Critérios Éticos e Políticos para o Debate da Tributação de Negócios Plurilocalizados

Ethical And Political Criteria for the Discussion of Multilocalized Business Taxation

Ian Fernandes de Castilhos

Advogado. Especialista em Direito Público (PUC-MG) e em Advocacia Tributária (EBRADI-MG). Mestrando (Bolsista UFJF) em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: iancastilhosadv@gmail.com.

Recebido em: 29-9-2021 – Aprovado em: 19-5-2022

https://doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n10-2

Resumo

O presente artigo parte da problematização de famosos casos de dupla tributação e de dupla não tributação em negócios jurídicos plurilocalizados com ênfase nos negócios jurídicos em ambiente digital. Dada a problemática a ser exposta, no primeiro capítulo se propõe o seguinte problema de pesquisa: como evitar a injustiça fiscal internacional derivada do vazio ou o excesso normativo de negócios praticados em jurisdições fiscais diferentes? A hipótese a ser traçada é que tais casos só podem ser evitados pela cooperação internacional baseada em um critério ético (capacidade contributiva) e um critério político (ressignificação do conceito de estabelecimento permanente). A premissa jusfilosófica consiste no não positivismo de Robert Alexy.

Palavras-chave: tributação internacional, capacidade contributiva, estabelecimento permanente, não positivismo.

Abstract

This article starts from the problematization of famous cases of double taxation and double non-taxation in multi-localized legal businesses with an emphasis on legal businesses in a digital environment. Given the problem to be exposed in the first chapter, the following research problem is proposed: how to avoid international tax injustice derived from the normative vacuum of facts practiced in different tax jurisdictions? The hypothesis to be outlined is that such cases can only be avoided by international cooperation based on an ethical criterion (contributory capacity) and a political criterion (reframing the concept of permanent establishment). The jusphilosophical premise consists of Robert Alexy’s non-positivism.

Keywords: international taxation, contributory capacity, permanent establishment, non-positivism.

Introdução

O Direito Tributário é um ramo bastante complexo. Essa complexidade possui um aspecto dogmático-formal, consistente na dispersão própria da legislação tributária, bem como na quantidade de fatos econômicos de relevância jurídica. Outro elemento de complexidade da matéria possui aspecto ético-político, consistente na realização da justiça redistributiva a partir da escolha das bases imponíveis e o aspecto quantitativo da exação tributária.

Esta complexidade aumenta consideravelmente quando o tema é a tributação de operações plurilocalizadas, ou seja, operações que são realizadas em soberanias fiscais diferentes. Desta forma, o presente artigo se propõe a refletir o seguinte problema de pesquisa: como evitar a injustiça fiscal internacional derivada do vazio ou excesso normativo de negócios praticados em jurisdições fiscais diferentes? Desta forma, a primeira parte do artigo se propõe a demonstrar o contexto problemático no qual ele se encontra, qual seja, a evasão fiscal que afeta frontalmente a justiça fiscal em casos paradigmas da Amazon, Uber e Starbucks.

Tal problemática possui local de destaque para a premissa jusfilosófica, abordada na segunda parte do artigo, qual seja, o não positivismo de Robert Alexy que considera o Direito a partir do ponto de vista do participante, o que leva a preocupação com a correção das decisões jurídicas e da própria formação das normas jurídicas prima facie. Para tal orientação filosófica é impensável que o Direito seja sinônimo da validade social das normas promulgadas sem a inclusão de uma conexão necessária com a moralidade.

A hipótese a ser traçada para o problema exposto é que tais casos só podem ser evitados pela cooperação internacional baseada em um critério ético, que será abordado na terceira, qual seja, a capacidade contributiva, bem como um critério político, abordado na quarta parte do artigo, a ser realizado a partir da ressignificação do conceito de estabelecimento permanente.

A capacidade contributiva é um princípio jurídico-constitucional transfronteiriço aceito em diversas democracias constitucionais como pedra angular do sistema tributário. Isso porque a fundamentação ética da tributação é a realização da justiça redistributiva como estrutura niveladora das desigualdades sociais historicamente construídas. A concretização de tal princípio é um dos grandes desafios da tributação internacional, uma vez que há a necessidade de harmonizar os interesses dos países que possuem as multinacionais (EUA e parte da Europa Continental) e dos países periféricos que são os grandes mercados consumidores. Ora, teriam lucro as multinacionais se não fosse o consumo dos países periféricos?

Ocorre que atualmente o Direito Tributário Internacional possui como base angular o conceito de estabelecimento permanente, conceito essencial para a manutenção da hegemonia dos países que possuem as sedes das multinacionais. Desta forma, o princípio abstrato da capacidade contributiva deve ser realizado através de um critério político, qual seja, a ressignificação da regra de conexão que define onde será pago o tributo devido.

1. Problemática da tributação internacional

O Direito é um ramo das ciências sociais em que os próprios operadores não possuem grande consenso sobre seu próprio conteúdo. Um bom ponto de partida, normalmente aceito por todos é que “[...] o direito positivo aparece como um plexo de proposições que se destinam a regular a conduta das pessoas, nas relações de inter-humanidade” (CARVALHO, 2017, p. 36). As normas jurídicas, portanto, “não descrevem como factualmente o sujeito agente se comporta, mas como deve comportar-se” (VILANOVA, 2010, p. 33).

