Teste de Razoabilidade e a Cláusula PPT: Critério Objetivo de Interpretação ou Elemento Indutor de Subjetividade?

Reasonable Test and the PPT Clause: a Technique for an Objective Interpretation or an Element that Induces Subjectivity

Guilherme Lanzellotti Medeiros

Mestrando em Direito Tributário Internacional e Comparado pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Membro associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Advogado tributarista. E-mail: guilhermelmedeiros@gmail.com.

Recebido em: 29-9-2021 – Aprovado em: 29-3-2022

https://doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n10-1

Resumo

Este artigo aborda a natureza jurídica do teste de razoabilidade contido no § 7º da Ação n. 6 do Plano BEPS. Pretende-se analisar a origem do teste de razoabilidade e a confusão conceitual que vem exsurgindo a respeito do seu aspecto objetivo ou subjetivo, buscando trazer luz às divergências doutrinárias sobre o tema. A partir da premissa obtida com a referida análise, este artigo fará uma crítica ao conteúdo da Cláusula PPT, utilizando-se do direito comparado para demonstrar que a precária importação pela Cláusula PPT do teste da razoabilidade acaba por implicar insegurança jurídica e subjetivismo na aplicação da referida legislação.

Palavras-chave: tributação internacional, direito comparado, OCDE, BEPS, cláusula PPT, razoabilidade, teste, GAAR britânica, Reino Unido, Lei Geral Antiabuso.

Abstract

This article addresses the legal nature of the reasonableness test foressen in paragraph 7 of Action 6 of the BEPS Plan. It is intended to analyze the origin of the reasonableness test and the misunderstandings in literature that arises regarding the objective or subjective aspect of the referred test, seeking to bring light to the doctrinal divergences on the subject. Based on the premise obtained from the inicial analysis, this article will make a critique of the content of the PPT Clause, using comparative law doctrine to demonstrate that the precarious import by the PPT Clause of the reasonableness test ends up implying legal uncertainty and manifest subjectivism in the application of the legislation.

Keywords: international taxation, Comparative law, OECD, BEPS, PPT clause, reasonable, test, UK GAAR, UK, General Anti-abuse Law.

I. Introdução

É notória a influência da lei geral antiabuso do Reino Unido (General Anti-abuse Rule – GAAR) na redação final da cláusula do “principal purpose test” (doravante denominada apenas como “Cláusula PPT”), prevista no § 7º da Ação 6 do Projeto BEPS1.

De fato, embora não exista qualquer comprovação de sua vinculação direta, a utilização do teste de razoabilidade pela aludida Cláusula PPT possui influência e intrínseca relação de identidade com a redação da lei geral antiabusivo adotada no Reino Unido (“general anti-abuse rule” – GAAR Britânica).

Ocorre, no entanto, que a importação indistinta e precária deste teste tem gerado grande confusão e insegurança jurídica na aplicação da Cláusula PPT por parte dos países signatários da Multilateral Convention to implemente Tax Treaty related Measures – MLI2, sendo reiteradamente objeto de críticas no sentido de que tratar-se-ia de conceito muito amplo e muito vago (FREEDMAN, 2007, p. 7).

Diante desse cenário, este trabalho se valerá de instrumentos fornecidos pelo Direito Comparado para tentar trazer luz aos referidos conceitos e demonstrar que as críticas pelas quais a Cláusula PPT vem sendo submetida não se adstringem propriamente à amplitude ou incerteza do teste adotado, mas sim, da parca e precária importação deste instituto sem a devida harmonização ao novo sistema jurídico em que está inserido.

É importante destacar que a detida análise da Cláusula PPT e das problemáticas envolvendo a sua aplicação é de suma relevância prática para o direito positivo brasileiro, pois, como é cediço, o Brasil manifestou formalmente seu interesse em tornar-se membro da OCDE em maio de 20173, tendo, desde então, intensificado seu trabalho de aderência às normas da Organização. Atualmente, das 246 normas da OCDE, o Brasil já aderiu a exatamente 100 instrumentos, sendo o país não membro com maior número de instrumentos aprovados4.

Na corrida para obter o seu acesso à OCDE, o Brasil vem sendo confrontado com diversas ações estabelecidas pela Organização que ainda não foram detidamente ratificadas e harmonizadas à legislação brasileira interna, dentre elas os instrumentos de aperfeiçoamento da legislação fiscal previstos na Ação 6 do Projeto BEPS5.

Portanto, revela-se pertinente a análise da Cláusula PPT e dos termos nela empregados, a fim de que se possa estabelecer os desafios que poderão vir a ser enfrentados para a ratificação e harmonização desta disposição ao sistema jurídico brasileiro.

II. Inclusão da norma geral antiabuso na Convenção Modelo da OCDE

II.1. § 7º da Ação n. 6 do BEPS – Cláusula PPT

No relatório final da Ação n. 6 do BEPS, restou consignado pela OCDE que estariam lançadas “as fundações de uma moderna estrutura tributária internacional, sob a qual os lucros seriam tributados onde a atividade econômica e a criação de valor ocorrem” (OECD, 2015).

A Ação n. 6 do BEPS foi, por meio do seu relatório final, construída a partir da inclusão na Convenção Modelo da OCDE das seguintes propostas: (I) regra geral antiabuso específica e direcionada ao combate de situações de treaty shopping (Cláusula LOB); (II) modificações textuais no preâmbulo e no título da Convenção; e (III) uma regra geral antiabuso para todas as demais situações que não pudessem ser alcançadas pela regra identificada no item I (Cláusula PPT). Apenas o item III será objeto de análise neste trabalho.

Pois bem. A proposta de inserção na Convenção Modelo de uma regra geral antiabuso foi, então, positivada por meio do § 7º proposto pela OCDE na Ação n. 6 do Projeto BEPS, cujo teor foi assim delimitado:

“Não obstante as demais disposições da presente Convenção, um benefício no âmbito desta Convenção não será concedido em relação a um item do rendimento ou capital, se é razoável concluir, tendo em conta todos os fatos e circunstâncias relevantes, que a obtenção de benefício foi um dos principais efeitos de qualquer arranjo ou transação que resultou direta ou indiretamente nesse benefício, salvo se demonstrado que a concessão de benefício que, nestas circunstâncias estaria de acordo com o objeto e a finalidade das disposições relevantes da presente Convenção.”6

Em suma, a referida regra antiabuso incorpora os princípios intrínsecos da convenção, permitindo aos Estados Soberanos que discutam casos envolvendo o uso indevido da convenção mesmo quando suas legislações domésticas não possuam previsão nesse sentido (MORATO, 2020, p. 105).

