Recensão: A global analysis of tax treaty disputes, por Eduardo Baistrocchi (ed.). Cambridge: CUP, 2017, 2 vols., 1588p., ISBN: 9781107142466 e 9781107142473

Luís Eduardo Schoueri

Professor Titular de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP. Vice-Presidente do IBDT.

É possível falar em um Regime Tributário Internacional (“International Tax Regime”)? Visando contribuir para a solução dessa resposta, encontramos a séria pesquisa coordenada pelo Prof. Eduardo Baistrocchi, argentino radicado em Londres, onde leciona na prestigiosa London School of Economics.

Cobrindo o período quase secular entre os primeiros modelos de acordos de bitributação, ainda da lavra da Liga das Nações (1928) e a divulgação do Plano de Ações do BEPS (2015), esta obra de fôlego cumpre a façanha de reunir e examinar leading cases decididos em 27 jurisdições, cobrindo todos os integrantes da OCDE, os países do BRICS e alguns ordenamentos cujas peculiaridades oferecem ao leitor, ao fim e ao cabo, a sensação de estar diante de uma radiografia do “estado da arte” na seara da tributação internacional. Arábia Saudita e Uganda são exemplos de jurisdições pouco referidas na literatura internacional, mas cujas peculiaridades valem a leitura.

O número impressiona: estamos diante de 1610 decisões cuja qualificação, como leading case, adotou interessante critério: somente assim se consideraram os julgados que tenham sido citados em outras decisões ou servido de referência a normas editadas pela Administração.

Longe de mero apanhado de decisões, seu cuidadoso organizador reuniu-as em 116 categorias (“patterns”), o que facilita ao leitor interessado em comparar a forma como situações semelhantes foram enfrentadas por cortes distintas. Algumas decisões, por sua complexidade, acabam enquadradas em mais de uma categoria. Esse recurso permitiu que a obra apresentasse, já em suas primeiras páginas, a denominada “Golden Bridge”, ferramenta de busca que oferece imediato acesso às decisões. Desnecessário dizer que não só o acadêmico, mas principalmente o profissional encontra ali instrumento utilíssimo para se informar. Dividiram-se as categorias em três grandes grupos, a partir dos dispositivos da Convenção Modelo da OCDE (artigos de definição – 1 a 5; artigos substantivos – 6 a 23 e artigos procedimentais – 24 a 31). Assim, no primeiro grupo, encontramos subcategorias como “uso impróprio dos acordos de bitributação”, que dali sofrem novos desdobramentos como, no caso, “normas gerais antiabuso” que se subdivide, chegando, finalmente, aos casos aplicados a “treaty shopping”. Ou seja, por meio desta árvore lógica, chegaremos aos precedentes judiciais que, enfrentando tema do “treaty shopping”, valeram-se de normas gerais antiabuso. Finalmente, nova subdivisão surge, onde se identificam os casos de “treaty shopping” na seara de dividendos (P1), de juros (P2), de ganhos de capital (P3), de transferência indireta de controle (P4), de retenção na fonte (P5). Fica evidente, pelo exemplo, que as 116 categorias decorrem de uma construção lógica, o que muito facilita a pesquisa. Um estudo quantitativo revela que dessas 116 categorias, cinco podem ser consideradas mais relevantes. Basta dizer que 55% dos casos examinados ali se enquadram. São elas: (i) uso inadequado do acordo (26 das 116); (ii) caracterização do rendimento (21 das 116); (iii) preços de transferência (3 das 116); (iv) conflitos sobre a caracterização da fonte (7 de 116); e (v) não discriminação (7 de 116).

O cuidado estende-se aos estudos sobre cada uma das jurisdições pesquisadas. Aqui, encontramos estudos sobre cada uma das jurisdições, que permitem compreender o ordenamento jurídico no qual se proferiram as decisões. A importância prática é imediata. Com efeito, muitas vezes não é fácil compreender a razão por que surgem soluções distintas a situações que, em princípio, estariam na mesma categoria. Conquanto essa divergência possa decorrer das próprias vicissitudes da problemática jurídica, no mais das vezes a explicação para resultados díspares vem de razão mais comezinha: leis domésticas distintas, ou histórico jurisprudencial levam as cortes a entendimentos diversos.

Também aos acadêmicos os relatórios nacionais prestam serviço ímpar: estruturados de forma idêntica, permitem a aplicação da metodologia do direito comparado, facilitando o confronto de soluções domésticas para situações análogas. O confronto fica ainda mais facilitado porque, no final de cada relatório nacional, encontra-se um questionário, repetido todas as vezes, com as respectivas respostas nacionais. Abre-se, daí, a possibilidade de um raciocínio matricial para a compreensão global do problema.

Voltando à pergunta inicial: existe um Regime Tributário Internacional? A presente obra não deixa dúvidas de que há uma grande convergência no que se refere aos acordos de bitributação. Não causa surpresa essa afirmação, dada a notória influência das convenções modelo, hoje capitaneadas pelo competente trabalho da OCDE. Mesmo aqueles modelos que se desviam do primeiro, fazem-no sem abrir mão da estrutura original. Klaus Vogel já falava em uma linguagem comum que caracteriza a disciplina do Direito Tributário Internacional: expressões como “estabelecimento permanente”, “procedimento amigável” e quejandos são correntes nas diversas convenções1. De tal modo consolidou-se uma linguagem do Direito Tributário Internacional (“international tax language” ou “tax treaty language”), que nem mesmo a OCDE ousa dela desviar-se. Basta ver que conquanto tenha sido revogado o art. 14 da Convenção Modelo, não se mudou a numeração dos demais dispositivos. Afinal, já fazia parte dessa linguagem a mera referência ao art. 15, por exemplo, para que o especialista na matéria, qualquer que fosse sua nacionalidade, imediatamente pensasse em “profissões dependentes” (outra expressão de nossa linguagem). Fosse feita uma renumeração, então todo o trabalho de sedimentação seria retomado.