Certo de que o Direito é um ato social, vertido em linguagem competente, que tem por finalidade influenciar comportamentos humanos, o mesmo possui duas bimembridades essenciais: norma-conduta x norma-sanção, regras de obrigação x regras de competência. O primeiro se desvela enquanto um pressuposto lógico da determinação da conduta como consequência sancionadora no caso de não cumprimento do estatuído na norma da conduta juridicamente devida (VILANOVA, 2010, p. 73). Segundo o autor:

“Denominemos, em sentido inverso do da teoria kelseninana, norma primária a que estatui direitos/deveres (sentido amplo) e norma secundária a que vem em consequência da inobservância da conduta devida, justamente para sancionar seu inadimplemento (impô-la coativamente ou dar-lhe conduta substitutiva reparadora). As denominações adjetivas ‘primária’ e ‘secundária’ não exprimem relações de ordem temporal ou causal, mas de antecedente lógico para a consequência Jurídica.” (VILANOVA, 2010, p. 74)

Além da bimembridade conduta-sanção, as normas de primeiro e segundo grau podem ser vistas ainda sobre a ótica hartiana entre as regras de obrigação, ou seja, aquelas que levam um determinado sujeito a fazer ou deixar de fazer algo por determinação estatal. Tais regrais secundárias são regras de reconhecimento, regras de alteração e regras de julgamento. O primeiro consiste em uma regra de identificação de regras secundárias, ou seja, que defina suas características gerais, procedimento de criação etc. As de alteração, por sua vez, definem como inserir novas regras primárias, enquanto as regras de julgamento atuam conferindo poder e estabelecendo procedimentos de ações contra violações às regras primárias (HART, 1994, p. 104-106).

Ambas as perspectivas filosoficamente centrais nos autores de teoria do Direito Tributário sobre a qualidade sistemática do Direito tomam como elemento pré-concebido uma ordem jurídica estatal soberana. Surge então o seguinte problema: como harmonizar a Teoria do Direito com a necessidade de coerência e mútua cooperação entre países diante de problemas transindividuais? Na esfera da sociedade internacional, esbarra-se fortemente na imigração devido a crises humanitárias, no exercício do poder de punir de um Estado Soberano a um cidadão de outro Estado Soberano e no caso do presente trabalho na Tributação das empresas multinacionais. Assim sendo, surge o problema o harmonizar os regimes tributários, sem vilipendiar a soberania dos povos:

“De fato, o País é soberano e possui total autonomia e independência para o estabelecimento de seu sistema jurídico próprio e individualizado. O poder de tributar do Estado – que visa garantir a entrada dos recursos necessários para o financiamento das atividades estatais – é parte indissociável da sua soberania e reflete-se no estabelecimento de um sistema tributário único, sem a interferência de qualquer outra jurisdição soberana.” (FERRARI, 2016, p. 26)

Muito embora não se possa olvidar a soberania de um Estado e impor um novo desenho institucional deste, ignorar a ascensão da economia global e supervenientemente a economia digital seria um terrível erro. Neste universo de mercado globalizado, boa parte das operações comerciais relevantes são plurilocalizadas: uma indústria alemã vende para um comprador argentino através de sua distribuidora que fica na China e tem sua matriz na Irlanda. Muito embora os processos industriais sejam realizados na Alemanha, todos os riscos comerciais da venda são assumidos pela filial chinesa, enquanto o pagamento é realizado para a matriz Irlandesa que distribui a renda como royalties. Onde se pagará os tributos? A falta de cooperação entre países para responder à pergunta gera um duplo efeito, conforme relatório da OCDE:

“The interaction of domestic tax systems sometimes leads to an overlap, which means that an item of income can be taxed by more than one jurisdiction thus resulting in double taxation. The interaction can also leave gaps, which result in an item of income not being taxed anywhere thus resulting in so called ‘double non-taxation’.”1 (OECD, 2013, p. 34)

Alguns casos são paradigmáticos para a problematização de Estudos Tributários voltados meramente para a legislação do sistema pátrio. Exemplo disto são os planejamentos fiscais internacionais da Apple, Uber e Starbucks. Os dois primeiros se tratam do uso de mecanismos para dupla não tributação em negócios jurídicos plurilocalizados, e o terceiro na erosão de base através de endividamento duvidoso.

A Apple trata-se de um grupo econômico composto por diversas empresas relativamente autônomas entre si. O planejamento se fundamentou em duas técnicas: a tributação pela residência (dual residence) e o preço de transferência (transfer pricing), consistindo o primeiro em permitir que a mesma empresa possa ser considerada residente ou não residente em um determinado país perante duas jurisdições distintas, realizando assim negócios jurídicos entre si com fins de transferir receita tributável a um país para protegê-la da tributação menos favorável (ARAÚJO E MENDONÇA, 2016, p. 129).

