A SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT N. 41/2020 E O RECEBIMENTO DE VALORES POR RESIDENTE FISCAL NO BRASIL NA QUALIDADE DE BENEFICIÁRIO DE TRUST FIRMADO NO EXTERIOR
Monitor e pós-graduando no curso de especialização em Direito Tributário Nacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Advogado Tributarista em São Paulo/SP. E-mail: c.malphighi@ayresribeiro.com.br
Pós-graduando no curso de especialização em Direito Tributário Nacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado e Analista de Negócios em São Paulo/SP. E-mail: atroncoso@deloitte.com
Recebido em: 23-05-2020
Aprovado em: 21-06-2020
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n7-6
Este estudo se propõe a analisar quais seriam as regras de incidência tributária aplicáveis para a tributação de riqueza percebida por residente fiscal no Brasil e oriunda de trust firmado no exterior (situação que sob a égide da legislação tributária federal foi recentemente objeto de Solução de Consulta CO-SIT n. 41/2020). Para tanto, será necessário estudar as peculiaridades desse instituto jurídico estrangeiro e delimitar em que hipóteses e sob quais condições essas transferências de valores podem se dar. Uma vez compreendido tal fato jurídico (sob a orientação das regras de Direito Internacional Privado), este estudo buscará interpretar a norma tributária aplicável para cada uma das situações delimitadas, principalmente no que se refere ao Imposto de Renda (IR) e ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
This study aims to analyze which tax rules would apply to funds received by Brazilian tax residents from trusts incorporated abroad (situation that, according to federal tax legislation, was recently the subject of Inquiry Proceeding COSIT n. 41/2020). For this purpose, this study also aims to review the specific characteristics of this foreign institute and indicate the hypotheses and conditions under which such transfers may occur. Once this concept is discussed (in view of International Law), this study will try to interpret the tax rules applicable to each of the above mentioned circumstances, mainly with regard to Brazilian Income Tax (Imposto de Renda – IR) and Brazilian Estate and Gift Tax (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD).
LAW INTERPRETATION
INTRODUÇÃO
Consoante a teoria tridimensional, o Direito é um produto histórico-cultural, fruto da dialeticidade havida entre os fatos (sociais, históricos e econômicos) experimentados no decorrer do tempo por determinada sociedade, conjugados por valores (axiomas) que ipso facto lhe são atribuídos e que, mediante um enlace deôntico, fazem nascer a norma jurídica, além de, muitas vezes, também cristalizarem institutos jurídicos elementares à vida social.
A História do Direito nos prova que muitos dos institutos jurídicos que temos hoje em dia (como a propriedade privada, o contrato, o casamento etc.) nasceram com o fim de regrar determinada porção da realidade social, para os fins e valores por ela visados, de modo a disciplinar a sua estrutura e as relações intersubjetivas por meio de regras ou normas jurídicas reunidas em uma unidade lógica autônoma (REALE, 1976, p. 364).
Foi o que aconteceu com o trust, um instituto jurídico que se erigiu ao longo dos séculos no âmbito do Direito inglês (por meio de regras de precedentes judiciais) para, em decorrência dos anseios e das peculiaridades culturais daquela sociedade, permitir o desmembramento da titularidade sobre a propriedade privada, dando-lhe proteção e ampla exploração econômica.
Por se tratar de um produto histórico-cultural (como já dito) desenvolvido no seio do Direito anglo-saxônico (através de uma interação entre precedentes judiciais exarados pelas cortes de common law e de equity), a compreensão jurídica deste instituto é uma interessante problemática a ser enfrentada por juristas formados no âmbito da civil law (Direito constituído pela herança jurídica das nações de ascendência cultural romana e germânica). Isso porque nós desenvolvemos ao longo da história outras técnicas jurídicas para solucionar questões que o trust cuidou de tutelar no âmbito da cultura jurídica inglesa.
Tal problemática por certo se estende ao Direito Tributário nacional, quando, em decorrência de elementos de conexão, é instado a se sobrepor para regrar a tributação de riquezas estruturadas em trust.
Ora, para a delimitação material das regras de incidência tributária, nosso pátrio Direito Tributário se valeu de arquétipos presuntivos de riqueza extraídos do Direito Privado, que muitas vezes são categorias pré-moldadas do Direito romano. Este fato dificulta ao intérprete da norma tributária a sua correta aplicação, para o atingimento de riquezas que se estruturam mediante uma categoria alienígena (do Direito anglo-saxônico), como é o instituto do trust.
Dado o fato de o trust não possuir tratamento legal no ordenamento jurídico brasileiro e de não ser praticado em nossa cultura, deveras tal problemática atinente ao Direito Tributário não é de todo corriqueira.
Entretanto, em virtude de relações jurídicas de Direito Internacional Privado (cada vez mais assentes em razão das tendências promovidas pela globalização), o choque cultural que está a se comentar pode muito bem ocorrer da perspectiva do Direito Tributário brasileiro.
Isso vai acontecer quando o trust objeto da tributação for firmado internacionalmente, mediante partes residentes e não residentes no País (ou seja, por meio de uma relação jurídica de Direito Internacional Privado, como dito acima), ensejando elementos de conexão (como, no caso, a residência ou o domicílio fiscal do instituidor ou do beneficiário do trust no Brasil). Sob a égide do Direito Tributário Internacional, esse cenário autorizaria a tributação brasileira da riqueza movimentada em virtude do trust.
Recentemente, a Receita Federal do Brasil (RFB) foi instada a analisar uma dessas situações envolvendo a tributação do trust, quando, por meio da Solução de Consulta COSIT n. 41/2020, manifestou entendimento de que seriam tributáveis pelo Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) os valores recebidos por uma viúva residente fiscal no Brasil. Na ocasião, e na qualidade de beneficiária, a contribuinte passou a receber valores de trust que fora constituído pelo seu falecido marido (na qualidade de instituidor do trust) nas Bahamas (país que possui cultura jurídica influenciada pelo Direito inglês).
Ocorre que, em razão da vagueza e insuficiência de elementos contidos na Solução de Consulta COSIT n. 41/2020 para o juízo de realidade no que diz respeito à relação jurídica do trust analisada (ou seja, quanto à subsunção da relação jurídica posta em análise para com o antecedente da hipótese de incidência avaliada), entendemos que o juízo de valor (atinente ao consequente, isto é, quanto à regra tributária que se julgou ser aplicável) restou prejudicado.
Assim, pretendemos revisitar o tema, a fim de responder algumas indagações não exploradas pela aludida Solução de Consulta, seja em razão dos limites cognitivos do processo de consulta federal, seja em razão da já apontada vagueza da consulta quanto a algumas premissas envolvendo a operação narrada.
Nesse sentido, delimitar-se-á ao leitor quais seriam as hipóteses de relação jurídica decorrentes do trust e sob quais condições poderia se dar o recebimento dos valores oriundos do exterior pela beneficiária brasileira do trust (antecedente), dentro do contexto narrado pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020, para, assim, valorar de forma mais segura qual seria o tributo incidente sobre esses valores (consequente).
