Os Rendimentos Provenientes de Títulos Públicos e o Acordo de Bitributação Celebrado entre o Brasil e a Espanha

Income Derived from Public Bonds and the Tax Treaty Signed between Brazil and Spain

Ramon Tomazela Santos

Doutorando e Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo – USP. Master of Laws (LL.M.) em Tributação Internacional na Universidade de Viena (Wirtschaftsuniversität Wien – WU), Áustria. Professor convidado do Curso de Pós-graduação em Direito Tributário Internacional do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Advogado em São Paulo. E-mail: ramon.tomazela@marizadvogados.com.br.

Resumo

O presente estudo versa sobre a classificação dos juros provenientes de títulos públicos emitidos pelo Instituto de Crédito Oficial Entidad Pública Empresarial no acordo de bitributação celebrado pelo Brasil e a Espanha, notadamente no que diz respeito à participação de uma instituição financeira custodiante como intermediária e o seu eventual impacto para a aplicação da competência exclusiva atribuída ao Estado da fonte para a tributação dos respectivos valores.

Palavras-chave: acordos de bitributação, juros provenientes de títulos públicos, instituição financeira custodiante.

Abstract

The present study deals with the classification of interest derived from public bonds issued by the Instituto de Crédito Oficial Entidad Pública Empresarial in the double tax treaty concluded by Brazil and Spain, notably with regard to the participation of a custodian financial institution in the transaction and its potential impact on the application of the exclusive taxing rights attributed to the source State for the taxation of the respective amounts.

Keywords: double tax treaties, interest derived from public bonds, custodian financial institution.

1. Introdução

O presente artigo aborda o debate relativo à possibilidade de incidência do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (“IRPJ”) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (“CSLL”) sobre os juros recebidos por pessoas jurídicas residentes no Brasil que investem em títulos da dívida pública emitidos pelo Instituto de Crédito Oficial Entidad Pública Empresarial (“ICO”), entidade estatal da área financeira do governo Espanha.

O cerne da controvérsia, que chegou a ser analisada pela 1ª Turma Ordinária, da 2ª Câmara da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), no Acórdão n. 1201-001.919, de 18 de outubro de 2017, deriva do fato de que os títulos emitidos pelo ICO são custodiados por instituições financeiras, que podem residir na Espanha ou em outros Estados. Na visão da turma julgadora, a intermediação realizada por instituição financeira poderia afastar a aplicação art. 11, § 4º, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha1, que atribui competência privativa ao Estado da fonte para a tributação dos juros provenientes de títulos de dívida emitidos pelo governo de um Estado Contratante ou por qualquer agência de sua propriedade.

Opondo-se à decisão proferida pelo CARF, o presente artigo pretende demonstrar que o conceito de juros empregado no acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha alcança a remuneração paga em virtude de investimentos em títulos da dívida pública, incluindo nesse conceito os títulos emitidos pelo ICO, independentemente de eventual serviço de custódia prestado por instituição financeira intermediária.

2. A estrutura cedular dos acordos de bitributação

Como se sabe, os acordos de bitributação contêm uma estrutura cedular, por meio da qual os diferentes tipos de rendimentos são elencados em regras distributivas que atribuem o poder de tributar aos Estados contratantes.

Assim, uma vez atendidos os pressupostos indispensáveis para a aplicação do tratado internacional (escopo subjetivo e escopo objetivo), o rendimento deve, obrigatoriamente, ser classificado em uma das regras distributivas do acordo de bitributação celebrado entre os dois países, a saber:

– Rendimentos de bens imóveis (art. 6º)

– Lucros das empresas (art. 7º)

– Navegação marítima e tráfego aéreo (art. 8º)

– Dividendos (art. 10)

– Juros (art. 11)

Royalties (art. 12)

– Ganhos de capital (art. 13)

– Profissões independentes (art. 14)

– Profissões dependentes (art. 15)

– Remuneração de diretores (art. 16)

– Artistas e desportistas (art. 17)

– Pensões (art. 18)

– Funções governamentais (art. 19)

– Estudantes (art. 20)

– Outros rendimentos (art. 21)

– Capital (art. 22)

Além das regras distributivas acima, os acordos de bitributação contêm regras específicas para os métodos de alívio à dupla tributação (art. 23), bem como outras regras especiais, que tratam da não discriminação (art. 24), do procedimento amigável (art. 25), da troca de informações (art. 26), da assistência na cobrança de tributos (art. 27), dos membros de missões diplomáticas (art. 28) e da extensão territorial (art. 29).

Essa estrutura cedular pressupõe a classificação dos rendimentos oriundos de operações internacionais em uma das regras distributivas. Logo, desde que atendidos os pressupostos para a aplicação do acordo de bitributação, o rendimento deve ser classificado em uma das regras distributivas para a alocação do poder de tributar.

3. Os rendimentos de títulos públicos e o conceito de juros

O art. 11, § 3º, da Convenção Modelo da OCDE define como juros os rendimentos derivados de créditos de qualquer natureza, com ou sem garantia hipotecária, que contenham, ou não, o direito de participar nos lucros do devedor, em especial os rendimentos de títulos da dívida pública, títulos e debêntures, inclusive os respectivos prêmios. Para facilitar a compreensão, transcreve-se trecho da cláusula convencional:

“The term ‘interest’ as used in this Article means income from debt-claims of every kind, whether or not secured by mortgage and whether or not carrying a right to participate in the debtor’s profits, and in particular, income from government securities and income from bonds or debentures, including premiums and prizes attaching to such securities, bonds or debentures. Penalty charges for late payment shall not be regarded as interest for the purpose of this article.”2

A parte decisiva da definição de juros constante do art. 11, § 3º, da Convenção Modelo da OCDE repousa no significado da expressão “rendimentos derivados de créditos de qualquer natureza” (income from debt-claims of every kind)3. Essa parte da redação convencional contém o núcleo do conceito de juros, assim entendido o critério essencial para a identificação de um objeto e para a sua classificação em determinada categoria.

