Direitos dos Contribuintes em Procedimentos de Fiscalização: o Direito de ser Ouvido e de acessar Documentos no Âmbito da União Europeia

Taxpayers’ Rights and Tax Audits: the Right to be Heard and to Access Documents under European Union Law

Raphael Assef Lavez

Doutorando e Mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário e Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Professor de cursos de pós-graduação. Advogado em São Paulo/SP. O presente artigo é o resultado parcial de pesquisa conduzida pelo autor, na condição de pesquisador visitante, no Institut für Österreichisches und Internationales Steuerrecht, Wirtschaftsuniversität Wien (WU), Áustria, com financiamento da Österreichs Agentur für Bildung und Internationalisierung (OeAD). E-mail: raphael.lavez@usp.br.

Recebido em: 4-3-2022 – Aprovado em: 4-4-2022

https://doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n10-5

Resumo

Este artigo analisa os direitos que devem ser assegurados aos contribuintes durante procedimentos de fiscalização, antes mesmo da lavratura de qualquer auto de infração, com especial foco no direito de ser ouvido e a acessar documentos, no âmbito do Direito da União Europeia. Uma visão geral da jurisprudência do TJUE demonstra que nem sempre esses direitos são assegurados aos contribuintes. Para abordar essa questão, duas hipóteses são propostas: (i) as restrições a esses direitos baseiam-se muitas vezes na premissa de que eles devem ser assegurados somente após a lavratura de um auto de infração; e, (ii) no entanto, essa distinção não é apenas artificial, mas também insuficiente para garantir uma proteção efetiva dos direitos dos contribuintes. Para demonstrá-las, este artigo desenvolve tanto uma análise descritiva do atual estágio da jurisprudência do TJUE no tema quanto uma análise normativa do porquê, como e quando o direito de ser ouvido e o direito de acessar documentos devem ser assegurados aos contribuintes no contexto de procedimentos de fiscalização.

Palavras-chave: União Europeia, direitos fundamentais, procedimentos de fiscalização, direito de ser ouvido, direito de acessar documentos, restrições.

Abstract

This essay deals with the question of which rights should be effectively ensured to taxpayers during tax audits, i.e., before any infraction notice is issued, with particular focus on the right to be heard and the right to access documents under the EU Law. An overview of the CJEU case law demonstrates that the taxpayers are not always granted with them. To address this question, two hypotheses are proposed: (i) the restrictions on such rights are often based on the premise that they should be ensured only after the issuance of an infraction notice; and (ii) nevertheless, this premise is not only artificial, but also insufficient to ensure an effective protection of taxpayers’ rights. To demonstrate them, this essay develops both a descriptive analyses of the state of art of the CJEU case law, and a normative analysis of why, how and when the right to be heard and to access documents must be ensured to taxpayers in the context of tax audits.

Keywords: European Union, fundamental rights, tax audits, right to be heard, right to access documents, restrictions.

Introdução

Pelo menos desde 2015, cada vez mais atenção tem sido voltada para garantias procedimentais no contexto da tributação. O Congresso da IFA de 2015 levantou questões que vão além do escopo teórico dos direitos dos contribuintes, voltando-se à forma como eles são assegurados na prática, i.e., por meio de uma proteção eficaz (BAKER/PISTONE, 2015, p. 21). Nesse contexto, torna-se também relevante questionar quais direitos são efetivamente assegurados aos contribuintes durante auditorias fiscais e procedimentos administrativos que ocorram antes mesmo da lavratura de qualquer auto de infração.

Uma abordagem interessante para a questão pode ser encontrada no Relatório Geral de 2020 do IBFD Observatory on Protection of Taxpayers’ Rights (“OPTR”). À pergunta “O princípio audi alteram partem se aplica no processo de auditoria fiscal (ou seja, o contribuinte tem que ser notificado de todas as decisões tomadas no processo e tem o direito de se opor e ser ouvido antes da decisão ser finalizada)?”, a considerável maioria dos relatores nacionais respondeu “sim”. Dentro da União Europeia (“UE”), a conclusão é a mesma: apenas os relatores nacionais da Bélgica e da Suécia responderam “não”, enquanto os relatores nacionais da Áustria, Croácia, Chipre, República Tcheca, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Grécia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Polônia, Portugal e Espanha verificaram tal garantia em suas respectivas jurisdições (IBFD, 2020, p. 66-67)1.

Esse resultado expressivo poderia representar um padrão consideravelmente elevado de proteção dos direitos dos contribuintes no contexto dos procedimentos de fiscalização, uma vez que o princípio audi alteram partem abrange tanto o direito de ser ouvido quanto o direito de acessar os respectivos documentos. Essas garantias podem ser consideradas como o primeiro passo para os contribuintes assegurarem a proteção de seus direitos perante a administração. No entanto, uma análise mais detida do próprio Relatório OPTR 2020 e de algumas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) demonstra que ainda há um espaço significativo para desenvolvimento nessa área. Por exemplo, no contexto da troca de informações sob requerimento (“TIR”), o direito de ser ouvido parece ser levado em consideração em um número muito restrito de Estados-membros da UE. De acordo com o Relatório OPTR 2020, somente na Croácia, na Dinamarca e na Alemanha o contribuinte tem o direito de ser informado antes que as informações relativas a ele sejam trocadas em resposta a um pedido específico (IBFD, 2020, p. 122). Quando o pedido é formulado pela administração de outro país, segundo a mesma fonte, entre os Estados-membros da UE, somente na Alemanha é reconhecido o direito dos contribuintes de serem ouvidos antes da troca de informações relativas a eles (IBFD, 2020, p. 126). Da mesma forma, apesar de alguns aprimoramentos recentes, a jurisprudência do TJUE ainda permite que os Estados-membros privem o contribuinte desses direitos no contexto da TIR2. No entanto, os procedimentos de TIR são apenas um exemplo de muitos outros em que essas garantias não são devidamente asseguradas. Ainda é difícil para os contribuintes acessarem as comunicações trocadas em procedimentos amigáveis (“MAP”) (IBFD, 2020, p. 126)3, assim como há casos em que penalidades ainda são impostas sem qualquer comunicação prévia4.

Diante desse cenário, este artigo tem como objetivo avaliar como o direito de ser ouvido e o direito de acessar documentos durante procedimentos de fiscalização podem ser assegurados no âmbito do Direito da UE. Trata-se de uma questão relevante, principalmente se considerarmos que tais direitos estão consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da UE (“Carta”). Para enfrentá-la, duas hipóteses são apresentadas. Em primeiro lugar, a resistência para garantir tais direitos deriva do “dogma” de que o procedimento de fiscalização representa a “fase administrativa” e essas garantias processuais só são asseguradas na “fase contenciosa”, ou seja, após a lavratura de eventual auto de infração. Em segundo lugar, esse dogma não é apenas artificial, uma vez que tal divisão está longe de ser evidente, mas também insuficiente para garantir uma proteção efetiva dos direitos dos contribuintes – mesmo os substanciais.

A abordagem proposta também se justifica à luz do atual estágio das garantias processuais dos contribuintes no contexto brasileiro. Embora haja relevantes distinções entre o sistema de direitos fundamentais da UE e aquele assegurado pela Constituição Federal de 1988 (“CF/1988”), a protetividade de direitos dos cidadãos num e noutro ordenamento guarda semelhança: o princípio geral da observância dos direitos de defesa, reiteradamente reconhecido pelo TJUE, assemelha-se ao princípio do devido processo legal consagrado na CF/1988 (art. 5º, LIV e LV). Também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (“STF”), à semelhança de certa decisões do TJUE, tem relativizado a eficácia do contraditório e da ampla defesa, especificações constitucionais do princípio do devido processo legal, no curso de inquéritos administrativos5, inquéritos civis públicos6 e inquéritos policiais7. Ambos os tribunais, nessas ocasiões, amparam-se no dogma acima referido, que identifica nesses procedimentos uma natureza meramente preparatória da acusação que permitiria afastar tais garantias. A ideia do exercício pela autoridade tributária, no curso do procedimento de fiscalização, de um poder de polícia capaz de afastar a aplicação de direitos fundamentais dos contribuintes tem repercutido em tribunais brasileiros. Sob esse fundamento, chegou-se a afastar a necessidade de autorização judicial prévia para o ingresso das autoridades em estabelecimentos dos contribuintes, tema ao qual o STF negou a natureza constitucional8, mantendo-se decisão contrária à sua própria jurisprudência acerca da ilegalidade de provas coletadas em dissonância com a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar9.

