O Beneficiário Efetivo no Modelo OCDE: de Volta para o Futuro?

The Beneficial Owner in the OECD Model: Back to the Future?

Mateus Calicchio Barbosa

Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo.

Resumo

Conceito importante para a aplicação de acordos de bitributação, o “beneficiário efetivo” nunca possuiu definição no Modelo OCDE, e teve orientações modestas nos Comentários. Com a guinada do documento em 2003, rumo ao combate do planejamento tributário, autoridades passaram a atribuir um sentido amplo ou “econômico” ao conceito, associando-o a doutrinas como “substância sobre a forma” ou “substância econômica”. A insegurança de precedentes divergentes levou a OCDE a discutir o “beneficiário efetivo” em dois documentos, incorporados aos Comentários em 2014. Condizente com Comentários históricos ao Modelo e o contexto de sua adoção, a OCDE confirmou a limitação do conceito ao caso de agentes, representantes ou intermediários sem direito de gozar do rendimento, por obrigados a remetê-lo a terceiros. Como esclarecimento de conteúdo já presente no Modelo OCDE, os Comentários de 2014 não pretendem interpretação “dinâmica”, mas reafirmam o sentido histórico daquele conceito, deixando o planejamento tributário para cláusulas específicas antiabuso.

Palavras-chave: acordos de bitributação, planejamento tributário através de acordos de bitributação, Modelo OCDE, conceito de beneficiário efetivo.

Abstract

A central concept in tax treaty application, the “beneficial owner” was never defined in the OECD Model, and only had limited clarifications in the Commentaries. With the trend towards countering treaty shopping in 2003, authorities started to attribute a broad or “economic” or meaning to the concept, associated with “substance-over-form” or “economic substance” doctrines. The uncertainty from divergent case law caused the OECD to discuss the “beneficial owner” in two drafts incorporated to the Commentaries in 2014. Consistent with historical Commentaries and the context of its adoption, the concept was confirmed by the OECD as limited to agents, nominees or intermediaries, which do not have the right to enjoy the payment received, since obliged to pass it on. By clarifying a notion already included in the Model, the 2014 Commentaries do not introduce dynamic interpretation, but reassert the historical meaning of the concept, leaving treaty shopping to specific anti-abuse rules.

Keywords: tax treaties, treaty shopping, OECD Model, concept of beneficial owner.

1. Introdução

Conceito de especial importância na repartição de competência tributária sobre dividendos, juros e royalties em acordos de bitributação, o “beneficiário efetivo” é envolto em incertezas (OLIVER et al., 2000, p. 310). Incluído no Modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“Modelo OCDE”) em 1977, sem qualquer definição expressa, senão com esclarecimentos modestos nos Comentários ao Modelo daquele ano, o conceito de “beneficiário efetivo” apenas parece permitir consenso quanto à inexistência de um entendimento unívoco sobre o seu conteúdo.

Se a literatura há muito já divergia sobre o conceito, a discussão ganhou relevância prática definitiva com alterações realizadas em 2003 nos Comentários ao Modelo OCDE. Nas alterações, autoridades fiscais encontraram espaço para uma certa interpretação “econômica” da expressão. O acesso aos benefícios do acordo de bitributação passou a ser questionado a partir de leitura extensiva da noção, transformada em ampla cláusula antiabuso afeita a doutrinas como “substance over form”, “economic substance”, “business purpose” e semelhantes. Confrontado com o conceito, viu-se o contribuinte diante da exigência de provar desde a sua capacidade operacional até o gozo – econômico – do rendimento recebido, sob pena de ter rejeitada a sua condição de “beneficiário efetivo”, negando-se os benefícios que lhe assistem no acordo de bitributação como um residente de Estado Contratante.

Com a insegurança trazida por jurisprudência que se revelou hesitante e divergente sobre o tema, a OCDE publicou, em 2011, um Discussion Draft acerca do conceito de “beneficiário efetivo”. No propósito de delimitar os seus limites, a OCDE reafirmou a restrição do conceito ao caso dos agentes, dos representantes e das empresas-veículo legal ou contratualmente obrigados a remeter a uma terceira pessoa os rendimentos que recebem do Estado da Fonte. Em 2014, as conclusões do Draft foram levadas aos Comentários ao Modelo OCDE.

O artigo retoma a evolução do conceito de “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE, apresentando o debate doutrinário e jurisprudencial que o acompanhou. O artigo adentra, então, o Discussion Draft, com a alteração que motivou nos Comentários ao Modelo OCDE. O propósito é evidenciar ter a OCDE confirmado, nos documentos, aquele que parece ser o significado (restrito, e não ampliado) historicamente firmado no Modelo, seja no texto de seus Comentários, seja no contexto que levou à inclusão do “beneficiário efetivo” na edição de 1977. Finalmente, o artigo considera a repercussão prática das orientações da OCDE, se entendidas como esclarecimento – e não alteração – do conceito de “beneficiário efetivo”. Em conclusão, o artigo louva a limitação do conceito às situações para as quais fora previsto, havendo outras cláusulas, específicas e criteriosas, para tratar do planejamento tributário através de acordos de bitributação.

2. O “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE

Constante do Modelo OCDE desde 1977, o conceito de “beneficiário efetivo” esclarece que o Estado da Fonte não está automaticamente obrigado a renunciar a qualquer parcela de sua competência tributária apenas porque rendimentos dali remetidos foram imediatamente recebidos por um residente do outro Estado Contratante (OCDE, 2014, § 12).

Os Artigos 10 (dividendos), 11 (juros) e 12 (royalties) do Modelo OCDE exigem que o receptor do rendimento proveniente do Estado da Fonte seja o “beneficiário efetivo” do pagamento para que seja válida a limitação à tributação na fonte sobre dividendos, juros ou royalties que lhe foram remetidos. Noutras palavras, o conceito limita a aplicação do tratamento presente no Modelo OCDE – e, por conseguinte, nos acordos que nela se baseiam – a situações em que o contribuinte a quem se remetem os pagamentos ostente não apenas a residência no outro Estado Contratante, mas também assuma a condição de “beneficiário efetivo” do rendimento.

Historicamente, os Comentários ao Modelo OCDE apresentavam orientação modesta sobre o sentido da expressão. Limitava-se o documento a afirmar que os benefícios do acordo de bitributação não estariam disponíveis na hipótese em que um intermediário, como agente (“agent”) ou representante (“nominee”), estivesse interposto entre o beneficiário do rendimento pago – residente em um terceiro Estado,diverso do Estado da Residência – e o pagador – residente no Estado da Fonte (OCDE, 2014).

O conceito de “beneficiário efetivo” apenas foi revisitado pela OCDE em 1986, com a publicação do Relatório “Double Taxation Conventions and the Use of Conduit Companies”. No geral, o documento foi elaborado para tratar da utilização indevida dos acordos de bitributação – ali entendida como a atuação mediante entidade criada primordialmente para obtenção de benefícios que de outra forma seriam indisponíveis. À época, o Relatório pareceu sugerir certo princípio de “substance-over-form” para lidar com o treaty shopping, como se a personalidade jurídica de entidades pudesse ser ignorada em favor da “substância” (ROSENBLOOM, 1988, p. 180). A respeito do conceito de “beneficiário efetivo”, todavia, o Relatório de 1986 considerou que:

“The Commentaries mention the case of a nominee or agent. The provisions would, however, apply also to other cases where a person enters into contracts or takes over obligations under which he has a similar function to those of a nominee or an agent. Thus a conduit company can normally not be regarded as the beneficial owner if, though the formal owner of certain assets, it has very narrow powers which render it a mere fiduciary or an administrator acting on account of the interested parties (most likely the shareholders of the conduit company).”