Ressalta-se que, não obstante a já mencionada limitação cognitiva do instrumento de Solução de Consulta, que se restringe apenas à interpretação e aplicação de legislação tributária federal, este estudo se propõe a analisar a situação lá tratada sob enfoque não apenas do Imposto de Renda (IR), mas também no que diz respeito ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
Para tanto, proceder-se-á a uma análise quanto ao instituto do trust, buscando evidenciar a sua natureza jurídica e os efeitos patrimoniais dela decorrentes, interpretando esse fato jurídico de acordo com os axiomas que lhe são subjacentes, e sob orientação de regras de Direito Internacional Privado, para a sua posterior avaliação perante o Direito Tributário brasileiro.
Em seguida, realizar-se-á um exercício interpretativo quanto às normas tributárias nacionais, para a aplicação que mais se amolde às respectivas possibilidades de recebimentos pelo beneficiário residente fiscal no Brasil, a título de trust estrangeiro (o que deixou de ser feito pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020, mas se mostra essencial para a segura e justa tributação analisada).
O TRUST: NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO E OUTRAS COMPREENSÕES NECESSÁRIAS A ESTE ESTUDO
Com a sapiência que o consagrou, o Professor Ruy Barbosa Nogueira (1976, p. 46) já nos ensinava que a formação do jurista (notadamente a do tributarista) vai além do conhecimento sobre a legislação vigente em seu país, e muitas vezes passa pela legislação “passada e a comparada, no tempo e no espaço”, como forma de lhe possibilitar a “habilidade para investigar ou apreciar a relação fática, conhecer o conteúdo das normas, interpretá- las, integrá-las e aplicá-las”.
Assim, antes de discutir qual seria a espécie tributária aplicável para o quadro em apreço, mister se faz analisar e compreender1 o trust enquanto instituto jurídico estrangeiro,
escrutando, para tanto, as suas principais possibilidades de utilização para, só após isso, subsumir tal fato ao antecedente da norma tributária mais adequada.
Com efeito, o trust é instituto jurídico formado em meio à cultura jurídica inglesa, tendo seus moldes sido erigidos ao longo da história por meio de uma dialeticidade havida entre os direitos da common law2 e os direitos da equity3. Foi nesse contexto que o trust se tornou um desmembramento do direito de propriedade.
Ao citar o historiador do Direito inglês F. W. Maitland, René David (1997, p. 99) escreve que
o trust “é uma instituição tão flexível, tão geral quanto o contrato... e, talvez, a realização mais original obtida pelos juristas ingleses. Parece-nos quase constituir um elemento essencial à civilização”.
Mediante o trust, é possibilitado que o settlor ou grantor transfira patrimônio da sua titularidade para a titularidade de outra pessoa, instruindo, no entanto, que o exercício dos direitos sobre o patrimônio transferido se dê em favor de alguém, o beneficiário (beneficiary), ou até mesmo para a realização de um objetivo específico.
Quando isso ocorre, o titular que recebeu a transferência está “in trust” para com algo ou
alguém. Este sujeito é chamado de trustee.
Especificamente, no que diz respeito ao private trust (em que encontramos a figura do
settlor, do trustee e do beneficiary), podemos visualizá-lo da seguinte maneira: Fluxograma 1 – Instituto jurídico do trust
Elaborado pelos coautores.
A relação assim desenhada nos ajuda a compreender o motivo pelo qual o trust é tido como um desmembramento do direito de propriedade. É que quando os bens e direitos são consignados em trust, a titularidade sobre a propriedade desses bens e direitos então passa a ser desmembrada em duas titularidades: (i) a titularidade formal (legal title), que será do trustee, enquanto proprietário dos bens e direitos que lhe foram transferidos; (ii) e a titularidade econômica (equitable title), exercida na pessoa do beneficiário, também sobre os bens e direitos contidos no trust, para fins de perceber para si o fruto da exploração econômica desse patrimônio, que decorrerá de sua administração pelo trustee.
Tudo isso será possibilitado mediante a formalização de um instrumento de instituição do trust (o trust deed), no qual constarão as regras e condições aplicáveis aos sujeitos da relação.
Essa triangulação possibilitada pelo trust (entre settlor, trustee e beneficiary) possui uma utilidade muito ampla, de sorte que é (e vem sendo) empregada ao longo dos séculos para suprir diversos fins sociais e econômicos nas comunidades jurídicas que se valem de tal ferramenta.
A título de exemplo: o trust pode ser utilizado para a consecução de objetivos societários ou associativos a serem realizados na pessoa do trustee, tornando muitas vezes desnecessária a ideia de personalidade jurídica ou de constituição de uma pessoa jurídica para tanto. Também pode se prestar o trust à administração dos bens e direitos de uma pessoa incapaz, suprindo, assim, a finalidade que a técnica de representação legal do incapaz possui em nossa cultura jurídica. É possível, outrossim, que o trust seja empregado para fins de planejamento sucessório, regrando e determinando a partilha de bens e direitos por ele afetados, dispensando a burocracia e o eventual litígio a ser enfrentado em um processo de inventário (DAVID, 1997, p. 100).
No emprego do trust para a organização de partilha de bens, interessante a lição histórica e conceitual oferecida por René David (1997, p. 101), que se mostrará relevante quando formos delimitar as possíveis situações de utilização do trust no contexto narrado pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020:
“O Direito Inglês recorre também à técnica do trust para organizar a partilha de bens nas sucessões. O morto não tolhe o vivo na Inglaterra. A sucessão, antes de ser transmitida ao herdeiro ab intestat ou ao legatário universal, é confiada ao administrator ou executor; este se torna o depositário dos direitos que pertenciam ao ‘de cujus’. No entanto, assimilado ao trustee (cujo nome foi dado por uma razão de ordem histórica) o administrator ou executor deve exercer esses direitos no interesse de todos aqueles (herdeiros, legatários, credores) que têm direitos sobre a herança e que receberão, no fim, parte ou totalidade desta”.
Deveras, o rol exemplificativo de situações em que o trust pode ser utilizado mostra o quanto esse instituto resolve, em países de ascendência jurídica anglo-saxônica, questões que o Direito romano-germânico tratou de regrar por meio de outras categorias lógicas. Assim, para o jurista culturalmente formado no âmbito da civil law, só será possível a compreensão do trust após o conhecimento de seu processo histórico de criação e de sua razão de ser (dos seus valores).
Nesse sentido, René David (1997, p. 106) faz as seguintes observações atinentes ao trust, da perspectiva da civil law:
“O trust é, para nós, difícil de ser admitido, pois sua técnica repousa numa distinção
– entre common law e a equity – que não conhecemos, e seu desenvolvimento está relacionado com ideias (rejeição do princípio Pacta Sunt Servanta, liberdade de se instituir novos tipos de desmembramentos da propriedade) que não têm curso entre nós. Além disso, o trust nos parece inútil, pois temos na história outras técnicas para resolver os problemas que ele solucionou no direito inglês”.