Para demonstrar as hipóteses destacadas acima, portanto, o artigo divide-se em duas partes. A primeira segue um método descritivo e objetiva analisar como esse dogma foi estabelecido na jurisprudência do TJUE, enquanto algumas decisões recentes o suavizaram ou mesmo deixaram de considerá-lo, abrindo espaço para garantias processuais mesmo durante procedimentos de fiscalização. A segunda parte segue uma abordagem normativa e tem como objetivo demonstrar por que, como e quando o direito de ser ouvido e de acessar documentos deve ser assegurado no âmbito do Direito da UE.

1. O direito de ser ouvido e de acessar documentos durante procedimentos de fiscalização na jurisprudência do TJUE

1.1. Estabelecendo o dogma: a “fase administrativa” e a “fase contenciosa”

Considerando o sistema de direitos fundamentais consagrado na Carta, as garantias processuais durante os procedimentos de fiscalização estão relacionadas a duas disposições diferentes pelo menos. Primeiro, o direito à boa administração (art. 41), que engloba garantias aos cidadãos (ser ouvido e acesso aos autos) e obrigações à administração (oferecimento adequado de razões para suas decisões). Ambos os aspectos do direito à boa administração levam à conclusão de que a administração deve considerar seriamente os argumentos trazidos pelo cidadão – a questão se esse direito também é aplicável perante as autoridades nacionais e não apenas perante “as instituições, órgãos, escritórios e agências da União” será abordada mais à frente10. Em segundo lugar, o direito a um recurso efetivo e a um julgamento justo (art. 47), que exige que as autoridades nacionais garantam ao “titular desse direito poder aceder a um tribunal competente que assegure o respeito pelos direito que o direito da União lhe garante e, para o efeito, examine todas as questões de facto e de direito pertinentes para o litígio que é chamado a decidir”11.

Entre as decisões selecionadas que seguiram o dogma baseado na distinção entre a fase administrativa e a fase contenciosa, a observância dos direitos de defesa do contribuinte só é considerada uma obrigação após a lavratura de um auto de infração. Nesses casos, a conclusão foi clara: sendo concedida, ao contribuinte, a possibilidade de contestar um eventual auto de infração perante um tribunal judicial imparcial, não haveria infração ao Direito da UE.

No caso Textdata Software, uma sociedade limitada alemã que conduzia suas atividades na Áustria por meio de uma filial registrada não apresentou às autoridades austríacas suas demonstrações anuais relativas a dois exercícios. Por essa razão, a autoridade austríaca impôs duas multas periódicas sem antes permitir que a empresa fosse ouvida acerca de sua efetiva obrigação divulgar tais informações a essa autoridade. Independentemente da defesa da empresa de que as contas anuais só deveriam ser apresentadas perante a autoridade alemã que tinha jurisdição territorial em vista da localização da sede, foi trazida ao TJEU a questão se os princípios gerais do direito à efetiva proteção judicial e o respeito aos direitos de defesa, como consagrado no art. 47 da Carta, impedem que um Estado-membro imponha uma penalidade sem comunicação prévia ao autuado. Embora não se trate de um caso de tributação, uma vez que o pano de fundo era a Décima Primeira Diretiva12, a decisão desempenhou um papel relevante para o estabelecimento do dogma supracitado. De acordo com o TJUE, a ausência de qualquer oportunidade para a empresa em questão se pronunciar antes da imposição da sanção não teria prejudicado o seu direito à defesa, “uma vez que a interposição do recurso fundamentado da decisão de aplicação da sanção pecuniária a torna imediatamente inaplicável e inicia um processo comum em cujo âmbito o direito de ser ouvido pode ser respeitado”13. Em outras palavras, desde que tais direitos sejam assegurados na “fase contenciosa”, ou seja, após a lavratura do auto de infração, eventual a ausência de participação ou oportunidade de ser ouvido durante a “fase administrativa” seria convalidada. Na mesma linha, a disponibilidade de meios para impugnar posteriormente a imposição da multa foi determinante para a conclusão do Advogado-Geral (“AG”) Mengozzi, cujo parecer sobre a ausência de violação desses princípios foi seguido pelo TJUE14.

Seguindo a jurisprudência estabelecida, tanto as conclusões do AG Mengozzi quanto a decisão do TJUE no caso Textdata Software afirmaram que “os direitos fundamentais não constituem prerrogativas absolutas, mas podem comportar restrições, na condição de estas corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituírem, à luz da finalidade prosseguida, uma intervenção desmedida e intolerável que atente contra a própria substância dos direitos assim garantidos”15. No entanto, não parece claro, a partir do caso, qual o objetivo de interesse geral que seria fomentado pela negativa do direito de ser ouvida, tampouco de que modo a oportunidade para que a empresa compartilhasse suas razões antes da imposição da multa prejudicaria tal objetivo.

O caso Sabou representa a consolidação do dogma no TJUE. Um indivíduo residente na República Tcheca foi notificado da lavratura de um auto de infração baseado em informações solicitadas a outros Estados-membros. O contribuinte contestou a autuação e alegou a ilegalidade do procedimento de TIR, uma vez que não havia sido informado do pedido de assistência a outras autoridades, não tendo podido contribuir com as questões dirigidas a elas. Tampouco o contribuinte fora convidado a participar no exame de testemunhas em outros Estados-membros. A reivindicação do contribuinte foi, portanto, claramente fundamentada no direito de ser ouvido, que é um elemento do direito à boa administração (art. 41 da Carta), bem como no princípio geral da observância dos direitos de defesa. E o TJUE reconheceu, de fato, que “os destinatários de decisões que afetam de modo sensível os seus interesses devem, assim, ter a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos com base nos quais a Administração tenciona tomar a sua decisão”16, mesmo quando “a legislação da União aplicável não preveja expressamente essa formalidade”17, como no caso da legislação da UE sobre assistência mútua. Não obstante, quando tratou do caso específico, o TJUE concluiu que, “Quando a Administração procede à recolha de informações, não é obrigada a comunicar as mesmas ao contribuinte e a solicitar o seu ponto de vista”. Por isso, o TJUE negou provimento ao pedido do contribuinte. Os fundamentos para tanto basearam-se claramente na distinção entre a fase de investigação e a fase contenciosa entre administração e contribuinte, que só começa “com o envio a este último de uma proposta de retificação [auto de infração]”18.

1.2. Flexibilizando o dogma: o direito do detentor da informação de contestar a legalidade de um procedimento de TIR

Após o caso Sabou, ficou claro aos contribuintes que seus direitos de defesa, no âmbito do Direito da UE, só seriam observados após a lavratura de um auto de infração. A ausência de participação em um contexto de assistência mútua entre as autoridades fiscais tornou-se ainda mais clara, tendo se reconhecido que a Diretiva “não confere direitos específicos ao contribuinte”19. Ainda de acordo com aquela decisão, os contribuintes poderiam apenas contar com eventuais disposições domésticas para usufruírem de garantias processuais em casos de TIR20.

Essa é a razão pela qual o caso Berlioz levou a um resultado surpreendente. Berlioz é uma sociedade anônima luxemburguesa que recebeu dividendos pagos por sua subsidiária francesa mediante isenção de imposto de renda retido na fonte (“IRRF”). Nesse contexto, as autoridades fiscais francesas enviaram à administração tributária de Luxemburgo um pedido de informações relacionadas à Berlioz e a seus acionistas. Sendo notificada dessa solicitação, Berlioz forneceu apenas parcialmente as informações requeridas. A companhia não divulgou informações relativas aos seus acionistas, tampouco o montante de capital detido por cada um deles, sob o fundamento de que tais informações não seriam previsivelmente relevantes para a avaliação se as distribuições de dividendos deveriam ter sido isentas do IRRF francês, o que seria um requisito da Diretiva para tanto. Como consequência da não divulgação integral das informações requeridas, as autoridades fiscais de Luxemburgo impuseram uma multa administrativa à Berlioz, conforme determinado pela legislação local. Ato contínuo, a companhia recorreu contra a imposição da penalidade perante um tribunal luxemburguês, alegando violação de seu direito a um recurso judicial efetivo21.