No § 21 dos Comentários ao art. 11 da Convenção Modelo, a OCDE assevera que a definição de juros alcança praticamente a totalidade dos rendimentos classificados como juros nas leis internas dos Estados contratantes4. Essa afirmação deriva do fato de que o conceito de juros, em seu sentido comum, representa uma forma de remuneração do custo do capital no tempo, geralmente fixada a partir de um percentual periódico sobre o valor do principal5. Porém, no âmbito da Convenção Modelo da OCDE, a definição de juros é mais ampla, na medida em que alcança diferentes formas de remuneração do capital6, que podem ser baseadas em percentuais fixos, em critérios flutuantes ou, ainda, dependentes da apuração de lucros7. Daí a ideia de que a definição convencional de juros abrange a totalidade dos rendimentos tratados como juros nas leis internas dos Estados contratantes8.

Especificamente em relação ao acordo de bitributação celebrado entre Brasil e Espanha, cabe pontuar que o seu art. 11, § 5º, dispõe que o conceito de juros abrange a remuneração dos títulos da dívida pública, evitando, assim, eventuais problemas denotativos que poderiam surgir na aplicação dessa cláusula convencional9. Veja-se:

“5. O termo ‘juros’ usado no presente artigo compreende os rendimentos da Dívida Pública, dos títulos ou debêntures, acompanhados ou não de garantia hipotecária ou de cláusula de participação nos lucros, e de créditos de qualquer natureza, bem como qualquer outro rendimento que, pela legislação tributária do Estado Contratante de que provenham, seja assemelhado aos rendimentos de importâncias emprestadas.”

Adiante, o § 8º do art. 11 do acordo de bitributação celebrado entre Brasil e Espanha prevê que os juros serão considerados provenientes de um Estado Contratante quando o devedor for o próprio Estado, uma de suas subdivisões políticas, uma de suas entidades locais ou um residente desse Estado.

Visto que o rendimento decorrente da aquisição de títulos da dívida pública deve ser classificado como juros no âmbito do art. 11 do acordo de bitributação celebrado entre Brasil e Espanha, cumpre-se analisar, a seguir, as restrições previstas nessa cláusula convencional ao exercício do poder de tributar por parte dos dois Estados Contratantes.

4. A competência privativa para a tributação dos juros decorrentes de títulos da dívida pública da Espanha

O art. 11, § 1º, do acordo de bitributação celebrado entre Brasil e Espanha estabelece que os juros provenientes de um Estado Contratante (v.g., Espanha) e pagos a um residente do outro Estado Contratante (v.g., Brasil) são tributáveis nesse outro Estado (v.g., Brasil).

Além da tributação pelo Estado da residência, o art. 11, § 2º, do referido acordo de bitributação dispõe que os juros podem ser tributados no Estado Contratante de onde provém o rendimento (v.g., Espanha), à alíquota máxima de 15% sobre o valor bruto dos juros.

Assim, o acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha, seguindo a Convenção Modelo da OCDE, prevê a competência cumulativa para a tributação dos juros. O Estado da fonte pode tributar os juros à alíquota de 15% sobre o valor bruto remetido (tratamento analítico), ao passo que o Estado da residência poderá tributar a renda universal do contribuinte, com o cômputo dos juros recebidos e a concessão de crédito em relação ao imposto pago no Estado da fonte (tratamento sintético)10.

A despeito da regra geral acima, é importante notar que os acordos de bitributação não constituem, por si só, a obrigação tributária. Ao contrário, os acordos de bitributação limitam-se a indicar o Estado competente para tributar determinado rendimento que guarde conexão com ambos Estados Contratantes11. Porém, a tributação efetiva sempre será realizada com base no direito interno do Estado competente, em virtude da insuficiência da norma convencional para constituir a obrigação tributária12.

Sendo assim, embora o art. 11, § 2º, do acordo de bitributação autorize a Espanha a tributar os juros provenientes de fontes localizadas em sua jurisdição, o art. 14, alínea “d”, do Real Decreto Legislativo n. 5/2004 prevê que os pagamentos realizados a não residentes, a título de juros provenientes de títulos da dívida pública espanhola, estão isentos de imposto de renda retido na fonte, desde que o beneficiário dos rendimentos não possua um estabelecimento permanente naquele país13-14. Por isso, os juros provenientes dos títulos de dívida pública emitidos pelo ICO não estarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte.

Passando para a perspectiva do Brasil, na condição de Estado da residência, é importante notar que, como regra geral, os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior, tal como juros decorrentes da aquisição de títulos da dívida pública de outros países, devem ser computados na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL das pessoas jurídicas residentes no País, nos termos do art. 25 da Lei n. 9.249/1995 e do art. 21 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001.

Assim, como regra geral, os juros recebidos por uma pessoa jurídica residente no Brasil, em razão de investimento realizado em instrumentos financeiros emitidos por uma sociedade residente na Espanha, estão sujeitos à incidência do IRPJ e da CSLL no Brasil.

No entanto, como exceção à regra geral acima, o art. 11, § 4º, alíneas “a” e “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha estabelece duas hipóteses em que os juros provenientes de um Estado Contratante estão sujeitos à competência privativa, a saber:

i) os juros provenientes de um Estado Contratante e pagos ao governo do outro Estado Contratante, a uma de suas subdivisões políticas ou a qualquer agência de sua propriedade exclusiva, somente podem ser tributados no Estado da residência; e

ii) os juros da dívida pública, dos títulos ou debêntures emitidos pelo Governo de um Estado Contratante ou por qualquer agência de sua propriedade, somente podem ser tributados no Estado da fonte.

