O Art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001 e o Art. 7º dos Acordos para evitar a Dupla Tributação: há Compatibilidade? Uma Análise à Luz da Jurisprudência Atual do Carf

Article 74 of Provisional Measure no. 2.158-35/2001 and Article 7 of Double Tax Treaties: is There Compatibility? An Analysis considering the Current Case Law of the Administrative Council of Tax Appeals

Maria Eugênia Mariz de Oliveira

Especialista em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Advogada em São Paulo/SP. E-mail: mariaeugenia.mariz@marizadvogados.com.br.

Recebido em: 5-9-2022 – Aprovado em: 2-11-2022

https://doi.org/10.46801/2595-7155.11.3.2022.2243

Resumo

O presente trabalho visa apresentar algumas contribuições para o debate acerca da possibilidade de aplicação art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 para tributar os lucros auferidos por empresas controladas no exterior, nos casos em que tais empresas estão situadas em países com os quais o Brasil celebrou tratado para evitar a dupla tributação. Ademais, objetiva-se fazer uma análise do tema à luz da jurisprudência atual do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

Palavras-chave: lucros, controlada estrangeira, acordo de bitributação.

Abstract

The purpose of this article is to introduce some contributions to the debate regarding the possibility of applying article 74 of Provisional Measure no. 2.158-35 in order to tax the profits earned by foreign controlled entities, in cases where such companies are located in countries with which Brazil has entered into a double tax treaty. Furthermore, this article aims to make an analysis of the subject in light of the current case law of the Administrative Council of Tax Appeals.

Keywords: profits, foreign controlled company, double tax treaty.

Introdução

Em 24 de agosto de 2001, após sucessivas reedições, a Medida Provisória n. 2.158-35 introduziu definitivamente no ordenamento positivo brasileiro uma regra (contida no art. 74) que já há muito era perseguida pelo Governo Federal, qual seja, a de tributação automática de lucros obtidos no exterior por meio de filiais, sucursais, coligadas e controladas de pessoas jurídicas sediadas no Brasil.

Para consecução desse intento, as autoridades não se preocuparam com os litígios que poderiam surgir face à noção de disponibilidade ficta desses lucros, especialmente os gerados por coligadas e controladas, quando contraposta à exigência constitucional da disponibilidade efetiva da renda, para que possam incidir os tributos sobre os acréscimos patrimoniais.

Ademais, também não houve preocupação, no momento de introdução da referida norma do ordenamento jurídico, em avaliar sua compatibilidade perante as convenções vigentes para evitar a dupla tributação (nem ainda com qualquer outra barreira derivada do direito internacional).

Assim, como já se podia esperar, a introdução da nova regra acabou por causar a abertura de um enorme contencioso judicial e administrativo, que perdura até os dias atuais, apesar dos mais de 20 anos decorridos desde a edição da Medida Provisória n. 2.158-35.

O tema ganhou nova relevância recentemente, pois, com a introdução do art. 19-E na Lei n. 10.522, de 19 de julho de 20021, o qual determina que os empates nos julgamentos no Conselho Adminsitrativo de Recursos Fiscais (Carf) serão decididos a favor do contribuinte, observou-se uma repentina alteração no posicionamento do tribunal a respeito da aplicabilidade do art. 74 da MP n. 2.158-35 nos casos envolvendo empresas controladas situadas em países com os quais o Brasil celebrou acordo para evitar a dupla tributação.

Desse modo, as decisões exaradas pelo Carf, antes predominantemente no sentido da possibilidade de aplicação do referido art. 74 inclusive aos casos em que há acordo de bitributação, recentemente passaram a sustentar o entendimento oposto – de que, nos casos em que a empresa controlada está sediada em país com o qual o Brasil celebrou acordo para evitar a dupla tributação, a necessária aplicação do art. 7º desse acordo impediria a aplicação da norma contida no art. 74 da Medida Provisória.

Diante desse cenário, o presente trabalho pretende analisar a regra introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35, sobretudo à luz da sua compatibilidade com o art. 7º das convenções para evitar a dupla tributação celebradas pelo Brasil. Tal análise será desenvolvida nos tópicos a seguir e culminará com alguns comentários acerca da jurisprudência a respeito do tema.

1. O art. 74 da Medida Provisória n. 2.158/2001

Antes de adentrar a análise específica acerca da compatibilidade do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 e do art. 7º dos acordos para evitar a dupla tributação celebrados pelo Brasil, cumpre fazer alguns comentários iniciais, de forma isolada, acerca de cada um desses dispositivos.

Veja-se a redação do referido art. 74:

“Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.

Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor.”

Como mencionado, o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 introduziu no ordenamento jurídico pátrio um novo regime de tributação dos lucros auferidos pelas controladas e coligadas no exterior de empresas brasileiras. Segundo esse novo regime, os lucros gerados pelas controladas e coligadas estrangeiras são imputados automaticamente à controladora ou coligada residente no Brasil, sendo tributados imediatamente como se houvessem sido produzidos internamente2.

Assim, ainda que os lucros sejam mantidos na sociedade sediada no exterior, sem a distribuição à sociedade brasileira, haverá a tributação destes resultados no Brasil.

Conforme ensina Luís Eduardo Schoueri3, o objetivo pretendido pelo legislador com o art. 74 da Medida Provisória foi o de impedir a alocação de lucros de residentes brasileiros em países com carga tributária reduzida (sobretudo os paraísos fiscais), numa tentativa de adequar a legislação brasileira a uma tendência mundial de coibir a evasão fiscal praticada por meio de sociedades constituídas em países de baixa tributação, com sócios residentes em países de tributação normal – as chamadas Controlled Foreign Corporations (CFCs).

Na direção tomada pelas legislações de outros países (sobretudo na Europa e nos Estados Unidos), sendo identificada a existência de tal CFC – o que se dá mediante a aplicação de critérios preestabelecidos em lei – esta será considerada uma sociedade transparente, de modo a submeter à tributação, no nível da entidade sócia, o lucro obtido pela entidade situada no exterior.

Ocorre que, quando da tentativa de introduzir uma norma nesses moldes na legislação brasileira, acabou-se por criar uma regra que extrapolou em muito os limites observados em normas antiabuso em países europeus e nos Estados Unidos4. Com efeito, a leitura do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 revela uma regra que desconsidera estar a sociedade controlada ou coligada em país de tributação favorecida, ou ainda se a função da entidade estrangeira é, de fato, a economia de tributos.