O TJUE foi convidado a esclarecer se, nos termos do art. 47 da Carta, a empresa tinha o direito de contestar a ordem que exigia a divulgação de informações num procedimento de TIR. Em caso afirmativo, questionava-se se um tribunal nacional do Estado-membro solicitado deveria ter jurisdição ilimitada e, consequentemente, o poder de rever a validade de uma ordem de informação feita por uma autoridade do Estado-membro na execução de um pedido de troca de informações apresentado pelas autoridades de outro Estado-membro. Importante destacar que, nesse caso, o interessado foi efetivamente penalizado após não haver fornecido algumas das informações necessárias sob a alegação de ilegalidade da ordem. Essa circunstância foi claramente qualificada pelo TJUE como uma violação do direito a um recurso judicial efetivo, consagrado no art. 47 da Carta. De acordo com o princípio geral da efetiva proteção judicial, exige-se que “a decisão de uma autoridade administrativa que não preencha as condições de independência e de imparcialidade fique sujeita à fiscalização posterior de um órgão jurisdicional que deve, nomeadamente, ser competente para apreciar todas as questões pertinentes”22. Assim sendo, uma pessoa, destinatária de uma ordem de divulgação de informações em um procedimento de TIR, tem o direito de contestar tanto a ordem em si quanto uma eventual penalidade imposta por não cumpri-la. Além disso, o recurso deve ser apreciado por um tribunal judicial independente e imparcial que, fundamentalmente, tenha competência para rever integralmente a legalidade da ordem e o pedido de informação em si23. Em outras palavras, o TJUE não apenas confirmou o direito do titular da informação de contestar uma penalidade derivada do não cumprimento da ordem de divulgação, mas também afirmou que a revisão judicial deve ser efetiva, não apenas formal.

Curiosamente, o desfecho do caso Berlioz, especialmente quando comparado com o caso Sabou, pode levar à conclusão de que os detentores de informações teriam mais direitos do que os próprios contribuintes no contexto de uma TIR. Essa questão foi levantada pela Comissão no caso Berlioz, que formulou o argumento a fortiori de que “admitir o direito de o administrado recorrer dessa decisão de injunção equivale a reconhecer-lhe mais direitos processuais do que a um contribuinte”. Isso porque, ainda de acordo com a Comissão, no caso Sabou, o TJUE teria decidido que “o pedido de informações dirigido a um contribuinte, que pertence à fase de investigação em que as informações são coligidas, é um mero ato preparatório da decisão final e não pode ser contestado”24. Esse argumento coloca em destaque a necessária comparação entre os dois casos. No caso Sabou, o contribuinte reivindicou o direito de participar do procedimento de TIR antes mesmo que qualquer solicitação de informações fosse enviada à pessoa que as detivesse. Por outro lado, no caso Berlioz, o destinatário da ordem de divulgação de informações já havia sido efetivamente intimado e por ela afetado negativamente, mediante a imposição de uma penalidade pela administração tributária de Luxemburgo. Essa circunstância pareceu ser decisiva para o fundamento adotado pelo TJUE, uma vez que garantiu um recurso efetivo contra uma penalidade imposta ao destinatário da ordem de não divulgar integralmente as informações necessárias em um procedimento TIR25.

Embora o TJEU tenha assegurado o direito da empresa de contestar a ordem, foi garantido o acesso da empresa apenas a algumas informações específicas indicadas no pedido da administração tributária francesa, mas não ao pedido como um todo, com base no sigilo fiscal das informações26. Se o acesso a apenas uma parte do requerimento é suficiente para que o destinatário possa avaliar a sua legalidade, bem como para impugná-lo perante um tribunal do Estado-membro requerido, especialmente sob o princípio da igualdade de armas, são questões que remanescem controversas.

Pode-se, assim, questionar se o caso Berlioz representou efetivamente o abandono do dogma da aplicação de garantias processuais apenas na fase contenciosa. Embora certamente tenha representado um avanço para um padrão mais elevado de proteção dos direitos das pessoas envolvidas nos procedimentos de TIR, é inegável que, nesse caso, a administração tributária já havia notificado a empresa da imposição de uma penalidade. Em outras palavras, sob a perspectiva do titular da informação, a fase contenciosa certamente já havia começado quando o caso foi levado ao tribunal nacional. Essa consideração não prejudica a relevância da decisão – o reconhecimento da possibilidade legal de impugnação de uma ordem de informação e a revisão integral de sua legalidade por um tribunal nacional do Estado-membro requerido, incluindo o cumprimento da exigência de “relevância previsível”, é um avanço relevante quando comparado ao raciocínio do caso Sabou. No entanto, após a imposição da penalidade sobre a empresa, não se pode considerar mais em curso a fase administrativa, uma vez que a administração tributária já havia tomado sua decisão. Essa circunstância ajuda a entender por que o TJUE deu esse passo adiante no caso Berlioz, sem reconsiderar expressamente os fundamentos que levaram à decisão do caso Sabou.

Esse aspecto tornou-se ainda mais interessante no recente caso État luxembourgeois, quando os titulares das informações, a contribuinte fiscalizada e terceiros interessados nas informações arguiram a ilegalidade do procedimento de TIR antes da imposição de qualquer tipo de penalidade27. Nesse caso, o TJUE avaliou os respectivos direitos de cada um dos três grupos de pessoas separadamente, chegando a conclusões diferentes com relação a eles.

Em relação à pessoa que detém as informações, seguindo o raciocínio do caso Berlioz, o TJUE reconheceu seu direito a um recurso judicial contra a ordem. O simples fato de que a ordem foi emitida, cujo descumprimento poderia sujeitar o destinatário à imposição de penalidades, foi considerado suficiente para afetar negativamente essa pessoa. Portanto, basta esse único fato, ainda que sem a imposição de qualquer penalidade, para que o seu destinatário tenha o direito de contestar a ordem perante um tribunal independente e imparcial28. Essa conclusão é bastante convincente, pois seria desproporcional exigir que o destinatário infringisse a ordem ao se recusar a divulgar as informações e, apenas após a imposição da consequente penalidade, tivesse o direito de contestá-la. Se fosse esse o caso, “não se [poderia] considerar que essa pessoa goze de uma tutela jurisdicional efetiva”29.

No entanto, em relação à própria contribuinte e a terceiros afetados pelas informações, o TJUE não reconheceu a aplicabilidade das garantias processuais. Quanto à situação da contribuinte, uma vez que ela não era a destinatária da ordem de divulgação das informações, ela não estaria sujeita à imposição de uma penalidade com base em tal ordem30. Nesse sentido, de acordo com a decisão, a contribuinte só seria prejudicada pelo procedimento de TIR após receber um eventual auto de infração – exatamente o evento que conclui a fase de investigação e introduz a etapa contenciosa31. Sob esse raciocínio, o TJUE garantiu ao contribuinte o direito de contestar o procedimento de TIR apenas indiretamente, por meio da impugnação do auto de infração32. Além disso, terceiros afetados pelas informações requeridas só poderiam apresentar lateralmente uma ação em caso de danos derivados da violação de direitos garantidos pelo Direito da UE33 – o que não se aplicaria a pessoas jurídicas, caso o TJUE tenha se referido à proteção de dados pessoais no âmbito do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados34 (“RGPD”) (HASLEHNER/PANTAZATOU, 2021, p. 153).

Em síntese, de um lado, o caso État luxembourgeois reforçou os direitos do destinatário de uma ordem de divulgação de uma informação em um procedimento de TIR, avançando na linha da decisão tomada no caso Berlioz e consolidando um acquis communautaire na matéria. Por outro lado, todavia, o contribuinte ainda remanesceu privado de garantias processuais no contexto de uma TIR. E, mais importante, sua alegação foi negada com base na distinção entre uma fase administrativa, que engloba o procedimento de fiscalização e a investigação em geral, e uma fase contenciosa, que se inicia com a lavratura de um auto de infração. Somente após esse momento, como o TJUE decidiu repetidamente, o contribuinte teria direito a um recurso judicial efetivo, bem como a oportunidade de apresentar seus argumentos e, como consequência, a possibilidade de ser ouvido.

1.3. Um caminho diferente: os casos de IVA

Não obstante as restrições impostas pelas decisões do TJUE sobre as garantias processuais dos contribuintes durante a fase de investigação, o raciocínio do mesmo tribunal parece ser consideravelmente diferente quando lida com o caso de tributação indireta, chegando a uma conclusão muito mais protetiva dos direitos dos contribuintes (ATTARD, 2020, p. 144).

