A Qualificação dos Juros sobre o Capital Próprio à Luz do Tratado de Bitributação Brasil-Holanda: Análise do Decreto do Secretário de Finanças da Holanda de 4 de Agosto de 2020 (n. 2020-14853)*

Kees van Raad

Professor de Direito Tributário Internacional, University of Leiden. Presidente do International Tax Center (ITC) Leiden, Consultor na Loyens & Loeff.

https://doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n10-8

1. Introdução

Este artigo analisa, da perspectiva brasileira e holandesa, o Decreto do Secretário de Finanças da Holanda, de 4 de agosto de 2020, n. 2020-14853 (Decreto), que tratou da qualificação dos juros sobre o capital próprio (JCP) para fins de aplicação do tratado de bitributação celebrado entre o Brasil e a Holanda, em 8 de março de 1990 (Tratado).

O Professor Kees van Raad publicou, em holandês1, uma revisão crítica ao referido Decreto. Na ocasião, tive a satisfação de auxiliá-lo na preparação do artigo. Uma vez que as observações ali dispostas podem ser de interesse do público brasileiro, o presente artigo é uma versão do artigo original do Professor Kees van Raad.

2. O decreto holandês

O Decreto refere, inicialmente, à falta de precisão na qualificação dos JCP para fins de aplicação do Tratado e esclarece a importância da questão para fins de aplicação do crédito presumido (tax sparing) previsto no Tratado Brasil-Holanda.

Ao tratar da qualificação dos JCP o Decreto afirma que do ponto de vista do direito civil brasileiro, os JCP são equivalentes aos dividendos, enquanto do ponto de vista tributário são tratados como juros. Esclarece, ainda, que os JCP são dedutíveis.

Em seguida, o Decreto esclarece que do ponto de vista tributário holandês, JCP são entendidos como benefícios decorrentes de uma participação no capital de uma empresa. Por tal razão, até 1º de janeiro de 2016, se preenchidos os requisitos da lei holandesa, os JCP recebidos por um acionista holandês poderiam se beneficiar da “isenção de participação” (participation exemption). A partir da referida data, em virtude de alterações na lei tributária da Holanda, os JCP deixaram de fazer jus à isenção de participação pelo fato de serem dedutíveis no Brasil.

Em razão de os JCP terem pasado a ser rendimentos tributáveis na Holanda, o imposto retido na fonte no Brasil (15%) passou a ser creditável na Holanda. Nesse cenário, surge a questão relativa ao crédito presumido previsto no Tratado Brasil-Holanda, o qual será de 25% no caso de dividendos, ou de 20% no caso de juros. Para determinar o crédito presumido aplicável, faz-se importante determinar se os JCP são qualificados como dividendos ou juros para fins de aplicação do Tratado Brasil-Holanda.

Nesse sentido, o Decreto afirma que de acordo com os arts. 10(3) e 11(4), ambos do Tratado, o fator determinante para qualificação dos rendimentos é a forma que o país da fonte (país do qual os pagamentos são realizados) trata tais rendimentos para fins tributários. Afirma, em seguida, que para fins tributários brasileiros JCP são tratados como juros. Conclui, então, que para fins de aplicação do Tratado Brasil-Holanda, tal qualificação deve ser seguida, resultando em um crédito presumido de 20%.

3. O debate brasileiro

No Brasil, é intenso o debate sobre o propósito e a natureza jurídica dos JCP.

a. Contexto histórico da criação dos JCP

Por meio da Lei n. 9.249/1995, a introdução dos JCP se deu concomitantemente à extinção da correção monetária dos balanços, à isenção dos dividendos e à extinção da isenção do imposto de renda incidente sobre a remessa de juros para o exterior. Nesse contexto, diversos propósitos são apontados como motivadores da criação dos JCP.

Um dos mais citados motivos para a introdução dos JCP relaciona-se ao fim da correção monetária dos balanços. Sustenta-se que com tal extinção surgiria o receio de que investidores deixassem de aplicar recursos no capital das sociedades, e passassem a financiá-las por meio de empréstimos, uma vez inexistente o mecanismo de neutralização da perda do poder aquisitivo da moeda2. Os JCP, assim, seriam um mecanismo para incentivar investimentos de capital nas empresas.