Tem-se, portanto, no ordenamento brasileiro, uma norma antielisiva de aplicação extremamente abrangente e indiscriminada, sem a previsão de critérios específicos para a identificação de situações abusivas, o que leva a crer que a sua introdução no ordenamento teve, mais do que qualquer outra coisa, intuito arrecadatório5.

Ademais – e este é o ponto central que será abordado no presente trabalho – a redação final do art. 74 acabou por conflitar com as regras de repartição de competências previstas em tratados internacionais celebrados pelo Brasil.

Importante consignar que a constitucionalidade do referido dispositivo já foi objeto de amplo questionamento pela doutrina, argumentando-se que, ao determinar a tributação de lucros ainda não distribuídos, o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 teria violado o Princípio da Capacidade Contributiva, bem como teria extrapolado o campo de incidência tributária do imposto de renda, definido, nos termos do art. 43 do Código Tributário Nacional (CTN), como a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda.

O tema foi levado ao crivo do Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 2.588. Sem nos alongarmos desnecessariamente a respeito do tema, basta dizer que, quando do julgamento da referida ADI, concluiu o STF pela inconstitucionalidade do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 exclusivamente no que tange às coligadas localizadas em países que não sejam paraísos fiscais e em relação à possibilidade de aplicação retroativa da norma (prevista pelo parágrafo único).

Não obstante, na ocasião do julgamento da referida ADI, o Tribunal não analisou a aplicabilidade e a eficácia do art. 74 da Medida Provisória em relação aos lucros auferidos por empresas sediadas em países com os quais o Brasil celebrou tratados para evitar a dupla tributação.

Sendo assim, a possibilidade de se compatibilizar ou não a aplicação desse dispositivo com as disposições dos tratados celebrados pelo Brasil não foi objeto de análise, permanecendo o tema em aberto, sem que tenha havido posicionamento definitivo do Supremo Tribunal Federal a respeito.

Feitos esses comentários iniciais acerca do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35, cabe agora trazer algumas considerações a respeito do conteúdo do art. 7º dos acordos para evitar a dupla tributação celebrados pelo Brasil.

2. O art. 7º dos acordos para evitar a dupla tributação

Atualmente, a rede de tratados para evitar a dupla tributação celebrados pelo Brasil engloba 35 acordos em vigor, firmados com os seguintes países: África do Sul, Argentina, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, China, Coreia do Sul, Dinamarca, Emirados Árabes Unidos, Equador, Eslováquia, Espanha, Filipinas, Finlândia, França, Hungria, Índia, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, México, Noruega, Países Baixos, Peru, Portugal, República Tcheca, Rússia, Suécia, Suíça, Trinidad e Tobago, Turquia, Ucrânia e Venezuela.

Em todos estes acordos, o art. 7º foi redigido utilizando como base a redação contida na Convenção Modelo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cuja redação original é a seguinte6:

“Article 7

Business Profits

1. Profits of an enterprise of a Contracting State shall be taxable only in that State unless the enterprise carries on business in the other Contracting State through a permanent establishment situated therein. If the enterprise carries on business as aforesaid, the profits that are attributable to the permanent establishment in accordance with the provisions of paragraph 2 may be taxed in that other State. […]”7

Existem diferenças mínimas entre a redação do art. 7º da Convenção Modelo da OCDE, acima, e as diferentes redações do art. 7º nos tratados celebrados pelo Brasil. Não obstante, o ponto relevante para o presente trabalho é verdadeiro em todos os casos: o art. 7º determina que a competência para tributar os lucros auferidos pelas empresas é exclusivamente do país da residência dessa empresa (a não ser que esta exerça a sua atividade no outro Estado por meio de um estabelecimento permanente)8.

Importante relembrar, aqui, que os acordos para evitar a dupla tributação são instrumentos de atribuição de competência a um ou outro Estado Contratante. Nesse sentido, tais acordos contém regras de alocação de competência, as quais, a depender da espécie de rendimento em questão, atribuem a competência para tributação ao país da residência da entidade que aufere tal rendimento e/ou ao país da fonte9.

Tem-se, portanto, que os tratados para evitar a dupla tributação não criam ou impõem tributos, mas exclusivamente limitam a competência tributária dos Estados Contratantes, determinando qual Estado será competente para tributar cada situação.

Assim, esses tratados restringem a aplicação da legislação tributária interna de cada um dos Estados Contratantes, mas sem impor tributação. Em outras palavras, os acordos para evitar a dupla tributação definem qual Estado será competente para tributar uma certa situação, mas a efetiva imposição de tributos sobre tal situação será definida pela legislação interna do Estado em questão (podendo este, inclusive, optar por não tributar certa hipótese que, nos termos do tratados, estaria englobada por sua competência)10.

Nesse sentido, ensina Klaus Vogel que os tratados para evitar a dupla tributação funcionam como uma máscara colocada sobre o ordenamento jurídico interno, de modo a cobrir certas partes desse ordenamento. Aquelas disposições que continuam visíveis através da máscara (por corresponder aos buracos recortados nesta) serão aplicáveis, enquanto que as demais, não (casos nos quais o tratado restringe a competência tributária do Estado)11.

Tal competência pode, ainda, ser conferida de maneira exclusiva a um dos Estados – residência ou fonte – excluindo a tributação pelo outro, ou pode ser conferida de maneira concorrente, admitindo-se a tributação por ambos os Estados, com a previsão de aplicação de algum método para evitar a dupla tributação (i.e., isenção ou crédito).

Pois bem. Como visto, as regras distributivas dos tratados de bitributação alocam competências com base na espécie de rendimento. O art. 7º da Convenção Modelo da OCDE cuida da alocação da tributação sobre o “lucro das empresas”, o qual deve ser entendido como os lucros derivados do exercício de uma atividade econômica12.