Na passagem transcrita, percebe-se que o Relatório de 1986 nada mais fez do que rejeitar a condição de “beneficiário efetivo” a pessoas que, embora diversas de um agente ou representante, obrigam-se perante terceiros em termos semelhantes. No exemplo do estudo, seria o caso de empresa-veículo que, mesmo proprietária de certos ativos, possuísse poderes cuja limitação acentuada a transformaria em mero agente fiduciário ou administrador atuando por conta de terceiros. O Relatório de 1986 não trouxe, enfim, qualquer orientação essencialmente dissonante dos Comentários ao Modelo de 1977. No tema, estes permanecem sem atualizações sensíveis ao longo de quase duas décadas.

2.1. A guinada em 2003

Apenas em 2003 a redação dos Comentários ao Modelo OCDE foi reformulada, fazendo incluir um conceito supostamente ampliado de “beneficiário efetivo”. A alteração refletia a ênfase que então era colocada sobre o objeto e a finalidade dos acordos de bitributação em “prevention of fiscal evasionand avoidance” (OCDE, 2003, § 12). Naquele momento, os Comentários afirmaram que o “beneficiário efetivo” não deveria ser utilizado em um “narrow technical sense”, mas compreendido à luz daquela finalidade declarada para os acordos. O documento incorporou, então, conclusões do Relatório de 1986 para asseverar que uma empresa-veículo não se consideraria o “beneficiário efetivo” se, embora titular formal dos rendimentos, possuísse, na prática, poderes muito limitados sobre o pagamento recebido, tornando-se mero agente fiduciário ou administrador agindo por conta de outrem.

Também em 2003, o conceito de “beneficiário efetivo” passou a integrar o direito comunitário europeu, figurando como condição para a isenção de remessas internacionais de juros e royalties entre empresas vinculadas, conforme a Diretiva de Juros e Royalties emitida pelo Conselho Europeu. À semelhança da tônica que pareceu adotada pelas alterações nos Comentários ao Modelo OCDE, o propósito da inclusão do “beneficiário efetivo” naquela Diretiva foi apontado na contenção do planejamento tributário abusivo, realizado através do que se denominaram, declaradamente, “artificial conduit arrangements” (COMMISSION OF THE EUROPEAN COMMUNITIES, 2009, p. 8).

Alterada a formulação do conceito de “beneficiário efetivo” para trazer menção a empresas-veículo, sugerindo sua aproximação ao combate ao planejamento tributário abusivo, aproveitaram-se as administrações tributárias para interpretar aquela noção de forma ampla. Foram atribuídos ao conceito requisitos de ordem econômica e de “substância material” para se franquear ao residente do outro Estado Contratante os benefícios do acordo de bitributação (COLLIER, 2011, p. 685). Não parece uma coincidência, assim, ter sido a partir de 2003 que se intensificou o recurso ao conceito por autoridades fiscais para o questionamento de estruturas envolvendo empresas holding e demais intermediários, eclodindo notável incerteza sobre o escopo e significado do “beneficiário efetivo” nos acordos de bitributação (DUFF, 2013, p. 2).

De fato, percebeu-se em Direito Comparado a tendência crescente de administrações tributárias e tribunais a admitirem “interpretação econômica” do conceito de “beneficiário efetivo” (VERDONER; OFFERMANS; HUITBREGTSE, 2010, p. 472-473). Na posição que se viu adotada por autoridades fiscais e judiciais, encontravam-se duas linhas de argumentação: (i) questionamentos quanto à substância física ou material do residente no outro Estado Contratante (e.g. escritórios, pessoal); e (ii) questionamentos quanto à posição econômica do residente no outro Estado Contratante, i.e. se o benefício econômico do pagamento é desfrutado por terceira pessoa (COLLIER, 2011, p. 694).

Em que pese a guinada rumo à interpretação considerada “econômica” ou ampliada do conceito de “beneficiário efetivo”, é importante notar que o movimento se deu ao arrepio do entendimento – desde logo, acertado – daqueles que não encontram nas alterações realizadas em 2003 fundamento suficiente para se rejeitar a condição de “beneficiário efetivo” a pessoa diversa de um agente, representante ou empresa-veículo que esteja legal ou contratualmente obrigado a remeter a outrem os rendimentos que recebe do Estado da Fonte (JIMÉNEZ, 2010, p. 53-54).

Afinal, as alterações nos Comentários ao Modelo OCDE em 2003 não trouxeram reformulação material do conceito de “beneficiário efetivo”, mas apenas vieram a incorporar ao documento os termos do Relatório de 1986, que nunca pretendeu conferir à interpretação da expressão ares de uma “broad anti-treaty shopping function” (COLLIER, 2011, p. 688). Reconhecer ao “beneficiário efetivo” algum papel no combate ao emprego indevido de acordos de bitributação não implica, ipso facto, atribuir-lhe conteúdo amplo, assentado em interpretação “econômica”, se não houver fundamento, no texto ou contexto dos acordos, para a leitura assim pretendida.

3. O “beneficiário efetivo” e o uso indevido de acordos

Noção difundida entre os estudiosos do tema dita que o “beneficiário efetivo” é conceito que serve a “prevent tax avoidance”, por impedir que pessoas que não fazem jus aos benefícios do acordo de bitributação venham a deles se apropriar mediante interposição de terceiros (VOGEL, 1997, p. 561). Aqui, tratar-se-ia o “beneficiário efetivo” de conceito que lida ao menos com determinadas situações de utilização indevida de acordos de bitributação (SCHWARZ, 2009, p. 274).

Também na literatura brasileira, a relação entre o “beneficiário efetivo” e o emprego indevido de acordos de bitributação aparece imediata. Diz-se que a figura serviria a combater “certa modalidade de abuso de convenção” em que se interpõe “artificialmente, num país abrangido pelo tratado, um titular de direito a rendimentos que não é o seu real beneficiário, o qual por seu turno é domiciliado em terceiro país” (XAVIER, 2004, p. 167). Noutro giro, a expressão “beneficiário efetivo” teria “por objetivo evitar a elisão fiscal, mediante a construção de estruturas artificiais que permitam a fruição de isenções ou reduções fiscais que não estariam, de outra forma, disponíveis ao contribuinte” (BIANCO; NEWTON, 2011, p. 256).

Ao passo que a relação entre o “beneficiário efetivo” e o combate à apropriação considerada indevida de benefícios de acordo parece clara, bem menos evidente é o conteúdo que se atribui ao conceito na aplicação dos Artigos 10, 11 e 12 do Modelo OCDE. No enfrentamento de casos de planejamento tributário através de acordos de bitributação, a extensão da noção de “beneficiário efetivo” não é, desde muito, matéria que se considere “tranquila” (SCHOUERI, 1992, p. 203).

Por ausente uma definição expressa do “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE e nos acordos de bitributação nela baseados, a literatura e a prática internacionais discutem se a compreensão do conceito exige o reenvio ao direito doméstico dos Estados Contratantes ou, por outro lado, deve buscar uma noção autônoma e desvinculada da lei interna – esta dita “part of an international tax language which is separate from domestic law” (IFA, 2000, p. 15). Neste ponto, não é rara a conclusão de que o termo não poderia ser definido a partir do direito doméstico de cada país, antes devendo ser admitido como “separate and distinctive treaty meaning” (OLIVER et al., 2000, p. 310).

Ainda que entendido o conceito de forma autônoma e internacional, a literatura não chega a termos sobre o seu conteúdo: se (i) restrito (dito “legal”), quando apenas investigaria a existência de obrigação jurídica de remeter os rendimentos recebidos a outrem, como no caso de agentes ou representantes; ou (ii) amplo (“econômico”), hipótese em que diria respeito à pessoa que desfruta economicamente do rendimento, no que o conceito passa a se associar a doutrinas como “substance-over-form” e “business purpose”, ganhando contornos de ampla cláusula antiabuso (BAKER, 1994, p. 230).