Também encontram-se na própria exposição de motivos da Lei n. 9.249/1995 justificativas para a introdução dos JCP como um mecanismo (i) capaz compatibilizar o tratamento tributário aplicável ao capital próprio e ao capital de terceiros, (ii) desonerar dividendos, (iii) incentivar a capitalização das empresas e o desenvolvimento da economia, (iv) bem como equalizar o tratamento do capital nacional e estrangeiro3.

Há ainda o argumento de que a introdução dos JCP cumpriria à finalidade de combater a subcapitalização, uma vez que a concessão de empréstimos pelos acionistas não seria mais condição necessária para a dedutibilidade dos juros4.

b. Natureza jurídica dos JCP

O debate sobre a natureza jurídica dos JCP, se juros, dividendos, ou uma terceira categoría de rendimentos adquire relevância prática tanto no cenário doméstico, quanto internacional.

No cenário doméstico brasileiro, a natureza jurídica dos JCP foi por muito tempo alvo de debate para fins de (não) incidência de PIS/Cofins5. No cenário internacional, que é o foco do presente artigo, a classificação se torna extremamente relevante na aplicação dos tratados de bitributação, como já indicado no item 1 deste artigo.

Diante da inexistência de um consenso doutrinário sobre a natureza jurídica dos JCP, cabe revisar os principais argumentos de defesa de cada uma das posições.

A classificação dos JCP como dividendos tem como base os seguintes argumentos6:

i) Os JCP somente são pagos a sócios ou acionistas na proporção de sua participação no capital social;

ii) Os JCP somente são pagos se houver lucros (acumulados ou do exercício);

iii) Os JCP podem ser imputados ao valor do dividendo mínimo obrigatório previsto pela Lei das Sociedades Anônimas;

iv) Conforme orientação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), os JCP devem ser contabilizados na conta de lucros acumulados7;

v) Os JCP não derivam de uma operação de crédito, na qual existe uma obrigação de pagamento das somas antecipadas. A obrigação de pagar juros é uma obrigação certa, enquanto a obrigação de pagar dividendos é aleatória, sujeita ao risco do empreendimento8.

A classificação dos JCP como juros, por sua vez, encontra suporte nos seguintes argumentos9:

i) Os JCP são dedutíveis para fins tributários;

ii) Os JCP são considerados receitas financeiras para fins tributários. Segundo Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil10, os JCP devem ser registrados pelo beneficiário pessoa jurídica como receita financeira, e pelo pagador, ainda quando imputados ao dividendo obrigatório, em contrapartida de despesas financeiras;

iii) Os JCP são submetidos, no Brasil, ao regime jurídico tributário dos juros;

A classificação dos JCP como um instrumento de natureza jurídica tributária própria11 sustenta-se nos seguintes argumentos:

i) A natureza dos JCP não tem amparo em categorias do Direito Privado;

ii) Os JCP correspondem a uma remuneração do capital empregado pelo acionista na empresa, tal qual ocorre em um financiamiento de terceiros;

iii) O conceito tributário de JCP parte da noção econômica de custo de oportunidade. Da perspectiva econômica, o lucro do negócio é composto parte pela remuneração do capital e parte pela atividade produtiva. Os JCP correspondem à remuneração do capital;

iv) Os JCP permitem que se concretizem as exigências do principio da igualdade e da capacidade contributiva (riqueza igualmente tributada independentemente da origem do capital);

v) Tributária e economicamente os JCP equivalem a juros pagos aos acionistas como se estes tivessem “emprestado” dinheiro à sociedade.

c. Os JCP nos tratados de bitributação celebrados pelo Brasil

Após a publicação da Lei n. 9.249/1995, a maioria dos tratados de bitributação celebrados pelo Brasil passaram a incluir disposição específica no Protocolo sobre a qualificação dos JCP como juros. Nesse sentido os tratados com Portugal (2000); Chile (2001); Ucrânia (2002); Israel (2002); México (2003); África do Sul (2003, modificado em 2015); Venezuela (2005); Peru (2006); Rússia (2004); Turquia (2010). O tratado celebrado com Trinidad e Tobago (2008) possui disposição expressa, no art. 11 (4)12 (e não no protocolo) sobre a inclusão dos JCP na definição de juros para fins de aplicação do Tratado Brasil-Trinidade e Tobago.