Para aos Estados Unidos o critério de tributação é a residência, considerando que as empresas com sede administrativa naquele país são tributadas na totalidade de suas receitas, enquanto para a Irlanda o critério é a fonte, ou seja, são tributadas todas as atividades desenvolvidas naquele país independentemente do local da residência ou da nacionalidade da empresa. Assim sendo:

“A Apple aproveitou-se dessa situação e estabeleceu três empresas na Irlanda: Apple Operations International, que viria a coordenar todas as atividades do grupo no mundo inteiro, Apple Operations Europe e Apple Sales International. À primeira foram transferidos os direitos de usufruto de sua propriedade intelectual, de modo que todas as atividades desenvolvidas pela Apple no mundo estariam sob controle de uma empresa residente na Irlanda, e que somente recolheria os tributos devidos referentes às atividades desenvolvidas naquele país. Todas as demais estariam livres da incidência da legislação irlandesa.” (ARAÚJO E MENDONÇA, 2016, p. 130)

O que merece destaque neste ponto é que: muito embora haja propósito negocial, o grupo econômico deixou de pagar, entre 2009 e 2012, 44 bilhões de dólares em income tax (equivalente ao IRPJ) para os EUA (ARAÚJO E MENDONÇA, 2016, p. 128). Ora, tendo em vista a natureza destas operações, a Apple só pagava ao governo irlandês as operações realizadas no próprio país. Ainda assim houve abuso de benefício fiscal indevido que reduzia a alíquota do tributo sobre a renda de 12% para apenas 0,1% em 2003 e chegando a 0,05% em 2014. O montante correspondente ao benefício fiscal é de aproximadamente 15 bilhões de euros2.

Percebe-se, portanto, no caso Apple dois aspectos temerários: o uso da dupla não tributação para boa parte das rendas auferidas e a subtributação da renda auferida na Irlanda. A Uber por sua vez, fez uma operação apenas com o enfoque na dupla não tributação, entretanto de maneira mais complexa. A Uber Technologies Inc, com sede em São Francisco criou uma filial Holandesa chamada Uber International C.V, tratando-se de uma Shell Company sem funcionários com sede nas Bermudas e regida pelas regras de direito societário na Holanda. Por sua vez, a Uber C.V possui a filial Uber B.V responsável pelas operações financeiras.

Assim sendo, a Uber Technologies Inc. realizou acordo com a Uber Internacional C.V, que pagará a ela pouco mais de um bilhão de euros e mais royalties de 1,45% dos futuros rendimentos obtidos com a utilização dos direitos de propriedade intelectual da Uber fora do território norte-americano. A operação é realizada da seguinte forma: (i) a corrida é realizada e paga em qualquer lugar do mundo para uma conta da Uber B.V; (ii) uma subsidiária holandesa chamada Rasier Operations B.V. remete ao motorista de 75% a 80% dos rendimentos; (iii) a Uber B.V., após pagar os custos operacionais fica com 1% do lucro e repassa o resto dos valores para a Uber Internacional C.V. por decorrência de um contrato de propriedade intelectual; (iv) a Uber Internacional C.V. distribui os 1,45% de royalties à matriz (SANTOS, 2016, p. 119).

Neste ambiente, o único valor tributado são os royalties de 1,45% pagos à Uber Technologies Inc, e uma pequena parte dos valores na Uber B.V. de 1% de lucro que é tributado, tendo em vista o arranjo de instrumentos híbridos: para a administração fiscal holandesa, a Uber C.V. é uma controlada norte-americana com residência nas Bermudas, logo não podendo ser tributada por estas. Para os Estados Unidos, por sua vez, as filiais são companhias holandesas, não podendo ser tributadas por eles.

A operação da Starbucks foi relativamente mais simples. Para erodir a base de cálculo a mesma apontava para a Administração Fiscal do Reino Unido, enquanto para os investidores dizia que sua matriz era rentável3. Para gerar tal prejuízo fiscal a empresa (i) remetia royalties para uma subsidiária holandesa; (ii) adquiria insumos de uma filial suíça; (iii) pagava altas taxas de juros para as coligadas. Todas as operações foram realizadas dentro dos parâmetros de legalidade do Reino Unido (MÉLO e PIMENTEL, 2016, p. 84).

Percebe-se nestas práticas violações frontais a parâmetros éticos da tributação. Há, entretanto, os casos opostos, exemplo disso é qualquer corporação que obtenha lucros tanto em Portugal quanto na França. Portugal tem como critério para tributação a residência, independentemente qual seja a origem da fonte (worldwide income taxation of residentes), enquanto para a França o critério é a fonte independentemente da localização geográfica da pessoa jurídica. Assim sendo, se uma empresa portuguesa auferir lucros na França será tributada em ambas as jurisdições (AZEVEDO, 2017, p. 32). É válido frisar que:

“Pode assim surgir o problema da dupla tributação jurídica internacional, designadamente na circunstância de os Estados adotarem critérios distintos para definir a residência e a fonte dos rendimentos. Ou seja, além de conflitos do tipo ‘residência/fonte’, poderão surgir conflitos do tipo ‘residência/residência’ ou ‘fonte/fonte’. Nestas situações, dois ou mais Estados reclamam para si a jurisdição fiscal, com base no mesmo critério, que muitas vezes é definido de forma diferente, o que configura uma dupla tributação jurídica internacional.” (AZEVEDO, 2017, p. 33)

Há, dessa forma, dois grandes problemas ocasionados pela incoerência entre as tributações territoriais que passaram a ser exploradas pelas multinacionais. Utilizando-se de planejamentos tributários fundamentados nas lacunas entre os sistemas jurídicos e padrões internacionais, as empresas desenvolveram estruturas para transferir os lucros de países com alta tributação para países com baixa tributação, erodindo a base tributária dos primeiros (FERRARI, 2016, p. 31). Isso se dá porque, muito embora cada sistema tributário de direito positivo nacional seja autônomo e autorreferente em termos operacionais, o mesmo pode irritar outros sistemas, jurídicos ou não, especialmente nos casos em que são transpassados vários sistemas sociais nacionais distintos (VITA, 2017, p. 639).