Entre os que encontram no “beneficiário efetivo” um conceito restrito, Du Toit (1999, p. 227-228) sustenta inexistir fundamento no Modelo OCDE e Comentários para rejeitar aquela condição a pessoa que, embora sem obrigação de fazê-lo, tenha de fato remetido a terceiro o rendimento que recebeu. Ao autor, a questão não residiria em saber se o rendimento fora de fato remetido a terceiro que dele gozaria, mas, sim, na investigação da obrigação de uma obrigação jurídica para a remessa.

Com posição semelhante, Jiménez (2010, p. 51-52) assinala que a noção de “beneficiário efetivo” seria jurídica, e não econômica. Para o autor, a introdução de uma “análise econômica” dos fatos na determinação do conceito daria a estes contornos cuja amplidão impossibilitaria sua diferenciação de uma “general anti-avoidance measure”. No mesmo sentido segue Baker (2008, p. 9), para quem o “beneficiário efetivo” seria conceito restrito, concebido para enfrentar apenas modalidade específica de treaty shopping: a interposição de agente, representante ou outro veículo sem poderes sobre os rendimentos que recebe. Ainda, Hinnekens (1989, p. 359) se manifesta contrariamente à interpretação “econômica” ou ampliada do conceito de “beneficiário efetivo”, por restrito ao “nominee or agent”, estes sem titularidade sobre o rendimento recebido.

De outro lado, Vogel (1997, p. 562) parece próximo dos que sustentam uma interpretação ampliada ou “econômica” do conceito. Admitindo que a análise do “beneficiário efetivo” comporta os elementos “jurídicos” e também “fáticos”, o autor então assevera que a dualidade entre “forma versus substância” haveria de ser decidida a favor da última, rejeitando-se benefícios do acordo aos que possuírem título “formal”, e não “real”, sobre dividendos, juros e royalties recebidos. Também Pijl (2003, p. 354-355) pondera que a noção de “beneficiário efetivo” haveria de ser interpretada de forma “econômica”, conforme supostamente recomendado pelas alterações de 2003 aos Comentários do Modelo OCDE – os quais, para o autor, esclareceriam conteúdo já presente ali.

No Brasil, reflexos da discussão também se fizeram sentir. Veja-se o raciocínio de Rolim (2010, p. 88-89): partilhando de leitura ampla do conceito, o autor o toma por “norma antielisiva evidentemente aberta, tais como as doutrinas da business purpose e da substância sobre a forma”, reputando “inegável que fatos econômicos relevantes em torno dos direitos decorrentes da propriedade possam ser levados em consideração para a determinação do conceito”. Já Moraes e Castro (2012, p. 88), embora admita que “a análise relacionada à atuação de uma pessoa como agente, mandatário ou fiduciário passa por um exame da substância (material) e não meramente formal (documental)”, traça contornos menos abrangentes para o “beneficiário efetivo”, este limitado a afastar os benefícios do acordo a “meros intermediários que respondem por terceiros e, portanto, dos quais a renda decorrente de dividendos, juros e royalties não compõe o seu próprio patrimônio”.

A leitura restrita do conceito também é vista em Schoueri (1992, p. 206), para quem o “beneficiário efetivo” “restringe-se aos casos em que o rendimento é pago a quem, por obrigação contratual ou de outra natureza, deve, de imediato, repassá-lo a terceiro, já que não lhe pertence”. Para o autor, não haveria fundamento a permitir “a conclusão de que o conceito de ‘beneficial owner’ escape dos seus limites jurídicos, invadindo a esfera da ‘interpretação econômica’, ou semelhante”.

Foi enquanto o debate acima se arrastava na literatura que, em 2003, editaram-se novos Comentários ao Modelo OCDE, com a guinada rumo ao combate à elisão e à evasão fiscais internacionais. Uma discussão que se desenvolvia, até então, em termos algo teóricos, passou a trazer enorme repercussão prática ante a eclosão de disputas entre autoridades fiscais e contribuintes acerca da configuração do “beneficiário efetivo” nos acordos de bitributação (JIMÉNEZ, 2010, p. 62). O litígio desaguou em decisões prolatadas pelas mais variadas cortes fiscais no mundo, atribuindo ao conceito um sentido que ora se pretende limitado, condizente com a orientação historicamente constante dos Comentários ao Modelo OCDE, ora se revela amplo, assumindo feições de generosa cláusula antiabuso.

Demonstrando as incertezas no tema, os casos “Prévost” e “Bank of Scotland” são emblemáticos das discussões instaladas na última década entre administrações tributárias e contribuintes. As decisões culminaram em soluções – diametralmente – opostas acerca do escopo do “beneficiário efetivo” nos acordos de bitributação.

3.1. O caso “Prévost”: um conceito restrito de “beneficiário efetivo”

Em 2007, a Corte Federal de Apelação do Canadá (“Federal Court of Appeal”) decidiu, no caso “MIL (Investments)”, que a norma geral antiabuso canadense não poderia ser aplicada a típico caso de treaty shopping em que o contribuinte, pouco antes de alienar ações, muda sua residência de Cayman para Luxemburgo e, então, pleiteia aplicação do acordo de bitributação entre Canadá e Luxemburgo. Ante a derrota nos tribunais, a administração tributária canadense mudou a sua estratégia de ação, passando a questionar planejamentos tributários envolvendo dividendos, royalties e juros a partir da alegação de que o seu receptor não seria o “beneficiário efetivo” (ARNOLD, 2013, p. 39-40).

Este é o contexto do caso “Prévost”, apontado como o primeiro a alcançar tribunais daquele país a partir do emprego, pela administração tributária, da noção pouco delimitada de “beneficiário efetivo” para questionar planejamento tributário através de acordos de bitributação (KANDEV, 2010, p. 164).

Na vigência de um acordo de bitributação entre Canadá e Holanda, a Prévost Car Inc. (“Prévost”), residente do Canadá, pagou dividendos ao seu acionista Prévost Holding BV (“Holding”), residente na Holanda. Na sequência, a Holding distribuiu dividendos, em igual montante ao recebido da Prévost, aos seus dois acionistas: a Volvo Bussar AB (“Volvo”), residente na Suécia, e a Henlys Group PLC (“Henlys”), residente no Reino Unido.

Nos termos do acordo vigente entre Canadá e Holanda, os dividendos pagos pela Prévost à Holding se sujeitariam à retenção pelo Estado da Fonte à alíquota máxima de 5%. A distribuição de lucros da empresa Holding às suas duas acionistas, por sua vez, poderia ser realizada sem qualquer retenção de imposto na fonte, conforme dispunham os respectivos acordos.

Diante de estrutura assim concebida, as autoridades fiscais canadenses entenderam que o “beneficiário efetivo” dos dividendos distribuídos pela Prévost não seria a Holding, mas a Volvo e a Henlys – caso em que a Holding se tornaria “transparente”, dando lugar à retenção na fonte a 15% sobre os lucros pagos à Volvo, e a 10% sobre os pagamentos à Henlys. Para demonstrar seu argumento, o fisco se apegou a (i) um acordo firmado entre Volvo e Henlys, determinando que ao menos 80% dos lucros da Holding seriam distribuídos a seus sócios, e (ii) ao fato de que a Holding não possuía pessoal, sede física ou ativos diferentes das participações que detinha. Foi sustentada, pois, uma noção “econômica” ou ampliada de “beneficiário efetivo”: investigou-se a possibilidade de que a Holding gozasse dos rendimentos como melhor lhe aprouvesse, como também se questionou a capacidade operacional daquela empresa e a sua razão de ser, em questões típicas de doutrinas como “substância sobre a forma” ou “propósito negocial”.

Em primeira instância julgadora, a Corte Fiscal canadense (“Tax Court of Canada”) observou que a expressão “beneficiário efetivo” não encontrava definição no acordo Canadá-Holanda, e tampouco no Regulamento do Imposto de Renda canadense (“Income Tax Act”). O tribunal então se valeu do Artigo 3 (2) do acordo para recorrer à jurisprudência canadense e internacional, ao significado da expressão nos três idiomas oficias do acordo (francês, inglês e holandês), às provas do caso e aos Comentários ao Modelo OCDE. Entendeu, finalmente, que a Holding seria o “beneficiário efetivo”.