O Tratado com a Finlândia, embora celebrado em 1996, configura-se exceção por não trazer disposição específica sobre a qualificação dos JCP13.

Dos tratados celebrados e recentemente ratificados, Suíça (2018), Singapura (2018) e Emirados Árabes Unidos (2019) contêm disposição específica nos respectivos protocolos sobre a qualificação dos JCP como juros. O tratado com o Uruguai (2019), ainda sem eficácia, não possui previsão específica sobre a qualificação dos JCP.

Alguns dos tratados anteriores a 1995, os quais foram posteriormente alterados, apresentam, curiosamente, tratamentos distintos. Os protocolos de emenda14 aos tratados da Bélgica15, Dinamarca, Índia, Noruega, Coreia do Sul, não fazem referência ao tratamento dos JCP. O protocolo de emenda ao tratado com a Suécia (protocolo de 2019 alterando o tratado de 1975), ainda pendente de aprovação, contém disposição sobre a qualificação dos JCP como juros. Já o tratado com a Argentina (originalmente celebrado em 1980), cujo protocolo de emenda (2017) foi ratificado em 2018 pelo Congresso Nacional brasileiro, não incluiu uma qualificação expressa para os JCP.

Os demais tratados assinados pelo Brasil, todos anteriores a 1995, não possuem, por razões óbvias, disposição específica em relação aos JCP.

Da análise acima exposta, do ponto de vista da política tributária, resta claro que não foi adotada por parte do Brasil uma posição uniforme sobre o tratamento dos JCP, quando da negociação dos tratados de bitributação. Daí decorrer a necessidade de análise de cada tratado individualmente, de forma consistente ao que tiver sido acordado entre as partes. Voltaremos a esse tópico no decorrer do artigo.

4. O tratamento doméstico na Holanda

A importância da qualificação dos JCP (se dividendos ou juros) para aplicação do Tratado reside, especialmente, no tratamento a ser aplicado na Holanda. Isso por que, desde 2016, segundo a legislação doméstica holandesa, JCP recebidos do Brasil não mais se beneficiam da chamada participation exemption (isenção de participação).

Dessa forma, a aplicação da cláusula do crédito presumido (tax sparing) se torna extremamente relevante.

5. Como os JCP devem ser qualificados na aplicação do Tratado Brasil-Holanda? A resposta do Decreto n. 2020-14853

Somente após quatro anos da mudança da legislação doméstica holandesa, foi publicado o Decreto tratando da qualificação dos JCP para fins de aplicação do Tratado Brasil-Holanda.

Todavia, parece-nos que esse tempo não foi utilizado para analisar de forma adequada as questões relevantes para a aplicação do referido tratado. Ao contrário, o Decreto utiliza-se daquilo que podemos chamar de um “atalho interpretativo”, o qual explicaremos ao longo deste artigo.

A conclusão exposta pelo Decreto justifica-se, fundamentalmente, a partir de duas afirmações:

“Decorre do artigo 10(3)[16] e do artigo 11(4)[17] do Tratado que o fator determinante é a forma que o país da fonte (país do qual os pagamentos são realizados) trata o rendimento para fins tributários.”

“No Brasil, os JCP são tratados para fins tributários como juros.”

Cada uma dessas afirmações será analisada a seguir.

a. O artigo dos dividendos

A primeira questão que se coloca é: a aplicação do art. 10 (3) do Tratado depende realmente “da forma que o país fonte (país do qual os pagamentos são realizados) trata o rendimento para fins tributários”?

A definição de dividendos do Tratado – a qual coincide com a definição da atual convenção modelo da OCDE – compreende três tipos de rendimentos: (i) rendimentos de ações; (ii) [rendimentos de] outros direitos de participação em lucros; e (iii) rendimentos de outras participações de capital assemelhados aos rendimentos de ações pela legislação tributária do Estado em que reside a sociedade que realiza a distribuição.