Assim, tais considerações são elementares para fixarmos, por exemplo, que, muito embora a nós o trust possa se assemelhar a um contrato, na verdade, a sua materialidade dentro do Direito inglês é totalmente dissociada do Direito contratual.
Isso porque, na Inglaterra, o contrato é matéria que foi regrada substancialmente pelo Direito constituído no âmbito das Cortes de common law. Por outro lado, o trust foi constituído por meio de precedentes emanados diretamente das Cortes de equity.
Apesar de as regras de common law já permitirem ao settlor a transferência de determinada propriedade ao trustee, foram as regras de equity que sedimentaram a obrigatoriedade de o trustee explorar essa propriedade em favor do beneficiário. Ou seja, o desmembramento da propriedade permitido pelo trust se deu por meio dessa interessante dialética entre common law e equity, já que: (i) o legal estate (do qual surge o legal title do trustee) já era possibilitado pela common law; ao passo que (ii) o equitable estate (do qual decorre o equitable title do beneficiário) necessitou ser sancionado pelas regras emanadas pelas Cortes de equity.
Ainda, para a presente contextualização preliminar, insta observar que, mesmo que as regras do trust tenham como fonte primária de direito a jurisprudência4, atualmente (e isto é uma tendência) existem diversos diplomas legais que se prestam a regrar objetivamente o funcionamento desse instituto.
No âmbito do Direito Internacional, existe uma importante fonte multilateral que é a Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável aos Trusts e sobre o seu Reconhecimento (“Convention on the Law Applicable to Trusts and their Recognition”), firmada por diversos países (da qual o Brasil não é signatário) no âmbito da Conferência de Haia sobre o Direito Internacional Privado.
O objetivo da referida convenção é exatamente normatizar, como forma de diretriz legislativa, os conceitos, sujeitos, direitos e obrigações que envolvem o trust. Neste aspecto, o instituto recebe um tratamento minucioso pela mencionada Convenção de Haia5.
Pois bem. O que se pode tirar de tudo o que foi até aqui pontuado (a título de compreensão do trust) é que estamos diante de um instituto que se originou em outro sistema jurídico, com base em premissas diversas, das quais a norma tributária nacional tira seu antecedente para a aplicação do consequente.
Também foi evidenciado que, pela multiplicidade de sujeitos e pela flexibilização quanto ao desmembramento da titularidade jurídica da propriedade, é garantido ao trust um leque bem grande de possibilidades e finalidades, no que diz respeito a como essa relação jurídica poderá se estabelecer, caso a caso.
Assim, em virtude dessa aparente incompatibilidade para com as premissas adotadas pelo Direito Tributário nacional, é necessário que o tributarista brasileiro (atento a todas as nuances até então reveladas) tenha conhecimento não somente das regras objetivas das quais deflui o trust, mas também do que foi entabulado pelas partes no trust deed, para que, diante das possibilidades e (principalmente) da finalidade do trust no caso concreto, seja interpretada, integrada e corretamente aplicada a norma tributária.
A SOBREPOSIÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO NACIONAL PARA A TRIBUTAÇÃO DE RIQUEZAS ESTRUTURADAS EM TRUST
Uma vez compreendido axiologicamente o fato sobre o qual se pretende aplicar o Direito Tributário nacional, necessário agora interpretar a norma tributária diante desse fato, para traçarmos o vínculo (o valor) que interligará o fato à norma, possibilitando a sua correta sobreposição, já que a tridimensionalidade do Direito Tributário exige tal exercício hermenêutico.
A razão disso é que, de acordo com os valiosos ensinamentos proferidos por Ruy Barbosa Nogueira (1976, p. 44-45):
“Quando se diz que o direito é tridimensional, quer-se esclarecer que o jurídico se compõe de fato-norma-valor, indissociavelmente: valor corresponde à
demonstração da ligação, vínculo, ‘tensão’, ou subjunção da norma ao fato ou subsunção do fato à norma”.
Para que possamos delimitar esse liame entre a norma tributária e as relações jurídicas decorrentes do trust, primeiro é necessário que estabeleçamos uma premissa inicial: a validade jurídica do trust estrangeiro perante o ordenamento jurídico brasileiro.
Com efeito, conforme narramos acima, o trust é um instituto jurídico que, mesmo não sendo praticado no Brasil (e não possuindo tratamento legal em nosso ordenamento jurídico), é muito praticado em outros países e, inclusive, pode fazer surtir efeitos jurídicos e patrimoniais para pessoas residentes em nosso país.
Nesse sentido, é o que se interpreta dos arts. 8º6 e 9º7 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que, no intuito de regrar os efeitos de relações de Direito Internacional Privado para o Direito brasileiro, diz que, na qualificação e regência jurídica de bens e obrigações, deve-se aplicar a Lei do país em que estes se constituírem.
Ou seja, em razão destas regras, os trusts constituídos no exterior (hipótese do art. 9º da LINDB), ou com bens localizados no exterior (hipótese do art. 8º da LINDB), devem ser regidos respectivamente ou pelas leis de onde forem constituídos (locus regit actum), ou então pelas leis do país da situação do bem (lex rei sitae).
Sobre a aplicação destas regras da LINDB, aliadas ao princípio da liberdade de contratar que vigora no Brasil (nos termos do art. 4218 c/c art. 2.0359 do Código Civil), devemos concordar com a conclusão de Ricardo Mariz de Oliveira (2016, p. 13), quanto à “validade, perante o direito brasileiro, do ‘trust’ contratado fora do Brasil, por uma pessoa nele residente”.
Assim, como o trust firmado no exterior possui validade jurídica no Brasil, os efeitos patrimoniais dotados de conteúdo econômico que defluem dessa validade10 deverão ser observados e valorados pelo Direito Tributário brasileiro, para a delimitação da correta
incidência tributária, conforme talhado nos arts. 10911 e 11012 do Código Tributário Nacional (CTN) (OLIVEIRA, 2016, p. 392).
Aliás, conforme diretriz que se extrai do art. 1913 da Convenção de Haia sobre a lei aplicável aos trusts e sobre o seu reconhecimento, as regras do trust não podem obstar a aplicação das normas tributárias pelos países. Comentando o aludido dispositivo, Heleno Taveira Torres (2015) interpreta que a ideia seria a de que “os trusts não se podem utilizar para qualquer finalidade de ocultação de bens ou de sonegação fiscal, aqui ou alhures”.
Destarte, uma vez mantida a validade jurídica do trust utilizado para estruturar determinado conteúdo econômico, resta apenas verificar qual seria a correta subjunção da norma tributária para o atingimento desse conteúdo, mais especificamente no que se refere à situação tratada pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020.
O fato ora em análise, que outrora foi tratado pela aludida Solução de Consulta (e que deverá se subsumir ao antecedente da norma aplicável) diz respeito à remessa de valores pelo trustee em virtude de regras de trust firmado no exterior para beneficiária pessoa física residente fiscal no Brasil.