Para o propósito do presente artigo, é importante examinar a competência exclusiva atribuída ao Estado da fonte para a tributação dos juros oriundos de títulos da dívida pública emitidos por um Estado. Veja-se:

“4. Não obstante o disposto nos parágrafos 1 e 2:

[...]

b) os juros da dívida pública, dos títulos ou debêntures emitidos pelo Governo de um Estado Contratante ou por qualquer agência (inclusive uma instituição financeira) de propriedade desse Governo, só são tributáveis nesse Estado.”

A cláusula convencional em questão tem origem na chamada “cortesia internacional”, derivada das relações diplomáticas e da própria concepção histórica do conceito de soberania, por meio da qual se considerava que os rendimentos provenientes de títulos públicos apenas deveriam ser tributados pelo Estado da fonte, como forma de evitar uma pressão para o aumento da taxa de juros para a atração de investidores estrangeiros15.

Dessa forma, atendidos os pressupostos para a aplicação do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha, os juros recebidos por residente no Brasil, em decorrência de investimento em títulos da dívida pública da Espanha, somente podem ser tributados na Espanha.

Observe-se que a aplicação dessa cláusula convencional independe da efetiva tributação dos juros no Estado da fonte. No caso, o acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha limita, incondicionalmente, a jurisdição do Brasil para tributar os juros decorrentes dos títulos da dívida pública da Espanha, atribuindo exclusivamente a esse país o poder para tributar – ou deixar de tributar – os juros decorrentes dessas operações.

5. A intermediação dos títulos públicos por instituição financeira custodiante

A questão que se coloca, neste ponto, diz respeito à possibilidade de aplicação da competência privativa do Estado da fonte para a tributação dos juros provenientes de títulos públicos nos casos em que há a intermediação da operação por uma instituição financeira custodiante dos títulos.

A dúvida surge em virtude da decisão proferida pela 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), no Acórdão n. 1201-001.919, de 18 de outubro de 2017, no qual, por maioria de votos, entendeu-se que, para a aplicação da competência privativa atribuída ao Estado da fonte, seria necessário que os remetentes dos rendimentos do título público fossem residentes no país signatário do acordo de bitributação. Confira-se trecho da ementa da decisão:

“Juros recebidos do exterior. Convenção internacional para evitar a dupla tributação. Os juros recebidos no resgate de títulos da dívida pública emitidos pelo governo da Áustria e de commercial papers emitidos por agência do governo da Espanha, países com os quais o Brasil assinou Convenções para evitar a dupla tributação, somente são isentos do imposto de renda no Brasil se for comprovado que os remetentes dos rendimentos são residentes naqueles países.”

De acordo com o voto proferido pelo conselheiro Roberto Caparroz, para efeito de aplicação do art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha, os juros deveriam ser pagos pelo próprio governo espanhol ou, ao menos, por agente residente naquele país, sendo descabida a pretensão de estender a competência privativa prevista em tal cláusula convencional para os casos em que o pagamento é feito por intermédio de terceiros residentes em outro Estado.

Além disso, o voto vencedor acrescenta que o fato de a instituição financeira custodiante atuar como mera intermediária seria insuficiente para garantir a aplicação da limitação ao poder de tributar os juros provenientes de títulos públicos, tendo em vista que a residência do intermediário estava estabelecida em um terceiro Estado. Assim, na visão da turma julgadora, o caso em questão envolveria um problema de jurisdição, pois o acordo de bitributação firmado entre o Brasil e a Espanha não poderia alcançar o negócio jurídico celebrado entre uma pessoa jurídica no Brasil e a instituição financeira custodiante sediada em um terceiro Estado.

Como se pode observar, a turma julgadora do CARF atribuiu relevância à residência do agente de custódia para determinar se os juros derivados de títulos da dívida pública seriam ou não tributáveis apenas no Estado da fonte. Vide, nesse sentido, trecho do voto vencedor:

“Entretanto, para que possam ser aplicados os dispositivos dos artigos 11, 3.b (Convenção Áustria) e 11, 4.b (Convenção Espanha), que permitiriam a tributação dos juros apenas nos países emitentes, é necessário que os juros sejam pagos pelos próprios governos ou, ao menos, por agentes residentes naqueles países, sendo descabida a pretensão de estender tal tratamento quando o pagamento decorre de terceiros residentes em outro Estado.

[...]

Na hipótese, pouco importa se os títulos são do governo austríaco ou do ICO espanhol poderiam ser emitidos por qualquer país, visto que releva, para a aplicação dos correspondentes tratados, o conceito de residência das partes.”

O voto vencedor também fundamentou a não aplicação da competência exclusiva conferida ao Estado da fonte para a tributação dos juros provenientes de títulos públicos no item III da Portaria MF n. 45/1976, que disciplina os métodos de aplicação do tratado internacional assinado entre o Brasil e a Espanha. Segundo essa Portaria, a limitação de competência ora examinada não se aplica aos juros pagos a “agências ou sucursais de empresas ou bancos espanhóis não situadas na Espanha, nem a agências ou sucursais situadas na Espanha de empresas ou bancos domiciliados em terceiros Estados”.

Com a devida vênia, o entendimento manifestado pelo CARF no Acórdão n. 1201-001.919 merece uma análise crítica.

Em primeiro lugar, o acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha não condiciona a aplicação da competência privativa do Estado da fonte prevista para os juros decorrentes de títulos da dívida pública ao pagamento direto da remuneração dos títulos, sem a presença de qualquer instituição financeira custodiante. Ao contrário, para efeito de aplicação do art. 11, § 8º, do referido acordo de bitributação, basta que o beneficiário residente no outro Estado contratante receba juros provenientes de títulos públicos emitidos pelo outro Estado contratante, uma de suas subdivisões políticas ou uma de suas instituições financeiras locais.