Possivelmente o Secretário de Estado holandês referiu-se ao terceiro grupo. No entanto, esse grupo compreende rendimentos “de outras participações de capital”, ou seja, rendimentos que são usufruídos na condição de acionistas. E os JCP somente são distribuídos a acionistas. Dessa forma, o fato de que os JCP são dedutíveis para a entidade pagante não tem relevância alguma na definição da qualificação (ou não) como dividendos na aplicação do Tratado Brasil-Holanda. De toda forma, é mister concluir que os JCP subsumem-se à definição de dividendos do art. 10(3) do Tratado em razão da parte final daquela definição. Parece-nos que a afirmação do Decreto não se confirma, portanto, como verdadeira.

b. O artigo dos juros

A primeira afirmativa do Secretário de Finanças se refere à definição de juros contida no art. 11(4) do Tratado Brasil-Holanda. Também aqui o Secretário toma a posição de que o tratamento concedido pelo Estado da fonte é decisivo para a qualificação, e adiciona o seu entendimento de que “no Brasil os JCP são tratados como juros para fins tributários”.

A definição de juros do art. 11(4) do Tratado é derivada da definição de juros da Convenção Modelo da OCDE de 1963, a qual difere, num ponto essencial, da (atual) Convenção Modelo. A diferença se encontra na parte final da definição do Modelo de 1963, qual seja, na seguinte sentença “bem como qualquer outro rendimento que, nos termos da lei tributária do Estado Contratante de que provenha, se assemelhe aos rendimentos do empréstimo”. Em 1977, essa frase foi retirada da definição de juros.

Os JCP não podem ser qualificados segundo a definição geral de juros presente no art. 11(4) do Tratado (“créditos de qualquer natureza”) porque não são “direitos creditórios” (debt-claims). A questão que se põe, portanto, é se os JCP poderiam ser qualificados conforme a segunda parte da definição de juros trazida pelo Tratado. Ao contrário do que sugere o Secretário de Estado holandês, a pergunta que se impõe não é se o Estado fonte trata as distribuições de JCP como juros para fins tributários, mas se as distribuições de JCP são “assimiladas aos rendimentos do empréstimo” pela lei tributária. Decorre, dessa forma, do texto do art. 11(4) do Tratado, que o tratamento tributário dos JCP no Brasil não é decisivo para a aplicação do Tratado. Parece-nos, assim, que a afirmação do Decreto relativa ao art. 11(4) do Tratado também não se apresenta como verdadeira.

Daí se concluir, ainda, que a segunda afirmação proposta pelo Decreto é irrelevante. Na aplicação do Tratado, é irrelevante se o Brasil trata, para fins tributários, os JCP como juros. O que importa, de acordo com o Tratado, é se a lei tributária brasileira define os JCP como “rendimentos assemelhados aos rendimentos do empréstimo”.

6. A questão não enfrentada

A questão não colocada pelo Secretário de Estado holandês, mas que precisa ser enfrentada é se os JCP são “assemelhados aos rendimentos dos empréstimos”.

Os JCP são disciplinados pelo art. 9º da Lei n. 9.249/199518. Ali se definiu como devem ser calculados os JCP, incluindo-se os limites a serem observados e a TJLP como taxa de juros a ser aplicada. Previu-se, ainda, uma retenção na fonte de 15%.

Se, a partir dessas disposições da Lei n. 9.249/1995, é possível concluir que os JCP são rendimentos assemelhados aos rendimentos dos empréstimos, então esta é uma afirmação, no mínimo, questionável. Alguns motivos podem ser indicados: os JCP não decorrem de uma livre negociação entre as partes; os limites de pagamento e dedutibilidade são preestabelecidos por lei, bem como o é a taxa de retorno (juros) a ser aplicada; inexistente o lucro, não pode o acionista reivindicar o pagamento dos JCP.

Ainda, se entendidos os JCP como um mecanismo de incentivo à capitalização das empresas, torna-se inafastável sua característica primordial como rendimentos, os quais decorrem de uma participação de capital.

A conclusão seria diferente, obviamente, se houvesse disposição específica no Tratado sobre a qualificação dos JCP, como é o caso dos tratados citados no item 2. Não é o caso do Tratado Brasil-Holanda.

É de se entender, portanto, como equivocada a conclusão trazida pelo Decreto, segundo a qual, sob a égide do Tratado Brasil-Holanda, um crédito presumido de 20% seria aplicável quando do pagamento de JCP.