Diante desse quadro, é imperioso perscrutar quais seriam as situações possibilitadas pelo trust, em um cenário em que a beneficiária brasileira recebe valores do trustee estrangeiro. Também deverá ser esclarecido quais os respectivos efeitos jurídicos patrimoniais decorrentes dessas possíveis situações (mormente, do ponto de vista da beneficiária).
Seguindo essa linha é que será possível o seguro enquadramento desses efeitos jurídicos patrimoniais às figuras adotadas pela legislação tributária brasileira, no sentido da escorreita delimitação das regras de incidência cabíveis.
No que diz respeito às regras de incidência e aos signos de riqueza que o Direito Tributário lhes atribui para a delimitação da materialidade dos tributos, importantes as lições de Ruy Barbosa Nogueira (1965, p. 55). Segundo o consagrado Professor, as regras de incidência tributária podem adotar 3 (três) tipos de estruturas para a delimitação de sua materialidade, que deverão ser analisadas previamente para a interpretação da norma:
“[...] a solução decorre da natureza das coisas. Conhecida a natureza de cada um dêsses Direitos, é o exame de cada caso que nos pode esclarecer se no ponto questionado estamos diante de:
1º um instituto de pura estrutura de Direito Privado;
2º se de estrutura mista, isto é, alterada pelo Direito Tributário, ou ainda, 3º se exclusiva estrutura de Direito Tributário.
Essa análise prévia, no momento da interpretação, é relevante para que o hermeneuta possa saber em que fonte se terá de abebedar para aprender bem interpretar, na sua plenitude, a respectiva categoria jurídica”.
Pelos fatos que foram tratados na Solução de Consulta COSIT n. 41/2020, tira-se que, de todas as regras de incidência tributária existentes no ordenamento jurídico brasileiro, caberia, em tese, a discussão sobre a exigência do IR, ou então do ITCMD, tributos estes que se valem, no todo ou em parte, de figuras de Direito Privado, extraídas do nosso Direito Civil, constituído por categorias lógicas herdadas do Direito romano-germânico.
Assim, no próximo tópico se procederá a uma análise dos efeitos jurídicos patrimoniais decorrentes do trust, mais especificamente quando da remessa de valores pelo trustee ao beneficiário, para enquadrá-los dentro das figuras de Direito Privado vigentes no Brasil e que foram adotadas pelas normas de incidência do IR e do ITCMD14.
A SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT N. 41/2020 E O RECEBIMENTO DE VALORES POR RESIDENTE FISCAL NO BRASIL DE TRUST FIRMADO NO EXTERIOR
Pois bem. Como vimos até aqui, o trust firmado no exterior possui validade jurídica no Brasil, impondo-se agora verificar quais os efeitos jurídicos patrimoniais (dentro das figuras de Direito adotadas pela legislação brasileira) do recebimento de valores pelo beneficiário residente fiscal no Brasil, para assim saber qual será a hipótese de incidência tributária aplicável (IR ou ITCMD). Para tanto, passa-se à situação tratada pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020.
Com efeito, o que foi relatado pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020 é que uma viúva residente fiscal no Brasil (consulente), na qualidade de beneficiária, passou a receber valores de trust que fora firmado nas Bahamas pelo seu falecido marido (na qualidade de settlor).
Assim, o que se extrai do quanto narrado é que o trustee localizado nas Bahamas (por força das regras contidas no trust) remeteu valores para a beneficiária consulente, residente fiscal no Brasil. Para fins de simplificação, abaixo se ilustra a situação descrita:
Fluxograma 2 – Cenário narrado pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020
Elaborado pelos coautores.
Diante deste cenário, a consulente questionou à RFB se sobre estes valores incidiria aqui no Brasil o IRPF, nos termos do art. 8º15 da Lei Federal n. 7.713 de 1988; ou então, se tais valores estariam fora da incidência da tributação sobre a renda (conforme mandamento expresso do art. 6º, inciso XVI16, da Lei Federal n. 7.713 de 1988), incidindo sobre eles, via de consequência, o ITCMD. É o que se pode extrair do trecho do relatório da Solução de Consulta COSIT n. 41/2020:
“Assim, considerando que os atos normativos citados dispõem, em uma interpretação restritiva, que são tributáveis os rendimentos ou quaisquer outros valores de fontes do exterior, tais como trabalho assalariado ou não assalariado, uso, exploração ou ocupação de bens móveis ou imóveis, transferidos ou não para o Brasil, lucros e dividendos; e considerando que o esposo da consulente era o instituidor do trust e que a consulente é beneficiária, questiona se os valores recebidos do trust, provenientes do exterior, em razão do falecimento de seu esposo, são fatos geradores do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) ou do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD)”.
Detalhe importante de se destacar é que, conforme transcrito no trecho acima, a viúva passou a receber tais valores em decorrência da morte do de cujus (settlor do trust),
situação tal que haveria gerado a dúvida interpretativa quanto à incidência tributária sobre o fato posto ao crivo da RFB.
Ao proceder a análise demandada pela consulente, a RFB consignou inicialmente que, diante dos limites cognitivos impostos ao processo de consulta federal (que limita a Solução de Consulta à interpretação atinente à legislação tributária e aduaneira federal), estaria inadmitida a parte do questionamento formulado pela contribuinte, no que diz respeito à incidência ou não incidência do ITCMD sobre o fato narrado, por se tratar de um tributo de competência dos Estados e do Distrito Federal, sendo assim ineficaz perante a RFB.
Ademais, no que se refere à tributação federal, a Solução de Consulta COSIT n. 41/2020 consignou que o recebimento dos valores pela viúva beneficiária se enquadraria como fato gerador do IR. A fundamentação legal se deu pelo art. 4317 do CTN e pelo do art. 8º da Lei Federal n. 7.713, de 1988 (que institui o IRPF sobre rendimentos oriundos de fonte situada no exterior percebidos por pessoa física residente fiscal no Brasil). Abaixo, o texto legal da norma instituidora do IRPF que foi invocada pela RFB:
“Art. 8º. Fica sujeito ao pagamento do imposto de renda, calculado de acordo com o disposto no art. 25 desta Lei, a pessoa física que receber de outra pessoa física, ou de fontes situadas no exterior, rendimentos e ganhos de capital que não tenham sido tributados na fonte, no País.
§ 1º. O disposto neste artigo se aplica, também, aos emolumentos e custas dos serventuários da justiça, como tabeliães, notários, oficiais públicos e outros, quando não forem remunerados exclusivamente pelos cofres públicos.
§ 2º. O imposto de que trata este artigo deverá ser pago até o último dia útil da primeira quinzena do mês subsequente ao da percepção dos rendimentos” (BRASIL, 1988b).
Apesar da conclusão firmada pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020 quanto à incidência do IRPF sobre o fato trazido pela consulente, entendemos que tal análise não foi devidamente delimitada na resposta à consulta, já que algumas premissas deixaram de ser consideradas para a correta subsunção dos fatos ao antecedente da norma tributária que se julgou aplicável.