Para a Corte Fiscal, a Holding teria recebido os dividendos, assumindo seu risco e controle, no que descaberia negar-lhe a condição de “beneficiário efetivo”. Nas razões do Juiz Gerald Rip, a condição apenas se afastaria no caso em que a empresa, utilizada como veículo de terceira pessoa, não possuísse “absolutamente nenhuma discricionariedade quanto ao uso e aplicação dos rendimentos” que recebeu, ou tivesse “concordado em agir por conta de outrem e a partir das instruções desta terceira pessoa, sem qualquer direito de atuar de modo diverso daquele instruído pela terceira pessoa”.

No entender da Corte Fiscal, este não teria sido o caso. Embora o acordo de acionistas determinasse a distribuição do mínimo de 80% dos lucros apurados pela Holding, não haveria fluxo automático dos rendimentos aos acionistas, dado que a Holding não era parte no acordo firmado, e, assim, não estaria legalmente obrigada a distribuir dividendos nos termos da política fixada pelo contrato. O fato de a Holding não possuir sede física, funcionários ou ativos na Holanda não foi considerado suficiente pelo tribunal para transformar a Holding em empresa veículo de seus acionistas, Volvo e Henlys.

Inconformadas com a decisão, as autoridades fiscais recorreram à Corte Federal de Apelação. Insistiu-se em que o “beneficiário efetivo” seria aquele que, na prática e em última análise, desfruta do dividendo pago desde o Estado da Fonte.

Em fevereiro de 2009, a Corte Federal julgou acertada a solução dada ao caso pelo tribunal inferior. Ao Juiz Relator Robert Décary, pareceu que a posição fiscal teria se baseado em uma “visão pejorativa de empresas holding”, sem guarida na legislação canadense, e em precedente apto a afrontar a certeza e a estabilidade que se esperam alcançadas por um acordo de bitributação.

O Relator endossou as conclusões do tribunal inferior, e assinalou que: (i) a relação entre a Holding e seus acionistas não é de agência, mandato ou alguma em que a propriedade esteja em nome de outrem, como de um representante; (ii) a Holding não é uma empresa veículo de terceiros, que não possui qualquer discricionariedade quanto à destinação dos rendimentos que recebe; (iii) não houve fluxo automático de recursos entre a Holding e acionistas; (iv) a Holding é regularmente constituída sob a lei da Holanda, desenvolvendo ali atividade legítima; (v) a Holding não é parte do acordo de acionistas; (vi) a Holding não poderia ser acionada judicialmente pela Volvo ou Henlys caso deixasse de observar a política de distribuição de dividendos firmada entre aquelas empresas; (vii) o estatuto da Holding não a obriga a distribuir dividendos a acionistas; (viii) se a Holding decidir pagar dividendos, deve fazê-lo nos termos da lei holandesa; (ix) a Holding é a proprietária das ações da Prévost, cujos dividendos lhe pertencem, e estão à disposição de seus credores na forma de lucro até que a diretoria anuncie o dividendo, aprovado pelos acionistas e a estes remetido.

Exemplo de que o treaty shopping não é necessariamente abusivo, a decisão do caso “Prévost” rejeitou a tentativa de se afastar aquilo que o fisco entendeu ser planejamento tributário ilícito a partir do questionamento da condição de “beneficiário efetivo”. A decisão impediu fosse a noção transformada em ampla regra antiabuso (KANDEV, 2010, p. 170). Sem associar o conceito a considerações ditas “econômica” ou de “substância”, o julgamento deu ao “beneficiário efetivo” uma leitura restritiva, de forma a excluir de seu escopo apenas agentes, representantes e empresas-veículo que não possuíssem qualquer discricionariedade sobre a destinação dos rendimentos recebidos (ARNOLD, 2013, p. 49). Rejeitou-se, enfim, interpretação “econômica” da figura que poderia lhe dar funções de “broad anti-avoidance clause” (JIMÉNEZ, 2010, p. 49).

3.2. O caso “Bank of Scotland”: um conceito amplo de “beneficiário efetivo”

Em contraste com as conclusões do caso “Prévost” acima, o caso “Bank of Scotland” é exemplo da relação que veio a se estabelecer, ainda que de forma pouco criteriosa, entre a noção de “beneficiário efetivo” e doutrinas gerais antiabuso, conferindo ao conceito interpretação ampla e “econômica”.

Julgado em 29 de dezembro de 2006 pelo Conselho de Estado (“Conseil d’Etat”), o órgão maior da jurisdição administrativa na França, o caso “Bank of Scotland” cuidou de transação em que a Merrew Dow Pharmaceutical Inc. (“Merrew”), residente nos Estados Unidos da América, cedeu ao Bank of Scotland, residente no Reino Unido, mediante pagamento em parcela única e por período de três anos, o usufruto de certas ações preferenciais emitidas por sua subsidiária integral, a Marion Merrew Dow SA (“Marion”), também residente na França (GIBERT; OUAMRANE, 2008, p. 6-8).

Além de assegurar ao Bank of Scotland dividendos em montante predeterminado e garantido pela empresa controladora norte-americana, a aquisição do usufruto das ações de emissão da subsidiária francesa supostamente permitiria ao banco se valer do acordo vigente entre França e Reino Unido. Este estabelecia alíquota reduzida de 15%, ante a alíquota de 25% prevista na lei doméstica da França sobre a remessa de dividendos provenientes daquele país.

Tomando a estrutura por planejamento tributário abusivo, as autoridades fiscais francesas negaram os benefícios do acordo de bitributação França-Reino Unido, exigindo a alíquota geral de 25% sobre os dividendos distribuídos pela Marion ao Bank of Scotland. Como primeira instância julgadora, a Corte Administrativa de Apelações de Paris (“Cour Administrative d’Appel de Paris”) entendeu que o fisco não teria demonstrado adequadamente uma fraude à lei, assim não havendo fundamento para que se negasse o acesso do contribuinte aos benefícios do acordo. As autoridades fiscais apresentaram recurso ao Conselho de Estado.

O Conselho reverteu a decisão do tribunal inferior. Entendeu o tribunal que o contrato de usufruto dissimulou um empréstimo do Bank of Scotland à Merrew, diretamente reembolsado ao banco na forma de dividendos pagos. Para o Conselho, o “beneficiário efetivo” dos dividendos seria a Merrew, que apenas teria atribuído à sua subsidiária francesa a responsabilidade de remunerar o empréstimo concedido pelo banco. Por não ostentar condição de “beneficiário efetivo”, o Bank of Scotland haveria de se sujeitar à diferença entre a alíquota máxima prevista no acordo de bitributação (15%), a que não faria jus, e a alíquota estabelecida na lei doméstica francesa (25%).

Para assim decidir, o tribunal avaliou os riscos envolvidos no contrato de usufruto entre a Merrew e o Bank of Scotland. As cláusulas asseguravam ao banco o direito de receber, da primeira empresa, indenização equivalente ao montante de dividendos que deixasse de ser distribuído pela Marion, além de prever a alienação do usufruto de volta à Merrew caso os resultados quadrimestrais da subsidiária fossem inferiores a determinado valor fixado adrede. Concluíram os Conselheiros que as garantias consideráveis prestadas ao Bank of Scotland reduziriam, de forma pouco usual, os riscos que deveria correr como acionista usufrutuário.

Na premissa de que a Merrew apenas imputara à sua subsidiária francesa a responsabilidade pelo adimplemento do contrato, o Conselho de Estado viu na cessão de usufruto das ações um contrato de empréstimo celebrado em fraude à lei, com o “único propósito de obter abusivamente o benefício das disposições favoráveis do acordo de bitributação França-Reino Unido”. Ao afastar a transação tal como declarada pelo contribuinte, o Conselho levou em conta que (i) o negócio teria sido realizado por motivo exclusivamente tributário, i.e. o acesso à disciplina do acordo de bitributação França-Reino Unido, e que (ii) a utilização que se fez dos dispositivos do acordo seria contrária ao objetivo antevisto pelos Estados Contratantes ao celebrá-lo: limitar a disciplina prevista aos residentes que fossem o “beneficiário efetivo” dos rendimentos que recebem.