No caso do art. 7º, a atribuição de competência é feita de forma exclusiva ao Estado da residência da entidade que aufere os lucros. Desse modo, segundo o referido dispositivo, o residente de um Estado Contratante, seja ele pessoa física ou jurídica, que desenvolver uma atividade econômica qualquer com objetivo de lucro, terá tais lucros tributados exclusivamente no Estado onde reside. A única possibilidade de tais lucros serem tributados também no Estado da fonte (onde eles estão sendo auferidos), é se a atividade econômica for desenvolvida nesse outro Estado por meio de um estabelecimento permanente. Nessa hipótese, os lucros atribuíveis a esse estabelecimento permanente – e somente eles – estarão sujeitos à tributação no Estado da fonte.

Por fim, é importante mencionar que o art. 7º dos tratados, ao versar sobre o “lucro das empresas”, contém uma regra distributiva de caráter geral. Isto quer dizer que, antes de se concluir pela aplicação do art. 7º na determinação da competência tributária de certo rendimento, deve-se investigar se um dos dispositivos que preveem regras distributivas específicas não é mais apropriado para a situação em tela13; estes devem ter precedência sobre aqueles dispositivos que preveem regras distributivas de caráter geral.

O art. 7º, portanto, serve como uma espécie de “guarda-chuva” para diferentes espécies de rendimentos derivados do exercício da atividade empresarial, abrangendo os resultados decorrentes da atividade econômica desenvolvida por um residente de um Estado Contratante no outro Estado Contratante, desde que o rendimento em questão não esteja expressamente incluído em uma das regras distributivas específicas14.

3. O art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 e o art. 7º dos tratados para evitar a dupla tributação: é possível compatibilizá-los?

Feitas essas considerações introdutórias acerca do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 e do art. 7º dos tratados para evitar a dupla tributação (com base na redação do art. 7º da Convenção Modelo da OCDE, adotada pelo Brasil em seus tratados), resta avaliar as questões que foram colocadas no início do presente trabalho: pode-se cogitar de uma aplicação conjunta desses artigos ou, ao contrário, as disposições neles contidas são conflitantes entre si? É possível compatibilizar os dois dispositivos?

Entendemos que não.

É verdade que, no entendimento da Receita Federal do Brasil (RFB), a existência de tratados para evitar a dupla tributação entre o Brasil e o país no qual está situada a empresa controlada pela sociedade brasileira não representa óbice à aplicação do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35. No entendimento do Fisco brasileiro, as duas normas (do art. 74 e do art. 7º dos tratados) podem conviver, não havendo que se falar em incompatibilidade.

Sustentam as autoridades fiscais brasileiras que o art. 7º dos acordos de bitributação apenas vedaria a tributação, pelo Brasil, dos lucros apurados pela controlada sediada no país com o qual o Brasil celebrou o tratados; sendo assim, o referido dispositivo não seria incompatível com o art. 74 da Medida Provisória, porquanto este apenas determinaria a tributação da parcela desses lucros auferida pela controladora brasileira.

Tal raciocínio é evidentemente falacioso.

Isso porque, em realidade, não existe qualquer diferença entre a materialidade tributada pelo art. 74 da Medida Provisória e aquela atingida pelo art. 7º dos tratados de bitributação: ambos os casos versam sobre a tributação dos lucros auferidos pela controlada estrangeira.

Ora, o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35, como visto, determina precisamente a incidência de tributação sobre os lucros auferidos por controladas no exterior. Isso é evidenciado pelo fato de que a tributação prevista pelo referido dispositivo ocorre justamente sobre os resultados apurados pela controlada, independentemente da efetiva distribuição à controladora.

Ainda que se afirme que apenas se está “tributando a parcela cabível à empresa brasileira”, fato é que a tributação automática do lucro apurado pela empresa no exterior, ainda que calculada na proporção detida pela controladora brasileira, não deixa de ser, evidentemente, tributação do lucro da empresa estrangeira.

Em outras palavras: o fato de o art. 74 da Medida Provisória determinar a inclusão de parcela do lucro apurado pela empresa situada no exterior (na proporção da participação detida pela empresa brasileira) não transforma, automaticamente, este resultado em resultado da empresa brasileira. Até que haja a efetiva distribuição, este lucro será e nunca terá deixado de ser lucro próprio da empresa estrangeira, apurado no exterior.

E, constatado que o art. 74 atinge, indubitavelmente, os lucros apurados pela empresa estrangeira, tem-se que tais rendimentos também estarão submetidos justamente ao art. 7º dos acordos de bitributação, referente ao “lucro das empresas”.

Como visto acima, a regra distributiva do art. 7º atribui competência exclusiva ao país da residência para a tributação dos rendimentos qualificados como lucros decorrentes do desenvolvimento da atividade econômica. Ou seja, somente o Estado do qual a empresa é residente poderá tributar os lucros auferidos por ela, sendo absolutamente vedada a tributação desses resultados pelo outro Estado Contratante, o Brasil15, onde está sediada a empresa controladora.

Há, portanto, uma visível incompatibilidade entre o disposto no art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 – que determina a tributação, pelo Brasil, dos lucros apurados pela controlada estrangeira – e o disposto no art. 7º dos tratados de bitributação – que atribui ao Estado da residência a competência exclusiva para a tributação desse lucro.

Não obstante, esse conflito de normas é apenas aparente, na medida em que a norma contida nos tratados e a norma contida na Medida Provisória não atuam no mesmo plano, de modo que, a despeito de tais disposições aparentarem ser antagônicas, não há verdadeira antinomia de normas no caso.

Conforme mencionado anteriormente, as regras distributivas previstas pelos acordos para evitar a dupla tributação são regras de atribuição de competência. Isso quer dizer que elas atuam no plano da competência tributária, conferindo a um ou outro Estado o poder de tributar determinada situação. E, uma vez constatado que certa situação está abarcada pela competência tributária conferida pelo tratado a um Estado, o seu direito interno será plenamente aplicável, sendo responsável pela imposição da tributação.

O art. 74, evidentemente, não atua no plano da competência tributária. Esta é a norma do direito interno responsável por determinar a incidência tributária sobre as situações previstas na hipótese legal.

Sob essa ótica, percebe-se que não há verdadeiro conflito. O que se tem no caso é que, nas hipóteses em que a empresa controlada está sediada em país com o qual o Brasil celebrou tratado de bitributação, o art. 7º desse tratado atribui ao país da residência da controlada a competência para tributar os lucros auferidos por ela. E, não tendo o Brasil competência para tributar tal situação, não se aplica a sua legislação interna (a qual, na metáfora de Vogel, encontra-se coberta pela máscara que é o tratado de bitributação), apesar de esta continuar plenamente válida.