Isso porque, como dito inicialmente, dada a sua flexibilidade e versatilidade, o trust possui um leque amplo de utilização. Desta sorte, a transferência de valores pelo trustee à beneficiária brasileira na situação narrada poderia ter se dado em diversos cenários, o que
implicaria igualmente efeitos jurídicos patrimoniais diversos (de acordo com o Direito posto em nosso ordenamento jurídico), atraindo, destarte, regras tributárias diferentes. Ocorre que esses fatores foram simplesmente ignorados pela Solução de Consulta.
Ou seja, a depender da razão pela qual o trustee transferiu os valores à beneficiária brasileira, a conclusão firmada pela Solução de Consulta COSIT n. 41/2020 poderia se mostrar equivocada, infringindo até a regra basilar contida no art. 43 do CTN.
Esta, digamos, descuidada análise pela RFB, quanto às diversas situações de recebimentos de valores por beneficiário brasileiro de trust, realmente gera uma certa insegurança jurídica, ao menos no âmbito da tributação sobre a renda, já que a Solução de Consulta COSIT após a publicação é dotada de efeito vinculante, obrigando outros sujeitos passivos (além da consulente) que eventualmente se enquadrem na hipótese por ela tratada.
Isso significa dizer que, após a publicação da Solução de Consulta COSIT n. 41/2020, qualquer pessoa física que perceba valores de trust deverá recolher o IRPF, aos olhos da RFB, nos termos do art. 8º da Lei Federal n. 7.713 de 1988.
Entretanto, como veremos, nem sempre o recebimento desses valores via trust vai atrair a incidência do IR, mostrando-se algumas vezes hipótese de incidência de ITCMD.
Isso vai depender muito da situação e de qual é a finalidade com que o trust está sendo utilizado (do axioma visado), o que não pode ser ignorado pelo Direito Tributário, cuja tridimensionalidade – insistimos – impõe necessária tal compreensão, para a melhor adequação e sobreposição da norma tributária.
Assim, passamos a discorrer sobre duas possíveis situações que, apesar de possuírem finalidades diversas, poderiam estar ocorrendo dentro do contexto narrado na resposta à consulta em comento.
Transferência do capital objeto do trust à beneficiária, extinguindo o legal title do
trustee em virtude da morte do settlor
Conforme restou narrado pela própria Solução de Consulta COSIT n. 41/2020, a beneficiária estaria recebendo os valores oriundos do trust, em virtude da morte de seu marido, quem (na qualidade de settlor) havia instituído o trust.
Esse fato por si só já levanta alguns pontos que merecem ser analisados cuidadosamente, tais como: (i) qual seria o motivo das transferências dos valores pelo trustee à beneficiária; e (ii) o que estava exatamente sendo transferido.
Isto, pois, conforme discorrido preliminarmente para fins de compreensão do trust, tal instituto é muito utilizado como técnica de sucessão patrimonial, de modo que, antes de falecer, o settlor prevê a instituição do trust com o patrimônio que será sucedido após a sua
morte, delimitando no trust deed as regras e condições para a partilha desses bens e direitos pelo trustee.
Desta feita, no caso em apreço, a transferência dos valores pelo trustee à beneficiária poderia estar se dando em virtude da morte do settlor. Nessa situação, poderiam estar sendo transferidos os próprios bens e direitos que haviam sido originariamente afetados pelo trust.
Aí, a finalidade da operação consistiria na transferência definitiva à beneficiária pelo trustee do patrimônio (total ou parcial) afetado até então pelo trust, de modo a extinguir a titularidade formal do trustee sobre patrimônio transferido. Uma finalidade claramente sucessória.
Em tal cenário, estar-se-ia diante de uma verdadeira transferência de capital, conforme ilustrado abaixo:
Fluxograma 3 – Transferência de patrimônio do trust
Elaborado pelos coautores.
Apesar de gerarem um acréscimo patrimonial para quem as recebe, as chamadas “transferências de capital” ou então “transferências patrimoniais” não configuram fato gerador do IR, já que não manifestam todos os elementos materiais descritos pelo art. 43 do CTN para tanto, conforme texto legal abaixo transcrito:
“Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
§ 1º. A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.
§2º. Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo” (BRASIL, 1966).
Em outras palavras, o referido artigo autoriza apenas a incidência do IR sobre o acréscimo patrimonial decorrente ou do (i) “produto do capital, trabalho, ou da combinação de ambos” (art. 43, inciso I, do CTN), ou então (ii) do recebimento de proventos de qualquer natureza (art. 43, inciso II, do CTN).
Sobre essa delimitação quanto às fontes de onde deve defluir o acréscimo patrimonial tido como fato gerador do IR pelo art. 43 do CTN, Ramon Tomazela (2019, p. 221) faz importante observação:
“[...] o fato gerador do imposto de renda sempre exige a presença de um acréscimo de riqueza (instantâneo ou mensurado ao longo de determinado período), mas nem todo acréscimo de riqueza integra o seu fato gerador. Apenas os acréscimos de riqueza derivados de rendas ou proventos de qualquer natureza podem ser subsumidos ao artigo 43 do CTN, que não alcança as transferências patrimoniais, assim entendidos os acréscimos decorrentes de atos não onerosos, provenientes de elemento externo ao patrimônio”.
Tal interpretação doutrinária acerca do art. 43 do CTN (a qual adotamos para este estudo) significa dizer que apenas os acréscimos patrimoniais decorrentes de atos onerosos são suscetíveis de tributação pelo IR. Assim sendo, ficam de fora do campo de incidência de tal imposto os acréscimos patrimoniais decorrentes de transferências patrimoniais realizadas a título gratuito (como, e.g., a doação ou a herança).
Assim, apesar de o art. 6º, inciso XVI, da Lei Federal n. 7.713 de 1988 tratar a doação e a herança como hipóteses de isenção do IRPF, entendemos que tal tratamento legal se mostra inadequado e ineficaz, já que, a bem da verdade, não haveria nem o que se isentar, pois a doação e a herança não estão abarcadas pela competência tributária federal relativa à tributação sobre a renda.
Nesse sentido, especificamente no que se refere à transferência do patrimônio afetado pelo
trust, do trustee estrangeiro para o beneficiário brasileiro, Ricardo Mariz de Oliveira (2016,
p. 21) e Ricardo Calil (2018, p. 194) manifestam o entendimento, aqui defendido, de que não haveria a exigência do IR, por tal fato não se subsumir à hipótese delimitada pelo art. 43 do
CTN, exatamente em virtude de o acréscimo patrimonial ser gratuito (da perspectiva do beneficiário).
Na utilização do trust como instrumento de partilha de bens, a gratuidade do recebimento pela beneficiária é ainda mais evidente. Isso porque tal situação se dá em virtude da vontade do settlor de organizar em vida a sucessão patrimonial decorrente de sua morte.
Tal animus do settlor se dá no sentido de que tal patrimônio que fora originalmente transferido de forma gratuita para a titularidade do trustee (nos limites do legal title) e para a titularidade da beneficiária (nos limites do equitable title) seja, ao fim e ao cabo, transferido definitivamente pelo trustee para a titularidade única e exclusiva da beneficiária. Assim, extingue-se o trust sobre esse patrimônio transferido e concretiza-se a sucessão patrimonial causa mortis visada pelo settlor no trust deed.