O devedor de um título público mantido sob a custódia de uma instituição financeira é o Estado responsável por sua emissão, e não a instituição financeira custodiante, como entendeu o CARF no Acórdão n. 1201-001.919. Sob o ponto de vista jurídico, a custódia de títulos consiste em atividade exercida por instituição financeira, que assume a obrigação não apenas de guardá-los e conservá-los16, mas também de administrá-los17.

Segundo Nelson Abrão, a instituição financeira custodiante possui um dever de gestão dos títulos e de representação dos seus investidores, mediante uma espécie de mandato legal18. No caso de contrato de custódia de títulos que produzem rendimentos, Arnoldo Wald aponta que a instituição financeira deve receber o valor do rendimento e repassá-lo ao seu cliente. Daí a existência de um contrato de depósito simples para a guarda dos títulos ou valores mobiliários, conjugado com um contrato de mandato19.

A título de ilustração, é oportuno mencionar que o art. 24, parágrafo único, da Lei n. 6.385/1976 regulamenta expressamente a atividade de custódia de valores mobiliários, como se pode verificar a seguir:

“Art. 24. Compete à Comissão autorizar a atividade de custódia de valores mobiliários, cujo exercício será privativo das instituições financeiras, entidades de compensação e das entidades autorizadas, na forma da lei, a prestar serviços de depósito centralizado.

Parágrafo único. Considera-se custódia de valores mobiliários o depósito para guarda, recebimento de dividendos e bonificações, resgate, amortização ou reembolso, e exercício de direitos de subscrição, sem que o depositário, tenha poderes, salvo autorização expressa do depositante em cada caso, para alienar os valores mobiliários depositados ou reaplicar as importâncias recebidas.”

Como se vê, a instituição financeira custodiante atua como um mero intermediário entre o ICO e a pessoa jurídica residente no Brasil, recebendo eventuais valores para imediato repasse ao depositante. Assim, o emissor do título público mantém a condição de devedor na relação jurídica original, o que torna a residência da instituição financeira custodiante irrelevante para fins de aplicação do art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha.

Isso é assim porque a instituição financeira custodiante não passa a ser a titular do investimento nos títulos públicos emitidos pelo ICO. A pessoa jurídica no Brasil é a verdadeira subscritora dos títulos públicos emitidos pelo ICO, como consta expressamente do prospecto de emissão, no qual a instituição financeira custodiante figura como mera depositária. É por isso que a pessoa jurídica no Brasil detém os direitos inerentes à propriedade jurídica do investimento, podendo usar, fruir e dispor do título público.

Ora, se o direito à remuneração proveniente do título público não é transferido à instituição financeira custodiante, é evidente que a competência privativa outorgada ao Estado da fonte pelo art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha não deixa de ser aplicável ao caso ora examinado, no qual a plena propriedade do título público, com todos os seus atributos, continua no patrimônio da pessoa jurídica do Brasil, que é a verdadeira beneficiária da respectiva remuneração.

Observe-se que, mesmo que se considere que a instituição financeira custodiante reside em um terceiro Estado, esse aspecto não deve afetar a alocação do rendimento proveniente do título público para a pessoa jurídica residente no Brasil, que figura como a efetiva titular do rendimento.

A situação bilateral, para efeito de aplicação do art. 11 do acordo de bitributação, surge entre a pessoa jurídica residente no Brasil e o ICO, pois o contrato de custódia envolve, por definição, a guarda e a conservação de coisas alheias20. É o que leciona Lauro Muniz Barreto, para quem a instituição financeira custodiante deve promover tempestivamente o recebimento de juros, rendimentos ou frutos civis dos títulos depositados, para posterior repasse ao respectivo cliente, bem como adotar as medidas necessárias para a conservação dos respectivos valores, para todos os efeitos legais21.

Nesse ponto, andou bem o voto do Conselheiro Luis Henrique Marotti Toselli, o qual atribuiu relevância à figura do emissor do título público para fins de aplicação da isenção, sustentando ser indiferente a residência da entidade custodiante do título. Veja-se trecho de sua declaração de voto:

“O critério jurídico para identificar a origem do pagamento dos juros, portanto, deve partir da análise da residência da entidade que possui o ônus econômico da obrigação de pagar os juros contratados, o que ordinariamente ocorre na figura do emissor do título.

Nessa situação particular, entendo que restou comprovado que os juros cuja tributação no Brasil restou mantida pela maioria deste Colegiado são provenientes dos commercial papers emitidos pelo ICO, entidade vinculada ao governo da Espanha.

A instituição financeira (ING Bank NV) atuou como mera custodiante desse ativo. O local de sua residência, no caso Holanda, é irrelevante para fins de definir o correto tratamento fiscal.”

Em segundo lugar, cabe destacar que não se pode exigir que o pagamento dos juros seja realizado diretamente pelo governo espanhol, em violação às normas regulatórias espanholas aplicáveis ao caso concreto.

De fato, a aquisição de títulos da dívida pública da Espanha, por questões regulatórias previstas na legislação espanhola, pressupõe a intermediação por instituição financeira custodiante, não sendo possível o recebimento direto dos juros oriundos dos títulos do governo espanhol. Isso é assim porque os Estados comumente utilizam instituições financeiras especializadas para auxiliarem no processo de distribuição de seus títulos públicos, que funcionam como um elo de aproximação com os investidores.

Sendo esse o caso, não se pode interpretar o art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha ignorando a realidade das regras regulatórias espanholas.

A interpretação do acordo de bitributação deve ser realizada em sintonia com a realidade do mercado ou do ambiente econômico no qual os títulos públicos emitidos pela Espanha estão inseridos, sob pena de se criar um paradoxo insuperável: a competência privativa do Estado da fonte, prevista no tratado internacional, jamais será aplicável, pois não se pode investir em títulos públicos sem a intermediação de uma instituição financeira.