No caso WebMindLicenses, que tratou de uma acusação de fraude relacionada ao imposto sobre valor agregado (“IVA”), o TJUE abordou as garantias processuais do contribuinte no que diz respeito à coleta e utilização de provas derivadas de outra investigação criminal, em que telecomunicações foram interceptadas e e-mails foram apreendidos. Por ter sido privado de acessar tais provas antes do auto de infração, o contribuinte alegou a violação do direito à boa administração (art. 41 da Carta) e do direito a um recurso judicial efetivo e a um julgamento justo (art. 47 da Carta). Embora tenha havido uma controvérsia factual se o contribuinte teria acessado ou não as provas antes da lavratura do auto de infração35, o TJUE decidiu que, “em conformidade com o princípio geral do respeito dos direitos de defesa, o sujeito passivo [deve ter] a possibilidade de, no âmbito do procedimento administrativo, ter acesso a essas provas e de ser ouvido sobre as mesmas”. Em seguida, o TJUE determinou que, “Se concluir que esse sujeito passivo não teve essa possibilidade […], o referido órgão jurisdicional nacional deve ignorar essas provas e anular a referida decisão se esta deixar, por esse motivo, de ter fundamento”36.

É notável que, no caso WebMindLicenses, o TJUE fez expressamente referência ao caso Sabou, incluindo o parágrafo específico no qual, na última decisão, foi reconhecido o princípio geral da observância dos direitos da defesa37. No entanto, a conclusão do caso Sabou (“Quando a Administração procede à recolha de informações, não é obrigada a comunicar as mesmas ao contribuinte e a solicitar o seu ponto de vista”)38 não foi seguida pelo TJUE no caso WebMindLicenses, como demonstrado acima.

Ainda no caso Ispas, outra decisão sobre a tributação indireta, o TJUE afirmou que, com base no princípio geral dos direitos de defesa, “os destinatários de decisões que afetam de modo sensível os seus interesses devem ter a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos com base nos quais a Administração tenciona tomar a sua decisão”39. Além disso, a pessoa afetada poderá “dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos com base nos quais a Administração tenciona tomar a sua decisão pressupõe que seja permitido aos destinatário dessa decisão conhecer os referidos elementos”40. Nesse caso, os contribuintes alegaram que não lhes foi concedida, antes da lavratura do auto de infração, a oportunidade de avaliar os documentos e provas coletados durante a investigação. Notavelmente, o TJUE afirmou que deve haver “uma possibilidade real de acesso aos referidos documentos e às referidas informações, a menos que objetivos de interesse geral justifiquem a restrição desse acesso”41. As possíveis exceções a essa garantia foram mais bem especificadas no caso Glencore Agriculture Hungria, que tratou de uma investigação do IVA realizada em paralelo com uma investigação criminal, tendo o contribuinte levantado o mesmo tipo de queixa do caso Ispas. Naquela ocasião, o TJUE esclareceu que “tais restrições, consagradas pela legislação nacional, podem designadamente ter por objetivo proteger as exigências de confidencialidade ou de segredo profissional […], a vida privada de terceiros, os dados pessoais que lhe dizem respeito ou a eficácia da aplicação da lei [que sejam] suscetíveis de ser afetados pelo acesso a algumas informações e a alguns documentos”42.

No caso C.F., uma decisão recente que também tratou de uma autuação de IVA baseada em provas coletadas numa investigação criminal realizada em alguns fornecedores do contribuinte, o TJUE afirmou que “Integra o respeito pelos direitos de defesa o direito de audiência, que garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer o seu ponto de vista, de maneira útil e efetiva, no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses.”43 Além disso, o TJEU decidiu que, caso o tribunal nacional considere que, sem a violação de tal direito, o resultado do procedimento poderia ter sido diferente, a decisão administrativa contestada deve ser anulada44.

Comparando o conjunto de decisões que tratam da tributação direta (principalmente no âmbito de um procedimento de TIR) e da tributação indireta, os resultados são consideravelmente diferentes. Uma possível explicação para a aplicação distinta das garantias processuais seria o diferente nível de integração no Direito da UE dos dois campos. Esse raciocínio, no entanto, não demonstra por que tais direitos foram negados aos contribuintes nos casos que tratam de TIR, uma vez que o TJUE, em todas as decisões selecionadas, entendeu claramente que a situação em análise se enquadraria no âmbito da Carta e do Direito da EU como um todo. Em outras palavras, embora se tratasse da implementação do Direito da EU no tocante à assistência mútua em matéria fiscal por meio da troca de informações, circunstância que leva preliminarmente à aplicação da Carta, os elementos factuais trazidos ao TJUE foram considerados fora do âmbito de proteção dos próprios direitos especificamente considerados.

Independentemente do campo em que o caso foi originado, seja a tributação direta ou indireta, desde que permaneça sob o escopo da Carta e do Direito da UE em geral, os casos de IVA demonstram que ainda há espaço para um aprimoramento da proteção dos direitos dos contribuintes durante os procedimentos de fiscalização. Por que, como e quando tais garantias devem ser aplicadas são perguntas abordadas na seção a seguir.

2. A proteção dos direitos dos contribuintes durante procedimentos de fiscalização: para além da jurisprudência do TJUE

2.1. Por que contribuintes devem ser ouvidos e ter acesso aos documentos relevantes durante procedimentos de fiscalização

Para responder à primeira pergunta proposta, é necessário revisitar os fundamentos desses direitos. O mero fato de tais direitos estarem consagrados na Carta, que corresponde ao Direito Primário da EU, poderia ser apontado como uma razão pela qual os Estados-membros deveriam, simplesmente, observá-los. No entanto, tendo em vista o atual estado da arte da jurisprudência do TJEU, que por vezes tem admitido severas restrições a tais direitos, essa resposta não parece ser suficiente. É necessário, portanto, explorar mais a fundo os fundamentos de tais direitos.

2.1.1. Atos específicos durante procedimentos de fiscalização como violações autônomas a direitos fundamentais

A primeira razão pela qual as garantias processuais devem ser asseguradas aos contribuintes inclusive em procedimentos de fiscalização é explorada com clareza no parecer da AG Kokott no caso État luxembourgeois45. Naquela ocasião, o TJUE decidiu que a possibilidade de um contribuinte contestar o eventual auto de infração como um todo garantiria suficientemente o direito a um recurso judicial (ainda que indireto) contra alguma alegada ilegalidade durante o procedimento de TIR46. A opinião da AG Kokott, no entanto, chegou a outra conclusão.

Alguns anos antes, em seu parecer no caso Sabou, ela concluiu que não seria obrigatório que o contribuinte participasse dos atos relativos a um procedimento de TIR antes mesmo que fossem solicitadas as informações ao Estado-membro requerido. Na ocasião, ela baseou sua conclusão na afirmação de que “as efetivas consequências negativas das investigações estariam, antes de mais, ligadas às suas próprias informações erradas”, e não ao pedido de informações em si47. Independentemente da exatidão da conclusão de que atos praticados num procedimento de TIR por si só não sejam capazes de levar a violações dos direitos dos contribuintes48, o que importa é destacar que, de acordo com seu raciocínio, onde possa haver uma violação a um direito fundamental, um recurso judicial adequado deve estar disponível. Avançando nesse raciocínio, em seu parecer no caso État luxembourgeois, a AG Kokott desenvolveu a abordagem da “independência das interferências”49. Nesse sentido, a solicitação de dados pessoais constitui “uma intervenção na esfera privada do contribuinte que é protegida no plano do direito da União”. A obrigação decorrente da lavratura do auto de infração, por outro lado, constitui outra interferência autônoma, que normalmente não afeta os direitos de privacidade, mas a igualdade perante a lei (art. 20 da Carta), a liberdade de empresa (art. 16 da Carta) ou mesmo o direito de propriedade (art. 17 da Carta)50. Como se vê, ambas as interferências são independentes, afetam direitos completamente diferentes e, no final, exigem que recursos judiciais específicos e separados sejam assegurados ao contribuinte.

A AG Kokott demonstrou a independência de tais interferências “pelo facto de a recolha de dados não se tornar ilegal pelo simples facto de a liquidação do imposto estar errada. A liquidação do imposto também não se torna necessariamente errada só porque a recolha de dados é ilegal”51. A independência se reforça com a constatação de que, caso o auto de infração sequer venha a ser lavrado, então o contribuinte se verá privado de qualquer recurso contra as eventuais violações levadas a efeito no procedimento de TIR52. Na perspectiva das violações dos direitos dos contribuintes, portanto, revela-se artificial a distinção entre uma fase administrativa e uma fase contenciosa, no sentido de que a primeira apenas implica atos preparatórios que seriam inofensivos aos direitos dos contribuintes. Muito pelo contrário, não é raro que as autoridades fiscais pratiquem atos que possam resultar em violações a direitos antes mesmo da formalização de qualquer acusação, o que naturalmente exige um recurso judicial adequado.