7. Um exercício interpretativo

Por amor à argumentação e à curiosidade científica, cabe-nos também analisar qual o tratamento deveria ser aplicado na hipótese em que os JCP fossem assemelhados a rendimentos de empréstimos e, estivessem, assim, dentro do escopo do art. 11 do Tratado. Como indicado no item 3, ainda que não unâmime, trata-se de posição defendida por respeitável representante da doutrina tributária brasileira19. Partindo dessa perspectiva, uma série de questões devem ser enfrentadas.

A primeira dessas questões decorre de nossa observação anterior no sentido de que os JCP subsumem-se à definição de dividendos contida no art. 10 do Tratado Brasil-Holanda. Propõe-se, então, um desafio: poderia um rendimento ser, simultaneamente, objeto de dois artigos de um mesmo tratado? A resposta é – infelizmente – afirmativa, e ocorre com mais frequência do que seria desejado segundo a Convenção Modelo da OCDE. Como exemplos temos que o escopo do art. 18 (Pensões) pode coincidir com o do art. 17 (Esportistas), como no caso de um jogador de futebol holandês que joga para um time belga, mas aposenta-se. Outros possíveis exemplos: o art. 18 coincide com o art. 16 (Remuneração de direção), o art. 19 (Funções públicas) coincide com o art. 16 e com o art. 17, e o art. 13 (Ganhos de capital) coincide com o art. 10 (Dividendos) e o art. 11 (Juros).

Em relação à coincidência dos arts. 10 e 11, em 1992 os Comentários à Convenção Modelo da OCDE ao art. 11 incluíram o § 19, cuja última frase é: Nas situações de subcapitalização presumida, por vezes é difícil distinguir entre dividendos e juros e, a fim de evitar qualquer possibilidade de coincidência entre essas duas categorias de rendimentos tratadas pelos Artigos 10 e 11 respectivamente, deve-se notar que o termo ‘juros’, tal como utilizado no Artigo 11 não contempla rendimentos que estão sob o escopo do Artigo 10.” Essa adição feita em 1992 nos parece problemática por três razões.

Primeiramente porque o Comentário incluiu uma regra definidora de hierarquia, um tipo de regra própria dos tratados de bitributação, e não mero esclarecimento interpretativo. Uma questão que se impõe, portanto, é se esse comentário teria qualquer efeito. Adicionalmente, a regra do § 19 (“a fim de evitar...”) é precedida pela referência à “subcapitalização” como a situação da qual decorre. Não fica claro a partir do texto se a regra se aplica apenas àquela situação específica (subcapitalização) ou se é uma regra geral. Em terceiro lugar, além da tradicional dúvida sobre o “peso” dos Comentários da OCDE na interpretação dos tratados de bitributação, surge o questionamento sobre a importância da sentença que foi adicionada aos Comentários (1992) após o Tratado ter sido concluído (1990)20.

No que se refere à aplicação dos Comentários à Convenção Modelo da OCDE, parece-nos que o consenso internacional inclina-se no sentido de que comentários posteriores somente serão relevantes se esclarecerem um ponto do comentário anterior, e irrelevantes caso se refiram a temas não contemplados nos comentários anteriores. Se os dois problemas acima mencionados – em relação à aplicação do § 19 dos comentários ao art. 11 forem ignorados, a questão relativa à aplicação de “novos” comentários torna-se fundamental.

Que conclusão tirar disso tudo? Parece-nos questionável, por diversas razões, que a regra do § 19 (dos Comentários de 1992), a qual estabelece a precedência do art. 10 sobre o art. 11, possa ser aplicada aos JCP da perspectiva do direito holandês. Se tal regra fosse aplicada, somente o artigo dos dividendos seria relevante e a conclusão do Decreto estaria, portanto, equivocada. A Holanda deveria, nesse caso, conceder um crédito presumido de 25%. Se, ao contrário, tal regra não puder ser aplicada, a questão que surge é se os arts. 10 e 11 são simultaneamente aplicáveis, e quais consequências derivariam dessa situação.