Seria essa convergência sinal suficiente para a existência de um Regime Tributário Internacional? Penso que não. Mais uma vez, recorro a Klaus Vogel, quando versou sobre os “parallel treaties”: o professor se propunha a investigar se a existência de similitudes entre acordos de bitributação seria suficiente para que se tomassem conclusões extraídas de um determinado acordo para se concluir acerca da interpretação de dispositivo de outro tratado. Alertava o autor que não se deve cair na tentação de se crer que, porque a linguagem dos acordos é similar e a estrutura é repetida, tem-se por isso um só texto2. É erro elementar acreditar que quem já viu um acordo, viu todos. Ao contrário, o doutrinador lembrava que cada acordo é objeto de uma dura negociação, em que concessões são feitas de lado a lado. Ou seja, ainda que se conclua que um elevado percentual de palavras dos acordos de bitributação se repita, e mesmo em se afirmando que tais palavras são as mesmas empregadas nas convenções modelo, isso em nada afasta a afirmação necessária de que cada acordo de bitributação é único. Se 80% das palavras se repetem, serão os restantes 20% que identificarão o equilíbrio encontrado num acordo de bitributação em particular.

Poder-se-ia alegar que conquanto se encontrem diferenças, ainda assim, em grossas linhas se teria um único regime tributário internacional. É possível, sem dúvida, que sistemas se formem a partir de muitos princípios, mesmo contraditórios. Um sistema não precisa ser unitário. Entretanto, a ideia de um regime tributário internacional parece implicar um mínimo de consistência, i.e., princípios que se observem de modo constante.

Reuven Avi-Yonah, ao propor o Regime Tributário Internacional, não fugiu dessa diretriz. Enxergou no princípio da tributação única (“Single Tax Principle”) e no do benefício (“Benefits Principle”) as constantes que afirmariam a existência daquele Regime3.

Compulsando a presente obra, não parece que se pode dar por confirmada a hipótese do professor de Michigan. Afinal, muitas das decisões analisadas resultaram em bitributação e outras tantas implicaram inexistência de qualquer ônus. Aliás, num provocativo ensaio inserido no segundo volume da obra, Jinyan Li demonstra que não só é possível a dupla não tributação como, a partir da combinação de diversos acordos e regimes domésticos diversos, chega-se à tripla não tributação. A autora traz o exemplo de uma empresa canadense com subsidiárias em Hong Kong e na China, sendo a última a empresa operacional que paga juros e royalties (dedutíveis) para a subsidiária em Hong Kong, sujeitos à retenção na fonte de 7%. Hong Kong, por adotar a territorialidade, não tributa rendimentos provenientes do exterior e o Canadá tampouco os tributa porque tais juros e royalties são considerados rendimentos empresariais, fora, portanto, de suas regras CFC, enquanto os dividendos provenientes de Hong Kong são isentos, porque a legislação doméstica canadense assegura a isenção de dividendos provenientes do exterior, desde que provenientes de uma jurisdição com a qual o Canadá mantenha um acordo de bitributação. Nesse caso, haverá apenas a tributação chinesa na fonte e nenhum outro imposto será cobrado. O texto apresenta outro exemplo no qual nem mesmo os 7% são devidos. Desmente-se, daí, a observância generalizada do princípio da tributação única.

Tampouco o princípio do benefício parece ter aplicação uniforme. Basta ver a diversidade de tratamento de matérias como royalties e serviços técnicos para que se constate a inexistência de consenso quanto a quem tem a legitimidade para tributar. O que se constata – como já alertado acima – é que longe de refletirem princípios gerais, as regras de repartição constantes dos acordos de bitributação são, sim, objeto de negociação, onde os interesses das partes exerce papel relevante. Tais interesses começam, obviamente, pela busca da maior fatia da tributação, mas não se limitam a tanto, já que outros interesses, como a atração de investimento, podem levar Estados a abrir mão da tributação, desde que em benefício do investidor.

Se não convence quanto à existência de um Regime Tributário Internacional, a obra contribui, e muito, para a compreensão da metalinguagem que se desenvolveu no Direito Tributário Internacional. Chega em boa hora, pois marca o fim de um período (o período pré-BEPS), oferecendo base segura que serve de ponto de partida para a compreensão do cenário internacional que surgirá doravante.

1 Cf. VOGEL, Klaus. Double tax treaties and their interpretation. Berkeley Journal of International Law v. 4, n. 1, 1986, p. 35.

2 Cf. VOGEL, Klaus. Abkommensvergleich als Methode bei der Auslegung von Doppelbesteuerungsabkommen. Steuerberater-Jahrbuch. Colônia: Otto Schmidt, 1983-1984, p. 377-378.

3 AVI-YONAH, Reuven S. International tax as international law: an analysis of the international tax regime. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 8-9.