O que importa a partir de todo esse raciocínio é a percepção de que, durante um procedimento de fiscalização, são praticados atos que podem constituir interferências autônomas nos direitos fundamentais dos contribuintes, independentemente da subsequente lavratura, ou não, de um auto de infração. Assim, deverá ser disponibilizado ao contribuinte um recurso efetivo contra tais interferências, em consonância com o princípio geral da observância dos direitos de defesa, que abrange também o direito de ser ouvido e o direito de acesso aos documentos pertinentes. A interdependência desses três aspectos do princípio geral da observância dos direitos de defesa é crucial, uma vez que o contribuinte só poderá ingressar com uma ação efetiva perante um tribunal contra alguma interferência se, e somente se, lhe for fornecida a informação de que tal interferência é iminente ou está em curso.

2.1.2. Avaliação das particularidades relevantes e do direito ao tratamento igualitário

A segunda razão pela qual devem ser asseguradas garantias processuais especialmente em procedimentos de fiscalização está relacionada com a própria função de uma investigação tributária, bem como com o significado central de uma boa administração. É evidente que um bom procedimento de auditoria fiscal visa avaliar se o contribuinte cumpriu com suas obrigações de acordo com a legislação (PISTONE, 2020, p. 34). Para chegar a esse fim, no entanto, é imprescindível à administração tributária coletar provas e informações que demonstrem a real situação do contribuinte perante os padrões gerais previstos na legislação.

Os padrões gerais previstos na legislação e a avaliação precisa da situação do contribuinte desempenham em conjunto um papel decisivo para a realização do direito à igualdade perante a lei, também consagrada na Carta (art. 20). De forma simples, apenas será assegurado aos contribuintes receber um tratamento igualitário por parte da administração tributária se ela for capaz de avaliar as particularidades da situação em que se encontra aquele contribuinte, a fim de decidir, após justificativa adequada, se o contribuinte se enquadra ou não na hipótese legal tributável. Sob essas premissas, o direito de ser ouvido pode ser qualificado como corolário da igualdade perante a lei: apenas podendo apresentar suas próprias particularidades será garantido ao contribuinte que a decisão da administração se fundamentará em sua real situação e, portanto, em conformidade com o direito a um tratamento igualitário. Afinal, apenas mediante a oportunidade aos contribuintes para destacarem suas particularidades é que a administração poderá exercer adequadamente suas funções, bem como equiparar aquelas em situações comparáveis e diferenciar aquelas cujas particularidades levam à necessidade de um tratamento, portanto, diferenciado.

2.2. Como os direitos dos contribuintes devem ser assegurados durante procedimentos de fiscalização

2.2.1. O direito de ser (seriamente) ouvido

O direito de ser ouvido constitui uma das maiores garantias do contribuinte durante um procedimento de fiscalização. Tal garantia deriva tanto do princípio geral da observância dos direitos de defesa, conforme estabelecido na jurisprudência do TJUE53, quanto do direito à boa administração.

O direito à boa administração abrange tanto o direito de ser ouvido [art. 41(2)(a) da Carta] quanto o direito de cada pessoa acessar os respectivos documentos [art. 41(2)(b) da Carta]. Como consequência de tais garantias, a administração deve fundamentar adequadamente suas decisões [art. 41(2)(c) da Carta], caso contrário ambos os direitos se tornariam inócuos, i.e., se a administração pudesse simplesmente ignorar os argumentos apresentados pelo cidadão54. Em outras palavras, o direito à boa administração também “implica igualmente que a Administração preste toda a atenção necessária às observações assim submetidas pelo interessado, examinando, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto e fundamentando a sua decisão de forma circunstanciada”55. É por isso que, nos termos do art. 41 da Carta, o cidadão tem o direito de ser seriamente ouvido.

Uma questão importante é verificar se o direito à boa administração (art. 41 da Carta) aplica-se a assuntos tributários, uma vez que os procedimentos nessa seara são conduzidos pelas autoridades nacionais e não pelas “instituições, órgãos e organismos da União”, como referido no art. 41(1) da Carta. Em contraposição ao entendimento de que esse direito teria um escopo restrito aos órgãos da UE (CLASSEN, 2008, p. 75, 94), a jurisprudência do TJUE parece ter ampliado o rol de destinatários do art. 41(1)(2) da Carta para incluir também as autoridades nacionais dos Estados-membros (NÖHMER, 2013, p. 50)56. De qualquer forma, o direito de ser ouvido tem sido consistentemente incluído no âmbito do princípio geral da observância dos direitos de defesa, portanto, é improvável que o TJUE retroceda nesta questão, para privar os cidadãos do direito de serem ouvidos exclusivamente no fundamento da redação do art. 41(1) da Carta.

Embora o TJUE não tenha chegado a esta conclusão acerca dos contribuintes em procedimentos de TIR, nos casos do IVA foi claramente reconhecido que o direito de ser ouvido, para ser eficaz, deve ser assegurado antes da tomada da decisão administrativa (KOKOTT/PISTONE/MILLER, 2020, p. 207). Esse aspecto é de extrema relevância e demonstra que o simples fato de um recurso judicial estar disponível para que o contribuinte conteste o auto de infração como todo não suprime a irregularidade prévia durante o procedimento de fiscalização, decorrente do fato de não lhe ter sido franqueada a oportunidade de manifestar-se. Essa conclusão é ainda mais evidente se considerado que o direito de ser ouvido – mais uma vez ligado ao princípio da igualdade – visa também “permitir que essa pessoa possa corrigir um erro ou invocar determinados elementos relativos à sua situação pessoal que militem no sentido de a decisão ser tomada, não ser tomada ou ter determinado conteúdo”57.

2.2.2. O direito de acessar os documentos relevantes

O direito de acessar os documentos relevantes, juntamente com o direito de ser ouvido, constitui o núcleo central do direito a uma boa administração, conforme sublinhado no art. 41(2) da Carta. Da mesma forma, decorre diretamente do princípio geral da observância dos direitos de defesa, principalmente sob a perspectiva da igualdade de armas58. Por essa razão, as considerações acima relativas à sua aplicação às autoridades da UE e nacionais também são aplicáveis aqui.

Mais importante, ambas as garantias estão intrinsecamente conectadas: sem acessar os respectivos documentos, o contribuinte será simplesmente incapaz de formular suas considerações adequadamente, o que prejudica severamente a proteção do direito de ser ouvido (NÖHMER, 2013, p. 52; CLASSEN, 2008, p. 247). Portanto, o direito de acessar os documentos relevantes também deve ser franqueado em tempo hábil. Em outras palavras, tal garantia implica o direito de acessá-los antes da tomada da decisão administrativa, considerando um tempo razoável para o contribuinte analisá-los e formular suas devidas considerações (KOKOTT/PISTONE/MILLER, 2020, p. 207). Naturalmente, para avaliar se tal garantia foi razoavelmente assegurada ao contribuinte, devem ser examinadas circunstâncias factuais do caso específico59.

A partir da redação do art. 41(2)(b), pode-se argumentar que tal garantia não se constituiria num direito geral de acessar documentos, limitando-se ao acesso do contribuinte “aos processos que se lhe refiram” (NÖHMER, 2013, p. 51). É problemático, no entanto, determinar o que deve constituir, ou não, os autos de um processo pessoal do contribuinte. Em outras palavras, a questão centra-se na possibilidade de que a administração tenha a discricionariedade para incluir alguns documentos nos autos, bem como excluir outros documentos dali, de forma que o direito do contribuinte se limitasse aos documentos que a administração considerava pertinentes ao seu processo. Afinal, o conceito de “processos que lhe refiram”, no sentido de “autos”, é literalmente mais estreito do que o conceito de “documentos relevantes” (CLASSEN, 2008, p. 240-241).

Mais uma vez, a mera referência às restrições literais dos dispositivos da Carta não parece ser o raciocínio mais adequado para abordar a questão. Antes, o contribuinte tem o direito de acessar todos os documentos relevantes relativos ao seu caso, independentemente de sua inclusão em um processo formal pelo fisco. Ou seja, essa garantia não se limita aos documentos que a administração avaliou como relevantes para demonstrar os fundamentos da decisão contra o contribuinte (KOKOTT/PISTONE/MILLER, 2020, p. 207). Para ser efetiva, essa garantia dá ao contribuinte o direito de acessar todos os “documentos que não servem diretamente para fundamentar a decisão da Administração Fiscal, mas podem ser úteis ao exercício dos direitos de defesa, em especial aos elementos de defesa que esta administração possa ter obtido”60. Assim, o contribuinte tem o direito de acessar todos os documentos relevantes, em um sentido mais amplo, que foram recolhidos durante o procedimento.