Note-se que não há conflito, pois as normas incidem em planos diversos.

Ainda que assim não fosse, o próprio ordenamento jurídico brasileiro determina a prevalência dos tratados internacionais sobre a legislação interna, em razão de sua especificidade, inclusive em matéria tributária16. Nesse sentido, estabelece o art. 98 do CTN que “os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.

A despeito de, a nosso ver, não ser exatamente adequado afirmar que, no caso, o art. 7º dos tratados “revogaria ou modificaria” o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 – já que se tratam de duas normas válidas, mas aplicáveis em planos distintos – fato é que o ordenamento brasileiro prevê a prevalência dos tratados na hipótese de conflito17.

Diante de tudo isso, parece indisputável que a existência de tratado para evitar a dupla tributação celebrado entre o Brasil e o Estado onde está sediada a empresa controlada impede a aplicação do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35, sendo vedado ao Brasil, nesses casos, tributar o lucro auferido pela controlada estrangeira (ainda que via determinação da adição dos resultados à controladora brasileira).

Admitir a aplicação do art. 74 da Medida Provisória nas hipóteses em que há acordo de bitributação é tornar letra morta o quanto pactuado pelo Brasil em seus tratados.

Ao celebrar um tratado para evitar a dupla tributação, os Estados Contratantes acordam, mutuamente, a abrir mão de parte de suas respectivas competências tributárias, aceitando restringir as suas próprias capacidades de tributar fatos ocorridos no exterior, mas em relação aos quais existiria um elemento de conexão com o Estado.

Desse modo, parece-nos que a interpretação que vem sendo adotada pelas autoridades fiscais (e, inclusive, em algumas decisões na seara administrativa, como se verá mais adiante), acaba por infringir não só o disposto nos tratados, mas também o princípio da boa-fé na aplicação e interpretação dos acordos internacionais18, consagrado nos arts. 26 e 31 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados19, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 7.030/2009.

Igualmente, tal interpretação também vai de encontro ao disposto pelo art. 27 da mesma Convenção, o qual estabelece que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Ao pretender tributar os lucros auferidos por empresa situada no exterior, indepentemente de sua distribuição, e inclusive em casos nos quais existe um tratado de bitributação em vigor, é justamente isso que o Brasil pretende fazer.

Assim, forçoso concluir que, na hipótese de existência de tratado para evitar a dupla tributação, os lucros auferidos por empresa controlada situada no exterior não poderão ser tributados no Brasil com fundamento no art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35.

Relevante destacar, por fim, que célebres vozes da doutrina pátria já se manifestaram nesse sentido. Luís Eduardo Schoueri20, já citado no presente trabalho, afirmou, à época da edição da Medida Provisória n. 2.158-35, que o art. 7º dos tratados impediria a tributação dos lucros das controladas na forma prevista pelo art. 74 da Medida Provisória:

“3.2.2.2 A questão da tributação dos lucros auferidos pela controlada ou coligada, no exterior, pode ser resolvida a partir da aplicação do artigo VII do Modelo, como segue:

[...]

3.2.3.2.3 Destarte, se a interpretação do diploma legal acima mencionado levar a compreender que o Brasil pretende estender sua pretensão tributária a contribuintes sediados no outro Estado Contratante que não possuam aqui qualquer estabelecimento permanente, teremos que o acordo de bitributação impedirá aquela tributação.

[...]

3.2.3.3.4 Destarte, qualquer que seja a decisão do legislador interno, para fins do acordo de bitributação a conclusão será sempre idêntica: não estão sujeitos ao imposto brasileiro os lucros auferidos pela subsidiária (tal como definida no acordo), no outro Estado Contratante. Não pode o legislador interno ‘travestir’ em lucro da controladora aquele auferido por sua subsidiária se este, enquanto não configurar dividendo, não pode ser tributado no Estado da controladora.”

Na mesma linha, Sergio André Rocha21 afirma:

“[...] de uma perspectiva de substância, o que se alcança com o artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 é efetivamente a tributação dos lucros da empresa não residente, como deixa claro a própria redação deste artigo, ao determinar que ‘os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados’. Dessa forma, haveria aqui uma espécie de ‘planejamento tributário abusivo’ do Estado brasileiro para se furtar ao cumprimento das obrigações assumidas nos tratados internacionais.

Como está em voga no Direito Tributário brasileiro, neste caso não basta o exame da forma, sendo necessário examinar se a substância da tributação pretendida está em compasso com as convenções tributárias celebradas pelo Brasil, o que não parece ser o caso.”22

Ainda, Ramon Tomazela Santos23, em obra que aborda a tributação dos lucros auferidos no exterior sob o regime instituído pela Lei n. 12.973, de 13 de maio de 2014, mas cujas considerações abaixo transcritas são igualmente aplicáveis às disposições da Medida Provisória n. 2.158-35 ora em análise, explica que tal forma de tributação fere a própria estrutura lógica dos acordos de bitributação:

“Os acordo de bitributação seguem uma estrutura lógica, que confirma a incompatibilidade de regras de tributação automática de lucros não distribuídos com as disposições convencionais. Essa estrutura lógica pode ser assim explicada:

– o artigo 7º do acordo de bitributação impede a tributação dos lucros auferidos por uma sociedade residente no outro Estado contratante, antes de sua distribuição, salvo se existir um estabelecimento permanente no Estado da fonte;

– o artigo 10 do acordo de bitributação prevê a possibilidade de tributação cumulativa dos dividendos pagos por ambos os Estados contratantes, tanto por meio de retenção na fonte, quanto no nível do beneficiário.

– o artigo 23 do acordo de bitributação prevê que o Estado da residência deverá aplicar o método da isenção ou o método do crédito para evitar a dupla tributação dos dividendos. Na Convenção Modelo da OCDE, as duas versões do artigo 23 (A e B) adotam o método do crédito para aliviar a dupla tributação dos dividendos, de modo que o Estado da residência poderá exercer seu poder residual de tributá-los, como a concessão de crédito em relação ao imposto de renda retido no Estado da fonte. Porém, em acordos de bitributação efetivos, há países que adotam o método da isenção.

