa relacionada com qualquer arranjo ou transação é ou não obter benefícios sob a convenção, é importante fazer uma análise objetiva das intenções e objetivos de todas as pessoas envolvidas na colocação do arranjo ou na transação na praça ou que sejam parte dele.


      Os propósitos de qualquer arranjo ou transação são questões de fato, que só podem ser identificados considerando todas as circunstâncias ao redor do acordo ou evento na base “caso a caso”. Não é necessário encontrar uma prova conclusiva da intenção de uma pessoa relacionada com o arranjo ou transação, mas que seja razoável concluir, depois de uma análise objetiva dos fatos e circunstâncias relevantes, que um dos principais propósitos do arranjo ou transação era obter os benefícios do tratado.


      Entretanto, não deve ser assumido levianamente que a obtenção de um benefício sob o tratado foi um dos principais objetivos de um arranjo ou transação. A mera revisão dos efeitos de um arranjo não costuma autorizar uma conclusão sobre seus propósitos. Contudo, quando um arranjo somente pode ser razoavelmente explicado por um benefício que surge no âmbito do tratado, é possível concluir que um dos seus principais propósitos foi obter o benefício.


      Nos termos do Comentário 11 do Relatório Final da Ação 6 do BEPS, uma pessoa não pode evitar a aplicação da regra PPT apenas afirmando que o arranjo ou transação não foi realizado para obter os benefícios da convenção. Todas as evidências devem ser sopesadas para determinar se é razoável concluir por esse propósito. A determinação requer razoabilidade sugerindo que a possibilidade de diferentes interpretações dos eventos deve ser objetivamente considerada.


      O Comentário 12 do Relatório destaca que a referência a “um dos principais propósitos” na regra PPT significa que a obtenção do benefício sob uma convenção não precisa ser o único ou dominante propósito de um arranjo ou transação particular. É suficiente que, pelo menos, um dos propósitos tenha sido a obtenção do benefício.


      Por fim, o comentário 13 ao § 7º do Relatório Final estabelece que onde o acordo é indissociável da atividade empresarial central, e a sua forma não foi guiada por considerações para obtenções de benefícios, é improvável que o principal propósito seja considerando como a obtenção daquele benefício.


      Porém, onde o arranjo é celebrado com o propósito de obter benefícios similares sob outros tratados, não deve ser considerado que a obtenção de benefício em outros tratados impedirá que a obtenção de benefício em um tratado seja considerada como seu principal propósito para aquele arranjo.



      A título exemplificativo, suponha que um contribuinte residente do Estado A realize um arranjo canal (conduit) com uma instituição financeira residente no Estado B, a fim de que a instituição financeira invista para o benefício final desse contribuinte, em obrigações emitidas em um grande número de Estados com o quais o Estado B, mas não o Estado A, tem tratados fiscais. Se os fatos e as circunstâncias revelam que o arranjo foi celebrado com o objetivo principal de obtenção dos benefícios destes tratados fiscais, não se deve considerar que o recebimento de um benefício sob um tratado específico foi um dos principais propósitos. Da mesma forma, efeitos relacionados com a evasão da legislação doméstica não devem ser usados para argumentar que a obtenção de um benefício ao abrigo do tratado foi meramente acessório para tais propósitos.


  3. O ALCANCE DA AÇÃO 6 DO BEPS NOS TRATADOS FIRMADOS COM O BRASIL

Em decorrência da Ação 6 do BEPS, o MLI (Multialteral Convention to Implement Tax Treaty Related Measures) prevê a inclusão de cláusulas PPT no bojo dos próprios tratados de matéria tributária. Porém, é necessário que os tratados em matéria tributária já assinados pelos países signatários sejam modificados, ou seja, objeto de protocolo.


Luís Eduardo Schoueri e Ricardo André Galendi Júnior (2017) alertam que o MLI é destinado a modificar as Convenções Fiscais assinadas entre dois ou mais países que sejam seus signatários, mas não possibilita modificar as cláusulas dos tratados concluídos com Estados que não são parte do MLI, o que é conceitualmente impossível. De acordo com o art. 27 (1) do MLI, a sua assinatura é aberta a todos os Estados, e qualquer jurisdição pode fazer parte do acordo posteriormente, mediante consenso dos signatários. Consequentemente, se estes estados escolherem aderir ao MLI, os tratados já concluídos com eles poderão ser incluídos na lista dos CTAs (Covered Tax Agreements).


Sobre a adoção destas medidas pelo Brasil, os mesmos autores ainda destacam que não há razão para acreditar que tais cláusulas sejam rejeitadas em eventuais negociações, a despeito do fato de que o Congresso Brasileiro pode apresentar resistência à sua ratificação em qualquer espécie de tratado.