O caso “Bank of Scotland” demonstra, pois, a disposição da corte francesa em identificar o “beneficiário efetivo” do rendimento a partir de certo “substance-over-form approach” (GIBERT; OUAMRANE, 2008, p. 8). Sobre a decisão, diz-se que o Conselho de Estado, adotando “factual/economic approach” próprio de “substance-over-form doctrines” para desconsiderar o usufruto de ações e o qualificar como um empréstimo, teria identificado no “beneficiário efetivo” uma amplíssima “anti-avoidance clause” (JIMÉNEZ, 2010, p. 47).

Afinal, o Bank of Scotland, a par de não ter atuado como agente ou representante de terceira pessoa – no que estaria dentro do escopo tradicionalmente atribuído ao “beneficiário efetivo” nos Comentários ao Modelo OCDE –, possuía o direito pleno de uso e gozo dos dividendos recebidos, sem obrigação alguma de remetê-los a outrem (GUTMANN, 2013a, p. 171). Ignorando uma leitura restrita da noção, o Conselho atribui ao “beneficiário efetivo” conteúdo de outra ordem: associado a uma análise de “punto de vista fáctico o econômico, inherente a las doctrinas de la substancia sobre la forma”, o tribunal transformou o conceito em ampla “cláusula anti abuso que permite atacar los supuestos de treaty-shopping” (LOSADA, 2013, p. 269-270).

4. O Discussion Draft da OCDE

Com a jurisprudência internacional imergida em litígios acerca do conteúdo e extensão do conceito de “beneficiário efetivo”, ora dando-lhe leitura cautelosa e restrita, ora traçando-lhe contornos de ampla regra antiabuso, a OCDE houve por bem se manifestar e assumir posição firme sobre o tema.

4.1. O Discussion Draft original

Publicado em 29 de abril de 2011, o Discussion Draft da OCDE começa por admitir dificuldades que enfrenta o “beneficiário efetivo”, sujeitado às mais variadas interpretações por autoridades fiscais e judiciais. A disparidade entre as posições resultaria em risco de dupla tributação ou não tributação, razão apontada pelo Working Party 1 da OCDE para esclarecer o significado da expressão (OCDE, 2011, p. 2).

Constatando que o conceito fora inserido no Modelo OCDE para lidar com possíveis problemas associados à expressão “paid to... a resident”, o Draft propõe alterações nos Comentários aos Artigos 10, 11 e 12 com o propósito de melhor definir o “beneficiário efetivo”. O Draft parece reconhecer a multiplicidade de sentidos atribuídos ao conceito mediante remissão ao direito doméstico dos Estados Contratantes, e assim esclarece que a expressão “beneficiário efetivo” deve ser interpretada conforme o contexto do acordo e à luz de seu objeto e finalidade, i.e. eliminação da dupla tributação e o combate à evasão fiscal internacional.

A OCDE afasta, assim, recurso aos possíveis sentidos que o “beneficiário efetivo” poderia assumir na lei doméstica dos Estados Contratantes, apenas relevantes se a formulação ali encontrada se mostrasse consistente com a orientação dos Comentários ao Modelo OCDE. Mesmo porque, aduz o Draft, o conceito sequer encontrava significado preciso na legislação interna de inúmeros países quando de sua incorporação ao Modelo OCDE (OCDE, 2011, p. 3).

O documento então considera o caso dos agentes (“agents”) e representantes (“nominees”). Conforme a OCDE, não seria compatível com o objeto e finalidade do acordo de bitributação que o Estado da Fonte, ante o status do recebedor imediato do pagamento como residente do outro Estado Contratante, obedecesse às limitações colocadas pelo Modelo se os rendimentos fossem remetidos a pessoas que atuassem ali como meros agentes ou representantes de outrem. Embora o “recebedor imediato direto” se qualificasse como residente do outro Estado Contratante, sua condição de agente ou representante de terceiro impediria a dupla tributação, haja vista não ser o titular (“owner”) dos rendimentos para fins de tributação no Estado da Residência.

Para o Discussion Draft, seria igualmente inconsistente com o objeto e finalidade do Modelo OCDE que o Estado da Fonte observasse as limitações ali postas se o residente do outro Estado Contratante, ainda que não atuando em agência ou representação, simplesmente servisse de canal (“conduit”) para outra pessoa, que de fato recebesse o rendimento remetido. O documento faz menção ao Relatório sobre Conduit Companies, que conclui não poder uma empresa-veículo ser considerada “beneficiário efetivo” se, apesar de titular formal (“formal owner”), tivesse poderes tão restritos sobre o rendimento recebido, que não passaria de mera depositária (“fiduciary”) ou administradora agindo por conta de terceiros.

A partir dos exemplos citados (agente, representante e empresa-veículo atuando como depositária ou administradora), o Draft pondera que o receptor dos dividendos, juros ou royalties remetidos não pode ser considerado “beneficiário efetivo” se não possuir direito pleno a usar e gozar de rendimentos que recebe, mas não lhe pertencem. Afinal, seus poderes estariam constrangidos pela obrigação de remeter o pagamento recebido a outra pessoa, por força de disposição contratual, relação fiduciária ou de outra natureza. É neste ponto que o conceito de “beneficiário efetivo” surge, no documento, como o receptor de dividendos, juros ou royalties que detém direito pleno de uso e gozo do rendimento recebido, sem qualquer obrigação legal ou contratual de remeter a terceiros o pagamento que lhe fora feito (OCDE, 2011, p. 4; 6; 9).

Sugere o documento que uma tal obrigação, embora normalmente derivada de instrumentos legais ou contratuais, também se alcança com fatos e circunstâncias a demonstrar que o receptor claramente não ostenta um direito pleno de usar e gozar dos rendimentos recebidos. Afirma, também, não se confundir o direito ao uso e gozo do rendimento com (i) a simples titularidade jurídica (“legal ownership”) sobre aquele; (ii) as ações a partir das quais o dividendo é pago; (iii) o crédito em função do qual os juros são pagos; e (iv) o direito de propriedade intelectual cuja cessão justifica o pagamento dos royalties.

Finalmente, o Discussion Draft ressalva que o fato de o receptor dos rendimentos ser considerado o seu “beneficiário efetivo” não leva, ipso facto, a que as limitações no Modelo OCDE ao Estado da Fonte estejam automaticamente asseguradas. Ao contrário, no caso de abuso dos Artigos 10, 11 e 12, as limitações também não se aplicam.

Adentrando o tema do abuso, o documento lembra haver diversas maneiras de se abordar o tema das empresas-veículo, ou situações de planejamento tributário através de acordos de bitributação (“treaty shopping”) em geral. Seriam exemplos as cláusulas específicas antiabuso (“specific treaty anti-abuse provisions”), as cláusulas gerais antiabuso (“general anti-abuse rules”) e as doutrinas de “substância sobre a forma” e “substância econômica” (“substance-over-form or economic substance approaches”).

O documento admite que o conceito de “beneficiário efetivo” combate, efetivamente, certas formas de planejamento tributário: aquelas envolvendo a interposição de um receptor que é obrigado a remeter os rendimentos a outrem. O conceito, todavia, não diz respeito a outros mecanismos de treaty shopping. Bem por não cuidar destes mecanismos, o “beneficiário efetivo” não traz prejuízo à adoção e aplicação de instrumentos adequados para o combate ao planejamento tributário (OCDE, 2011, p. 4; 6-7; 9).