Ocorre que a tributação automática dos lucros do esterior, pretendida pela Lei nº 12.973/2014, inverte e viola essa estrutura lógica porque a tirbutação automática de lucros não distribuídos e a tributação posterior dos dividendos distribuídos acarretaria uma dupla tirbutação não protegida pelo tratado internacional, pois não há nenhuma disposição convencional que impeça a tributação dos lucros efetivamente distribuídos, que já tenham sido previamente tributados via ficção jurídica.”

Por fim, Luís Flávio Neto24 leciona, utilizando como base o acordo Brasil-Países Baixos, mas chegando à conclusão que certamente vale para os demais tratados celebrados pelo Brasil:

“Nesse cenário, todas as evidências analisadas corroboram com a conclusão de que a categoria de rendimentos onerada pela tributação brasileira dos lucros de controladas no exterior deve ser sob o escopo do art. 7 do acordo Brasil-Países Baixos, não descartando a hipótese da mesma conclusão ser aplicável à generalidade dos acordos de bitributação celebrados.

Como consequência, na presença do acordo Brasil-Países Baixos e potencialmente de outros tratados, a legislação brasileira de tributação de lucros de controladas no exterior deixa de ter eficácia, pois o país de residência destas terá competência exclusiva para tributar os lucros de suas residentes (art. 7º). Nosso país, por sua vez, solenemente acordou exercer a sua competência tributária quando dividendos forem pagos à controladora brasileira. Pacta sunt servanda.”

As lições acima corroboram o quanto restou concluído no presente trabalho, no sentido de que a tributação determinada pelo art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 elegeu, inegavelmente, o lucro das empresas controladas sediadas no exterior como base de incidência tributária (conclusão esta que se mantém inalterada, independentemente do método de quantificação desse lucro tributável ou das terminologias utilizadas pela lei).

Sendo assim, em linha com as citações acima colacionadas, conclui-se pela impossibilidade de tributação desse lucro nos casos em que a controlada está sediada em país com o qual o Brasil celebrou acordo para evitar a dupla tributação, nos moldes da Convenção Modelo da OCDE.

4. A jurisprudência

Finalmente, é relevante destacar que o tema ora em comento já foi, por diversas vezes, objeto de apreciação pela jurisprudência. Sendo assim, cumpre fazer alguns comentários acerca do posicionamento jurisprudencial ao longo dos anos.

Em âmbito judicial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se pronunciou a respeito do tema quando do julgamento do Recurso Especial n. 1.325.709/RJ, em 24.4.201425. Naquela ocasião, a Primeira Turma do STJ concluiu, por maioria de votos, que a existência de acordo para evitar a dupla tributação em vigor entre o Brasil e o país de sede da empresa controlada brasileira impediria a tributação dos lucros auferidos por essa empresa, tendo em vista a prevalência do disposto no art. 7º dos tratados internacionais sobre as disposições da legislação interna.

É digno de nota o voto proferido pelo Ministro Relator Napoleão Nunes Maia Filho. Após afirmar a supremacia das convenções internacionais sobre a legislação interna em matéria tributária, o Ministro pondera que a sistemática de adição do lucro obtido pela empresa controlada no exterior importa na tributação desse mesmo lucro, o que é incompatível com as disposições dos tratados de bitributação firmados pelo Brasil.

A única ressalva feita pelo Ministro – em linha, inclusive, com o entendimento adotado pelo STF quando do julgamento da ADI n. 2.588/DF – é em relação aos casos em que a controlada da empresa brasileira está sediada em territórios estrangeiros sem os controles fiscais adequados (como é o caso dos paraísos fiscais).

Como se pode ver, na ocasião em que o STJ se manifestou sobre o tema objeto do presente trabalho, as conclusões adotadas estão em linha com aquelas desenvolvidas acima (as quais também são sustentadas pela doutrina).

A despeito disso, a jurisprudência administrativa, por muito tempo, não caminhou no mesmo sentido.

De fato, o Carf já se pronunciou a respeito do tema dezenas de vezes e, na imensa maioria, o posicionamento adotado foi contrário àquele exposto no presente trabalho.

Até pouco tempo atrás, o entendimento predominante no Carf (tanto nas turmas ordinárias quanto na Câmara Superior) era no sentido de que não haveria incompatibilidade entre o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 e a vedação, contida nos tratados internacionais, da tributação dos lucros auferidos por empresa residente em um Estado Contratante pelo outro Estado Contratante.

Diversas decisões proferidas entre 2011 e 2020 comungavam do entendimento fiscal de que a legislação brasileira não estabeleceria a incidência de tributação sobre os lucros da empresa controlada estrangeira, mas sim sobre a parcela desses resultados que compõe o lucro da empresa brasileira. Assim, adotava-se o posicionamento de que não seria o caso de aplicação do art. 7º dos tratados de bitributação26.

Importante notar que parte relevante desses casos foi decidida pela aplicação do voto de qualidade (na sistemática antiga, antes da introdução do art. 19-E na Lei n. 10.522/2002), o que revela que, embora a jurisprudência do Carf até 2020 fosse predominantemente favorável ao entendimento fiscal acerca da compatibilidade entre o art. 7º dos tratados e o art. 74 da Medida Provisória, ainda assim havia grande divergência de opiniões entre os conselheiros.

Foram poucas as decisões, nesse período, que reconheceram a incompatibilidade entre a legislação doméstica e o disposto nos tratados internacionais, concluindo pela necessidade de aplicação do art. 7º e a impossibilidade de tributação, pelo Brasil, dos lucros de controladas no exterior.

O acórdão n. 1103-001.122, de 21 de outubro de 2014, por exemplo, entendeu que o objeto da tributação instituída pelo art. 74 da Medida Provisória são justamente os lucros da empresa sediada no exterior, os quais são considerados auferidos diretamente pela investidora no Brasil. O art. 7º do Tratado Brasil-Holanda, por sua vez, é norma de bloqueio que define a competência exclusiva do Estado da residência para a tributação dos lucros auferidos por empresa. Assim, ponderou a turma julgadora que a não aplicação do art. 7º aos lucros auferidos por controlada estrangeira seria o mesmo que desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade holandesa no âmbito do acordo. Ademais, aceitar a tributação pelo Brasil, nesse caso, seria reconhecer que bastaria o Brasil (ou outro Estado contratante) proceder a uma qualificação a seu bel-prazer do que não sejam lucros de controladas residentes no outro Estado contratante, mudando a qualificação de lucros para outro tipo qualquer de rendimento, para frustrar norma que as partes firmaram e honraram respeitar.