2. Premissas filosóficas

Tal tema cria maior relevância se analisado a partir de uma perspectiva filosófica específica. A primeira seção deste artigo aborda um conceito essencialmente positivista de Direito e demonstra a dificuldade deste conceito de Direito lidar com a problemática da tributação internacional, entretanto, para uma teoria positivista a resposta sempre estará meramente no aspecto autoritativo da soberania estatal.

Para a teoria não positivista da qual se parte nesse momento a problemática ganha outros contornos. Isso porque normas jurídicas e sistemas jurídicos em sua totalidade formulam pretensão à correção (ALEXY, 2017a, p. 43), o que se justifica no argumento de que a justiça extrema não é Direito (ALEXY, 2017a, p. 48) e no argumento dos princípios (ALEXY, 2017a, p. 83) de forma a estabelecer uma conexão conceitualmente necessária entre o direito e a moral.

“A pretensão e correção do Direito não só se refere à correção moral de certas decisões jurídicas e certas normas legais. Ela também se refere à correção moral do uso do Direito em si, ou da força da forma do Direito, para solucionar problemas sociais, e fazê-lo através de certos procedimentos tal como eleições democráticas, legislação parlamentária e julgamentos dirigidos por ideais tal como aldiatur et altera pars.” (ALEXY, 2017b, p. 110)

Em outras palavras, não basta para o Direito apenas o valor segurança jurídica, precípua para o ponto de vista positivista, mas também há, necessariamente, uma pretensão de correção moral levantada pelo Direito. Até mesmo o legislador mais autoritário pretende apresentar elementos morais que justifiquem a centralização do poder, por exemplo, através da existência de um grande inimigo nacional. Desta forma, resume o autor que o princípio da segurança jurídica exige compromissos com a validade social, enquanto o princípio da justiça exige que a decisão seja moralmente eficaz. Um princípio não pode suprimir o outro, pelo contrário, se adequarem em uma proporção correta (ALEXY, 2018, p. 94).

Insta salientar que há razões filosóficas para se discutir a tese da pretensão de correção aqui sumariamente exposta, o que é de fato feito por grandes autores como Joseph Raz, Manuel Atienza e Eugenio Bulygin. Entretanto, não é finalidade deste artigo trazer tal debate, mas sim se apropriar da filosofia não positivista de Alexy, uma vez que ela fornece base sólida para se afirmar que o problema da tributação internacional só pode ser respondido de uma perspectiva não positivista, ou seja, com um enfoque em uma dimensão diferente da autoridade estatal. Tal dimensão consiste em critérios éticos e políticos que respaldem a construção de um Direito minimamente justo, evitando, inclusive, a injustiça legal.

3. Planejamento tributário abusivo – capacidade contributiva como limite

Neste momento, cabe traçar alguns elementos sobre o que critério ético para a tributação internacional. A tese aqui firmada é da normatividade transversal do princípio da capacidade contributiva à medida que é um conceito, de cunho constitucional, que transpassa diversas jurisdições soberanas. O que se está falando aqui é da capacidade contributiva enquanto baliza moral presente na maior parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais. Victor Uckmar (1999, p. 80-81) lista alguns países que possuem tal princípio elencado em suas Constituições, como Argentina (1946), Bolívia (1967), Bulgária (1947), Grécia (1951), México (1917), Suíça (1981), Chile (1925), Jordânia (1952), Itália (1947), Síria (1950), Espanha (1977) e Venezuela (1947).

Concordamos com Dourado (2019, p. 481) ao afirmar que “a cooperação estadual deve basear-se no princípio da capacidade contributiva, como direito fundamental universal, aplicável a cada indivíduo e a cada contribuinte”. Isto emana diretamente da universalização da ideia de justiça redistributiva, ou seja, de nivelamento gradativo das desigualdades sociais. Cabe agora compreender a estrutura dual que possui este princípio: como limite estatal e como causa da tributação. Para isso se explicará primeiramente qual a estrutura de um Direito Fundamental em geral.

A Constituição garante a todos o Direito de Liberdade (art. 5º, I), a Livre Iniciativa (art. 3º, VI), o que assegura aos agentes econômicos a possibilidade de escolha na forma que se dá as relações negociais. Se existe a opção entre duas formas jurídicas diferentes para realizar a mesma operação mercantil (F1 e F2) considerando que F1 gera o gasto tributário X e F2 o gasto 3X, é normal que por questões gerenciais se opte por F1. Assim sendo, conceitua-se planejamento fiscal como a escolha, entre alternativas igualmente válidas, de situações fáticas ou jurídicas que visem reduzir ou eliminar ônus tributários, sempre que isso for possível nos limites da ordem jurídica (ANDRADE FILHO, livro digital, 2015).