2.2.3. O direito a um recurso judicial eficaz

Assim como as garantias acima, o direito a um recurso judicial eficaz deriva do princípio geral da observância dos direitos de defesa, bem como está consagrado na Carta (art. 47). De acordo com a jurisprudência do TJUE, qualquer pessoa tem o direito de contestar qualquer decisão que a afete negativamente perante um tribunal independente e imparcial com jurisdição para avaliar plenamente a legalidade da decisão, ou seja, considerando todas as questões relevantes de fato e de direito61. Além da disponibilidade de um tribunal independente e imparcial, tal garantia traz também outros aspectos relevantes a serem protegidos.

Em primeiro lugar, violações de direitos exigem a interrupção imediata da interferência. Em outras palavras, embora toda violação de direitos possa levar a uma posterior compensação por danos causados, o recurso que deve estar primariamente disponível é um meio de prevenir ou cessar a violação em si. Essa consideração está diretamente ligada ao momento em que o recurso judicial se encontra disponível. É dizer, para ser eficaz, o recurso judicial deve estar disponível antes que os direitos sejam violados ou, no limite, durante a violação.

Todo esse raciocínio é reforçado pela abordagem da “independência das interferências” desenvolvida pela AG Kokott em seu parecer no caso État luxembourgeois62. Afinal, se atos específicos durante um procedimento de fiscalização podem constituir violações autônomas a direitos dos contribuintes, o direito a um recurso judicial efetivo exige que o contribuinte seja prontamente capaz de levar o caso a um tribunal, a fim de evitar que seu direito seja violado. Em outras palavras, como corretamente afirmado pela AG Kokott naquela ocasião, a mera possibilidade de contestar judicialmente o auto de infração após sua lavratura não é suficiente para reparar a interferência que, afinal, já terá sido executada pela administração.

Em segundo lugar, as considerações acima levam à conclusão de que a efetiva disponibilidade de um recurso judicial depende por completo do direito de ser ouvido e de acessar os documentos pertinentes. Caso contrário, o contribuinte pode nem mesmo ser capaz de saber que uma violação está em curso ou provavelmente será executada, nem acessar todos os elementos relevantes que possam ser levados ao tribunal a fim de prevenir ou cessar tal interferência.

2.3. Quando os contribuintes têm direito a tais garantias no âmbito do direito da UE

2.3.1. A ampliação do escopo de aplicação da Carta

As considerações acima foram baseadas na Carta e nos princípios gerais da UE como fontes de direitos fundamentais dos contribuintes. Resta, porém, analisar o campo de aplicação desses direitos fundamentais, enquanto obrigações dos Estados-membros derivadas do Direito da UE. Os Estados-membros são obrigados a observar as garantias previstas na Carta “apenas quando apliquem o direito da União” [art. 51(1)]. Pode-se, então, questionar se procedimentos de fiscalização, uma vez que visam avaliar a devida observação da legislação tributária nacional pelo contribuinte, de fato constituiriam uma aplicação do Direito da UE, para fins de aplicação da Carta. Afinal, regra geral, o procedimento de fiscalização é integralmente regido pela legislação nacional63.

Nada obstante, em sua jurisprudência, o TJUE não tem interpretado a expressão “aplicação do Direito da UE” como a mera transposição das disposições do direito primário e secundário da UE64. Nesse sentido, a Carta é aplicável e obrigatória aos Estados-membros em todas as situações que estejam cobertas pelo Direito da UE65. Tal circunstância se verifica particularmente quando a administração tributária de um Estado-membro realiza procedimentos que visam verificar a retidão dos contribuintes perante a legislação nacional que atenda a objetivos abrangidos pelo Direito da UE66.

Por essa razão, os direitos fundamentais previstos na Carta aplicam-se indiscutivelmente a questões tributárias harmonizadas no nível da UE, como a tributação indireta (IVA). Além disso, a Carta desempenha também um papel relevante em áreas altamente harmonizadas, como a assistência mútua em matéria tributária (ADAMCZYK/MAJDAŃSKA, 2020, p. 16).

A definição do âmbito de aplicação da Carta, tal como delineada na jurisprudência do TJUE, resulta numa expressiva ampliação de seu escopo em razão do recente desenvolvimento de uma resposta coordenada ao abuso em matéria tributária dentro da UE, catalisada pelo Projeto de Erosão da Base da OCDE/G20 (“BEPS”) (PISTONE/SZUDOCZKY, 2020, p. 56-60). Nesse sentido, o exemplo mais sólido é a Diretiva Antielisão Fiscal (“ATAD”)67 e a regra geral antiabuso proposta (art. 6º): seguindo o raciocínio do TJUE, os Estados-membros estão vinculados à Carta sempre que as suas administrações fiscais realizarem procedimentos que se voltem a esquemas abusivos e que possivelmente resultem na aplicação de uma regra geral antiabuso prevista na legislação doméstica.

2.3.2. Restrições como exceções devidamente justificadas

Embora a jurisprudência estabelecida do TJUE tenha ampliado o campo de aplicação da Carta, também é amplamente reconhecido que os direitos fundamentais nela consagrados não constituem prerrogativas irrestritas, podendo ser restringidos, desde que tais restrições sejam proporcionais e fundamentadas em objetivos de interesses gerais68. Mais importante do que os reconhecer como sujeitos a restrições, no entanto, é determinar em que circunstâncias tais restrições são aceitáveis ou de outra forma constituem uma violação.

O simples fato de que nem as normas da UE, nem a legislação doméstica prevejam, por exemplo, um procedimento específico para assegurar tais garantias não é suficiente para privar o contribuinte de seus direitos processuais no curso de um procedimento de fiscalização. Embora existam muitos aspectos processuais em matéria tributária que permaneçam sob a soberania dos Estados-membros (princípio da autonomia processual nacional), o princípio da eficácia impede que o direito processual interno seja impossível ou excessivamente difícil de assegurar direitos fundamentais derivados do Direito da UE (ADAMCZYK/MAJDAŃSKA, 2020, p. 31).

Além disso, tratando-se da proporcionalidade da restrição, não se pode ignorar que tal controle é, sobretudo, uma avaliação da relação entre meio e fim da medida concreta (ÁVILA, 2015, p. 205). É exatamente por isso que considerações gerais e abstratas – hoje em dia frequentemente relacionadas à prevenção do abuso, de planejamentos tributários agressivos entre outros – não constituem, per se, justificativas admissíveis para restrições a direitos fundamentais.

O caso État luxembourgeois fornece um claro exemplo de justificação insuficiente da restrição aos direitos fundamentais. Naquela ocasião, como visto, o TJUE negou à contribuinte o direito de ser ouvida e a um eficaz recurso judicial no contexto de um procedimento de TIR. Para justificar a medida nacional, o TJEU afirmou que o combate à fraude fiscal internacional é um objetivo do Direito da UE; a cooperação rápida e eficiente entre os Estados-membros daria expressão concreta a esse objetivo; portanto, a restrição a esses direitos seria medida adequada e necessária para alcançar referido objetivo69. No entanto, a decisão não demonstrou que o afastamento desses direitos do contribuinte corroboraria, efetivamente, com o objetivo de combater a fraude fiscal internacional, ou seja, não demonstrou que, tivessem tais direitos sido assegurados, haveria uma resposta mais fraca ou menos eficaz à fraude fiscal internacional. Esse raciocínio poderia ser qualificado como uma consideração geral e abstrata, uma vez que muitas questões relativas ao caso específico deixaram de ser apreciadas. O direito a um recurso judicial à contribuinte atrasaria, de fato, o procedimento do TIR, uma vez que foi reconhecido o direito do detentor da informação de contestar a ordem? Esse eventual atraso representaria qualquer perda efetiva de receitas para o Estado-membro (por exemplo, em razão do decurso de prazos decadenciais ou prescricionais)? Havia algum risco de perda de provas ou manipulação de testemunhas? Somente se a administração tributária tivesse demonstrado, a partir de questões tais como essas, que a garantia aos direitos processuais do contribuinte concreta e efetivamente resultaria em graves prejuízos ao objetivo de combate a fraudes fiscais internacionais, a restrição poderia ter sido considerada devidamente justificada.

As considerações acima demonstram que as restrições aos direitos fundamentais dos contribuintes devem ser tomadas, em primeiro lugar, como efetivas exceções. Na maioria dos casos, eles devem ser assegurados ao contribuinte, caso contrário, não seriam nem fundamentais, nem direitos, mas apenas concessões da administração. Em segundo lugar, as restrições devem ser devidamente fundamentadas pelo agente que as pratica, ou seja, pela administração tributária.