O ponto é importante: ao limitar o conceito de “beneficiário efetivo” a situações específicas e bem definidas, o Draft não admite a figura como instrumento genérico de enfrentamento dos mais variados expedientes empregados no planejamento de negócios, como quer a leitura ampliada ou “econômica” do “beneficiário efetivo”. Do abuso dos acordos de bitributação, cuidariam mecanismos especialmente concebidos para tanto, sem relação com a expressão que viera a ser incluída no Modelo OCDE com o único propósito de lidar com dificuldades que poderiam decorrer da passagem “paid to... a resident” nos Artigos 10, 11 e 12.

Na conclusão do Discussion Draft, o conceito de “beneficiário efetivo”, conforme exposto, deixa evidente que o conteúdo a ser atribuído à expressão no Modelo OCDE deve ser apartado de sentidos que sejam atribuídos à expressão em outros instrumentos, especialmente os preocupados em identificar pessoas (em regra, indivíduos) que efetiva e definitivamente exercem controle sobre entes ou ativos. Seria exemplo o próprio Relatório do OECD Steering Group on Corporate Governance sobre “Behind the Corporate Veil: Using Corporate Entities for Illicit Purposes”, em que o “beneficiário efetivo” é apresentado como “ultimate beneficial owner or interest by a natural person”, exigindo-se o “piercing through various intermediary entities and/or individuals until the true owner who is a natural person is found”. No Modelo OCDE, este não é o escopo da figura, limitada a identificar as circunstâncias em que o receptor de dividendos, juros ou royalties está legal ou contratualmente obrigado a remeter os rendimentos que recebeu a pessoa diversa, em outro Estado.

Ao Draft, bastaria ver que o afastamento das limitações colocadas pelo Modelo OCDE ao Estado da Fonte sequer é cogitado nos casos em que uma pessoa intermediária, como agente ou representante, é interposta entre o pagador e o beneficiário, se este reside no outro Estado Contratante (i.e. o Estado da Residência). Com o conceito de “beneficiário efetivo”, não é o caso de investigar aquele que exerce, em última análise, controle sobre determinado ente ou ativo, mas apenas investigar se quem recebe os rendimentos pagos pode deles gozar plenamente.

4.2. A revisão do Discussion Draft

Submetido o Draft ao público, sugestões da comunidade acadêmica e internacional recebidas pelo Working Party 1 da OCDE levaram à publicação de edição revisada em 19 de outubro de 2012.

Opiniões receosas de que a referência à lei doméstica dos Estados Contratantes poderia autorizar certa liberdade do intérprete para “escolher entre a interpretação do direito doméstico e a orientação do Comentário” levaram a OCDE a excluir do texto a passagem em que admitia o reenvio à legislação interna, ainda que apenas se coerente com os Comentários (OCDE, 2012, p. 3). Confirmou-se, assim, opção pela interpretação dita “autônoma” do “beneficiário efetivo”.

Passo seguinte, o Revised Draft trata de alterar a definição de “beneficiário efetivo” como aquele que detém “direito pleno de usar e gozar” do rendimento recebido, dada a impressão de que a redação seria perigosamente ampla, podendo compreender inúmeras “situações legítimas” (OCDE, 2012, p. 6).

Primeiro, sugestões encaminhadas à OCDE aventaram situações em que o receptor do rendimento não teria pleno direito de uso e gozo, embora pudesse ser considerado o seu “beneficiário efetivo”. Dentre outros, citaram-se os casos de trusts, obrigados a distribuir rendimentos que percebem; de indivíduos obrigados a pagar alimentos; de subsidiárias, que devem distribuir dividendos às suas controladoras; de instituições financeiras, naturalmente firmando operações de crédito como intermediárias (OCDE, 2012, p. 6-8).

Segundo, alegou-se que o teste de “fatos e circunstâncias” para a verificação do direito pleno de usar e gozar dos rendimentos recebidos poderia trazer para o conceito um teste de “propriedade econômica”, com todas as incertezas daí advindas (OCDE, 2012, p. 9). O teste seria, pois, incoerente com a própria definição proposta para o “beneficiário efetivo”, clara na referência a obrigação de natureza legal, contratual ou fiduciária de remeter rendimentos a terceira pessoa.

A OCDE reconheceu a incerteza que a redação originalmente proposta poderia trazer. Com vistas a melhor identificar obrigações aptas a tirar do receptor a condição de “beneficiário efetivo”, a OCDE reformulou, neste ponto, o texto que pretendia incluir nos Comentários.

O Revised Draft exclui a referência a um direito “pleno” de usar e gozar o rendimento recebido como elemento definidor do “beneficiário efetivo”. Para o texto revisado, a definição é dada, primeiro, pela negativa: o receptor de dividendos, juros e royalties não é o “beneficiário efetivo” se o seu direito de usar ou gozar daqueles rendimentos está restringido por obrigação legal ou contratual de remeter a outrem pagamentos provenientes do Estado da Fonte. Afirma-se, então, que o “beneficiário efetivo” estará configurado na hipótese em que o receptor do rendimento tenha direito de usar e gozar que não seja constrangido por uma obrigação legal ou contratual de remeter o pagamento que recebeu.

O Revised Draft mantém que tal obrigação pode ser aferida a partir de “fatos e circunstâncias”. O documento esclarece, todavia, que a obrigação deve sempre manter estrita relação com o rendimento recebido. Não se admite, para a descaracterização do “beneficiário efetivo”, levar em conta obrigação que não diga respeito imediato aos dividendos, juros e royalties recebidos, ainda que resulte na utilização, pelo receptor, dos rendimentos pagos desde o Estado da Fonte para o seu adimplemento. No exemplo do documento, este é o caso de obrigações em que o receptor figura como devedor ou parte em transações financeiras, ou de obrigações de distribuição típicas de fundos de pensão ou de investimento coletivo.

O documento segue a esclarecer, ainda que noutra dicção, que aquele que detém as ações, créditos ou direitos de propriedade intelectual referentes aos rendimentos pagos desde o Estado da Fonte não se confundem, necessariamente, com o “beneficiário efetivo” (OCDE, 2012, p. 6; 9-10).

Comentadores recearam, por fim, que a referência a mecanismos antiabuso na seção dos Comentários destinada ao conceito de “beneficiário efetivo” pudesse ser (mal) versada por autoridades fiscais, como a exigir aplicação daquelas regras na aferição do conceito. O Working Party 1 entendeu que a menção a regras antiabuso não teria o condão de deturpar a noção de “beneficiário efetivo” ali delimitada, e decidiu manter a passagem tal como no Discussion Draft original: os benefícios do Modelo OCDE não se assegurariam automaticamente com presença do “beneficiário efetivo” no outro Estado Contratante, dada a possibilidade de abuso na aplicação dos Artigos 10, 11 e 12 (OCDE, 2012, p. 11).

Em suma, o Revised Discussion Draft trouxe algum refinamento à redação originalmente concebida – especialmente à situação daqueles obrigados, em virtude de débito perante credores, a empenhar e remeter rendimentos provenientes do Estado da Fonte. No resto, o documento manteve e endossou as orientações do Draft anterior.

Em ambos os trabalhos, a OCDE admitiu a dificuldade de se alcançar conceito abrangente e universal de “beneficiário efetivo” que independa do contexto em que utilizado. Sustentou, pois, a peculiaridade de seu emprego no Modelo OCDE, quando comparado a expressões idênticas, em outros instrumentos (OCDE, 2012, p. 13). Mais importante, a OCDE traçou contornos bem delimitados para o conceito, confirmando a incompatibilidade do “beneficiário efetivo” com inúmeros mecanismos e doutrinas antiabuso que a ele se associavam na literatura e jurisprudência.

4.3. A atualização aos Comentários em 2014

Em 2014, as conclusões do Revised Draft foram levadas ao texto dos Comentários ao Modelo OCDE, incorporando-se ao documento.

Os Comentários passaram a trazer, assim, que o conceito de “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE não refere a qualquer sentido técnico ou específico que a expressão possa ter na lei doméstica dos Estados Contratantes. A ênfase na interpretação autônoma do conceito não poderia ser maior.