Nessa linha, o próprio princípio da efetividade do acordo de bitributação (ut res magis valeat quam pereat), que encontra amparo nos arts. 27 e 28 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, recomenda que o art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação firmado entre o Brasil e a Espanha seja interpretado de forma a permitir que a sua finalidade seja atingida, privilegiando-se, assim, a “cortesia internacional” derivada das relações diplomáticas e a intenção de atrair investidores estrangeiros sem a necessidade de aumento excessivo da taxa de juros.

Sob o enfoque do acordo de bitributação, o essencial é que os recursos financeiros sejam investidos em títulos públicos emitidos pelo governo espanhol. A forma de realização do investimento, a exigência de intermediação por parte de instituição financeira custodiante e as obrigações específicas que disciplinam o investimento devem seguir as diretrizes da legislação espanhola, sem a possibilidade de restrição do alcance e do escopo objetivo da cláusula convencional por vontade do intérprete.

Não se pode, portanto, entender que o art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha exige que o investidor no Brasil viole as regras regulatórias da Espanha, que determinam a intermediação por parte de uma instituição financeira, para que a competência privativa conferida ao Estado da fonte seja aplicável. Do contrário, estar-se-á privilegiando uma interpretação míope e distorcida do tratado internacional, que apenas enxerga a intermediação realizada pela instituição financeira custodiante, sem considerar a finalidade e a fundamentação da regra distributiva que confere competência exclusiva ao Estado da fonte.

A pessoa jurídica no Brasil investiu em um título público emitido pelo ICO, submetendo-se às regras previstas na legislação espanhola e aos riscos inerentes ao respectivo instrumento financeiro. Consequentemente, não há qualquer justificativa plausível para a não qualificação dos respectivos juros no art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha, que atribui competência exclusiva à Espanha.

Em terceiro lugar, é interessante mencionar que o acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha não contém cláusula de beneficiário efetivo, o que dispensaria uma análise pormenorizada do papel exercido pela instituição financeira custodiante na operação.

Porém, ainda que se adotasse a visão de que o conceito de beneficiário efetivo deriva da interpretação da expressão “pagos a um residente do outro Estado Contratante”22, é certo que a instituição financeira custodiante não poderia ser considerada a beneficiária efetiva dos juros, em razão da sua obrigação de repassar o rendimento para o verdadeiro titular, que investiu nos títulos públicos emitidos pelo ICO.

Sem entrar nas inúmeras controvérsias envolvidas no tema, é possível afirmar que o beneficiário efetivo detém parte substancial dos atributos do direito de propriedade (usar, gozar e dispor) relativo ao rendimento recebido, que integra o seu patrimônio próprio sob o ponto de vista jurídico. Assim, o beneficiário efetivo tem a possibilidade de usufruir, por conta própria, do valor do rendimento recebido, com autonomia e poder de decisão23, sem atuar como mero agente, representante ou mandatário.

Como ensina Ekkehart Reimer, nos casos em que o destinatário formal do rendimento deve repassar o pagamento ou ativo equivalente a um terceiro, ele não deverá ser considerado o beneficiário efetivo24.

Em situações triangulares, é importante lembrar que os benefícios de eventual acordo de bitributação celebrado entre o Estado da fonte e o terceiro Estado, no qual está localizado o beneficiário efetivo, permanecem aplicáveis caso os pressupostos para acesso aos seus benefícios (treaty entitlement) sejam cumpridos. Essa interpretação, que deriva do fato de que todos os acordos de bitributação envolvidos nas situações triangulares devem ser aplicados, está consagrada expressamente no § 11 dos Comentários da OCDE ao art. 11 da Convenção Modelo, segundo o qual as limitações ao poder de tributar do Estado da fonte permanecem aplicáveis quando um intermediário é interposto entre a fonte pagadora e o beneficiário efetivo, que reside em um terceiro Estado. Confira-se:

“11. Subject to other conditions imposed by the Article and the other provisions of the Convention, the limitation of tax in the State of source remains available when an intermediary, such as an agent or nominee located in a Contracting State or in a third State, is interposed between the beneficiary and the payer but the beneficial owner is a resident of the other Contracting State [...].25

Vale ressaltar que essa posição a respeito da aplicação do acordo de bitributação celebrado com terceiros Estados vem sendo adotada pela jurisprudência da Espanha, como se pode verificar das decisões proferidas no caso Goldman Sachs (RC 6294/1996, de 22 de setembro de 2000) pelo Tribunal Económico-Administrativo Central e pelo Tribunal Audiencia Nacional26.

E nem poderia ser diferente, uma vez que o racional do conceito de beneficiário efetivo consiste em impedir que pessoas jurídicas interpostas tenham acesso aos benefícios do acordo de bitributação27. A instituição financeira custodiante pode eventualmente perder o direito de acesso a determinados benefícios de um possível acordo de bitributação celebrado entre o seu país de residência e a Espanha, mas a pessoa jurídica residente no Brasil preserva o direito de invocar o art. 11, § 4º, alínea “b”, do tratado internacional firmado entre o Brasil e a Espanha, em virtude de sua posição de investidora nos títulos de dívida pública emitidos pelo ICO.

Dessa forma, ainda que houvesse o conceito de beneficiário efetivo no acordo de bitributação firmado entre o Brasil e a Espanha, é certo que a pessoa jurídica no Brasil seria considerada a beneficiária efetiva dos juros provenientes dos títulos públicos. Sendo assim, uma vez cumpridos pressupostos indispensáveis para a aplicação do tratado internacional em questão, a limitação ao poder de tributar prevista no art. 11, § 4º, alínea “b”, permaneceria aplicável ao caso ora examinado.