Neste ambiente, cabe mencionar que todo direito a algo possui duas dimensões: uma positiva e uma negativa. Este direito é composto, ainda, por uma relação triádica entre o titular, o destinatário e objeto (ALEXY, 2008, p. 194). A dimensão negativa pode se expressar principalmente em três formas: (i) que o Estado não dificulte a ação de um sujeito; (ii) que o Estado não afete características e situações do titular; (iii) que o Estado não elimine a posição jurídica do titular. (ALEXY, 2008, p. 196). A dimensão positiva, por sua vez, demanda por parte do Estado (i) ações fáticas e (ii) ações normativas para assegurar o referido direito (ALEXY, 2008, p. 201). Vale lembrar que tais dimensões não se confundem com os status dos direitos fundamentais.

Aplicando-se ao caso do Planejamento Tributário diante da liberdade de escolha das formas jurídicas menos onerosas se desvela negativamente como o direito dos titulares de que o Estado não o impeça de optar pelas formas lícitas, que o Estado não tente alterar os conceitos de tais formas jurídicas com o fito de excluir operações comerciais de benefícios fiscais, que o Estado não haja como cobrador abusivo, entre outras formas. Já na dimensão positiva enseja a necessidade de que o sistema jurídico seja o mais claro possível quanto às opções e exercício da liberdade de auto-organização, por exemplo. Entretanto, os direitos não se situam isolados em laboratório em condições ideais de temperatura e pressão, mas sim em constante relação de autolimitação e ressignificação diante de outros Direitos e de Direitos de outros.

Também os princípios norteadores do Direito Tributário geram tais deveres, como a capacidade contributiva, bem como o dever de erradicar desigualdades sociais da própria República Federativa (art. 3º, III, da CF). Para fins didáticos, conceitua-se capacidade contributiva como “[...] la capacidad económica de poder contribuir a los gastos públicos, que originan los servicios generales proporcionados por el Estado y que benefician a la colectividad”4 (BARRIOS ORBEGOSO, 1966, p. 62).

Ora, tais princípios ensejam também Direitos, ainda que não de forma imediata, mas a partir da abertura argumentativa da produção da decisão concreta:

“Os princípios jurídicos, sobretudo os constitucionais, têm uma tarefa fundamental de selecionar, do ponto de vista interno do direito expectativas normativas com pretensão de validade moral, valores-preferência ou valores-identidade de grupos, interesses por estabelecimento de padrões normativos, assim como expectativas normativas atípicas as mais diversas, que circulam de forma conflituosa no ambiente ou contexto do sistema jurídico.” (NEVES, 2014, p. 128)

Tal trecho colacionado não enseja a pretensão de correção de outros elementos trazidos pelo autor, como a ideia de que os princípios funcionam apenas como balizamento de fortalecimento e enfraquecimento das regras (NEVES, 2014, p. 134), uma vez que princípios existem não em detrimento de regras, mas de seus princípios opostos (ALEXY, 2017A, p. 85). Para todos os fins hermenêuticos, o conceito de princípio como mandamento de otimização (ALEXY, 2008, passim) a ser realizado mediante ponderação ainda é instrumentalmente e discursivamente o mais eficiente. Certo é que os princípios possuem como uma de suas características a abertura pragmática para que o Direito reconheça também argumentos de cunho moral, econômico etc. Significa dizer que, do ponto de vista de uma teoria da dupla natureza do Direito, são os princípios que fazem a conexão necessária entre o Direito enquanto segurança com a dimensão moral do Direito (ALEXY, 2017a, p. 84).

Assim sendo, outras expectativas normativas devem ser levadas a sério tanto quanto o Direito de Liberdade, tais quais (a) as políticas públicas afirmativas que dependem de custos tributários; (b) as expectativas normativas de pagar a quota parte da contribuição a sociedade que lhe cabe na forma de sua capacidade contributiva; (c) a própria pretensão do Estado pela subsistência. Das expectativas normativas por direitos sociais – direito à saúde, ao lazer etc. – emana o dever do Estado de adquirir numerários para provê-los. Quanto à expectativa normativa pela justa tributação, há o dever do Estado de nivelar a tributação de acordo com a capacidade contributiva expressa pelo contribuinte. Desta forma, há um parâmetro moral que limita o planejamento tributário que se torna jurídico a partir da entrada no sistema por intermédio de princípios muito embora o princípio da capacidade contributiva não autorize a exação tributária com base unicamente nele.

Neste ambiente, não se pode concordar com Hugo de Brito Machado (2014, p. 113) no que diz respeito a afirmação de que evitar o planejamento tributário é atribuição do legislador e que as definições de hipótese de incidência em geral são, atualmente, dotadas do propósito de afastar o planejamento tributário. Nem se pode concordar da mesma forma com Ives Gandra, para quem o tributo é uma norma de rejeição social que só se faz cumprir única e exclusivamente através da sanção e que “a formulação de um mal necessário, que deva sempre estar reduzido à menor dose aplicacional, para receber em decorrência, a menor resistência à sua concretização” (MARTINS, 1998, p. 50). A tributação deriva de expectativas normativas legítimas por políticas públicas e deve respaldar-se em um critério discursivamente legitimador, qual seja, a capacidade contributiva.