Nos casos em que diferentes artigos de um mesmo tratado de bitributação são simultaneamente aplicáveis, há quem defenda o uso do critério da generalidade. Nesse sentido, os artigos deveriam ser analisados até que um seja considerado geral em relação ao outro. A maioria da doutrina holandesa, no entanto, adota um entendimento diverso: se os países contratantes assinam tratados de forma que um rendimento pode estar contido em mais de um artigo, tais países devem aceitar a aplicação simultânea de mais de um artigo. Como os tratados de bitributação não alocam os direitos de tributar, mas na verdade restringem o direito doméstico de os Estados contratantes aplicarem suas próprias regras (por meio de isenção ou crédito), na hipótese em que duas regras são simultamente aplicáveis, ambos os Estados devem seguir as limitações decorrentes dessas duas regras.

No que se refere ao Estado de residência (como a Holanda, no caso dos JCP), este deve reduzir a tributação devida pelo receptor dos rendimentos da forma determinada pelo tratado de bitributação, levando em consideração as duas regras aplicáveis. No caso em análise, a Holanda deveria conceder o maior dos créditos presumidos, 25%, portanto. Chega-se, assim, à mesma conclusão anteriormente exposta.

8. Conclusão

Com base no exposto, é nosso entendimento que as afirmações incluídas no Decreto são incorretas ou irrelevantes.

Conclui-se, ainda, que a questão relevante – e não incluída no Decreto (se os JCP são rendimentos assemelhados aos rendimentos de juros segundo a legislação tributária brasileira) – deve ser respondida negativamente. Ainda que a resposta fosse afirmativa, o resultado, quase sempre, seria um crédito presumido (tax sparing) de 25%, segundo o Tratado Brasil-Holanda. Os pontos relevantes podem ser sintetizados respondendo-se às seguintes questões:

1. Se um rendimento estiver no escopo dos arts. 10 e 11 do Tratado Brasil-Holanda, como o tratado deve ser aplicado se um residente holandês receber esse rendimento?

2. Tanto as decisões judiciais quanto a doutrina tendem a conceder um grande peso aos Comentários da OCDE. Tais comentários devem ser indistintamente aplicados ou se deve distinguir aqueles comentários que extrapolam sua função interpretativa?

3. Se os Comentários da OCDE são alterados após a conclusão de um tratado, deve a alteração posterior ser, em princípio, levada em consideração na aplicação daquele tratado?

4. É relevante, para responder à questão 3, se a alteração diz respeito a um esclarecimento de uma posição anterior já tratada pelo comentário ou se diz respeito a um ponto ainda não tratado?

5. A segunda metade da última sentença do § 19 dos Comentários da OCDE ao art. 1121 deve ser limitada às situações de subcapitalização ou aplicada de forma genérica?

Em nosso entendimento, as respostas deveriam ser as seguintes:

1. Ambos os artigos devem ser aplicados.

2. À medida que os comentários extrapolam a função interpretativa, estes devem ser ignorados.

3 e 4. Comentários posteriores somente devem ser considerados se esclarecerem comentários anteriores.

5. Tal parágrafo não deve ser considerado, por extrapolar a função interpretativa, sendo dessa forma, inaplicável.

Referências

CASTRO, Vitor Manuel Franciulli de Lima. Juros sobre o Capital Próprio: natureza do rendimento à luz dos acordos para evitar a dupla tributação. Revista Direito Tributário Atual v. 45. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2020. Quadrimestral.

SANTOS, Ramon Tomazela. O pagamento de Juros sobre o Capital Próprio (JCP) será afetado pela Ação 2 do Projeto BEPS (“Base Erosion and Profit Shifting”)? Revista Dialética de Direito Tributário n. 241. São Paulo: Dialética.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: natureza jurídica e forma de apuração diante da “nova contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2012. v. 3.

1* Tradução de Aline Nunes dos Santos, LL.M em Direito Tributário Internacional, Vienna University of Economics and Business. Mestre em Direito Tributário, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Senior Tax Advisor na Loyens & Loeff.

Publicado no periódico tributário holandês Weeblad fiscaal recht n. 7365, de 14 de janeiro de 2021, WFR 2021/8. Disponível em: https://www.recht.nl/vakliteratuur/fiscaalrecht/aflevering/32006/weekblad-fiscaal-recht/2021/7365/#a500248.

See Wolters Kluwer. Weekblad fiscaal recht .7365.14 de janeiro de 2021.

2 Ver SANTOS, Ramon Tomazela. O pagamento de Juros sobre o Capital Próprio (JCP) será afetado pela Ação 2 do Projeto BEPS (“Base Erosion and Profit Shifting”)? Revista Dialética de Direito Tributário n. 241. São Paulo: Dialética, p. 123.