Por fim, a justificativa deve sempre poder ser avaliada por um tribunal judicial. Em outras palavras, se houver alguma circunstância em um procedimento de fiscalização que justifique alguma restrição a direito dos contribuintes, a administração tributária deve formalizar suas razões por escrito e apresentar tal justificativa ao contribuinte no final do procedimento, acompanhada do auto de infração, se houver. Isso porque, ao fim e ao cabo, o dever da administração tributária de prover uma decisão adequadamente fundamentada, inclusive sobre as próprias restrições aos direitos dos contribuintes, é o único modo pelo qual tal restrição pode ser submetida integralmente a uma revisão judicial70.

Conclusões

As considerações acima demonstram que, embora a jurisprudência do TJUE não seja linear sobre a proteção dos direitos dos contribuintes durante procedimentos de fiscalização, ainda há espaço para melhorias nesse campo nos termos do Direito da UE. Por um lado, nos casos que tratam da tributação direta, principalmente dos procedimentos de TIR, os contribuintes têm sido repetidamente privados de garantias processuais sob a alegação de que tais direitos só devem ser assegurados após a lavratura de um auto de infração, inaugurando a fase contenciosa. Por outro lado, nos casos que tratam da tributação indireta, as garantias processuais durante procedimentos de fiscalização, especialmente o direito de ser ouvido e de acessar documentos, são reafirmadas de forma reiterada. Essa inconsistência, no entanto, não se baseia em qualquer diferença particular entre esses campos, uma vez que também a tributação direta tem sido objeto de uma crescente harmonização a nível da UE (a assistência mútua e as medidas antiabuso são bons exemplos).

Tendo sido demonstrado o espaço para o aprimoramento da efetiva proteção dos direitos dos contribuintes no contexto de procedimentos de fiscalização, há pelo menos duas razões pelas quais o direito de ser ouvido e de acessar documentos deve ser assegurado mesmo – e principalmente – antes da lavratura de qualquer auto de infração. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que, durante um procedimento de fiscalização, são praticados diversos atos que podem constituir interferências autônomas nos direitos fundamentais dos contribuintes, independentemente da subsequente lavratura, ou não, de um auto de infração. Embora tais interferências possam ser compensadas ex post em caso de danos, a função primária de um recurso judicial eficaz é prevenir ou cessar violações sobre direitos fundamentais. A disponibilidade de um recurso judicial efetivo contra tais interferências, portanto, não deve se limitar a uma fase dita “contenciosa”, ou seja, após a lavratura de um auto de infração. Muito pelo contrário, o contribuinte só poderá valer-se de um recurso judicial efetivo contra alguma interferência se, e somente se, lhe for fornecida a informação de que tal interferência está em curso. Essa oportunidade está claramente ligada ao direito de ser ouvido e de acessar os documentos relevantes, particularmente durante a fase dita “administrativa”. Em segundo lugar, para garantir um tratamento igualitário adequado, os contribuintes devem ser capazes de destacar suas particularidades que, em seu entendimento, podem afetar o regime jurídico aplicável a eles, ou seja, se são submetidos ou não a padrões gerais previstos na legislação. É por isso que o direito de ser ouvido pode ser qualificado como corolário da igualdade em matéria tributária, desde que seja efetivado antes que a administração tome qualquer decisão que possa afetar negativamente o contribuinte.

Por esses motivos, o contribuinte deve ter assegurada a oportunidade de ser seriamente ouvido pela Administração antes que qualquer decisão que possa afetá-lo de forma negativa seja tomada. Implica a obrigação da Administração de levar em consideração o raciocínio e as opiniões fornecidas pelo contribuinte, bem como formalizar uma declaração de razões para sua decisão. Essa garantia implica também o direito de acessar os documentos relevantes, caso contrário, o contribuinte não seria capaz de formular adequadamente sua consideração. Mais uma vez, tais garantias devem ser asseguradas em tempo hábil: o contribuinte tem o direito de acessar os documentos pertinentes antes da tomada da decisão administrativa, considerando um tempo razoável para analisá-los e formular suas devidas considerações. Esse é exatamente o passo que o TJUE deve dar para que suas decisões estejam alinhadas com uma proteção mais eficaz dos direitos dos contribuintes.

Haverá, obviamente, ocasiões em que tais garantias podem ser restringidas com base em objetivos de interesse geral. Não obstante, as restrições devem ser proporcionais e, portanto, verdadeiras exceções: na maioria dos casos, tais direitos deverão ser assegurados ao contribuinte. Nesse sentido, considerações gerais e abstratas – hoje em dia frequentemente relacionadas à prevenção do abuso, ao planejamento tributário agressivo, entre outros – não constituem, por si só, justificativa admissível para restrições. De fato, a justificativa deve estar efetivamente ligada a circunstâncias específicas do caso que demonstrem que essas garantias realmente prejudicarão de forma relevante um objetivo de interesse geral. Portanto, os casos excepcionais em que há alguma restrição necessária devem ser formalmente justificados pela administração tributária por escrito. Afinal, também a restrição a um direito processual deve estar sujeita a um recurso judicial efetivo perante um tribunal independente e imparcial que tenha plena jurisdição para rever a legalidade de tais restrições, o que só pode ser assegurado se as razões da administração forem devidamente formalizadas e, então, sujeitas ao escrutínio de um tribunal.

Do ponto de vista da jurisprudência do STF, portanto, guardadas as devidas diferenças entre os sistemas de direitos fundamentais da UE e aquele consagrado na CF/1988, remanesce a reflexão acerca do aprimoramento das garantias processuais de contribuintes no curso de procedimentos administrativos. Deixa-se de lado, assim, uma resposta a priori pela inaplicabilidade de tais garantias na fase administrativa que antecede o lançamento para voltar-se a atenção às – excepcionais, proporcionais e devidamente fundamentadas – situações em que tais garantias podem ser restringidas em vistas a objetivos de interesse público.

Referências

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Decisões citadas

CJEU, 7 de maio de 2017, Processo C-617/10, Åkerberg Fransson, EU:C:2013:280.

CJEU, 16 de maio de 2017, Processo C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373.

CJEU, 4 de junho de 2020, Processo C-430/19, C.F., EU:C:2020:429.

CJEU, 25 de novembro de 2021, Processo C-437/19, État luxembourgeois, EU:C:2021:953.

CJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, UE:C:2020:795.

CJEU, 16 de outubro de 2019, Processo C-189/18, Glencore Agricultura Hungria, UE:C:2019:861.

CJEU, 9 de novembro de 2017, Processo C-298/16, Ispas, EU:C:2017:843.

CJEU, 22 de novembro de 2012, Processo C-277/11, M., EU:C:2012:744.

CJEU, 22 de outubro de 2013, Processo C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678.

CJEU, 18 de dezembro de 2008, Processo C-349/07, Sopropé, EU:C:2008:746.

CJEU, 21 de novembro de 1991, Processo C-269/90, Technische Universität München, UE:C:1991:438.

CJEU, 26 de setembro de 2013, Processo C-418/11, Software Texdata, EU:C:2013:588.

CJEU, 17 de dezembro de 2015, Processo C-419/14, WebMindLicenses, EU:C:2015:832.

STF, Primeira Turma, Habeas Corpus 82.354, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10.8.2014, DJe 24.9.2004.

STF, Segunda Turma, Habeas Corpus 93.050, Rel. Min. Celso de Melo, j. 10.6.2008, DJe 1.8.2008.

STF, Primeira Turma, Recurso Extraordinário 304.857, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 24.11.2009, DJe 5.2.2010.

STF, Primeira Turma, Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 481.955, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 10.5.2011, DJe 26.5.2011.

STF, Decisão Monocrática, Recurso Extraordinário com Agravo 1.279.182, Min. Dias Toffoli, j. 21.7.2020, DJe 24.7.2020.

1 Os relatórios nacionais da Bulgária apresentaram respostas divergentes.

2 TJEU, 22 de outubro 2013, Caso C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678, § 46; TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 93.

3 Entre os membros da UE, apenas na República Tcheca, na Dinamarca e na Suécia esse direito é assegurado.

4 TJEU, 26 de setembro de 2013, Caso C-418/11, Texdata Software, EU:C:2013:588.

5 STF, Primeira Turma, Recurso Extraordinário 304.857, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 24.11.2009, DJe 5.2.2010.