A referida disposição normativa foi, então, denominada como Cláusula PPT, porquanto institui uma regra geral antiabuso respaldada no teste de propósito principal.

Conforme se observa, a Cláusula PPT possui três componentes críticos (ELLIFFE, 2019, p. 60):

I) o início do teste, delimitado a partir do termo “não obstante as demais disposições da presente Convenção”;

II) o teste propriamente dito ou em sentido estrito, composto por um teste de razoabilidade e por um teste de propósito principal. O teste em sentido estrito é extraído da Cláusula PPT a partir do seguinte trecho: “é razoável concluir, tendo em conta todos os fatos e circunstâncias relevantes, que a obtenção de benefício foi um dos principais efeitos de qualquer arranjo ou transação que resultou direta ou indiretamente nesse benefício”; e

III) a hipótese de exclusão, delimitada a partir do termo: “salvo se demonstrado que a concessão de benefício que, nestas circunstâncias estaria de acordo com o objeto e a finalidade das disposições relevantes da presente Convenção”.

De relevante para este trabalho, a análise será limitada ao exame do teste em sentido estrito, proposto pela Cláusula PPT, mais especificamente do teste de razoabilidade nele compreendido.

II.2. Teste em sentido estrito

A Cláusula PPT estabelece que o benefício fiscal provido pelo tratado internacional não será admitido nas hipóteses em que for “razoável concluir, tendo em conta todos os fatos e circunstâncias relevantes, que a obtenção de benefício foi um dos principais efeitos de qualquer arranjo ou transação que resultou direta ou indiretamente nesse benefício”.

Da referida redação (“wording”) é possível extrair diversos elementos importantes para a exata compreensão do teste em sentido estrito. O primeiro deles, e que será objeto de detida análise neste trabalho, diz respeito ao termo “razoável concluir”. A referida terminologia conecta à Cláusula PPT o denominado “teste de razoabilidade”.

Nesse ponto, há de se destacar que este específico elemento é objeto de grande divergência acadêmica, mormente no que se refere ao caráter subjetivo ou objetivo do teste de razoabilidade.

II.2.1. Teste de razoabilidade – um critério de interpretação objetivo ou um elemento indutor de subjetividade

Muito se discute a respeito da objetividade do teste de razoabilidade ou do seu manifesto subjetivismo exacerbado.

Aqueles que defendem a objetividade do teste de razoabilidade do texto previsto na Cláusula PPT, como é o caso de grandes doutrinadores como Richard Krever, destacam que a técnica de razoabilidade (“reasonableness technique”) é comumente utilizada por países adeptos à “common law” como forma de esclarecer que o teste deve ser necessariamente objetivo (KREVER, 2016, p. 8).

Em contrapartida, parte relevante da doutrina internacional, com adeptos de respeitável renome, como, por exemplo, Eric. Kemmeren, posiciona-se no sentido de que o conceito de razoabilidade tratar-se-ia, em realidade, de uma falha na redação final da Cláusula PPT, porquanto criaria muita incerteza aos contribuintes a respeito da autuação da Corte Europeia de Justiça acerca da aplicabilidade, extensão e limites que seriam impostos em relação à referida cláusula (KEMMEREN, 2014, p. 191). Em outras palavras, defende-se que o caráter subjetivo do conceito de razoabilidade implicaria grande insegurança jurídica aos contribuintes.

No mesmo sentido, Michael Lang afirma que o requisito para a aplicação do teste do propósito principal se resume essencialmente a um critério subjetivo (LANG, 2016, p. 749). A razoabilidade ainda é analisada como um teste subjetivo por autores como Luc de Broe e Joris Luts (DE BROE; LUTS, 2015, p. 134).

Com a devida vênia aos autores que se posicionam de modo distinto, este autor entende a referida divergência decorre de uma confusão na terminologia utilizada e do seu respectivo significado nos diferentes sistemas jurídicos adotados pelos Estados. Em suma, as contrapostas correntes doutrinárias estão tratando de situações dessemelhantes.

Para esclarecer o referido equívoco, é importante dispor, primeiramente, sobre o que seria considerado um teste objetivo e um teste subjetivo.

Com efeito, Carig Elliffe ensina que um teste subjetivo é, a rigor, o teste que se baseia nas crenças e percepções do contribuinte no momento da prática da conduta posta ao seu crivo. No teste subjetivo, analisa-se a intenção que levou o contribuinte a praticar a referida conduta. Por outro lado, um teste objetivo é aquele que observa a conduta em si, comparando-a a um determinado padrão que é exterior e alheio à pessoa que está sendo submetida a este teste (ELLIFFE, 2019, p. 62).

Nesse diapasão, o teste de razoabilidade deve ser compreendido como um instituto jurídico importado de países adeptos à “common law”, especialmente dos Estados Unidos e do Reino Unido, que impõe uma verdadeira técnica de interpretação legal. No contexto do ordenamento jurídico da “common law”, o teste de razoabilidade impõe que determinada legislação deverá ser aplicada de maneira objetiva.

É dizer, a “reasonableness technique” prescreve que determinada legislação não deverá se preocupar com a intenção pela qual determinada conduta foi praticada, mas sim, contrapor a conduta sob análise a um parâmetro de razoabilidade imposto a partir de critérios exteriores às motivações que ensejaram a prática da referida conduta e que serão delimitados a partir da construção judicial sobre o tema, construção muito característica dos países da “common law” (ELLIFFE, 2019, p. 63).

Portanto, o teste de razoabilidade é trazido na Cláusula PPT como método de interpretação da legislação em que está inserido, não como um fim em si mesmo.

II.2.2. Da origem do conceito de razoabilidade como um critério objetivo de interpretação legal

A percepção de razoabilidade como instrumento objetivo de interpretação legal nasceu, originalmente em 1903, a partir da adoção do conceito denominado “man on the Clapham omnibus” pela Suprema Corte do Reino Unido7. Essa expressão é originalmente atribuída ao jornalista Walter Bagehot ao descrever, em um de seus artigos, a opinião pública como a opinião de um homem careca no fundo de um ônibus público (BAGEHOT, 1873, p. 325-326).

No âmbito jurídico, a expressão foi inicialmente empregada por Lorde Bowsen, Lorde que integrou o julgamento do caso McQuire v. Western Morning News, no sentido de descrever um senso comum derivado da sociedade8.