Essa constatação é importante porque a ausência do conceito de beneficiário efetivo no acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha não deve levar a um resultado ilógico, no qual o efetivo titular dos juros provenientes dos títulos públicos não teria acesso aos benefícios que teria caso o art. 11 contemplasse o conceito de beneficiário efetivo. Em tais situações, que conduzem a resultados absurdos, Werner Haslehner sustenta que a expressão “pagos a um residente do outro Estado Contratante” deve ser interpretada como uma referência ao beneficiário efetivo. Veja-se:

“Indeed, it is very unlikely that such a problem would surface in practice, as it is usually the immediate recipient who will be entitled to, perhaps greater, treaty benefits [...]. If that was considered a problem, however, [...] one may interpret the term ‘paid to’ as always referring to the ‘beneficial owner’, thus creating the situation where ‘such interest’ only refers to interest paid to the ‘beneficial owner’ of the other Contracting State and who is not the ‘beneficial owner’ under the DTC.”28

Por fim, é oportuno mencionar, ainda, que o caso ora examinado envolve justamente uma situação em que o Estado de residência deve efetuar a alocação do rendimento em uma das regras distributivas do tratado internacional, para verificar eventuais restrições ao seu direito de tributar.

Esse esclarecimento é importante porque, como mencionado, a legislação doméstica da Espanha não prevê a cobrança de imposto de renda na fonte sobre os juros provenientes de títulos públicos emitidos pelo ICO. Diante disso, afasta-se a possibilidade de seguir as regras alocativas domésticas da Espanha, com o intuito de verificar se a remuneração do título público é atribuída à instituição financeira custodiante ou ao efetivo investidor.

Como se sabe, a nova abordagem da OCDE (new approach) para a solução dos conflitos de qualificação parte do pressuposto de que o Estado da residência não precisa classificar o rendimento em uma das regras distributivas, devendo, simplesmente, verificar se o Estado da fonte tributou o rendimento em conformidade com as cláusulas convencionais e, em seguida, aplicar o art. 23 para conceder o alívio à dupla tributação29.

Ocorre que as regras distributivas não disciplinam apenas a tributação no Estado da fonte, podendo, em certas circunstâncias, conter restrições ou autorizações direcionadas ao Estado da residência. A restrição se verifica, por exemplo, na hipótese em que a regra distributiva aloca o poder de tributar exclusivamente ao Estado da fonte, impedindo o Estado de residência de tributar os rendimentos obtidos por seus próprios residentes30. É justamente isso o que se verifica no art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação ora examinado, que evita a dupla tributação da renda mediante a alocação de competência exclusiva ao Estado da fonte.

Daí se dizer que o Brasil, na condição de Estado de residência, deve interpretar e aplicar o acordo de bitributação celebrado com a Espanha, tanto para alocar o rendimento em uma das regras distributivas, quanto para examinar como essas regras balizam o exercício do seu direito de tributar.

Isso mostra que as regras distributivas são aplicadas pelos dois Estados Contratantes31, ao contrário do que sustenta John F. Avery Jones, para quem apenas o Estado da fonte efetivamente aplica as regras distributivas do acordo de bitributação, usando a sua lei interna para integrar os termos não definidos nas cláusulas convencionais. Na visão de Avery Jones, o papel do Estado da residência poderia ser desmembrado em duas atividades distintas: (i) a primeira consiste em verificar se o Estado da fonte tributou o rendimento em conformidade com o acordo de bitributação, o que dependeria de mera leitura – e não de interpretação – das cláusulas convencionais; e (ii) a segunda envolve a aplicação do método do crédito ou do método da isenção, na forma definida pelo art. 23 do acordo de bitributação32.

Porém, como visto acima, a posição de Avery Jones não se amolda aos casos em que a regra distributiva do tratado internacional restringe o poder de tributar do próprio Estado da residência. Tanto é assim que a situação específica ora examinada, relativa aos juros de títulos públicos, evidencia que os dois Estados contratantes têm competência para aplicar o acordo de bitributação, com interpretações que estão no mesmo patamar.

Sendo assim, considerando que a Espanha não prevê a incidência de IRRF sobre os juros provenientes de títulos públicos emitidos pelo ICO, cabe ao Brasil, na condição de Estado da residência, qualificar corretamente o rendimento art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha, independentemente das regras domésticas de atribuição do rendimento em vigor na Espanha.

6. Aplicação do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha para a CSLL

Como se sabe, havia discussão a respeito da aplicação das disposições dos acordos de bitributação celebrados pelo Brasil à CSLL, tanto daqueles firmados antes da instituição da referida contribuição pela Lei n. 7.689/1988, quanto daqueles assinados a partir de 1989, mas sem a previsão expressa de extensão de seus efeitos para a CSLL, seja no protocolo, seja na lista de “tributos visados” constante do art. 2º.

Como exemplo, no Acórdão n. 1302-001.620, de 3 de fevereiro de 2015, a 2ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF considerou que o acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha não seria aplicável à CSLL, em virtude da sua não inclusão no rol de tributos visados. Veja-se:

“Recurso voluntário. CSLL. ADTs Brasil-Espanha e Brasil-Áustria. Inaplicáveis. Nada impede que a CSLL passe a ser incluída no rol dos tributos visados nos ADTs em tela, mas, para tanto, há necessidade que o Estado Brasileiro notifique o outro país signatário, pois os ADTs celebrados anteriormente à instituição da CSLL não poderiam lhe ser aplicados automaticamente, sem que as partes anuíssem com tal inclusão da CSLL.”

Para solucionar a controvérsia, a Lei n. 13.202/2015, fruto de conversão Medida Provisória n. 685/2015, passou a prever, em seu art. 11, que, para efeitos de interpretação, a CSLL está abrangida nos acordos de bitributação celebrados pelo Brasil. Veja-se:

“Art. 11. Para efeito de interpretação, os acordos e convenções internacionais celebrados pelo Governo da República Federativa do Brasil para evitar dupla tributação da renda abrangem a CSLL.”