Tal decisão, entretanto, foi posteriormente reformada pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, por meio do acórdão n. 9101-002.331, de 4 de maio de 2016.

Tal acórdão foi citado pelo Conselheiro Caio Cesar Nader Quintella, redator designado do voto vencedor do acórdão n. 1402-002.388, de 14 de fevereiro de 2017, ocasião em que a turma julgadora também concluiu pela necessidade de aplicação do art. 7º do Tratado Brasil-Argentina, afastando-se a tributação prevista pelo art. 74 da Medida Provisória. Em seu profundo voto a respeito do tema, o redator designado ponderou que os acordos de bitributação representam uma decisão político-jurídica dos Estados de renúncia tributária mútua de potencial de arrecadação percebida por meio de fatos geradores ocorridos no exterior. De tal modo, a interpretação e aplicação desses acordos deve se dar de acordo com a boa-fé, visando à efetivação dos fins e efeitos do tratado celebrado. Sob essa ótica, concluiu o douto conselheiro que a legislação interna não poderia ser aplicada de modo a contrariar e retirar a eficácia do quando pactuado no tratado internacional.

Também os acórdãos n. 1302-002.348 e n. 1302-002.347, ambos de 16 de agosto de 2017, adotaram o entendimento de que haveria efetiva incompatibilidade entre o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 e o art. 7º do Tratado Brasil-Argentina, concluindo por fim: “E mesmo a assertiva de que a MP em caso estaria exigindo a tributação do lucro verificado aqui no Brasil e não aquele apurado na Argentina, afastando-se, pois, a regra do art. 7 do Tratado, não pode prevalecer... A disposição contida no art. 7º do Tratado não teria razão de ser (ou seria letra morta) caso não se estendesse à pretensão de se tributar os lucros ‘extraterritório’”.

Finalmente, também o acórdão n. 1302­002.935, de 25 de julho de 2018, concluiu pela necessidade de aplicação do art. 7º do Tratado Brasil-Países Baixos em detrimento da tributação prevista pelo art. 74 da Medida Provisória, inclusive por força do disposto no art. 98 do CTN, bem como pelo critério da especialidade. Naquela ocasião, asseverou o voto condutor do acórdão, proferido pelo Conselheiro Flávio Machado Vilhena Dias, que “pela leitura do artigo 7º do Tratado firmado entre a República Federativa do Brasil e os Países Baixos (Holanda), não há dúvidas de que o Brasil está impedido (norma de bloqueio), pelo princípio da residênica, de tributar lucros auferidos em sociedades independentes (mesmo que seja controlada direta), domiciliadas na Holanda).”

A despeito das decisões comentadas acima, até 2020 a adoção desse entendimento mostrava-se bastante esparça no âmbito do Carf.

Foi apenas recentemente que se observou uma guinada na jurisprudência do Conselho. A partir de 2021, as decisões que foram proferidas a respeito do tema ora em comento foram todas no sentido de que o art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 representaria, efetivamente, tributação do lucro das empresas controladas situadas no exterior, de modo que necessária a aplicação do art. 7º dos tratados de bitributação (configurando esta “norma de bloqueio” da aplicação da legislação tributária doméstica).

Nesse sentido são os acórdãos proferidos pela Câmara Superior n. 9101-005.809, de 6 de outubro de 2021, n. 9101-005.846, de 12 de novembro de 2021 e n. 9101-006.097, de 11 de maio de 2022, bem como o acórdão n. 1301-005.817, de 21 de outubro de 2021, proferido pela 1ª Turma Ordinária, da 3ª Câmara da 1ª Seção do Carf.

Não obstante, vale notar que essa guinada na jurisprudência é apenas aparente, isto é, não tem lastro numa alteração do posicionamento dos conselheiros integrantes do Carf. Isso porque, como adiantado, a jurisprudência passou a ser predominantemente favorável somente após a introdução do art. 19-E na Lei n. 10.522/2002, o qual estabeleceu que, em caso de empate no julgamento, a controvérsia seria decidida a favor do contribuinte.

Tanto isso é verdade que as quatro decisões recentes mencionadas acima foram decididas pela aplicação desse dispositivo, tendo em vista o empate nos julgamentos.

Desse modo, ainda que a adoção predominante, pelo Carf, do entendimento de que a existência de tratado de bitributação impediria a tributação dos lucros de controladas no exterior preconizada pelo art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35 deva, de fato, ser vista com bons olhos, esta alteração de posicionamento também deve ser enxergada com cautela. Afinal, ela não decorre de uma real mudança de posição por parte dos conselheiros do Carf, mas é consequência exclusiva de uma alteração de procedimento de julgamento.

Assim sendo, mesmo que tal mudança de jurisprudência seja positiva, é necessário lembrar que ela pode ser revertida com relativa facilidade, caso seja reintroduzido o voto de qualidade nos moldes antigos. Não é demais lembrar, a esse respeito, que a constitucionalidade da Lei n. 13.988/2020, responsável pela alteração legislativa que introduziu o art. 19-E na Lei n. 10.522, está atualmente em debate no Supremo Tribunal Federal27.

5. Considerações finais

O presente artigo teve como objetivo realizar uma análise acerca da compatibilidade do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001 e do art. 7º dos acordos para evitar a dupla tributação celebrados pelo Brasil.

Por tudo o que foi exposto, é nosso entendimento que tributação prevista pelo art. 74 acaba por recair, efetivamente, sobre os lucros apurados por empresas situadas no exterior, controladas de empresas brasileiras. Por isso, forçoso concluir que tal tributação não é cabível nas hipóteses em que tais controladas estão sediadas em país com o qual o Brasil possui tratado para evitar a dupla tributação, na medida em que o art. 7º desses tratados, redigido nos moldes da Convenção Modelo da OCDE, determina que a competência para tributar o lucro das empresas – aqui entendido como o lucro decorrente do desenvolvimento da atividade econômica – é exclusiva do país de residência dessas empresas (ou seja, o país onde está sediada a controlada).