Assim, o referido conceito poderia ser, a rigor, comparado com o instituto do “homem médio”, previsto em nosso ordenamento jurídico, no sentido de se verificar qual a conduta considerada válida pela opinião pública. Contudo, o conceito do “man on the Clapham omnibus” vai mais além.

O conceito, após as diversas evoluções jurisprudenciais no sistema jurídico britânico9, passou a compreender o conceito do “man on the Clapham omnibus” como o ideal de comportamento e conduta de um “homem razoável” em relação à determinada situação.

Dentro deste espectro, a Suprema Corte do Reino Unido definiu, então, que essas atribuições do dito “homem razoável” não seriam estabelecidas a partir de fatos, provas e/ou testemunhas, mas sim, da própria aplicação de padrões legais previamente definidos por aquela Corte10.

Da definição de padrões pela Suprema Corte do Reino Unido, que seriam supostamente praticados pelo “homem razoável” e que, portanto, deveriam ser observados dentro do ordenamento jurídico britânico, é que exsurgiu a percepção de razoabilidade (homem razoável) como instrumento de interpretação legislativa dentro do sistema jurídico do Reino Unido.

II.2.3. Do teste de razoabilidade como critério balizador da objetividade do teste do propósito principal

Nabil Orow, em seu livro sobre as leis gerais antiabuso, dispõe que o conceito de propósito, à luz da uma GAAR, pode ser aplicado de três formas distintas (OROW, 2000, p. 123):

I) propósito no sentido de “estado de espírito”. Nesta dicção, o teste de propósito é puramente subjetivo, cabendo a demonstração não apenas da subsunção da hipótese à espécie, mas também da comprovação direta e efetiva do próprio “estado de espírito” do contribuinte na prática da conduta analisada;

II) propósito no sentido de “estado de espírito objetivo”. Nessa hipótese, adota-se um sistema híbrido e intermediário, por meio do qual o “estado de espírito” do contribuinte pode ser comprovado por meio das circunstâncias fáticas que envolvem a sua conduta, ainda que indiretamente; e

III) propósito no sentido de atributo de uma operação. A abordagem neste último caso é estritamente objetiva, analisando as especificidades e particularidades de determinada operação, a fim de que seja verificada a sua efetividade e cumprimento dos atributos regulares e comuns às operações de igual natureza.

Nesse sentido, o contexto político internacional permite concluir que, em sua maioria, os países adeptos ao “civil law” tendem à operar suas leis gerais antiabuso sob a primeira e a segunda abordagens tratadas acima, ao passo que os países da “common law” optam, a priori, pelas políticas estabelecidas nos itens II e III (ELLIFFE, 2019, p. 63).

É neste contexto que se insere o teste de razoabilidade na Cláusula PPT. Em se tratando de uma técnica de interpretação legislativa que esclarece que determinada disposição deve ser necessariamente aplicada com base em critérios estritamente objetivos (“Man on the Clapham omnibus”), o teste de razoabilidade é incluído na Cláusula PPT a fim de condicionar e limitar o intérprete da lei à estrita análise de 2 (dois) critérios distintos, embora interligados: (I) seria “razoável concluir” a partir de padrões (“standards”) objetivamente estabelecidos, qual seria (II) o propósito principal de determinada conduta e/ou operação (desconsiderada a intenção do contribuinte) (ELLIFFE, 2019, p. 64).

Dennis Weber conclui, nesse sentido, que a natureza jurídica objetiva do teste do propósito principal previsto na Cláusula PPT é, portanto, conferida pelo teste da razoabilidade que o antecede no texto legal (“principal purpose is objectified by the reasonableness test”) (WEBER, 2017, p. 49).

A própria influência e substancial similaridade entre o “wording” da Cláusula PPT e o da GAAR do Reino Unido indicaria que a Cláusula PPT deveria ser interpretada como um teste puramente objetivo. Nesse sentido, Judith Freedman dispõe justamente que o termo “it would be reasonble to conclude” demonstraria que o teste do principal propósito tratar-se-ia de um teste objetivo (LANG, 2016, p. 749).

Tem-se, por conseguinte, que o teste de razoabilidade incluído na Cláusula PPT se trata estritamente de uma técnica de interpretação legislativa, importada dos sistemas de “common law”, por meio da qual se esclarece que determinada disposição, no caso da Cláusula PPT, o teste de propósito principal, deverá ser interpretada de maneira puramente objetiva, assim entendida a técnica de contraposição dos atributos da operação analisada a determinados padrões de conduta previamente estabelecidos judicialmente para operações de igual ou similar natureza.

A corroborar esse entendimento, cabe observar que nos próprios comentários à Cláusula PPT constante do Relatório Final do Plano de Ação BEPS, há a menção textual de que o termo “reasonable to conclude” pressupõe uma análise objetiva dos fatos e circunstâncias relevantes para o caso (OECD, 2015).

Como se observa, portanto, a objetividade tratada por estes autores não se contrapõe à subjetividade indicada pela doutrina divergente. Muito pelo contrário! As referidas correntes doutrinárias estão, em última análise, analisando aspectos distintos da Cláusula PPT, os quais não necessariamente se contrapõem, mas sim, complementam-se.

Isso porque a objetividade defendida por essa corrente doutrinária diz respeito a uma técnica de interpretação legislativa.

Por outro lado, a subjetividade suscitada por autores como Eric Kemmereen e Michael Lang deriva da percepção de indefinição e incerteza do padrão (“standard”) que será utilizado como baliza para a comparação da conduta submetida ao teste do propósito principal. Nesse ponto, essa corrente doutrinária prega que a referida incerteza implica manifesta insegurança jurídica ao contribuinte no exercício da subsunção da norma ao caso concreto (KEMMEREN, 2014, p. 191).

Como se observa, portanto, nesta segunda corrente doutrinária, o conceito de subjetividade não é empregado como a técnica de interpretação legislativa por meio da qual se considera a intenção do contribuinte (estado de espírito), como conceituado por Nabil Orow, mas sim, como mero fato identificador de uma hipótese de incerteza no texto legal (antecedente normativo) que, por decorrência lógica, gera uma situação de insegurança jurídica (consequente normativo).

Em outras palavras, as correntes doutrinárias estão analisando aspectos distintos da aplicação do teste da razoabilidade, valendo-se de definições diferentes do conceito da razoabilidade!