O caso da Apple ilustra bem os problemas atuais do planejamento tributário, principalmente em situações plurilocalizadas. O planejamento fiscal agressivo não é eivado de qualquer vício de validade ou licitude, doutro modo o envolve uma situação fiscal que é legítima, mas com inesperadas consequências ao nível das receitas fiscais. Juntamente com Marco Aurélio Greco, pode-se afirmar que o melhor critério para limitar o planejamento seria a Capacidade Contributiva:

“Ou seja, mesmo que os atos praticados pelo contribuinte sejam lícitos, não padeçam de nenhuma patologia; mesmo que estejam absolutamente corretos em todos os seus aspectos (licitude, validade) nem assim o contribuinte pode agir da maneira que bem entender, pois sua ação deverá ser vista também da perspectiva da capacidade contributiva.” (GRECO, 2011, p. 319)

Surge, entretanto, a dificuldade do novo degrau: se o critério de limitação do planejamento é a capacidade contributiva enquanto expectativa normativa legítima da sociedade pela justa tributação, inserida no sistema jurídico doméstico através de princípios, não é tão fácil se observar tais critérios no âmbito internacional havendo a necessidade de coerência entre as formas de tributação, transparência fiscal e cooperação mútua entre os Estados Soberanos, todos estes elementos fazendo parte dos eixos do BEPS abordados na introdução.

Entende-se a capacidade contributiva como princípio transverso a várias Constituições, devendo ser analisado no contexto internacional por duas óticas: (a) como limite estatal, em sua dimensão negativa, agindo como mandamento de não tributar acima da capacidade econômica do agente; (b) mas também, em sua dimensão positiva, como um dever estatal de produzir a arquitetura da exação tributária de forma a efetivamente tributar aqueles que possuem a capacidade para levar dinheiro aos cofres públicos e (c) em se tratando de capacidade contributiva no contexto internacional, também deve se considerar qual país cujos usuários produziram o valor do fato imponível.

Resta ainda um problema de ordem prática, qual seja, muito embora diversos sistemas jurídicos reconheçam a capacidade contributiva como critério para a tributação, em qual medida ele pode ser realizado no plano internacional com o enfrentamento da não tributação, não bitributação ou tributação pífia? Para responder tal pergunta, será abordada a questão da regra de conexão, uma vez que o princípio não tem o condão de promover valor monetário a um fato imponível e desta forma não evitando o vazio normativo do qual se aproveitaram a Apple e a Uber. Portanto, se faz necessária a concepção de um critério unificado de tributação que considere a capacidade contributiva como elemento essencial, principalmente no que tange à produção de valor do fato tributável.

4. Da ressignificação do conceito de estabelecimento permanente

A importância do delineamento de uma regra de conexão clara fica nítida de acordo com o que fora explanado anteriormente quanto aos casos extremos de dupla não tributação. É nesta linha que acertadamente Dourado descreve que:

“Para que sejam válidas, as propostas das instâncias internacionais devem reconhecer a criação de elementos de conexão por parte de cada Estado (tributação indireta dos serviços, tributação do valor criado, aplicação de medidas contra o planeamento tributário agressivo), para além dos previstos nas convenções de dupla tributação. Os elementos de conexão são fundamentais para a prossecução da justiça tributária internacional. O mesmo se diga para a distribuição de competências entre Estados.” (DOURADO, 2019, p. 480)

É de grande importância a partir deste momento delimitar sumariamente o que é a tributação territorial e a tributação internacional. A primeira consiste em tributar os sujeitos residentes ou não residentes pelos fatos ocorridos dentro do território soberano de uma determinada nação, enquanto o segundo, trata-se do ato de tributar a renda de um sujeito residente ou não residente no país por fatos ocorridos fora do território soberano. Neste prisma, originalmente, as regras para a tributação internacional foram desenvolvidas na década de 1920 pela Liga das Nações para evitar a dupla tributação tendo como regra de conexão a ideia de estabelecimento permanente.

Para se entender a ideia de estabelecimento permanente é necessário retornar historicamente à divergência entre as administrações fiscais dos Estados Unidos e do Canadá, quando este último tentou tributar as vendas por correspondência daquele, muito embora a empresa estadunidense não tivesse quaisquer instalações no território soberano do Canadá. Desenvolveu-se então o conceito de estabelecimento estável uma instalação ou local de negócio, utilizado por uma empresa, com carácter fixo ou permanente:

“Conseguia-se assim que através da aplicação do conceito de estabelecimento estável, um Estado em que uma empresa não residente realizasse a sua actividade concordasse em não tributar os rendimentos dessa empresa no seu território desde que ela ali não mantivesse um estabelecimento estável. Por outro lado, garantia-se que o Estado da residência/sede da empresa se comprometia a conceder um crédito fiscal no montante dos impostos pagos ao Estado onde os rendimentos eram obtidos, ou alternativamente, isentar de impostos os rendimentos obtidos pelo estabelecimento estável.” (BARROS e LOPES, 2010, p. 2)

Nas palavras de Michell Przepiorka (2017, p. 145) “estabelecimento permanente é, portanto, o nexo econômico necessário para que a tributação na fonte seja autorizada”. Os critérios para que se reconheça o estabelecimento permanente como regra de conexão para a tributação plurilocalizada são (a) existência de instalação material; (b) que a instalação seja temporalmente e espacialmente fixas; (c) que esteja à disposição da empresa; (d) através deste estabelecimento o empreendimento seja exercido; (e) que não seja uma atividade auxiliar e preparatória (PZEPIORKA, 2017, p. 147).