Admitir a tributação desses lucros na sistemática prescrita pelo art. 74 da Medida Provisória representaria não só uma afronta aos tratados de bitributação celebrados pelo Brasil, como também uma violação do princípio da boa-fé na aplicação e interpretação dos acordos internacionais, sedimentado na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Ademais, sustentar a aplicação do art. 74 em detrimento do art. 7º dos tratados configura violação do art. 98 do CTN.

No que tange à jurisprudência a respeito do tema, merece destaque o fato de que, recentemente, houve alteração no posicionamento predominantemente adotado pelo Conselho Adminsitrativo de Recursos Fiscais. Tal posicionamento, antes no sentido da compatibilidade entre o art. 74 da Medida Provisória e o art. 7º dos tratados, alterou-se a partir de 2021, passando a serem proferidas decisões reconhecendo a impossibilidade de tributação dos lucros auferidos por controladas no exterior, quando tais controladas estão situadas em país com o qual o Brasil celebrou acordo de bitributação.

Tal guinada na jurisprudência administrativa, embora positiva, deve ser enxergada com extrema cautela, na medida em que decorre exclusivamente de uma alteração procedimental (quanto à decisão dos empates em jugalmentos a favor do contribuinte) e não de uma verdadeira mudança no posicionamento adotado pelos conselheiros integrantes do Carf.

Referências bibliográficas

BIANCO, João Francisco. Capítulo 7: Os lucros das empresas e o art. 7 dos tratados contra a dupla tributação. Estudos avançados de direito tributário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

BIANCO, João Francisco; SANTOS, Ramon Tomazela. International/OECD – a change of paradigm in international tax law: article 7 of tax treaties and the need to resolve the source versus residence dichotomy. Bulletin for International Taxation, (Volume 70), No 3, 2016.

GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André. Manual de direito tributário internacional. São Paulo: Dialética, 2012.

LANG, Michel. Introduction to the Law of Double Taxation Conventions. 2nd edition. Vienna: Linde, 2013.

NETO, Luís Flávio. Tributação brasileira dos lucros de empresas controladas em países com acordo de bitributação. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; BIANCO, João Francisco; CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e; DUARTE FILHO, Paulo César Teixeira; COSTA, Alcides Jorge. Estudos de direito tributário: em homenagem ao prof. Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016.

PAULSEN, Leandro. Direito tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. Porto Alegre: Lael, 2011.

RAAD, Kees Van. Five fundamental rules in applying tax treaties. Liber Amicorum Luc Hinnekens. Brussel: Bruylant, 2002.

ROCHA, Sergio André. Tributação internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013.

ROCHA, Sergio André. Tributação de lucros auferidos no exterior (Lei nº 12.973/2014). São Paulo: Dialética, 2014.

SANTOS, Ramon Tomazela. O regime de tributação dos lucros auferidos no exterior na Lei n. 12.973/2014. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário internacional. Acordos de bitributação. Imposto de renda: lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior. Disponibilidade. Efeitos do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35 – Parecer. Revista Direito Tributário Atual v. 16. São Paulo: Dialética e IBDT, 2001.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Princípios no direito tributário internacional: territorialidade, fonte e universalidade. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho (org.). Princípios e limites da tributação. 1. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005. v. 1.

TÔRRES, Heleno. Pluritributação internacional sobre as rendas das empresas. 2. ed. São Paulo: RT, 2001.

VOGEL, Klaus. Double Taxation Conventions. 2. ed. Holanda: Kluwer Law and Taxation Publishers, 1990.

1 “Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte. (Incluído pela Lei nº 13.988, de 2020)”

2 Segundo Heleno Tôrres: “isso se dá por recurso a uma fictio iuris, segundo a qual, para efeitos tributários, considera-se que o sujeito interposto efetua uma automática e direta distribuição de lucros ao sujeito residente na data do balanço na qual os lucros são apurados.” (TÔRRES, Heleno. Pluritributação internacional sobre as rendas das empresas. 2. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 207).

3 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário internacional. Acordos de bitributação. Imposto de Renda: lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior. Disponibilidade. Efeitos do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35 – Parecer. Revista Direito Tributário Atual v. 16. São Paulo: Dialética e IBDT, 2001, p. 186-187.

4 SCHOUERI, Luís Eduardo. Princípios no direito tributário internacional: territorialidade, fonte e universalidade. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho (org.). Princípios e limites da tributação. 1. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005. v. 1, p. 372-373.

5 A esse respeito, Marco Aurélio Greco e Sergio André Rocha, em notável obra a respeito do tema, ensinam: “Os instrumentos de transparência fiscal internacional, correspondentes ao modelo das controlled foreign corporations do Direito norte-americano, têm por finalidade evitar a utilização de países com tributação favorecida como instrumento para evitar a tributação, pelo país de residência da empresa controladora, dos resultados auferidos por suas controladas estabelecidas no exterior. Ou seja, tais regimes não são utilizados como regra geral de tributação, como se passa no Brasil, mas como regimes excepcionais de controle da evasão fiscal ou de planejamentos fiscais abusivos.” (GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André. Manual de direito tributário internacional. São Paulo: Dialética, 2012, p. 390-391).

6 Redação da Convenção Modelo da OCDE de 2017.

7 Em tradução livre:

“Artigo 7

Lucros das Empresas

1. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante serão tributáveis apenas nesse Estado, a não ser que a empresa exerça suas atividades no outro Estado Contratante por intermédio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade na forma indicada, os lucros atribuíveis a esse estabelecimento permanente, nos termos do parágrafo 2, poderão ser tributados nesse outro Estado.”

8 Tendo isso em vista, a análise a ser realizada no presente artigo será feita com base na redação do dispositivo tal como consta na Convenção Modelo da OCDE de 2017, mas, frisa-se, as conclusões que serão expostas aplicam-se igualmente aos tratados celebrados pelo Brasil, devido à semelhança nas redações.

9 LANG, Michel. Introduction to the Law of Double Taxation Conventions. 2nd edition. Vienna: Linde, 2013, p. 70-75.

10 RAAD, Kees Van. Five fundamental rules in applying tax treaties. Liber Amicorum Luc Hinnekens. Brussel: Bruylant, 2002, p. 587-589.