É nesse ponto que reside a confusão conceitual que exsurge da análise da Cláusula PPT.

Com efeito, para um país sujeito à sistemática de precedentes, “common law”, a concepção da razoabilidade como um instrumento de interpretação legal é, de certo modo, intuitiva, porquanto esse conceito já há muito se encontra presente e sedimentado em seus ordenamentos jurídicos.

Somado a este fato, tem-se ainda que em um Estado da “common law”, a sistemática de precedentes está deveras arraigada e bastante consolidada no ordenamento jurídico daquele país, de modo que a definição dos padrões (“standards”) judiciais, necessários ao cumprimento do teste de razoabilidade, é considerada como elemento certo e de razoável grau de segurança jurídica.

Portanto, as alegações atinentes ao caráter subjetivo do teste de razoabilidade não são, até mesmo, bem compreendidas por aqueles autores que analisam a matéria sob a vertente da “common law”, porquanto as características tratadas nos dois parágrafos anteriores, nesse específico sistema, compõem uma técnica interpretativa verdadeiramente indutora de objetividade à aplicação legal.

A corroborar esse entendimento, Judith Freedman defende exatamente que haveria uma suposta confusão acerca da subjetividade do teste de razoabilidade. Isso porque, o “teste de razoabilidade deveria acrescer substancial grau de certeza, ao invés de mitigá-lo, ainda mais quando somado a exemplos como ocorre no caso da GAAR Britânico” (FREEDMAN, 2019, p. 7). Como se observa, para a autora, o teste de razoabilidade afasta qualquer correlação da lei à intenção do praticante da conduta submetida ao teste.

Judith Freedman dispõe, inclusive, que o equívoco a respeito da subjetividade do referido teste decorre da pequena compreensão a respeito do teste de razoabilidade na forma em que é utilizado na “common law” (FREEDMAN, 2019, p. 7).

Contudo, diferentemente das leis gerais antiabuso nacionais presentes nos ordenamentos jurídicos dos países aderentes à sistemática da “common law”, a Cláusula PPT é uma “soft law” que se presta a indicar o caminho que deve ser perseguido por todos os países integrantes da OCDE, bem como por aqueles que um dia pretendem integrar a referida Organização, como é o caso do Brasil.

Dentro desta compreensão, observa-se que as mesmas características consideradas pela “common law” como indutoras de objetividade, para um país optante pelo “civil law” caminham em sentido oposto, majorando o grau de incerteza e, por conseguinte, a insegurança jurídica. Esta questão será mais bem tratada no próximo tópico deste trabalho.

Portanto, com base na devida compreensão dos conceitos tratados neste tópico, conclui-se que o teste de razoabilidade previsto na Cláusula PPT é, a rigor, um teste objetivo importado de ordenamentos jurídicos adeptos à “common law”, como os Estados Unidos e o Reino unido, positivado no texto legal como forma de esclarecer o método pelo qual o teste do propósito principal deverá ser interpretado e aplicado à espécie (desconsideração da intenção do contribuinte ou do motivo pelo qual a conduta foi praticada) (ELLIFFE, 2019, p. 63).

No entanto, este elemento indutor de objetividade não foi estruturado da forma mais eficiente no texto final da Cláusula PPT, merecendo críticas deste autor, pois, na configuração em que inserido na referida cláusula, acaba servindo como fio condutor de incerteza e insegurança jurídica, como alegam os autores que defendem a subjetividade deste teste.

III. Os problemas decorrentes da importação de conceitos

III.1. Da importação do conceito de razoabilidade na Cláusula PPT

Otavio Luiz Rodrigues Junior descreve que “a importação de categorias, conceitos, figuras e modelos jurídicos é algo inerente ao desenvolvimento da Ciência do Direito”. Contudo, o autor ressalva que a “importação” se trata de um instrumento jurídico perigoso facilmente marcado por vícios que maculam a higidez da figura jurídica estrangeira (RODRIGUES JUNIOR, 2012).

Nesse sentido, Rodrigues Junior sumariza da seguinte maneira as causas que podem ensejar este vício de desvio de finalidade (RODRIGUES JUNIOR, 2012):

I) o contexto normativo do Direito Importador é impeditivo à adaptação da figura jurídica importada, concebida para desempenhar função útil em realidade distinta, sendo, portanto, imprestável para o Direito importador;

II) a figura jurídica importada foi mal traduzida para o novo idioma ou não se compreendeu o seu contexto normativo, acarretando, por conseguinte, em resultados impróprios e inesperados sob o viés do seu Direito de origem;

III) a importação observou a literatura antiga da figura jurídica importada, motivo pelo qual não se acompanhou a evolução natural do instituto no Direito de origem. Nesta hipótese, não se incorporam ao Direito importador as ilações doutrinárias e jurisprudenciais sobre a matéria; e

IV) já existem figuras jurídicas semelhantes no Direito importador, de modo que a importação se traduz em “puro exercício de berloquismo ou vaidade”.

A Cláusula PPT prevista na Ação n. 6 do Plano BEPS, ao importar e empregar isoladamente o teste de razoabilidade como instrumento indutor de objetividade ao princípio do propósito principal, acabou justamente por incorrer nos vícios mencionados por Otavio Luiz Rodrigues Junior, mais especificamente naqueles indicados nos itens I, II e IV.

Como mencionado no tópico anterior, Judith Freedman acredita que o equívoco a respeito da subjetividade do referido teste decorre da pequena compreensão a respeito do teste de razoabilidade na forma em que é utilizado na “common law”. Nesse sentido, a autora chama a atenção para a possibilidade de o transplante destes conceitos não caminhar de forma adequada (FREEDMAN, 2019, p. 8).

De fato, muito embora seja possível afirmar que o teste de razoabilidade se trate, à luz dos conceitos desenvolvidos nos Países da “common law”, de um teste objetivo, assim entendido apenas como um método de interpretação legal, é certo que, quando considerado isoladamente, este teste não tem o condão de conferir segurança jurídica ao contribuinte submetido à hipótese legal, porquanto sua aplicação está condicionada a uma posterior atuação judicial uniforme.

Portanto, sob o manto da insegurança jurídica, é certo que o teste de razoabilidade, quando considerado isoladamente, como foi empregado na Cláusula PPT, não tem o condão de extrair todo o subjetivismo percebido na delimitação dos padrões (“standards”) que serão utilizados como baluartes à subsunção da norma a determinado caso concreto.