Os acordos mais recentes assinados pelos Brasil, mas ainda não ratificados já contam com a cláusula PPT. Em 7 de junho de 2019 foi celebrado o acordo assinado com o Uruguai (BRASIL; 2019), em 19 de março de 2019 foi assinado um protocolo com a Suécia para ajustar o acordo existente desde 1975 e inserir a cláusula PPT sob o número XXVI-A (BRASIL; 2019). O mesmo texto se apresenta no acordo firmado com a Suíça em 3 de maio de 2019 (BRASIL; 2019) e com os Emirados Árabes em 12 de novembro de 2018 (BRASIL; 2019).


Partindo para a análise da legislação brasileira, o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, incluído pela Lei Complementar n. 104/2001 prevê que a autoridade administrativa pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos realizados com a intenção de



dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.


Luís Eduardo Schoueri agora acompanhado por Matheus Calicchio Barbosa (2016) enfatiza a existência de uma norma antissimulação e afirmam que a única justificativa razoável para a interpretação do art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional é a de que a norma permite as autoridades fiscais desconsiderarem algumas transações para, em seu lugar, para fins tributários, considerar a real operação. Se a Lei Complementar n. 104 buscava inserir uma GAAR, não seria um exagero afirmar que o texto da norma é um equívoco monumental.


Ricardo Lobo Torres (2013) afirma que o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional deve ser tomado como uma norma antielisiva geral, pontuando que na elisão o fingimento não ocorre em relação ao fato concreto, mas com referência ao fato gerador abstrato do tributo, conforme definido em lei, dificultando a sua subsunção, ao contrário do que ocorre com a simulação.


Para Humberto Ávila (2006), na simulação o contribuinte usa um artifício para que a autoridade fiscalizadora acredite que algo aconteceu, quando nada aconteceu, enquanto na dissimulação, o contribuinte tenta com um negócio jurídico indireto esconder o negócio jurídico direto, efetivamente praticado. Assim, defende a impossibilidade de invalidação dos efeitos de um determinado negócio jurídico na hipótese de o contribuinte utilizar as formas jurídicas existentes sem abuso de forma, ou seja, sem desnaturar os seus elementos essenciais.


No que diz respeito aos negócios jurídicos viciados pela fraude à lei, Heleno Tôrres (2013) salienta que “[...] materialmente configurados para evitar a aplicação de regra imperativa em matéria de direito privado que traga consequências fiscais vantajosas, infringindo dispositivo legal proibitivo ou obrigatório de norma cogente de direito privado [...]”. Isto significa dizer que, apesar de observarem a literalidade do texto da lei, as partes do negócio jurídico o instrumentalizam de uma forma que não guarde convergência com o fato gerador da obrigação tributária. Nesta situação, o negócio jurídico construído mediante a utilização de expediente de fraude pode dar ensejo a aplicação do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional.


Quanto à introdução das normas contidas nos tratados assinados pelo Brasil e que contenham alguma das sugestões apresentadas na Ação 6 do BEPS, é necessário relembrar que o art. 98 do Código Tributário Nacional determina que os tratados e as convenções em matéria tributária revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pelas normas que posteriormente sejam editadas.



No que se refere ao termo revogar contido no mencionado dispositivo legal, é nítido o equívoco na sua inserção na medida em que, tendo o Superior Tribunal de Justiça já se posicionado no sentido de que as convenções internacionais, diante do conflito com norma interna, deve observar o Princípio da Especialidade, ainda que a norma interna seja posterior à internacional. De acordo com a decisão: “O art. 98 do CTN deve ser interpretado à luz do princípio lex specialis derrogat generalis, não havendo, propriamente, revogação ou derrogação da norma interna pelo regramento internacional, mas apenas suspensão de eficácia que atinge, tão só, as situações envolvendo os sujeitos e os elementos de estraneidade descritos na norma da convenção” (BRASIL; 2012).


Nessa linha, a ausência de hierarquia entre os acordos de bitributação e a lei ordinária do país decorre da impossibilidade de tais fontes versarem sobre a mesma matéria, ao se considerar que, enquanto os acordos destinados a evitar a bitributação têm a função de limitar a jurisdição tributária, apenas a lei tributária interna pode instituir o tributo.


Além disso, a introdução de normas antielisivas no sistema jurídico nacional e nos acordos internacionais assinados pelo Brasil deve ser compatibilizada com os princípios constantes da Constituição Federal do Brasil (BARROSO; 2015).


Paulo Rosemblat (2018) apresenta o entendimento, analisando o art. 146, III, da Constituição Federal, de que as normas antielisivas constantes nos tratados firmados pelo Brasil possivelmente suscitarão a necessidade de uma Lei Complementar, pois se cuidaria de uma norma geral de direito tributário. De acordo com o autor, uma norma PPT acarreta o risco de uma aplicação seletiva aos casos de obtenção de um benefício de modo intencional, destacando que uma norma antielisiva que não alcançar os negócios ou atos nos quais o contribuinte obtiver um benefício de modo acidental pode ir de encontro ao princípio da isonomia tributária, pelo qual tratamentos fiscais diferentes não podem ser aplicados aos contribuintes que se encontram em uma mesma situação.