11 VOGEL, Klaus. Double Taxation Conventions. 2. ed. Holanda: Kluwer Law and Taxation Publishers, 1990, p. 23-24.

12 BIANCO, João Francisco. Capítulo 7: Os lucros das empresas e o art. 7 dos tratados contra a dupla tributação. Estudos avançados de direito tributário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 136.

13 São eles: arts. 6º, 8º, 10, 11, 12, 16, 17, 19 e 19 da Convenção Modelo da OCDE.

14 BIANCO, João Francisco; SANTOS, Ramon Tomazela. International/OECD – a change of paradigm in international tax law: article 7 of tax treaties and the need to resolve the source versus residence dichotomy. Bulletin for International Taxation, (Volume 70), No 3, 2016 (on-line).

15 A não ser, como visto, que a empresa desenvolva a sua atividade por meio de um estabelecimento permanente situado no Estado da fonte.

16 O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já se pronunciou diversas vezes nesse sentido. Confira-se, a título de exemplo: REsp n. 1.272.897/PE, Primeira Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 09.12.2105; REsp n. 1.325.709/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 20.05.2014; REsp n. 1.161.467/RS, Rel. Min. Castro Moreira, DJe 01.06.2012.

17 Nesse sentido: PAULSEN, Leandro. Direito tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. Porto Alegre: Lael, 2011, p. 881/887.

18 A esse respeito, ensina Sergio André Rocha: “Parece-nos que o princípio da boa-fé determina que os Estados signatários de um dado tratado, na construção de sentido a partir de seu texto, não buscarão eximir-se do cumprimento das obrigações assumidas e nem atribuir obrigações não pactuadas à(s) outra(s) parte(s).” (ROCHA, Sergio André. Tributação internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 78-79).

19 “Artigo 16.

Pacta sunt servanda.

Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé.”

“Artigo 31.

Regra geral de interpretação.

1. 1. Um tratado deve ser interpretado de boa-fé segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade.”

20 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário internacional. Acordos de bitributação. Imposto de Renda: lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior. Disponibilidade. Efeitos do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35 – Parecer. Revista Direito Tributário Atual v. 16. São Paulo: Dialética e IBDT, 2001, p. 203, 206, 207.

21 GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André. Manual de direito tributário internacional. São Paulo: Dialética, 2012, p. 409.

22 O autor também retoma este posicionamento em obra posterior: ROCHA, Sergio André. Tributação de lucros auferidos no exterior (Lei nº 12.973/2014). São Paulo: Dialética, 2014, p. 50-86.

23 SANTOS, Ramon Tomazela. O regime de tributação dos lucros auferidos no exterior na Lei n. 12.973/2014. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 299-300.

24 NETO, Luís Flávio. Tributação brasileira dos lucros de empresas controladas em países com acordo de bitributação. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; BIANCO, João Francisco; CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e; DUARTE FILHO, Paulo César Teixeira; COSTA, Alcides Jorge. Estudos de direito tributário: em homenagem ao prof. Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 250.

25 “6. O art. VII do Modelo de Acordo Tributário sobre a Renda e o Capital da OCDE utilizado pela maioria dos Países ocidentais, inclusive pelo Brasil, conforme Tratados Internacionais Tributários celebrados com a Bélgica (Decreto 72.542/73), a Dinamarca (Decreto 75.106/74) e o Principado de Luxemburgo (Decreto 85.051/80), disciplina que os lucros de uma empresa de um Estado contratante só são tributáveis nesse mesmo Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante, por meio de um estabelecimento permanente ali situado (dependência, sucursal ou filial); ademais, impõe a Convenção de Viena que uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado (art. 27), em reverência ao princípio basilar da boa-fé.

7. No caso de empresa controlada, dotada de personalidade jurídica própria e distinta da controladora, nos termos dos Tratados Internacionais, os lucros por ela auferidos são lucros próprios e assim tributados somente no País do seu domicílio; a sistemática adotada pela legislação fiscal nacional de adicioná-los ao lucro da empresa controladora brasileira termina por ferir os Pactos Internacionais Tributários e infringir o princípio da boa-fé na relações exteriores, a que o Direito Internacional não confere abono.” (REsp n. 1.325.709/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 24.4.2014)

26 Nesse sentido, a título de exemplo, são as seguintes decisões: n. 9101-004.763, de 5 de fevereiro de 2020; n. 1402-004.362, de 21 de janeiro de 2020; n. 1402-002.411, de 21 de janeiro de 2020; n. 1302-004.107, de 11 de novembro de 2019; n. 1302-003.813, de 13 de agosto de 2019; n. 1301-003.770, de 20 de março de 2019; n. 1201-002.761, de 19 de março de 2019; n. 1302-003.385, de 19 de fevereiro de 2019; n. 1301-003.473, de 20 de novembro de 2018; n. 9101-003.829, de 4 de outubro de 2018; n. 1402-003.341, de 14 de agosto de 2018; n. 9101-003.617, de 6 de junho de 2018; n. 1301-003.001, de 15 de maio de 2018; n. 1401-002.406, de 13 de abril de 2018; n. 1401-002.199, de 21 de fevereiro de 2018; n. 9101-003.169, de 7 de novembro de 2017; n. 1301-002.656, de 17 de outubro de 2017; n. 9101-003.088, de 13 de setembro de 2017; n. 1401-002.040, de 16 de agosto de 2017; n. 1201-001.779, de 21 de junho de 2017; n. 1301-002.439, de 17 de maio de 2017; n. 1201-001.691, de 17 de maio de 2017; n. 1402-002.494, de 16 de maio de 2017; n. 1402-002.411, de 21 de março de 2017; n. 9101-002.589, de 14 de março de 2017; n. 1201-001.560, de 15 de fevereiro de 2017; n. 1301-002.113, de 12 de agosto de 2016; n. 1201-001.464, de 9 de agosto de 2016; n. 1201-001.490, de 14 de setembro de 2016; n. 1301-002.158, de 5 de outubro de 2016; n. 1402-002.321, de 4 de outubro de 2016; n. 1101-000.836, de 4 de dezembro de 2012; n. 1402-00.391, de 27 de janeiro de 2011.

27 ADI n. 6.415, ADI n. 6.399 e ADI n. 6.403.