Em outras palavras, a intenção desse ato (e é axiomático notar) é a de que, por fim, em razão da morte do settlor, a titularidade sobre o patrimônio afetado pelo trust, que estava desmembrada entre o legal title (em nome do trustee) e o equitable title (em nome da beneficiária), seja agora incorporada integralmente à titularidade da beneficiária, que passará a ser a titular exclusiva da propriedade.
Em resumo, fica claro que a finalidade dessa sequência de atos é sucessória (para resultar na transferência de todo o patrimônio em favor da beneficiária). Isso porque, quando se concretizam, os bens e direitos saem definitivamente do patrimônio do trustee e entram no patrimônio exclusivo da beneficiária, sem nenhuma contraprestação ou esforço por parte desta. Daí a gratuidade do acréscimo patrimonial auferido pela beneficiária, que afasta a exigência do IR nesta hipótese.
De modo consequente, ainda nesta situação de transferência do patrimônio pelo trustee à beneficiária, em virtude da morte do settlor, entendemos que haveria a incidência do ITCMD, já que tal transferência gratuita de patrimônio (seja por doação ou negócio jurídico causa mortis) está abarcada materialmente pelo art. 155, inciso I18, da Constituição Federal (CF).
Observe-se que, na situação ora aventada, foi fundamental em nossa avaliação levar em conta o télos da transferência do patrimônio em favor da beneficiária, que passará a ser a única proprietária do patrimônio outrora em trust, como forma de partilha dos bens e direitos deixados pelo settlor.
Enfim, na hipótese ora analisada, entendemos que haveria incidência do ITCMD, e a não incidência do IR.
Entrega do produto da exploração do patrimônio pelo trustee à beneficiária
Outra situação possível (dentro do quadro narrado na resposta à consulta) seria a entrega, pelo trustee à beneficiária, do fruto da exploração dos bens e direitos consignados em trust.
Ou seja, nesta situação, mesmo após a morte do settlor que foi narrada na Solução de Consulta COSIT n. 41/2020, o patrimônio continua afetado pelo trust, sob a gerência do trustee em favor da beneficiária. Para fins de clareza, ilustramos abaixo esta segunda situação hipotética:
Fluxograma 4 – Exploração de patrimônio do trust
Elaborado pelos coautores.
Sobre tal quadro, também recairia a discussão atinente à sua subsunção (ou não) ao fato gerador do IR, prescrito pelo art. 43 do CTN.
Prima facie, os mesmos fundamentos que, na situação anterior, nos levaram a concluir pela não incidência do IR (a gratuidade no recebimento pela beneficiária) poderiam, também, nesta segunda situação, nos induzir à mesma conclusão.
Isto é, o fundamento para a não incidência do IR também neste caso decorreria em tese do fato de que a transferência desses valores pelo trustee à beneficiária configurariam outrossim uma transferência gratuita, sobre a égide da beneficiária, que não teria empreendido nenhum esforço ou bens e direitos para que essa riqueza fosse gerada em seu favor.
Por esse motivo, existem embasadas posições, como a de Ricardo Mariz de Oliveira (2016, p. 21), de que não haveria incidência do IR na distribuição à beneficiária dos rendimentos decorrentes da exploração do trust, conforme trecho abaixo transcrito de artigo próprio publicado sobre o tema:
“Neste passo, os beneficiários somente passam a ter alguma relação jurídica tributária quando receberem os benefícios do ‘trust’, os quais tanto podem ser rendas periódicas, quanto a entrega da propriedade dos bens, feita pelo ‘trustee’ no encerramento do contrato ou durante sua vigência. [...] Quando isto ocorre, os beneficiários podem ser sujeitos a alguma incidência tributária fora do Brasil, a ser verificada concretamente em cada caso, mas no Brasil a incidência não será do imposto de renda, por não se tratar de uma aquisição de renda e, sim, de transferência patrimonial a título gratuito”.
No mesmo sentido da posição acima, merece também destaque o estudo feito por Ricardo Calil (2018, p. 197), pelo qual se concluiu que o acréscimo patrimonial percebido pelo beneficiário se daria a título gratuito, não se enquadrando dentro dos limites impostos pelo art. 43 do CTN para a exigência do IR. Veja-se, nesse sentido, transcrição das palavras proferidas pelo referido autor:
“O acréscimo é não oneroso porque ele não decorre de qualquer esforço praticado pelo beneficiário ou do emprego de qualquer bem ou direito sobre o qual ele detenha a propriedade ou a posse. O beneficiário não possui uma relação direta com esses bens, seja a título de propriedade ou posse. Assim, ao receber os rendimentos do trust, ou os próprios bens e direitos que formam o patrimônio em trust, o beneficiário aufere um acréscimo a título gratuito, que poderia se sujeitar à incidência do ITCMD, respeitadas, entretanto, as regras de competência previstas no art. 155, § 1º, da Constituição Federal”.
Ou seja, pelo que se vê acima, a ideia postulada é a de que, como não haveria qualquer esforço ou emprego de bem ou direito sobre o qual a beneficiária tenha titularidade, para o recebimento desses valores decorrentes da exploração do trust, qualquer acréscimo patrimonial dele decorrente estaria se dando a título gratuito, revelando-se assim uma hipótese de não incidência de IR e, consequentemente, uma hipótese de incidência de ITCMD.
Esta conclusão decorre da premissa adotada de que, perante o Direito brasileiro, o direito da beneficiária do trust equivaleria a um direito de natureza obrigacional, a ser exercido em face do trustee, de modo que, nos dizeres de Ricardo Calil (2018, p. 189), não haveria nenhuma “relação jurídica direta [da beneficiária] com o patrimônio do trust, que é o conjunto de bens que produz os frutos (rendimentos) a serem distribuídos aos beneficiários”.
Entretanto, ousamos discordar tanto da premissa como da conclusão adotada, pois, para nós, a natureza do direito da beneficiária sobre o trust não seria a de uma relação jurídica meramente obrigacional em face do trustee, o que traria outras implicações tributárias
para o caso em análise, bem diversas das que foram vislumbradas pelas posições mencionadas acima.
Como se verá, diferentemente da hipótese anterior (em que o trustee transfere o patrimônio de sua titularidade para a titularidade da beneficiária, para que, ao fim e ao cabo, esta seja a única titular destes bens), a entrega do fruto da exploração do patrimônio do trust à beneficiária não se mostra uma transferência de patrimônio (do trustee para a beneficiária), vez que esse fruto nasce do produto do capital sobre o qual a beneficiária possui o equitable title.
Com efeito, conforme se depreende da análise procedida até aqui sobre o trust, tal instituto é encarado por nós como um modelo jurídico, isto é, uma estrutura normativa, que apresenta mandamentos jurídicos para disciplinar distintas modalidades de relações sociais, de acordo com certos axiomas (REALE, 1976, p. 176).