3 “10. Com vistas a equiparar a tributação dos diversos tipos de rendimentos do capital, o Projeto introduz a possibilidade de remuneração do capital próprio investido na atividade produtiva, permitindo a dedução dos juros pagos aos acionista, até o limite da variação da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP; compatibiliza as alíquotas aplicáveis aos rendimentos provenientes de capital de risco àquelas pela qual são tributados os rendimentos do mercado financeiro; desonera os dividendos; caminha na direção da equalização do tratamento tributário do capital nacional e estrangeiro; e revoga antiga isenção do imposto de renda incidente sobre a remessa de juros para o exterior, prevista no Decreto-Lei nº 1.215, de 1972 (arts. 9 a 12, § 2º do art. 13, art. 28, e inciso I do art. 32), a fim de que não ocorra qualquer desarmonia no tratamento tributário que se pretende atingir. Igualando-se, para esse fim, o aplicador nacional e estrangeiro.

11. A permissão de dedução de juros pagos ao acionista, até o limite proposto, em especial, deverá provocar um incremento das aplicações produtivas nas empresas brasileiras capacitando-as a elevar nível de investimentos, sem endividamento, com evidentes vantagens no que se refere à geração de empregos e ao crescimento sustentado da economia. Objetivo a ser atingido mediante a adoção de política tributária moderna e compatível com aquela praticada pelos demais países emergentes, que competem com o Brasil na capacitação de recursos internacionais para investimento.”

4 Ver SCHOUERI, Luís Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: natureza jurídica e forma de apuração diante da “nova contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2012. v. 3.

5 Ver STJ. REsp n. 1.200.492/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/ Acórdão Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 14.10.2015, DJe 22.2.2016.

6 Nesse sentido, autores como Alberto Xavier, Modesto Carvalhosa, Ramon Tomazela Santos. Uma detalhada revisão pode ser encontrada em: SCHOUERI, Luís Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: natureza jurídica e forma de apuração diante da “nova contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2012. v. 3; bem como em: CASTRO, Vitor Manuel Franciulli de Lima. Juros sobre o Capital Próprio: natureza do rendimento à luz dos acordos para evitar a dupla tributação. Revista Direito Tributário Atual v. 45. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2020, p. 761-789. Quadrimestral.

7 Deliberação CVM n. 207, de 13 de dezembro de 1996.

8 Ver STJ. REsp n. 1.373.438/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, julgado em 11.6.2014, DJe 17.6.2014.

9 Nesse sentido, autores como Ricardo Mariz de Oliveira, Fábio Ulhôa Coêlho e João Dácio Rolim. Uma detalhada revisão pode ser encontrada em SCHOUERI, Luís Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: natureza jurídica e forma de apuração diante da “nova contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2012. v. 3; bem como em CASTRO, Vitor Manuel Franciulli de Lima. Juros sobre o Capital Próprio: natureza do rendimento à luz dos acordos para evitar a dupla tributação. Revista Direito Tributário Atual v. 45. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2020, p. 761-789. Quadrimestral.

10 Instrução Normativa SRF n. 11, de 21 de fevereiro de 1996.

11 Posição defendida por SCHOUERI, Luís Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: natureza jurídica e forma de apuração diante da “nova contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2012. v. 3.

12 “Art. 11 (4). Para os fins do presente Artigo, o termo ‘juros’ usado no presente Artigo designa os rendimentos de créditos de qualquer natureza, acompanhados ou não de garantias hipotecárias ou de uma cláusula de participação nos lucros do devedor, e, em particular, os rendimentos da dívida pública, de títulos ou debêntures, assim como quaisquer outros rendimentos que a legislação tributária do Estado de que provenham assimile aos rendimentos de importâncias emprestadas e também incluem os juros pagos como ‘remuneração sobre o capital próprio’ como definido pela legislação brasileira, mas não incluirão qualquer item tratado como distribuição de acordo com as disposições do Artigo 10 desta Convenção.”

13 “Art. 11 (5). O termo ‘juros’ usado neste Artigo designa rendimentos de créditos de qualquer natureza, acompanhados ou não de garantia hipotecária ou de cláusula de participação nos lucros do devedor, e, particularmente, rendimentos de obrigações governamentais e de títulos ou debêntures, incluindo prêmios e ágios a eles relacionados.”