Sem dúvida, o efeito imediato da Lei n. 13.202/2015 é evitar as atuais discussões a respeito de quais acordos de bitributação firmados pelo Brasil incluem a CSLL em seu escopo objetivo. Como o ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio da legalidade e o princípio da presunção de constitucionalidade das leis, a Administração Tributária deverá reconhecer, em casos concretos, que a CSLL é um tributo abrangido pelos acordos de bitributação assinados pelo Brasil, pelo menos enquanto não houver declaração em sentido contrário emitida por órgão jurisdicional competente.

Em tese, a Administração Tributária poderia alegar que o art. 11 da Lei n. 13.202/2015 constitui um treaty override, que envolve basicamente a edição de ato legislativo posterior em violação ao acordo de bitributação33. Caso ficasse caracterizado o treaty override, seria possível afastar a aplicação do art. 11 da Lei n. 13.202/2015 a casos concretos, com base no art. 98 do Código Tributário Nacional (“CTN”), segundo o qual: “os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.

Porém, o fato é que não houve autêntico treaty override com a edição da Lei n. 13.202/2015. Para os acordos de bitributação anteriores a 1988, como é o caso daquele celebrado entre o Brasil e a Espanha, o art. 11 da Lei n. 13.202/2015 realmente produz um efeito meramente interpretativo34, conforme vinha sendo reconhecido pela jurisprudência majoritária do CARF. Apenas para ilustrar, confira-se o seguinte trecho da ementa do Acórdão n. 1101-000.902, de 12 de junho de 2013, proferido pela 1ª Turma Ordinária da 1ª Câmara da 1ª Seção do CARF, no qual se reconheceu, por maioria de votos, que os juros provenientes de títulos da dívida pública emitidos pelo Governo da Áustria não estão sujeitos à incidência da CSLL:

“CSLL. Convenção firmada com a Áustria para evitar a dupla tributação. Aplicabilidade. A substancial semelhança entre o IRPJ e a CSLL impõe a aplicação do disposto na convenção para evitar a dupla tributação.”

Diante disso, é possível concluir que o art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha também alcança a CSLL, de modo que os juros provenientes de títulos da dívida pública emitidos pelo ICO não estão sujeitos ao IRPJ e à CSLL no Brasil.

7. Conclusões

As considerações precedentes permitem concluir que:

i) o conceito de juros previsto no art. 11, § 5º, do acordo de bitributação celebrado entre Brasil e Espanha abrange os juros provenientes de títulos da dívida pública;

ii) segundo o art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha, os juros recebidos por residente no Brasil, em decorrência de investimento em títulos da dívida pública emitidos pelo ICO na Espanha, somente podem ser tributados na Espanha;

iii) a presença de uma instituição financeira custodiante, que atua como intermediária entre o ICO na Espanha e o investidor dos títulos públicos no Brasil, não afeta a aplicação do art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação firmado entre o Brasil e a Espanha, tendo em vista que o emissor do título público mantém a condição de devedor na relação jurídica original e o investidor no Brasil a posição de titular do investimento;

iv) o art. 11, § 4º, alínea “b”, do acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Espanha também alcança a CSLL, de modo que os juros provenientes de títulos da dívida pública emitidos pelo ICO não estão sujeitos à incidência do IRPJ e da CSLL no Brasil.

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1 Aprovado pelo Decreto Legislativo n. 62/1975 e promulgado pelo Decreto n. 76.975/1976.

2 Tradução livre: “O termo ‘juros’, conforme usado no presente Artigo, significa os rendimentos de créditos de qualquer natureza, acompanhados ou não de garantias hipotecárias ou de uma cláusula de participação nos lucros do devedor, e, em particular, os rendimentos da dívida pública, de títulos ou debêntures, inclusive ágios e prêmios vinculados a esses títulos, obrigações ou debêntures, assim como quaisquer outros rendimentos que a legislação tributária do Estado Contratante de que provenham assimile aos rendimentos de importâncias emprestadas.”

3 PIJL, Hans. The concept of interest in tax treaties. In: MARRES, Otto; e WEBER, Dennis (coord.). Tax treatment of interest for corporations. Amsterdam: IBFD, 2012, p. 94.

4 OECD. Model tax convention on income and on capital – condensed version. Paris: OECD, 2017, p. 263.

5 BANNER-VOIGT, Erik. Tax treatment of debt instruments without fixed right to redemption. Derivatives & Financial Instruments v. 6, No. 2. Amsterdam: IBFD, 2008, p. 94.

6 HASLEHNER, Werner. Article 11 – interest. In: VOGEL, Klaus. Klaus Vogel on double taxation conventions. REIMER, Ekkehart; e RUST, Alexander (coord.). 4. ed. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2015, p. 923, m.no. 84.

7 PIJL, Hans. Interest from hybrid debts in tax treaties. Bulletin for International Taxation v. 65, No. 9. Amsterdam: IBFD, 2011, p. 487.

8 VALENCIE, Gabryela. Tax treatment of intra-group interest in the context of art. 11 OECD MC. In: MASSONER, Christian; STORCK, Alfred; e STÜRZLINGER, Birgit. International group financing and taxes.Viena: Linde, 2012, p. 414.

9 O problema denotativo envolve, basicamente, a dificuldade de enquadramento de determinadas situações, objetos ou subclasses em determinada significação (cf. WARAT, Luis Alberto. O direito e a sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 76-77).

10 LANG, Michael. Introduction to the law of double tax conventions. Amsterdam/Vienna: IBFD/Linde, 2010, p. 98-99.

11 ROTHMANN, Gerd Willi. Problemas de qualificação na aplicação das convenções contra a bitributação internacional. Revista Dialética de Direito Tributário n. 76. São Paulo: Dialética, 2002, p. 33.

12 RAAD, Kees van. Cinco regras fundamentais para a aplicação de tratados para evitar a dupla-tributação. Revista de Direito Tributário Internacional n. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 197-198.

13 Veja-se: “Artículo 14. Rentas exentas. 1. Estarán exentas las siguientes rentas: [...] d) Los rendimientos derivados de la Deuda Pública, obtenidos sin mediación de establecimiento permanente en España.”