Isso porque, a Cláusula PPT, influenciada por legislações como a dos Estados Unidos e do Reino Unido, destacou o teste de razoabilidade como forma de mitigar o subjetivismo na interpretação dos conceitos legais, tornando a aplicação da referida cláusula antiabuso supostamente mais objetiva.

A primeira crítica que ascende neste ponto consiste no fato de a Cláusula PPT ter optado por utilizar conceitos, notória e particularmente adstritos à “common law”.

A rigor, dentro de um espectro mais amplo envolvendo os países integrantes da OCDE, é claro que a terminologia adotada não traz o mesmo grau de certeza e determinação para os países praticantes da “civil law”. Muito pelo contrário, no âmbito da “civil law”, o conceito de razoabilidade possui elevado grau de subjetivismo e não possui qualquer vinculação ou construção lógica-jurídica derivada do conceito do “man on the Clapham omnibus” tratado anteriormente.

Não por outro motivo é que se destaca a confusão conceitual abordada no tópico II.2.3 deste trabalho.

Por essa razão, a OCDE deveria importar o referido conceito com maior parcimônia ou, ao menos, delimitar seu escopo de maneira mais adequada, porquanto a percepção de razoabilidade como um instrumento objetivo de interpretação legal é absolutamente estranha e contraintuitiva nos países adeptos à “civil law”.

Como se nota, e antes de mais nada, a Cláusula PPT incorre justamente no equívoco mencionado por Otavio Luiz Rodrigues Junior no item I mencionado no início deste tópico, pois, como demonstrado neste trabalho, a percepção de razoabilidade como figura jurídica é notória e manifestamente diversa nos países adeptos à “civil law” (RODRIGUES JUNIOR, 2012).

Neste contexto, vale trazer à baila os ensinamentos do Professor Humberto Ávila, o qual discorre sobre as tipologias possivelmente atribuídas em nosso ordenamento jurídico brasileiro ao instituto jurídico da razoabilidade (ÁVILA, 2019, p. 194-203). Em seu trabalho, o Professor busca exaurir o tema, abordando a razoabilidade como equidade, congruência e equivalência, o que evidencia que, no Brasil, por exemplo, a razoabilidade não é jamais uma figura jurídica compreendida como critério de interpretação legislativo.

Neste cenário, a própria incompatibilidade conceitual e terminológica que é conferida à figura jurídica da razoabilidade entre os países da “common law” e aqueles adeptos ao “civil law” configura fator complicador ou, até mesmo, impeditivo da harmonização deste instituto no sistema jurídico pautado no Direito Civil, erro o qual, com todo o devido acatamento, deveria ter sido previsto e superado pela OCDE quando da eleição do “wording” da Cláusula PPT, mormente no que se refere à opção pelo teste de razoabilidade.

III.2. Da subjetividade do teste de razoabilidade disposto na Cláusula PPT

O principal ponto de conflito que deve ser apontado em relação à redação da Cláusula PPT, no entanto, diz respeito à parca e precária importação do teste de razoabilidade dos países como os Estados Unidos e o Reino Unido, como individual e exclusivo método de atribuição de objetividade à lei geral antiabuso.

Neste ponto, analisa-se o vício de importação mencionado por Otavio Luiz Rodrigues Junior no item II do tópico anterior – importação da figura jurídica fora do contexto normativo que foi inicialmente pensado (RODRIGUES JUNIOR, 2012).

É importante frisar que, a partir deste ponto do trabalho, o termo “objetividade” é utilizado no sentido empregado na “civil law”, ou seja, como ideia de contraposição à subjetividade como agente indutor da insegurança jurídica. Em ouras palavras, a objetividade tratada neste ponto se refere ao afastamento da insegurança jurídica inerente à aplicação da Cláusula PPT, não sendo mais tratada como técnica de interpretação legislativa.

Com efeito, é manifesta a precariedade de uma norma que busca obter os mesmos resultados de outra legislação a partir da importação isolada de um ou mais conceitos da primeira, sem, contudo, importar conjuntamente todo o complexo sistema de pesos e contrapesos no qual a primeira norma foi inserida, tampouco desempenhar a função de harmonizar os referidos conceitos ao novel ambiente jurídico em que esses institutos agora estão inseridos.

Para demonstrar a precariedade da referida importação, este autor se vale do instituto do direito comparado para tecer algumas breves considerações a respeito da GAAR do Reino Unido, texto legal que, como já mencionado anteriormente, serviu como inspiração e influência para a adoção do teste de razoabilidade na Cláusula PPT.

III.3. Breves considerações a respeito da GAAR do Reino Unido

Como já tratado anteriormente, o teste de razoabilidade contido na “Cláusula PPT” possui manifesta influência da lei geral antiabuso instituída pelo Reino Unido (“General Anti-Abuse Rule – GAAR”), em seu “Financial Act 2013 – Part. 5”.

A esse respeito, Judith Freedman destaca que, muito embora a discussão a respeito da introdução da GAAR no Reino Unido tenha se iniciado muito antes da elaboração e publicação do Relatório Final do Plano de BEPS, muitos políticos e a própria imprensa acreditam que o processo de desenvolvimento de ambos os institutos teria se confundido (FREEDMAN, 2019, p. 1).

Contudo, em que pese instituídos a partir de processos de estudo e elaboração distintos, é indiscutível que a redação da lei geral antiabuso do Reino Unido influenciou direta e positivamente o texto final da Cláusula PPT prevista na Ação n. 6 do Plano BEPS (FREEDMAN, 2019, p. 7).

A GAAR Britânica foi promulgada no curso do ano de 2013, com o advento do UK Financial Act 2013, a partir de um extenso e exaustivo estudo promovido por Graham Aaronson (AARONSON, 2011), por meio do qual se analisou não apenas os efeitos que uma norma geral antiabuso traria aos Sistema Tributário Britânico, principalmente no que se refere à diminuição da insegurança jurídica e das reiteradas contradições que o Reino Unido vinha vivenciando em seu sistema judicial de precedentes11, mas também definiu de maneira criteriosa cada uma das palavras que comporiam a referida norma geral antiabuso, a fim de mitigar ao máximo a subjetividade do texto legal.

A GAAR Britânica, baseada no relatório final elaborado pela equipe de trabalho de Graham Aaronson, e emendas levadas a efeito durante o processo legislativo de promulgação da lei, positivou no sistema tributário do Reino Unido uma norma geral antiabuso pautada no denominado teste da dupla razoabilidade (“double reasonableness test of abusiveness”)12.