Acatando os Drafts,os Comentários também firmaram o conceito de “beneficiário efetivo” no direito de uso e gozo dos rendimentos recebidos do Estado da Fonte, sem constrição legal ou contratual, conforme os documentos, fatos e circunstâncias da transação. Se a leitura não é “econômica”, o teste de fatos e circunstâncias não investiga, propriamente, o uso e gozo dos rendimentos, mas o direito de usar e gozar dos dividendos, juros e royalties recebidos (VALLADA, 2015, p. 25 e ss.).

5. O Discussion Draft e a inclusão do “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE

Instado por dois comentadores a deixar claro que o texto sugerido para os Comentários ao Modelo OCDE seria simples esclarecimento, e não verdadeira alteração, o Working Party 1 reconheceu que as alterações propostas eram, mesmo, um “mero esclarecimento sobre a orientação já existente” (OCDE, 2012, p. 16).

A passagem é importante, e traz implícita uma mensagem que não há de ser ignorada por autoridades fiscais e julgadoras que estejam às voltas com o tema. Como bem considerado por outro comentador do Discussion Draft, a assertiva da OCDE, encontrando nas alterações simples “clarification”, pode estimular tribunais, autoridades fiscais ou contribuintes a recorrerem às orientações trazidas a partir de 2011 para solução de litígios eclodidos ainda antes da edição dos documentos (OCDE, 2012, p. 16). Afinal, tratando-se as noções do Discussion Draft de simples esclarecimento do Modelo OCDE, outro não seria o conteúdo ali presente quando da celebração dos acordos de bitributação nela baseados.

Não haveria que se falar, assim, em retroatividade ou interpretação “dinâmica” do acordo. Entender-se que o significado ora proposto pela OCDE para o “beneficiário efetivo” não faz que retomar o seu conteúdo há muito presente no Modelo OCDE tem relevância prática para a interpretação de acordos concluídos antes que uma interpretação “econômica” daquela figura surgisse, seja na jurisprudência, seja pelas mãos da própria OCDE, com as alterações que fez aos Comentários em 2003 (GUTMANN, 2013b, p. 341). É aberta uma via para que os contribuintes cujo status de “beneficiário efetivo” seja discutido perante tribunais argumentem que o conceito deva ser compreendido de forma restrita, mesmo em jurisdições em que prevaleça a interpretação dita “estática” dos acordos de bitributação (i.e. à luz do texto dos Comentários vigentes no momento de sua celebração).

Admitir o esclarecimento de noção já há muito encampada pelo Modelo OCDE repercute, também, no debate sobre a viabilidade de uma interpretação autônoma do conceito de “beneficiário efetivo”, i.e. sem referência ou reenvio ao direito doméstico dos Estados Contratantes. A limitação do conceito aos casos de agentes e representantes seria indício de que aqueles que, em 1977, incluíram o “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE tinham em mente circunstâncias bastante específicas para o emprego da expressão, encontrando-se aí “foundation for some treaty-based definition that prevails over domestic law” (IFA, 2000, p. 16-17). A história do Modelo OCDE, somada ao fato de que inúmeras jurisdições não possuem uma definição legal doméstica de “beneficiário efetivo”, oferece contexto hábil para se rejeitarem reenvios unilaterais pelos Estados Contratantes.

Parece inegável, enfim, a repercussão que a assertiva do Working Party 1, tomando o Discussion Draft por esclarecimento de conteúdo já presente no Modelo OCDE, traz à discussão sobre a configuração do “beneficiário efetivo”. Em verdade, a posição da OCDE encontra fundamentos consistentes, se investigadas as circunstâncias da inclusão do “beneficiário efetivo” no Modelo, ainda em 1977.

5.1. A inclusão do “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE

Com a edição do Modelo OCDE de 1977, pretendeu-se efetivamente que o escopo do “beneficiário efetivo” estivesse limitado a agentes, representantes e empresas-veículo obrigados a imediatamente remeter o rendimento recebido a terceira pessoa (LANG, 2013, § 284). À época, o conceito foi incluído no Modelo OCDE a partir de certa preocupação expressada pela delegação do Reino Unido (BAKER, 2008, p. 5). Entendiam os delegados britânicos que o Modelo de 1963 permitiria que os benefícios ali previstos se estendessem aos rendimentos pagos a “an agent or a nominee with a legal right to the income”.

Buscava-se evitar que um residente em Estado diverso dos Estados Contratantes viesse a se utilizar dos benefícios do acordo de bitributação pela interposição de mero agente ou representante no Estado da Residência. Este foi o foco das discussões travadas a partir de 1968 no Working Party ocupado com a atualização do Modelo 1963, dada a preocupação de que, ausente disposição em contrário no texto, os benefícios do acordo de bitributação poderiam estar disponíveis a agentes ou representantes “simply because of their legal right to the income concerned” (COLLIER, 2011, p. 686).

Revisitando os trabalhos do Working Party 27 na atualização do Modelo de 1963, a pesquisa histórica de Vann (2013, p. 282) encontra a manifestação original da delegação do Reino Unido quando, em 1967, levantou a necessidade de se incluir um conceito de “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE:

“If a ‘subject to tax’ test is not included in these Articles we think that the drafting is defective. The items of income which qualify for relief in the country of source are those which are paid to a resident of the other contracting State. In our view the relief provided for under these Articles ought to apply only if the beneficial owner of the income in question is resident in the other contracting State, for otherwise the Articles are open to abuse by taxpayers who are resident in third countries and who could, for instance, put their income into the hands of bare nominees who are resident in the other contracting State.”1

Em mensagem posterior, de 1969, a delegação do Reino Unido no então Fiscal Committee reiterou a sua preocupação de que a redação dos Artigos 10, 11 e 12 seria “defective” ao permitir sua aplicação a rendimentos pagos “to an agent or a nominee with a legal right to the income”. Duas soluções foram propostas pelos delegados para a questão levantada: (i) a introdução de uma “subject to tax clause”, pela qual o Estado da Fonte apenas abriria mão de competência tributária caso o Estado da Residência tributasse os rendimentos recebidos; ou (ii) a inclusão do conceito de “beneficiário efetivo”.

A aprovação da primeira alternativa acima parecia dificultosa no Working Party 27: em nota, o grupo considerou “contrary to the spirit and the general arrangement” do Modelo OCDE o desejo britânico de se fazer o “relief in the country of source dependent on effective liability to tax in the recipient’s country of resident” (VALLADA, 2015, p. 26). Em 1970, o grupo manifestou sua preferência pela segunda solução sugerida:

“The Working Party recommends the second solution which seems more likely to meet with the general agreement of the Fiscal Committee. The first solution, which is aimed at making relief in the country of source dependent on effective taxation in the country of residence, would be contrary to the spirit and general economy of the Draft Convention and would moreover give rise to difficulties in the appreciation of the concept of effective taxation.

The second solution consists in taking into consideration the State of residence of the beneficial owner [of] the dividends, interest or royalties and in disregarding the State of residence of the person having the receipt of such income, whether so doing in the name an on behalf of the beneficial owner, or in his own name but on behalf of the beneficial owner.

There is no reason to think that the case of the person acting manifestly as an agent in the name and on behalf of the beneficial owner gives rise to any difficulties. It may be otherwise with the trustee acting legally in his own name but on behalf of the beneficial owner.

[…]

The Working Party therefore recommends that there be written into the Model Convention a provision whereby the ‘beneficial owner test’ would be applied.”

Os trabalhos da OCDE demonstram que a concepção original acerca do conceito de “beneficiário efetivo” nada teve a ver com “holding and conduit companies e que tais (VANN, 2013, p. 288). A expressão era relacionada, antes, com agentes, representantes, trustees e semelhantes, tal como veio, de fato, a constar dos Comentários ao Modelo OCDE.