Em meio a esta estrutura normativa dotada de alta carga valorativa, encontramos algumas relações jurídicas, dentre as quais está a relação envolvendo a beneficiária. Esta relação teve como fonte primária de Direito as regras estabelecidas pelos precedentes emanados da equity inglesa, que firmaram a figura jurídica do equitable estate (DAVID, 1997, p. 105) (uma espécie de desmembramento econômico da propriedade dos bens e direitos objetos do trust), do qual a beneficiária é titular (possuindo assim o equitable title sobre o patrimônio do trust).
Diz-se que essa titularidade conferida pela equity à beneficiária (sobre a exploração do patrimônio afetado pelo trust) transmutou, ao longo da história da Inglaterra, de direito obrigacional em face do trustee para direito de propriedade sobre o trust (BIRKS; PRETTO, 2002, p. 134). Ou seja, pela sua essência, logo se vê que a relação jurídica envolvendo as figuras da beneficiária e do trust não se mostra uma mera relação jurídica obrigacional em face do trustee.
Sobre as relações jurídicas no âmbito da civil law, podemos classificá-las da seguinte maneira quanto ao seu objeto: (i) relações jurídicas pessoais (cujo objeto é um direito inerente à personalidade do sujeito ativo); (ii) relações jurídicas obrigacionais (cujo objeto é uma obrigação a ser cumprida pelo sujeito passivo em favor do sujeito ativo); e (iii) relações jurídicas reais (cujo objeto é a res, a coisa objeto da propriedade de titularidade do sujeito ativo, oponível erga omnes para o resto da sociedade, sujeito passivo em potencial) (REALE, 1976, p. 219).
Ocorre que, apesar de no Direito inglês o direito subjetivo do beneficiário ser considerado um direito de propriedade desmembrado (o equitable estate), ao lado da propriedade formal do trustee (legal estate), essa figura da dupla propriedade se mostraria aparentemente ininteligível perante a civil law, em meio à qual as categorias de direitos
reais (das quais surgem as relações jurídicas reais) possuem previsão legal em um rol de numerus clausus que, em nosso ordenamento jurídico, é instituído pelo art. 1.22819 do Código Civil.
Noutras palavras, a dupla propriedade anglo-saxônica dividida em legal estate e equitable estate pelo instituto do trust seria incompatível com a exclusividade e indivisibilidade da propriedade romano-germânica.
Em razão dessa aparente incompatibilidade entre o trust anglo-saxônico e a propriedade privada romano-germânica, Ricardo Calil (2018, p. 186) invoca vertente doutrinária constituída sob o enfoque da civil law, cujo posicionamento corre no sentido de que a relação jurídica decorrente da titularidade do beneficiário do trust seria uma relação jurídica “essencialmente” obrigacional, em face do trustee.
Ocorre que tal interpretação se limita a uma análise formal do trust ante ao Direito brasileiro (isto é, a uma interpretação quanto à incompatibilidade da forma do trust com as formas de propriedade da civil law). Seria quase um silogismo que conclui pela eterna condenação do trust aos limites do Direito anglo-saxônico, o que o tornaria inconciliável (ao menos em parte) perante as figuras do Direito brasileiro.
Ocorre que esse raciocínio quanto ao trust, nas palavras de Raphael Manhães Martins (2013,
p. 33) “[...] peca em um ponto essencial: considera os fenômenos jurídicos apenas em seus aspectos fático-normativos, desprezando aquilo que lhe é essencial, ou seja, os valores que lhe são subjacentes”.
É dizer que a classificação do direito da beneficiária como um mero direito obrigacional em face do trustee limitaria a finalidade do trust para com o resguarde do seu equitable title sobre a coisa, finalidade esta que é revestida de valores como fidúcia e segurança (MARTINS, 2013, p. 37), que permitem à beneficiária, por exemplo, opor a sua titularidade não apenas em face do trustee, mas também com relação a terceiros que eventualmente atentem contra os bens e direitos do trust.
Por isso repetimos, é necessário visualizar o instituto do trust não apenas como um conjunto de elementos constituídos a partir de uma construção histórica peculiar e vinculado a determinados aspectos do sistema jurídico anglo-saxônico, mas sim como um modelo jurídico que, através de uma estrutura normativa, ordena relações fáticas segundo uma ordem de valores (axiomas) a serem preservados (MARTINS, 2013, p. 33-34).
Levando em conta esses axiomas que guiam o trust, Eduardo Salomão Neto (2016, p. 1859), após um aprofundado estudo acerca do instituto, nos traz bons motivos para crer que o
direito subjetivo da beneficiária sobre o trust estrangeiro deve ser encarado como um direito real, aos olhos do Direito brasileiro:
“Essa questão dos direitos reais do beneficiário é de importância fundamental para a firmação de que o trust encontra reconhecimento no Brasil por via das regras de direito internacional privado. Contribui para reforçar a mesma conclusão o fato de que o artigo 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro institui os princípios gerais de direito, entre os quais está a equidade, como fonte de norma jurídicas. Seria evidentemente contrário à equidade privar o beneficiário dos direitos reais, com a possibilidade de sequela, conferido pela lei anglo-saxônica, negando a aplicação desta. De fato, isto levaria à consolidação da propriedade sujeito ao trust no trustee, em prejuízo do verdadeiro beneficiário. A impossibilidade de isso acontecer já foi aliás percebida pelo Statute of Uses de 1535, que ao procurar extinguir os uses ainda no início da Idade Moderna, fazia-o consolidando a propriedade no beneficiário, e não no trustee. Milita também no mesmo sentido decisão jurisprudencial italiana datada de 15 de março de 1956, no caso Piercy vs. ETFAS, em que se decidiu que os beneficiários de testador britânico de bens situados na Itália, e não o trustee nomeado, deveriam ser considerados detentores do direito real. Em nosso entender, a soma de tais argumentos indica claramente que o beneficiário de trust estrangeiro deve ser considerado como detentor de direito real sobre o patrimônio sujeito ao trust, por tribunal brasileiro que venha a examinar a questão”.
Veja que, de acordo com o referido autor, enxergar como real o direito da beneficiária sobre o patrimônio do trust estrangeiro é fundamental para a eficácia deste instituto jurídico perante o Direito brasileiro, até por força das regras de Direito Internacional privado contidas na LINDB (tal como defendemos no início deste artigo).
Pois bem. Uma vez visto o direito da beneficiária como um direito real sobre o trust, nos resta delimitar com clareza os elementos da relação jurídica que é formada por essa titularidade.
Para delimitarmos tal ponto, válido lembrarmos das lições de Teoria Geral do Direito proferidas por Miguel Reale (1976, p. 213), quanto aos elementos das relações jurídicas:
“Em toda relação jurídica destacam-se quatro elementos fundamentais:
Um sujeito ativo, que é o titular ou o beneficiário principal da relação;
Um sujeito passivo, assim considerado por ser o devedor da prestação principal;
O vínculo de atributividade capaz de ligar uma pessoa a outra, muitas vezes de maneira recíproca ou complementar, mas sempre de forma objetiva;
Finalmente, um objeto, que é a razão de ser o vínculo constituído”.