14 GONZÁLEZ-COTERA, Álvaro de la Cueva; e BURGASÉ, Carlos Morlán. Spain – corporate taxation. Country analyses. Amsterdam: IBFD, 2018, sec. 7.3.4.2.

15 VALLVÉ, Joan Hortalá i. Comentarios a la red española de convenios de doble imposición. Cizur Menor: Thomson/Aranzadi, 2007, p. 345.

16 Segundo Pontes de Miranda: “Custodiar é conservar materialmente, ou, pelo menos, tomar as providências para isso. Supõe-se, portanto, o estado em que o bem foi recebido. A atividade, que se tem de exercer, depende da natureza do bem em custódia. Essa é que dá os limites ao conteúdo do dever de fazer e de não fazer que o custodiar implica.” (MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo 42. Campinas: Bookseller, 2005, p. 391)

17 ABRÃO, Nelson. Direito bancário. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 243.

18 Nas palavras de Nelson Abrão: “Ao lado dessa obrigação de custódia, fica o banco investido de um dever de gestão ou de representação [...]. Está, pois, o banco investido, para o exercício dessas funções, de um mandato legal.” (ABRÃO, Nelson. Direito bancário. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 248)

19 WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro – obrigações e contratos. 5. ed. São Paulo: RT, 1979, p. 390.

20 DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. São Paulo: Saraiva, 1993. v. 4, p. 449-450.

21 BARRETO, Lauro Muniz. Direito bancário. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1975, p. 161.

22 Como relata Werner Haslehner: “The OECD MC Comm. treats the inclusion of the requirement of beneficial ownership in the 1977 OECD MC as mere clarifying [...]. This is important in so far as many older DTCs do not include the term. While widely supported, the OECD MC Comm.’s position does not appear to have been unreservedly accepted in international case law; the position of many courts remains unclear.” (HASLEHNER, Werner. Article 11 – interest. In: VOGEL, Klaus. Klaus Vogel on double taxation conventions. REIMER, Ekkehart; e RUST, Alexander. 4. ed. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2015, p. 912, m.no. 51)

23 CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. Planejamento tributário internacional – conceito de beneficiário efetivo nos acordos contra a bitributação. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 307.

24 REIMER, Ekkehart. Chapter 18 – how to conceptualize beneficial ownership. In: LANG, Michael et al. Beneficial ownership: recent trends. Amsterdam: IBFD, 2013, p. 259.

25 OECD. Model tax convention on income and on capital – condensed version. Paris: OECD, 2017, p. 261.

26 JIMÉNEZ, Adolfo Martín. Beneficial ownership as an attribution-of-income rule in Spain: source and residence country perspective. In: LANG, Michael et al. Beneficial ownership: recent trends. Amsterdam: IBFD, 2013, p. 199-208.

27 GARBARINO, Carlo. Judicial interpretation of tax treaties – the use of the OECD Commentary. Cheltenham: Edward Elgar, 2016, p. 66.

28 HASLEHNER, Werner. Article 11 – interest. In: VOGEL, Klaus. Klaus Vogel on double taxation conventions. REIMER, Ekkehart; e RUST, Alexander. 4. ed. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2015, p. 911, m.no. 48.

29 RUST, Alexander. The new approach to qualification conflicts has its limits. Tax treaty monitor – Bulletin for International Fiscal Documentation v. 57, No. 2. Amsterdam: IBFD, 2003, p. 48.

30 RUST, Alexander. The new approach to qualification conflicts has its limits. Tax treaty monitor – Bulletin for International Fiscal Documentation v. 57, No. 2. Amsterdam: IBFD, 2003, p. 47.

31 Segundo Stef van Weeghel: “In the application of a tax treaty, the process of qualification will normally occur twice in each instance, i.e., the source state will determine which treaty provision governs an item of income and the residence state will do the same. In most instances, the qualification will be the same in the source state and in the residence state, but I many instances the qualification…will be different from each other.” (VAN WEEGHEL, Stef. The improper use of tax treaties – with particular reference to the Netherlands and the United States. London: Kluwer Law, 1998, p. 159) No mesmo sentido: CANDU, Andrian. Abuse of tax treaties. In: SCHILCHER, Michael; e WENINGER, Patrick (coord.). Fundamental issues and practical problems in tax treaty interpretation. Viena: Linde, 2008, p. 194.

32 JONES, John F. Avery. Article 3(2) of the OECD model convention and the commentary to it: treaty interpretation. European Taxation v. 33. Amsterdam: Bureau, 1993, p. 254-255.

33 Segundo Gerd W. Rothmann: “O assim chamado [...] treaty override refere-se à questão da relação entre os acordos de bitributação e o Direito interno dos Estados contratantes, designando a possibilidade (ou não) de alterar, com atos posteriores do legislador, o conteúdo de um acordo de bitributação, em virtude de sua posição hierárquica igual à legislação tributária interna, nacional, criando, assim, uma obrigação tributária, a qual foi renunciada no acordo.” (ROTHMANN, Gerd W. A denúncia do acordo de bitributação Brasil-Alemanha e suas consequências. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2005. v. 9, p. 157) Sobre treaty override em geral, conferir: SCHOUERI, Luís Eduardo. Tax treaty override – a jurisdictional approach. Intertax v. 42, No. 11. Alphen aan de Rijn: Kluwer Law International, 2014, p. 682-694; DE PIETRO, Carla. Tax treaty override. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2014.

34 Para uma análise detalhada do tema, conferir: BIANCO, João Francisco; e SANTOS, Ramon Tomazela. Lei interna interpretativa de tratado internacional: possibilidade e consequências – o caso da CSLL e da Lei nº 13.202/2015. In: SCHOUERI, Luís Eduardo et al (coord.). Estudos de direito tributário em homenagem ao Professor Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 155-178.