Entretanto, como bem lembra Antonio José Levenhagen:

“a criação do conceito de ‘Estabelecimento Permanente’, e sua incorporação à Convenção Modelo, foi imprescindível para assegurar que as nações hegemônicas continuassem acumulando o excedente econômico dos países da periferia na era do ‘Capitalismo Corporativo’. Foi graças à disseminação universal deste parâmetro, que impõe severas limitações à capacidade do país importador de capital de tributar as empresas corporativas estrangeiras que nele atuem, que a expansão das multinacionais continuou servindo como um instrumento de dominação externa.” (LEVENHAGEN, 2019, p. 51)

Ora, diante da majoração na complexidade das relações comerciais, o modelo baseado meramente neste conceito de estabelecimento permanente queda-se menos útil do que o era na década de 20, antes da ascensão da economia digital. Por tais razões há um novo conceito de estabelecimento permanente que considera este como uma estrutura jurídico-tributária que equivale a um centro de imputação de rendas não se tratando de uma pessoa jurídica, mas de uma filial que perfaz uma base fixa de negócios para realização de um determinando conjunto orientado de atividades não importando sua personalidade jurídica (VITA, 2019, p. 552).

Tais estabelecimentos são classicamente classificados em: materiais, com presença física; e pessoais, ou seja, sem a necessidade de uma sede juridicamente consolidada e, portanto, registrada civilmente naquele país (VITA, 2019, p. 552). Por exemplo: um site não pode ser considerado um estabelecimento permanente, mas um servidor, por sua vez, poderá ser considerado se as atividades nele prestados sejam relevantes. Há, portanto, alguns problemas conceituais que não podem escapar dos olhos do pesquisador, quais sejam:

a) No conceito tradicional, o EP somente poderia ser instituído por um representante local, dotado de poderes para firmar contratos em nome da empresa estrangeira. Já no conceito atual, é apto a criar o EP aquele representante que “desempenha o papel principal na celebração de contratos”, entre outras expressões de duvidosa precisão científica; b) No conceito tradicional, uma série de atividades específicas, como armazenagem de produtos, não eram suficientes para provocar a instituição de um EP. Já no conceito atual, todas essas atividades só deixam de instituir um EP se forem de caráter preparatório ou auxiliar. Este é o principal foco de problemas no conceito atual de EP, sobretudo no que se refere à dificuldade de definir o que se considera como “preparatório ou auxiliar” em cada caso concreto. (CASTAGNA, 2019, p. 182)

Algumas medidas foram implementadas pelas administrações fazendárias de diversos países. A primeira trata de uma guinada interpretativa para simplesmente desconsiderar a ideia de presença física no tratado modelo da OCDE, como foi o caso de algumas decisões jurisprudenciais da Arábia Saudita e da Índia (OCDE, 2018, p. 139). Ocorre que fazer tal ação pela via meramente “interpretativa” retirando um elemento conceitual é uma medida que pode causar insegurança jurídica e meramente agravar o problema.

Outra alternativa foi a criação de tributações setoriais para os serviços prestados digitalmente, como foi o caso de imposto de equalização da Índia para transações transfronteiriças entre empresas, imposto sobre transações digitais italiano, imposto de publicidade da Hungria e imposto sobre distribuição on-line e física de conteúdo audiovisual na França (OCDE, 2018, p. 141). Tais medidas unilaterais têm o condão de reequilibrar a concorrência evitando o vácuo normativo como nos casos citados no início deste texto.

Existe ainda a hipótese de criação de regimes especiais para evitar a erosão de base criados pelo Reino Unido, Austrália e Estados Unidos (OCDE, 2018, p. 147). Tais medidas, também unilaterais, servem como tributação a “estabelecimentos permanentes evitados” e não se direcionam exatamente a economia digital, muito embora suas previsões a abracem.

Diante deste cenário, nasce o conceito de “presença digital significativa” em Israel no ano de 2016 (OCDE, 2018, p. 135) enquanto critério que inclui a variação não física que evidencia a interação proposital da vida econômica por mecanismos digitais em um país. Assim sendo, muito embora não haja qualquer sede física em um país, considerar-se-á um estabelecimento permanente ainda que não haja qualquer servidor local. Os critérios seriam portanto: (a) uso de produtos e serviços digitais por um número relevante de clientes israelenses; (b) site com recursos direcionados a israelenses, tais quais, cartão de crédito, marketing, moeda local, língua local; (c) que a atividade seja relacionada ao volume de atividades realizadas por usuários localizados em Israel (OCDE, 2018, p. 137).

Na Proposta de Diretiva n. 2018/0072 da União Europeia, os critérios são relativamente mais brandos uma vez que são considerados: (a) receitas aferidas por prestação de serviços digitais de utilizadores residentes da EU superiores a B 7.000.000 anuais; (b) mais de cem mil utilizadores em um estado-membro; (c) número de contratos comerciais para serviços superiores a 3.000.