14 Protocolo de emenda ao tratado com a Bélgica (protocolo de 2002 alterando o tratado de 1975), protocolo de emenda ao tratado com a Dinamarca (protocolo de 2011 alterando o tratado de 1974), protocolo de emenda ao tratado com a Índia (protocolo de 2013 alterando o tratado de 1988), protocolo de emenda ao tratado com a Noruega (protocolo de 2014 alterando o tratado de 1980), protocolo de emenda ao tratado com a Coreia (protocolo de 2015 alterando o tratado de 1989).

15 Cabe notar a publicação, unilateral pelo Brasil, da Portaria MF n. 140/2008, segundo a qual os JCP seriam qualificados como juros para fins de aplicação do Tratado.

16 “Art. 10 (3). O termo ‘dividendos’, empregado no presente artigo, designa os rendimentos provenientes de ações ou direitos de fruição; ações de empresas mineradoras; partes de fundador ou outros direitos de participação em lucros, com exceção de créditos, bem como rendimentos de outras participações de capital assemelhados aos rendimentos de ações pela legislação tributária do Estado em que reside a sociedade que realiza a distribuição.”

17 “Art.10 (4). O termo ‘juros’ empregado neste Artigo designa os rendimentos de títulos da dívida pública; de títulos ou debêntures, com ou sem garantia hipotecária e com ou sem direito a participação em lucros, e de créditos de qualquer natureza, bem como qualquer outro rendimento que, nos termos da lei tributária do Estado Contratante de que provenha, se assemelhe aos rendimentos do empréstimo.”

18 “Art. 9º A pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP.

§ 1º O efetivo pagamento ou crédito dos juros fica condicionado à existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros, em montante igual ou superior ao valor de duas vezes os juros a serem pagos ou creditados.

§ 2º Os juros ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de quinze por cento, na data do pagamento ou crédito ao beneficiário.

§ 3º O imposto retido na fonte será considerado:

I – antecipação do devido na declaração de rendimentos, no caso de beneficiário pessoa jurídica tributada com base no lucro real;

II – tributação definitiva, no caso de beneficiário pessoa física ou pessoa jurídica não tributada com base no lucro real, inclusive isenta, ressalvado o disposto no § 4º;

§ 5º No caso de beneficiário sociedade civil de prestação de serviços, submetida ao regime de tributação de que trata o art. 1º do Decreto-Lei nº 2.397, de 21 de dezembro de 1987, o imposto poderá ser compensado com o retido por ocasião do pagamento dos rendimentos aos sócios beneficiários.

§ 6º No caso de beneficiário pessoa jurídica tributada com base no lucro real, o imposto de que trata o § 2º poderá ainda ser compensado com o retido por ocasião do pagamento ou crédito de juros, a título de remuneração de capital próprio, a seu titular, sócios ou acionistas.

§ 7º O valor dos juros pagos ou creditados pela pessoa jurídica, a título de remuneração do capital próprio, poderá ser imputado ao valor dos dividendos de que trata o art. 202 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sem prejuízo do disposto no § 2º.

[...]”

19 Ver SCHOUERI, Luís Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: natureza jurídica e forma de apuração diante da “nova contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2012. v. 3.

20 Tal questão foi indiretamente discutida numa decisão da Suprema Corte de 19 de dezembro de 1998, BNB 1999/267, tendo sido respondida de forma afirmativa pela Suprema Corte, embora de forma superficial e sem maiores explicações. O tema foi também endereçado no julgamento HR de 21 de fevereiro de 2003, BNB 2003/177, o qual tratava dos tratados da Holanda com o Brasil (1990) e a Nigéria (1992). A Suprema Corte fez uma – inexplicável – referência ao Comentário tal qual alterado em 1992.

21 Nas situações de subcapitalização presumida, por vezes é difícil distinguir entre dividendos e juros e, a fim de evitar qualquer possibilidade de coincidência entre essas duas categorias de rendimentos tratadas pelos arts. 10 e 11, respectivamente, “deve-se notar que o termo ‘juros’, tal como utilizado no Artigo 11 não contempla rendimentos que estão sob o escopo do Artigo 10.”