O referido teste consiste em uma dupla etapa de verificação da razoabilidade da operação.

A primeira etapa, denominada por este autor como “teste de razoabilidade amplo”, atém-se à constatação de que determinada operação poderia ser classificada como um “arranjo fiscal”. Nesta etapa, a GAAR Britânica classifica uma operação como um “arranjo fiscal” quando for razoável concluir que a obtenção de uma vantagem fiscal seria o propósito principal da operação ou, ainda, um dos propósitos principais.

Nesse ponto, já é possível se verificar uma notória identidade textual entre a disposição contida na GAAR Britânica e a Cláusula PPT da Ação n. 6 do BEPS. Assim como a GAAR do Reino Unido, a Cláusula PPT se vale dos termos “reasonable to conclude” e “one of the principal purpose”13.

Ocorre, contudo, que a GAAR Britânica, não se limita ao referido “teste de razoabilidade amplo”, mas sim, o complementa a partir do “teste de razoabilidade estrito”, assim entendido como a verificação de que o “arranjo fiscal” seria ou não considerado abusivo.

Ou seja, após a primeira verificação, no sentido de atestar que determinada operação seria um “arranjo fiscal”, deveria ser levada a efeito uma segunda verificação condicionada, no sentido de confirmar se o referido “arranjo fiscal” seria ou não abusivo.

Para a GAAR Britânica, o “arranjo fiscal” será considerado abusivo quando a sua celebração e/ou execução não puderem ser razoavelmente consideradas como um curso de ação razoável em relação às disposições fiscais aplicáveis à hipótese. Em suma, a aplicação da GAAR Britânica sobre determinada operação pode ser sintetizada da seguinte forma:

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Mas não é só, para delimitar ainda mais o escopo de abrangência da referida norma jurídica, a GAAR Britânica prescreve, também, uma breve relação exemplificativa de situações que demonstram que determinada operação deve ser considerada como “arranjo fiscal abusivo”.

Nessa lista exemplificativa, a lei do Reino Unido dispõe de hipóteses como: (I) a substância da operação seja consistente com os princípios que lastreiam a legislação tributária aplicável à espécie; (II) se os meios para a realização da operação e a obtenção dos resultados envolvem um ou mais etapas anormais ou artificiais; e (III) se a operação busca se aproveitar de lacunas da legislação tributária vigente.

A GAAR Britânica descreve, também de forma exemplificativa, indicativos de que determinada operação se configuraria como um “arranjo fiscal abusivo”, notadamente: (I) a operação resulta em um ganho tributário que é incompativelmente inferior ao propósito econômico envolvido; (II) a operação resulta em perdas e/ou deduções que são substancialmente superiores ao propósito econômico envolvido; e (III) a operação implica a obtenção de um crédito tributário ou uma contraprestação que dificilmente será liquidada.

A exaustiva descrição das características da GAAR do Reino Unido é deveras relevante para este trabalho, pois a imposição legal de uma sequência de etapas para que se possa subsumir determinada operação à GAAR Britânica, considerando-a como um “arranjo fiscal abusivo”, é justamente o fator que concretiza o “distinguishing” entre a referida norma e a Cláusula PPT.

Isso porque, conforme explicitado pelo próprio Graham Aaronson em seu estudo, o “teste de razoabilidade amplo”, quando considerado isoladamente, é deveras um teste substancialmente subjetivo – assim entendido sob o espectro da insegurança jurídica – cuja aplicabilidade seria bastante problemática, porquanto conferiria à Autoridade Administrativa desproporcional grau de discricionariedade (AARONSON, 2011, p. 12).

De fato, como mencionado pelo autor, termos como “principal ou um dos principais” para se determinar o propósito negocial de economia tributária ou, ainda, “razoável concluir”, quando previstos sem quaisquer medidas de contrapeso, são demasiados abrangentes e subjetivos, tornando sua aplicação problemática e incerta. Nesse caso, a lei geral antiabuso caminharia na contramão do pretendido, implicando maior insegurança jurídica. Não por outro motivo, a referida terminologia não foi acolhida pelas antigas colônias Britânicas, como é caso da Índia e de Hong Kong (FREEDMAN, 2014, p. 170).

Justamente por essa razão, a GAAR Britânica foi estruturada no sentido de conferir ao “teste de razoabilidade amplo” um contrapeso, imposto pelo “teste de razoabilidade estrito”, de modo que à Autoridade Administrativa do Reino Unido (“Her Majesty’s Revenue and Customs”) recai o dever não apenas de comprovar que determinada operação objetiva uma redução tributária, mas que a referida redução teria sido obtida a partir de práticas consideradas abusivas.

Esta verificação condicionada em dupla etapa, somada aos demais institutos de controle criados conjuntamente e que orbitam a aplicação da GAAR Britânica, faz com que o “teste da dupla razoabilidade” seja considerado como um teste objetivo, como é o caso, por exemplo, de Judith Freedamn, a qual dispõe categoricamente que “the tests in the UK GAAR ar all objective” (FREEDMAN, 2014, p. 171).

Esse é o caso, por exemplo, da inversão do ônus da prova, da impossibilidade de imposição da tributação mais agravada sobre a operação requalificada, mas sim da tributação mais adequada; e da criação de um Conselho Administrativo de Experts voltado à análise das operações e aplicação da GAAR no caso concreto (“GAAR Advisory Panel”).

Além disso, não se pode olvidar que a GAAR Britânica foi desenvolvida de forma a coexistir em consonância com as demais TAARs (“target anti abuse rule”) e SAARs (“specific anti abuse rule”), bem como o próprio sistema judicial de precedentes vigente no Reino Unido.

Não por outro motivo, Judith Freedman dispõe em seus textos que a grande esperança com a promulgação da GAAR Britânica seria a gradual redução da insegurança jurídica observada na jurisprudência dos Tribunais do Reino Unido, a partir de uma mitigação da elasticidade interpretativa constante da sistemática de precedentes e o fornecimento de um instrumento capaz de combater os mais complexos esquemas tributários (FREEDMAN, 2014, p. 171).

Portanto, da descrição do processo legislativo que resultou na edição da GAAR do Reino Unido em 2013, é possível observar que a terminologia adotada para tratar de cada um dos institutos abrangidos na referida legislação possui eficácia e deve ser compreendida estritamente dentro do sistema jurídico britânico, o qual funciona de forma conjunta, entrelaçada e em coesão com a sua sistemática judicial de precedentes.