6 Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 481.955, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 10.5.2011, DJe 26.5.2011.

7 STF, Primeira Turma, Habeas Corpus 82.354, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10.8.2014, DJe 24.9.2004.

8 STF, Decisão Monocrática, Recurso Extraordinário com Agravo 1.279.182, Min. Dias Toffoli, j. 21.7.2020, DJe 24.7.2020.

9 STF, Segunda Turma, Habeas Corpus 93.050, Rel. Min. Celso de Melo, j. 10.6.2008, DJe 1.8.2008.

10 Veja o item 2.2.1 abaixo.

11 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 66.

12 Décima primeira Diretiva 89/666/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, relativa à publicidade das sucursais criadas num Estado-membro por certas formas de sociedades reguladas pelo direito de outro Estado.

13 TJEU, 26 de setembro de 2013, Caso C-418/11, Texdata Software, EU:C:2013:588, § 85.

14 Parecer do AG Mengozzi, 31 de janeiro de 2013, Processo C-418/11, Texdata Software, EU:C:2013:50, § 94.

15 TJEU, 26 de setembro de 2013, Caso C-418/11, Texdata Software, EU:C:2013:588, § 84; Conclusões do AG Mengozzi, 31 de janeiro de 2013, Caso C-418/11, Texdata Software, EU:C:2013:50, § 92.

16 TJEU, 22 de outubro de 2013, Caso C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678, § 38

17 TJEU, 22 de outubro de 2013, Caso C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678, § 41.

18 TJEU, 22 de outubro de 2013, Caso C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678, § 40.

19 TJEU, 22 de outubro de 2013, Caso C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678, § 36.

20 TJEU, 22 de outubro de 2013, Caso C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678, §§ 45 e 49.

21 TJEU, 16 de maio de 2017, Caso C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373. O TJUE confirmou as conclusões do caso Berlioz em uma decisão que tratou de questões bastante semelhantes, outro caso luxemburguês: TJEU, 25 de novembro de 2021, Caso C-437/19, État luxembourgeois, EU:C:2021:953.

22 TJEU, 16 de maio de 2017, Caso C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, § 55.

23 TJEU, 16 de maio de 2017, Caso C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, § 55.

24 TJEU, 16 de maio de 2017, Caso C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, § 57.

25 TJEU, 16 de maio de 2017, Caso C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, §§ 58-59.

26 TJEU, 16 de maio de 2017, Caso C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, § 101.

27 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795.

28 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, §§ 58-59.

29 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 68.

30 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 80.

31 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 81.

32 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 84.

33 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 101.

34 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados).

35 Conclusões do AG Mengozzi, 16 de setembro de 2015, Caso C-419/14, WebMindLicenses, EU:C:2015:606, §§ 28 e 140; TJEU, 17 de dezembro de 2015, Caso C-419/14, WebMindLicenses, EU:C:2015:832, § 85.

36 TJEU, 17 de dezembro de 2015, Caso C-419/14, WebMindLicenses, EU:C:2015:832, § 91.

37 TJEU, 17 de dezembro de 2015, Caso C-419/14, WebMindLicenses, EU:C:2015:832, § 84; TJEU, 22 de outubro de 2013, Caso C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678, § 38.

38 TJEU, 22 de outubro de 2013, Caso C-276/12, Sabou, EU:C:2013:678, § 41.

39 TJEU, 9 de novembro de 2017, Caso C-298/16, Ispas, EU:C:2017:843, § 26.

40 TJEU, 9 de novembro de 2017, Caso C-298/16, Ispas, EU:C:2017:843, § 31.

41 TJEU, 9 de novembro de 2017, Caso C-298/16, Ispas, EU:C:2017:843, § 34.

42 TJEU, 16 de outubro de 2019, Caso C-189/18, Glencore Agricultura Hungria, EU:C:2019:861, § 55.

43 TJEU, 4 de junho de 2020, Processo C-430/19, C.F., EU:C:2020:429, § 30.

44 TJEU, 4 de junho de 2020, Processo C-430/19, C.F., EU:C:2020:429, § 37.

45 Conclusões da AG Kokott, 2 de julho de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:516.

46 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 84.

47 Conclusões da AG Kokott, 6 de junho de 2013, Processo C-276/12, Sabou, EU:C:2013:370, § 59.

48 A distinção proposta em seu parecer entre os casos Sabou e État luxembourgeois não parece convincente: “Enquanto no processo Sabou estava em causa um pedido de informações junto de outra autoridade pública, no presente caso trata-se de uma decisão de uma injunção sob pena de sanção aplicada a um particular.” (Conclusões da AG Kokott, 2 de julho de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:516, § 80). Por outro lado, os dois casos, sob a perspectiva do contribuinte, apresentam a mesma controvérsia, com a única diferença que, no caso Sabou, o contribuinte reivindicou o direito de ser ouvido antes que a ordem de informação fosse emitida pelo Estado-membro solicitado, enquanto, no caso État luxembourgeois, o contribuinte pleiteou um recurso judicial contra a ordem. Essa diferença temporal não parece de grande relevância, bem como não parece claramente definido o conceito de “an intermediate step in an administrative procedure” (Id., parágrafo 81 – “Zwischenschritt im Rahmen eines Verwaltungsverfahrens” na versão original em alemão), em que as suas conclusões parecem se basear.

49 Conclusões da AG Kokott, 2 de julho de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:516, § 71.

50 Conclusões da AG Kokott, 2 de julho de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:516, § 71.

51 Conclusões da AG Kokott, 2 de julho de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:516, § 72.

52 Conclusões da AG Kokott, 2 de julho de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:516, § 73.

53 TJEU, 18 de dezembro de 2008, Processo C-349/07, Sopropé, EU:C:2008:746, §§ 36-37.

54 Resultando nesse efeito, cf. TJEU, 22 de novembro de 2012, Processo C-277/11, M., EU:C:2012:744, § 88.

55 TJEU, 16 de outubro de 2019, Processo C-189/18, Glencore Agricultura Hungary, EU:C:2019:861, § 42.

56 TJEU, 22 de novembro de 2012, Caso C-277/11, M., EU:C:2012:744, §§ 83-85.

57 TJEU, 16 de outubro de 2019, Processo C-189/18, Glencore Agricultura Hungary, EU:C:2019:861, § 41; TJEU, 4 de junho de 2020, Processo C-430/19, C.F., EU:C:2020:429, § 30.

58 TJEU, 9 de novembro de 2017, Processo C-298/16, Ispas, EU:C:2017:843, § 34.

59 TJEU, 16 de maio de 2017, Processo C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, § 97.

60 TJEU, 16 de outubro de 2019, Processo C-189/18, Glencore Agricultura Hungary, EU:C:2019:861, § 54.

61 TJEU, 16 de maio de 2017, Processo C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, §§ 54-56; TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 66.

62 Conclusões da AG Kokott, 2 de julho de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:516, § 71. Cf. o item 2.1.2 acima.

63 Esse foi o argumento levantado pela Comissão no caso Sabou. Cf. Conclusões da AG Kokott, 2 de julho de 2020, Processo C-276/12, Sabou, EU:C:2020:516, § 17.

64 TJEU, 7 de maio de 2017, Processo C-617/10, Åkerberg Fransson, EU:C:2013:280, § 28; TJEU, 16 de maio de 2017, Processo C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, § 40.

65 TJEU, 7 de maio de 2017, Processo C-617/10, Åkerberg Fransson, EU:C:2013:280, § 21.

66 TJEU, 26 de setembro de 2013, Processo C-418/11, Texdata Software, EU:C:2013:588, § 74; TJEU, 16 de maio de 2017, Processo C-682/15, Berlioz, EU:C:2017:373, § 41; TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 46.

67 Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno.

68 TJEU, 26 de setembro de 2013, Processo C-418/11, Texdata Software, EU:C:2013:588, § 84; TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, § 46; TJEU, 17 de dezembro de 2015, Processo C-419/14, WebMindLicenses, EU:C:2015:832, § 69; TJEU, 9 de novembro de 2017, Caso C-298/16, Ispas, EU:C:2017:843, § 35; TJEU, 16 de outubro de 2019, Processo C-189/18, Glencore Agricultura Hungria, EU:C:2019:861, § 43.

69 TJEU, 6 de outubro de 2020, Processos reunidos C-245/19 e C-246/19, État luxembourgeois, EU:C:2020:795, §§ 89-91.

70 TJEU, 21 de novembro de 1991, Caso C-269/90, Technische Universität München, EU:C:1991:438, § 14.