Assim, se fôssemos buscar os elementos acima para a relação jurídica em comento, teríamos o seguinte:
beneficiário do trust como sujeito ativo;
a sociedade como um todo, na qualidade de sujeito passivo em potencial;
o vínculo de atributividade representado pelas regras do trust firmado (contidas no trust deed), do qual decorre o equitable title, e,
finalmente, como objeto da relação, o patrimônio afetado pelo trust (o
equitable estate), do qual decorrerão os frutos a serem percebidos pelo beneficiário.
A relação jurídica acima descrita (do beneficiário sobre o trust) se estabelece concomitantemente com a relação jurídica do trustee, que também possui elementos próprios, a saber:
o trustee como sujeito ativo;
a sociedade como um todo, na qualidade de sujeito passivo em potencial;
o vínculo de atributividade representado pelas regras do trust firmado (contidas no trust deed), do qual decorre o legal title; e,
como objeto da relação, o patrimônio afetado pelo trust (nos limites do legal estate), do qual decorrerão os encargos inerentes às coisas do trust.
Tudo isso para mostrar que a beneficiária no caso possuiria titularidade direta (equitable title) sobre o patrimônio do trust, sendo certo que a percepção quanto aos frutos da exploração pelo trustee (que também tem titularidade formal – legal title – sobre os bens do trust) não se dá a título gratuito, sob a égide da beneficiária.
Pelo contrário, há nessa situação um acréscimo patrimonial em favor da beneficiária, em decorrência da exploração do produto do capital de sua propriedade (equitable estate).
Desta forma, quando analisada a hipótese da entrega pelo trustee à beneficiária dos frutos da exploração dos bens e direitos do trust, é possível dizer que neste momento ocorreria a realização da renda nos termos do art. 43, inciso I, do CTN (produto da exploração do capital).
Neste sentido, sobre a hipótese ora aventada, incidiria IR e não ITCMD, de sorte que, se essa foi a situação apresentada à Solução de Consulta n. 41/2020, a conclusão lá firmada (mesmo que carente de maiores fundamentações) estaria correta quanto à tributação federal.
Não custa repisar que, na análise desta segunda hipótese, levou-se em conta o valor que norteou a utilização do trust, que é exatamente a exploração econômica do patrimônio afetado, no intuito de gerar renda em favor da beneficiária, por força de seu equitable title. Neste caso, certamente há realização de renda, entendida como produto do capital consignado no trust, fato gerador do IR e hipótese de não incidência do ITCMD.
Diferente é o caso da situação anterior (transferência de capital), em que, não obstante também haver concomitância de titularidade entre trustee e beneficiária sobre os bens e direitos afetados pelo trust, a finalidade da operação consistia na extinção da titularidade (legal title) do trustee em favor da titularidade da beneficiária, de forma gratuita. Assim, por consistir em uma transferência gratuita de titularidade, tal situação atrairia a incidência do ITCMD, mostrando-se hipótese de não incidência do IR.
CONCLUSÕES
Por tudo que foi ponderado acima, este estudo possibilita concluir que o trust é um instituto jurídico oriundo do Direito inglês que, no intuito de garantir a proteção e exploração da propriedade privada, permitiu o desmembramento da titularidade sobre essa propriedade entre a figura do beneficiário e a do trustee.
Também foi visto que a validade e eficácia jurídica desse instituto perante o Direito brasileiro depende de sua compreensão, não apenas como uma mera estrutura fático- normativa fruto de determinada cultura jurídica, mas também como uma ordenação normativa das relações sociais em função de valores a serem preservados.
Assim, a aparente incompatibilidade quanto à forma eleita para o trust pelo Direito anglo- saxônico face às formas eleitas para a propriedade privada pelo Direito romano-germânico deve ser superada pela compreensão dos valores subjacentes ao trust.
Nesse sentido, quando nos deparamos com um trust firmado no exterior cuja beneficiária é pessoa residente no Brasil, as regras de Direito Internacional privado contidas na LINBD indicam que a validade jurídica desses axiomas visados pelo trust estrangeiro deve ser preservada pelo Direito brasileiro.
Da mesma forma, a essência jurídica do trust deve ser observada na sua tributação no Brasil, nos termos dos arts. 109 e 110 do CTN, para que a sobreposição do Direito Tributário sobre as riquezas estruturadas por trust esteja em consonância com os valores contidos na norma tributária.
Em razão da versatilidade e da flexibilidade do trust (que pode ser utilizado em diversas situações), a finalidade do ato específico (envolvendo os sujeitos dessa relação que se pretende tributar) deve ser observada para interpretação e aplicação da norma tributária. Essa análise, apesar de essencial, deixou de ser feita pela RFB ao proferir a Solução de Consulta COSIT n. 41/2020, que se limitou a estabelecer que incide o IR sobre valores recebidos por beneficiária residente fiscal no Brasil, oriundos de trust no exterior.
Ao assim proceder, a Solução de Consulta COSIT n. 41 de 2020 deixou de analisar elementos essenciais para a correta subjunção da norma tributária ao fato analisado.
No intuito de suprir essa questão, este artigo se propôs a estabelecer duas situações hipotéticas que poderiam ter ocorrido dentro do contexto que foi narrado pela resposta à consulta.
A primeira hipótese se daria em um cenário de transferência patrimonial dos bens e direitos afetados pelo trust, em virtude da morte do settlor, por força de regras de partilha contidas no trust deed, de modo a extinguir a titularidade do trustee (legal title) sobre o patrimônio em favor da beneficiária, que, ao fim e ao cabo, passa a ser a titular exclusiva sobre o patrimônio, não mais afetado pelo trust.
Nesta situação, concluiu-se que, apesar da concomitância de titularidade entre trustee e beneficiária sobre os bens e direitos afetados pelo trust¸ a finalidade da operação consistira na extinção da titularidade do trustee, de forma gratuita, em favor da titularidade da beneficiária, atraindo, assim, a incidência do ITCMD e se mostrando uma hipótese de não incidência do IR.
Já a outra hipótese analisada foi a de que o trustee estaria entregando à beneficiária o fruto da exploração do patrimônio ainda afetado pelo trust, mesmo após a morte do settlor. Assim, considerou-se que, neste contexto, a finalidade do trust foi a exploração econômica do patrimônio deste por força da titularidade a que a beneficiária faz jus (equitable title), muito embora esse patrimônio também se encontre, concomitantemente, dentro da esfera patrimonial do trustee (que possui o legal title).
Portanto, nesta segunda situação hipotética, haveria a exata subsunção ao antecedente descrito pelo art. 43, inciso I, do CTN, na qual a beneficiária percebe o produto da exploração de seu capital (equitable estate) pelo trustee.
Via de consequência, não haveria, nesta situação, nenhuma espécie de gratuidade no acréscimo patrimonial percebido, já que a fonte produtora da renda (o capital) seria também de titularidade da beneficiária, afastando, assim, a incidência do ITCMD.
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