Por esse motivo, é absolutamente problemática a importação isolada de um termo ou instituto empregado na GAAR Britânica, principalmente quando sua interpretação é destacada e alienada do seu contexto jurídico inicial e do específico propósito pelo qual foi criado.

Essa é exatamente a situação que se vislumbra na Clausula PPT.

III.4. Da precária importação de conceitos levada a efeito pela Cláusula PPT

Como demonstrado no tópico anterior, o desenvolvimento da GAAR Britânica, principalmente dos termos nela empregados, levou em consideração toda a complexa estrutura do sistema jurídico tributário do Reino Unido, de modo a se criar um teste objetivo de verificação de abusividade legal, quando aplicado conjuntamente a todos os demais instrumentos de controle previstos na legislação (TAARs, SAARs, inversão do ônus da prova, Conselho Administrativo de Experts, terminologias já há muito evoluídas na sistemática de precedentes do país etc.).

Inclusive, como muito bem destacado por Graham Aaronson, o “teste de razoabilidade amplo”, quando considerado isoladamente, é deveras um teste substancialmente subjetivo – assim entendido sob o espectro da insegurança jurídica – cuja aplicabilidade seria bastante problemática, porquanto conferiria à Autoridade Administrativa desproporcional grau de discricionariedade (AARONSON, 2011, p. 12).

Justamente por esse motivo é que o grupo de estudos liderado por Graham Aaronson desenvolveu uma redação final à GAAR do Reino Unido que possuísse elevado grau de consonância e coerência com as demais regras que complementam o sistema jurídico tributário britânico (AARONSON, 2011, p. 12).

A fim de mitigar ao máximo quaisquer aspectos subjetivos atinentes à aplicação da norma antiabuso, a GAAR Britânica foi concebida para coexistir com todos as demais engrenagens jurídicas de autotutela do Estado, assim compreendidas como todas as normas que orbitam a aplicação da GAAR Britânica, como as TAARS e SAARS existentes, a inversão do ônus da prova, a impossibilidade de aplicação retroativa da lei, a instituição de um Conselho Administrativo de Experts e a própria sistemática de precedentes imposta pela “common law”.

Não por outro motivo, o texto final da GAAR do Reino Unido não se limitou à aplicação do teste de razoabilidade, mas positivou uma sistemática de verificação de dupla razoabilidade (em sentido amplo e estrito), acrescida de exemplos que balizam ainda mais a aplicação da lei. Tudo em prol de uma maior robustez à objetividade intrínseca à norma14.

Ou seja, o teste da razoabilidade, quando considerado isoladamente, não tem, por si só, o condão de assegurar uma interpretação objetiva da lei em que está inserido. É necessário que o referido teste seja complementado por outros instrumentos de controle e acompanhamento, os quais, aplicados em consonância e conjuntamente, conduzem à efetiva aplicação objetiva da norma.

Contudo, esta complexa harmonização e adequação de figuras dentro de um determinado ordenamento jurídico-tributário não foi observada pela OCDE, quando da eleição do “wording” utilizado na norma geral antiabuso prevista no § 7º da Ação n. 6 do Plano BEPS, a denominada Cláusula PPT.

Isso porque, em última análise, a Cláusula PPT, na pretensa intenção de conferir objetividade à aplicação do teste do propósito principal, destacou um único elemento isolado da GAAR Britânica, o teste de razoabilidade amplo, como suposto elemento suficiente para o atendimento da referida tarefa.

Ocorre, contudo, que, como mencionado pela mente por trás da própria GAAR Britânica, fonte em que bebeu a Cláusula PPT15, o teste de razoabilidade amplo, considerado isoladamente, não possui aptidão para assegurar a objetividade na interpretação legal.

Não por outro motivo, e como demonstrado no tópico anterior, a própria GAAR do Reino Unido se apoia em, basicamente, três pilares coexistentes para assegurar sua interpretação objetiva e reduzir a incerteza e a insegurança jurídica decorrente de sua aplicação no caso concreto. Nesse sentido, confira-se a ilustração abaixo que sintetiza a coexistência destes três pilares:

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Por outro lado, a Cláusula PPT destacou e elegeu apenas um destes pilares como elemento indutor de objetividade, no seguinte molde:

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A própria ilustração demonstra que a objetividade da aplicação da Cláusula PPT não para de pé.

De fato, o entendimento de que a Cláusula PPT supostamente exteriorizaria o mesmo critério de objetividade imposto pela GAAR Britânica, a partir da utilização do teste de razoabilidade, é absolutamente raso e simplório, porquanto a GAAR Britânica se beneficia de todo um complexo emaranhado de engrenagens jurídicas que escoam sua interpretação em um sentido necessariamente objetivo.

Somado a esse fato, tem-se, ainda, que a GAAR Britânica está inserida em um sistema adaptado e integrado aos conceitos nela empregados. Razoabilidade como técnica de interpretação legal e a imposição de padrões mediante a consolidação da jurisprudência dos Tribunais Pátrios, são institutos comuns e cotidianos dentro daquele ordenamento, o que por si só já assegura maior objetividade em suas aplicações.

Por outro lado, a Cláusula PPT alcança não apenas os países acostumados com este conceito, mas também toda uma gama de Estados, principalmente aqueles adeptos à “civil law”, cujo ordenamento jurídico é absolutamente estranho à figura da razoabilidade como técnica de interpretação objetiva da lei. Aliás, para muitos destes países, razoabilidade, como abordado no curso deste trabalho, é instituto cuja subjetividade é elemento intrínseco.

Portanto, todos estes elementos demonstram que a Cláusula PPT caminhou mal na utilização isolada do teste da razoabilidade, perpetrando uma precária importação de conceito que não apenas dificultará sobremaneira a adequação da Cláusula PPT pelos países integrantes da OCDE e por aqueles que pretendem integrar a Organização, como é o caso do Brasil, mas também implicará a manifestação e o surgimento dos mais diversos e inesperados sentidos para a aplicação do referido teste, os quais, muito provavelmente, resultarão em contraposições e divergências que terão que ser superadas no futuro.

IV. Conclusão

As considerações tecidas neste trabalho permitem alcançar, inicialmente, a conclusão de que o teste de razoabilidade, importado de Países da “common law”, principalmente dos Estados Unidos e do Reino Unido, foi empregado na Cláusula PPT com a intenção de esclarecer que aquela disposição normativa deve ser interpretada de forma objetiva, assim compreendida a técnica de subsunção legal na qual não é considerada a intenção do contribuinte ou do motivo pelo qual a conduta foi praticada, mas tão somente se contrapõe a conduta analisada a um padrão (“standard”) previamente estabelecido a partir de uma sistemática de precedentes judiciais.