Entendemos de forma diferente, no sentido de que não mais é necessária uma nova Lei Complementar, posto que o próprio Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 como tal. Basta uma Lei Ordinária, exigida pelo próprio parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional. Enquanto não editada tal Lei Ordinária, não é possível a aplicação do referido dispositivo. No mesmo sentido é o entendimento de Sergio André Rocha (2018), Paulo Ayres Barreto (2016), Ricardo Lobo Torres (2012) e Marcus Abraham (2007).


Também é importante relembrar que a utilização de analogia é vedada pelo Código Tributário Nacional (art. 108, § 1º) na hipótese de lacunas legais, para que a autoridade administrativa possa alcançar determinado ato e tributá-lo.

Considerando o entendimento de parte da doutrina (ALVES; 2016) no sentido de que o Tratado Internacional que versa sobre Direito Tributário tem a mesma hierarquia que a



Lei Ordinária no sistema jurídico brasileiro, poder-se-ia chegar à conclusão de que uma cláusula LOB ou PPT em um tratado assinado e ratificado pelo Brasil seria suficiente para desencadear todos os seus efeitos e ser plenamente aplicável pela autoridade fiscalizadora.


A exposição de motivos da Lei Complementar n. 104/2001, ao introduzir o parágrafo único ao art. 116 do Código Tributário Nacional, declarou que a regra se destinava a ser um instrumento eficaz para o combate aos planejamentos tributários praticados com abuso de forma e de direito. Logo, a intenção do legislador foi a introdução de uma norma antiabuso, ainda que a redação final não tenha traduzido de forma explícita a referência a abuso de direito e de formas, e mesmo que se diga que a exposição de motivos faz parte da Lei.


CONCLUSÃO

A análise do trabalho nos mostra que a Ação 6 do BEPS e o instrumento Multilateral do BEPS sugerem a inclusão de normas antielisivas baseadas em testes de propósito principal nos tratados em matéria tributária, bem como a criação de normas domésticas a fim de evitar os planejamentos tributários dito agressivos, a fim de combater a elisão fiscal. É de se destacar que as recomendações apresentadas nos relatórios das ações BEPS não têm o enforcement necessário para determinar que os Estados promovam necessariamente a inclusão de normas antielisivas nos tratados já assinados ou que vierem a ser assinados entre dois Estados, tampouco para que cada Estado inclua determinado dispositivo em sua legislação interna.

No que toca especificamente ao treaty shopping, os tratados podem ser utilizados de forma ilegítima, por uma pessoa não residente em um dos Estados contratantes a fim de obter um benefício fiscal não originalmente alcançável.


Desta forma, o elemento subjetivo da norma antielisiva fundada no teste de propósito principal prevê uma regra de exceção pela qual, se restar comprovada a presunção de que houve propósito econômico, que não exclusivamente a redução da carga tributária, devem ser considerados.


A redação genérica do art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional dificulta a sua percepção como uma típica norma antielisiva e reforça a resistência à sua aplicação. O fato de a redação não trazer uma orientação quanto ao seu propósito, mas somente a sua finalidade, tende a gerar maiores conflitos. O debate doutrinário em torno do alcance de tal norma existe há quase vinte anos, isto é, desde quando a norma foi inserida no sistema jurídico brasileiro em 2001, pela Lei Complementar n. 104.


Todavia, apesar da existência de proposições, o tema pouco evoluiu no Legislativo. Tal situação fez com que questões acerca da validade dos planejamentos tributários se dessem à margem de tal dispositivo (ROCHA; 2018).



Dessa forma, o alcance das normas antielisivas com teste de propósito negocial nos tratados assinados pelo Brasil ainda é indeterminado, destacando que alguns destes já foram celebrados, mas ainda não ratificados. No mais, considerando o retrospecto em torno do tempo que o país leva para ratificar os seus tratados internacionais e protocolos, não há perspectiva de que as adequações recomendadas pela OCDE sejam implementadas e aplicadas tão cedo.


Espera-se que essas situações no Brasil se tornem apenas história num curto espaço de tempo, passando o país a adotar uma postura mais rápida para implementar em sua legislação recomendações destinadas a adequar suas práticas às internacionais, garantindo maior segurança jurídica aos investidores externos, bem como de alcançar a real finalidade dos tratados para evitar a bitributação – facilitar os negócios com outro Estado Contratante –, não se descuidando da devida fiscalização e justa arrecadação.


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