5.2. A posição do Reino Unido

A insistência dos delegados britânicos quanto à necessidade de se incluir o conceito de “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE devia à redação do Artigo 4º do Modelo de 1963, somada a particularidade de legislação doméstica inglesa. Com a combinação de ambos, tornava-se possível que agentes ou representantes de estrangeiros fossem considerados residentes no Reino Unido e, por conseguinte, gozassem dos benefícios dos acordos de bitributação, embora não se sujeitassem à tributação naquele país sobre rendimentos de fonte no exterior (JONES, 2013, p. 333).

No Modelo de 1963, o Artigo 4º (1) ainda não trazia uma sentença – apenas inserida ali em 1977 – estabelecendo que a expressão “resident of a Contracting State” não inclui uma pessoa que apenas se sujeite à tributação (“liable to tax”) naquele Estado sobre rendimentos de fonte local. Ou seja, o Modelo de 1963 admitia fosse considerada “residente” para fins do acordo uma pessoa que não se sujeitasse a qualquer imposição sobre rendimentos de fonte estrangeira, sendo apenas “liable to tax” no Estado Contratante sobre rendimentos de fonte doméstica.

Este era, justamente, o caso da lei tributária britânica então aplicável a agentes, representantes e trustees que estrangeiros porventura mantivessem naquele país (JONES, 2013, p. 336-338). Tal como se costuma definir em Direito Comparado, os rendimentos recebidos do exterior por um agente ou representante de terceiro não são tributáveis em mãos dos intermediários, por terem sido recebidos por conta de outrem e a este atribuídos. Todavia, a lei inglesa, em dispositivo pouco usual, determinava que agentes e representantes fossem tributados sobre os rendimentos que recebessem de fonte doméstica, ainda que em nome e por conta de um terceiro, residente ou não.

Somados o Artigo 4º (1) do Modelo OCDE de 1963 e a legislação britânica, tinha-se que um agente ou representante de terceiro estrangeiro seria “liable to tax” no Reino Unido e, portanto, ali considerado “residente” para fins do acordo de bitributação, embora não estivesse sujeito a qualquer tributação naquele Estado sobre rendimentos que recebesse de fontes estrangeiras. Eis o espaço para que um residente em terceiro Estado, frente a acordo de bitributação concluído pelo Reino Unido, interpusesse um agente ou representante naquele país com o propósito de obter redução de imposto no outro Estado Contratante (i.e. o Estado da Fonte) sem ter de recolher tributo no Reino Unido (i.e. o Estado da Residência) sobre dividendos, juros ou royalties recebidos.

Bem por isso, “subject to tax clauses” constavam de todos os acordos de bitributação concluídos pelo Reino Unido e, a partir do protocolo firmado em 1966 com os Estados Unidos, também o conceito do “beneficiário efetivo” nos Artigos 10, 11 e 12. Se o expediente assim adotado pelos negociadores britânicos já afastava aquela modalidade de treaty shopping, presume-se que a inclusão expressa do “beneficiário efetivo” no Modelo OCDE interessaria ao país por poupar argumentos ou concessões durante a negociação de acordos (JONES, 2013, p. 338).

6. Conclusão

Com certo respaldo na literatura, um conceito amplo ou “econômico” de “beneficiário efetivo” levou autoridades fiscais e judiciais a considerar a figura uma generosa regra antiabuso, supostamente apta ao combate de toda e qualquer forma de treaty shopping (JIMÉNEZ, 2010, p. 52). Daí o mérito da OCDE em rejeitar a sua aplicação irrestrita, limitando o “beneficiário efetivo” – em louvável correspondência com o contexto de sua inclusão no Modelo OCDE e a orientação historicamente contida nos seus Comentários – aos casos em que o receptor dos rendimentos, embora um residente no outro Estado Contratante, encontra-se legal ou contratualmente obrigado a remeter a terceira pessoa os valores que recebeu, sem deles poder gozar ou dar destinação diversa.

Há que se ter cuidado com a pretensão recorrente da OCDE de fazer valer suas considerações de hoje na interpretação de acordos há muito celebrados. Afinal, se é certo que Comentários posteriores que apresentem leitura razoável do Modelo OCDE e não contradigam os termos vigentes podem ser um argumento persuasivo acerca do escopo de determinado artigo, não há razão para crer ter sido aquele o significado adotado pelos negociadores do acordo no passado (WARD et al., 2005, p. 80). Muito pelo contrário, “alterações posteriores aos Comentários não aclaram as intenções dos Estados contratantes quando da conclusão dos tratados”, embora possam ter algum valor interpretativo, posto que limitado e subsidiário, na regra do Artigo 31 (3) da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (LANG; BRUGGER, 2008, p. 211-216).

Sem pretender adentrar esta discussão, o presente artigo serve a evidenciar que as alterações propostas no Discussion Draft da OCDE e incorporadas aos Comentários em 2014, para longe de trazer uma verdadeira reformulação ao conceito de “beneficiário efetivo”, apenas retomam – naquilo que se diz ser uma “reconstrução contemporânea” (GUTMANN, 2013b, p. 341) – figura que, sob perspectiva histórica, sempre possuiu escopo e conteúdo deveras limitados no Modelo OCDE. É difícil falar, aqui, em retroatividade ou interpretação “dinâmica” dos acordos de bitributação.

Aos que temem seja tal postura complacente com o abuso, não se nega que a utilização indevida de acordos há de ser combatida. Inexiste razão, todavia, para que os esforços para se dar limites ao treaty shopping levem à completa distorção do conceito de “beneficiário efetivo” (GUTMANN, 2013a, p. 171). Alargar-se o conceito para além daquelas situações originalmente vislumbradas quando de sua inclusão no Modelo OCDE, em detrimento das orientações dos próprios Comentários, é um convite à confusão e à insegurança trazidas pela jurisprudência internacional recente, sempre pronta a confundir e misturar o conceito com doutrinas antiabuso as mais variadas (VANN, 2013, p. 306).

Caminho menos tortuoso para o enfrentamento do uso indevido dos acordos de bitributação parece ser o oferecido por cláusulas especificamente elaboradas para tanto, i.e. cláusulas específicas antiabuso. É o exemplo da cláusula de limitação de benefícios (“limitation on benefits” ou “LOB”). Concebida pela prática norte-americana de acordos com vistas a combater o treaty shopping, a cláusula LOB, em contraste com o lacônico “beneficiário efetivo”, traz listagem detalhada de critérios para a rejeição dos benefícios do acordo a um residente de um dos Estados Contratantes. A cláusula compreende, dentre outros, indivíduos que estejam fisicamente presentes no outro Estado, empresas de capital aberto cujas ações sejam negociadas em bolsa naquele Estado e empresas de capital fechado que não remetam mais da metade de seu lucro a residente em terceiro Estado (AVI-YONAH, 2007, p. 173).

A simples existência de cláusulas LOB, com suas variações na prática internacional, é evidência de quão restritos são os contornos do conceito de “beneficiário efetivo”. Fosse verdadeiro que a figura seria uma “broad, general anti-treaty-shopping measure”, então desnecessárias – ou redundantes – as sofisticadas cláusulas antiabuso rotineiramente incluídas em acordos de bitributação (BAKER, 2008, p. 9-10). Se inúmeros acordos, mesmo trazendo menção ao “beneficiário efetivo”, também incluem cláusulas específicas contra o abuso, logo se vê que este não se enfrenta de forma irrestrita através da figura (HINNEKENS, 1989, p. 359). Que os esclarecimentos levados aos Comentários do Modelo OCDE possam dar melhores trilhos para a jurisprudência internacional sobre o conceito e a função do “beneficiário efetivo”.

Referências bibliográficas

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1 Cf. VANN, Richard. Beneficial ownership: what does history (and maybe policy) tell us. In: LANG, Michael et al (ed.). Beneficial ownership: recent trends. Amsterdã: IBFD, 2013, p. 282.