Dada a falta de familiaridade com o referido conceito, principalmente de juristas formados dentro de estruturas jurídicas voltadas à “civil law”, exsurgiu grande discordância acadêmica a respeito da afirmação de que a razoabilidade se trataria de um teste objetivo.

A partir do estudo da origem desta figura jurídica no Reino Unido e das lições acerca do entendimento do que seria uma técnica de interpretação objetiva e subjetiva, na concepção da intenção do contribuinte (estado de espírito), é possível concluir, sim, que o teste de razoabilidade se trata de um teste que pretende induzir objetividade à interpretação legal.

Contudo, e como devidamente demonstrado a partir da análise da GAAR Britânica, o teste de razoabilidade é apenas mais um elemento dentro de um complexo sistema de engrenagens jurídicas que funcionam no sentido de conjunta e coesamente induzir o máximo de objetividade à subsunção da GAAR britânica à espécie.

Nesse cenário, tem-se que a Cláusula PPT caminhou mal ao importar de forma isolada o teste de razoabilidade, incorrendo justamente nos vícios apontados por Otavio Luiz Rodrigues Junior, pois não observou a finalidade que o referido teste desempenhava dentro do Direito de origem do qual foi importado, nem tampouco se preocupou com o fato de que a referida figura jurídica é absolutamente estranha aos países que não aderem ao modelo da “common law”. Na verdade, e como demonstrado, a razoabilidade possui sentido diametralmente oposto para estes países, de modo que a sua adequação e aplicabilidade será demasiadamente dificultosa, bem como implicará resultados inesperados e, possivelmente, contraditórios entre si.

Diante do todo exposto neste trabalho, este autor conclui que ambas as correntes doutrinárias aqui tratadas estão corretas e possuem mérito, porquanto o teste de razoabilidade é, de fato, uma técnica de indução de objetividade à interpretação legal, porém a forma em que empregado na Cláusula PPT não alcança este fim, muito pelo contrário, acaba se transformando em mais um elemento de subjetividade da lei, majorando a incerteza e a insegurança jurídica na aplicação desta disposição, principalmente nos países estranhos ao Direito de Origem, como é o caso do Brasil.

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1 O Plano BEPS foi encomendado à OCDE pelo G20 e contém 15 ações destinadas ao aperfeiçoamento da legislação fiscal – Preventing the granting of treaty benefits in inappropriate circumstances, Action 6 2015 Final Report. Paris: OECD Publishing, 2015.

2 Multilateral convention to implemente tax treaty related measures (MLI) foi uma convenção multilateral realizada em 1º de julho de 2018 pelo Comitê de Assuntos Fiscais da OCDE com o objetivo de permitir a imediata atualização e padronização dos tratados de dupla tributação às medidas do Projeto BEPS. O Brasil não aderiu formalmente ao MLI. Disponível em: https://www.oecd.org/tax/treaties/beps-mli-signatories-and-parties.pdf. Acesso em: 6 jul. 2021.

3 Disponível em: https://www.oecd.org/latin-america/countries/brazil/brasil.htm. Acesso em: 6 jul. 2021.

5 Os acordos mais recentes assinados pelos Brasil, mas ainda não ratificados já contam com a cláusula PPT. Em 7 de junho de 2019 foi celebrado o acordo assinado com o Uruguai (BRASIL; 2019), em 19 de março de 2019 foi assinado um protocolo com a Suécia para ajustar o acordo existente desde 1975 e inserir a cláusula PPT sob o número XXVI-A (BRASIL; 2019). O mesmo texto se apresenta no acordo firmado com a Suíça em 3 de maio de 2019 (BRASIL; 2019) e com os Emirados Árabes em 12 de novembro de 2018 (BRASIL; 2019).

6 Original: “Notwithstanding the other provisions of this Convention, a benefit under this Convention shall not be granted in respect of an item of income or capital if it is reasonable to conclude, having regard to all relevant facts and circumstances, that obtaining that benefit was one of the principal purposes of any arrangement or transaction that resulted directly or indirectly in that benefit, unless it is established that granting that benefit in these circumstances would be in accordance with the object and purpose of the relevant provisions of this Convention.”

7 McQuire v. Western Morning News [1903] 2 K.B. 100 at 109 per Collins MR.

8 McQuire v. Western Morning News [1903] 2 K.B. 100 at 109 per Collins MR.

9 Hall v. Brooklands Auto-Racing Club [1933] 1 K.B. 205. Neste julgamento, a Corte Suprema do Reino Unido pela primeira vez tratou o conceito como um ideal de padrão de cuidado (“standard of care”).

10 Healthcare at Home Limited v. The Common Services Agency [2014] UKSC 49 at [1]-[4].

11 Principais precedentes citados como balizadores das divergências jurisprudenciais que existiam na época sobre o tema do abuso: (I) Inland Revenue Comites v. Duke of Westminster [1935] UKHL 4 (7 May 1935); (II) WT Ramsay Ltd v. Inland Revenue Commissioners [1981] UKHL 1 (12 March 1981); (III) Craven (H. M. Inspector of Taxes) v. White; Inland Revenue Commissioners v. Bowater Property Developments Ltd.; Baylis (H. M. Inspector of Taxes) v. Gregory. 1988 BTC 268; (IV) IRC v. McGuckian, 1996 Dec. 2, 3, 4; (V) Macniven (Her Majesty’s Inspector of Taxes) v. Westmoreland Investments Limited [2001]; e (VI) Barclays Mercantile Business Finance v. Mawson [2004] UKHL 51 (25 November 2004).

12 A redação inteira da GARR Britânica pode ser verificada no link a seguir: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2013/29/part/5/enacted. Acesso em: 6 jul. 2021.

13 A GARR Britânica no lugar do termo “principal”, utilizado na Cláusula PPT, vale-se da palavra “main”. Todavia, a referida distinção não implica mudança relevante à aplicação de ambos os normativos, tendo sido promovida apenas para torná-la mais clara para os países de língua não inglesa.

14 Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2013/29/part/5/enacted. Acesso em: 6 jul. 2021.

15 Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2013/29/part/5/enacted. Acesso em: 6 jul. 2021.