“Estes critérios constituem valores de referência para determinar a “pegada digital” de uma empresa numa jurisdição com base em determinados indicadores da atividade económica. Devem refletir a o facto de as empresas digitais estarem dependentes de uma grande base de utilizadores, da participação dos utilizadores e das contribuições dos utilizadores, bem como o valor criado pelos utilizadores para essas empresas. Os critérios deveriam ser adaptados aos diferentes tipos de modelos empresariais.” (UNIÃO EUROPEIA, 2018, p. 8)

O debate sobre a ressignificação do critério de conexão para a exação tributária gerou a Resolução n. 2019/2901 da União Europeia, que erigiu dois pilares para a “justa tributação da economia digital”. O primeiro pilar consiste em repartir os direitos de tributação em favor do utilizador/da jurisdição de mercado; prever uma nova regra de fator de conexão que não dependa da presença física na jurisdição de mercado/do utilizador; começar pelos lucros globais das multinacionais e afastar-se do princípio da entidade separada; visar a simplicidade, a estabilização do sistema fiscal e o aumento da segurança fiscal na execução. O segundo pilar consistiria no combate à erosão de base.

Há, entretanto, uma dificuldade prática entre o critério do princípio da unidade das multinacionais e a regra de conexão que dependa da presença física na jurisdição do mercado consumidor. Tal dificuldade reside no fato de que se a tributação será feita pelos lucros globais das multinacionais – opção também válida – não há que se falar em regra de conexão para a tributação doméstica.

Ainda assim, a ressignificação da regra de conexão para a tributação internacional se faz necessária para conquistar a “[...] quebra dos padrões de dominação externa, e nunca houve um momento tão propício para essa mudança como agora, em que a Economia Digital, intangível e sem fronteiras, desafia todos os conceitos restritivos e presos a critérios estritamente formais que vigem há quase um século.” (LEVENHAGEN, 2019, p. 53)

Nesta esteira, a utilização de critérios econômicos e substanciais deve prevalecer em detrimento de critérios geográficos (DIAS JUNIOR, 2019, p. 19). A dificuldade que se põe é sobre como estabelecer tais critérios. Há duas fortes propostas (a) tributação com base no destino em oposição à fonte (DIAS JUNIOR, 2019, p. 23); (b) tributação global do comércio eletrônico (DIAS JUNIOR, 2019, p. 25). No primeiro caso o problema consiste em focar na tributação do consumo que não assegura a promoção da função redistributiva do Direito Tributário (DIAS JUNIOR, 2019, p. 24), enquanto no segundo o grande problema é que o estabelecimento da tributação supranacional dependeria de um acordo complexo entre os estados soberanos (DIAS JUNIOR, 2019, p. 26).

Desta forma, o critério político é sem dúvida a parte mais espinhosa da tributação internacional.

Atualmente, o critério de conexão do estabelecimento digital demonstra-se como o mais próximo da realização da capacidade contributiva, uma vez que possui o enfoque maior no país cujo mercado consumidor é maior.

A dificuldade de tal proposta é a praticabilidade da utilização do critério, o que não retira o valor deste como premissa da qual se deve partir para atender a pretensão de correção do Direito.

Conclusão

A revisão de algumas considerações filosóficas implícitas e explícitas no texto se fazem necessárias para a correta compreensão das ideias aqui defendidas. O Direito na perspectiva não positivista possui pretensão de correção moral, ou seja, pretende estar moralmente correto. Por esta razão, o argumento de princípio é relevante. Princípios são as normas jurídicas que melhor estabelecem a relação entre o Direito e a Moral e por isso possuem um interesse tão grande nas doutrinas mais recentes.

A capacidade contributiva é o princípio que mais se presta à satisfação da pretensão de correção moral do Direito Tributário, uma vez que é a pedra angular da normatização da justiça redistributiva como finalidade dos sistemas tributários. Como foi visto, o princípio da capacidade contributiva é algo bastante próximo de um princípio universal, já que é transversal a diversas democracias constitucionais.

Ocorre que sua realização, enquanto princípio, depende da ponderação com outros princípios como o da segurança jurídica e o da praticabilidade. Desta forma, é importante que se estabeleçam critérios seguros para a realização da capacidade contributiva. Tal critério deve ser sensível às expectativas normativas tanto dos países de origem das multinacionais quanto dos países que possuem o principal mercado consumidor, qual sejam, os países periféricos, como é o caso da América Latina.

Deste modo, um debate qualificado sobre a tributação internacional a partir das premissas filosóficas aqui defendidas não pode fugir dos dois principais aspectos abordados: o critério ético da capacidade contributiva e o critério político da construção de uma regra de conexão que possa concretizar o critério ético. Aqui fora defendido o estabelecimento virtual como a regra de conexão.

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1 A interação dos sistemas tributários domésticos às vezes leva a uma sobreposição, o que significa que um objeto de renda pode ser tributado por mais de uma jurisdição, resultando em dupla tributação. A interação também pode deixar lacunas, o que resulta em um item de renda não ser tributado em nenhum lugar, resultando na chamada “dupla não tributação”.

2 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-37222984. Acesso em: 2 set. 2019.

3 Após diversas críticas pela prática abusiva, a empresa se retirou de Londres e foi para Amsterdã para ter benefícios fiscais: https://oglobo.globo.com/economia/starbucks-muda-sede-para-londres-apos-criticas-impostos-pagos-no-reino-unido-12214434. Acesso em: 2 set. 2020.

4 A capacidade econômica de poder contribuir com os gastos públicos, que originam os serviços gerais proporcionados pelo Estado e que beneficiam a coletividade [tradução livre].