O Intercâmbio de Informações para Fins Tributários entre Brasil e Estados Unidos da América frente ao Entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do Sigilo de Dados

The Exchange of Information for Tax Purposes between Brazil and the United States of America in Front of the Supreme Federal Court Understanding on Data Confidentiality

Gustavo Bruno Becker Feil

Especialista em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV Direito SP. Advogado no Paraná. E-mail: gustavofeil@gmail.com.

Recebido em: 28-10-2022 – Aprovado em: 18-11-2022

https://doi.org/10.46801/2595-7155.11.2.2022.2265

Resumo

O objeto do presente artigo é analisar se a troca de informações para fins tributários entre o Brasil e os Estados Unidos da América (EUA), a pedido ou automaticamente, no âmbito do Foreign Account Tax Compliance Act (Fatca), respeita os limites do direito ao sigilo de dados no Brasil, na perspectiva da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando analisou a constitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar n. 105/2001, que instituiu a possibilidade de a autoridade fiscal ter acesso a dados de usuários do sistema financeiro, independentemente de ordem judicial. Partindo da análise da decisão do STF e do detalhamento acerca da forma pela qual a troca de informações é realizada entre o Brasil e os EUA, será realizado o teste de adequação da sistemática do intercâmbio de informação entre os países, especialmente na forma pela qual o Brasil recebe as informações dos EUA.

Palavras-chave: transparência fiscal, troca de informações, TIEA, Fatca, sigilo de dados, sigilo bancário.

Abstract

The purpose of this paper is to analyze whether the exchange of information for tax purposes between Brazil and the United States of America, by request or automatically, within the Foreign Account Tax Compliance Act (Fatca), respects the limits of the right to data secrecy in Brazil, from the perspective of the Federal Supreme Court (STF) decision, when it decided about the constitutionality of provisions of Complementary Law n. 105/2001, which established the possibility of the tax authority having access to data from users of the financial system, regardless of judicial order. Starting from the STF decision and the details about the way in which the exchange of information is carried out between Brazil and the USA, the adequacy test of the systematic of the exchange of information between the countries will be carried out, especially in the way in which the Brazil receives the information from the USA.

Keywords: fiscal transparency, exchange of information, TIEA, Fatca, data secrecy, bank secrecy.

1. Introdução

Este artigo cuida de analisar se a sistemática de troca de informações de usuários do sistema financeiro entre o Brasil e os Estados Unidos da América (EUA), tanto nas modalidades a pedido1 quanto automaticamente, no âmbito do Foreign Account Tax Compliance Act (Fatca)2, está em consonância com o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) em torno do tema do sigilo de dados bancários e fiscais, notadamente das recentes decisões da corte quando apreciou a constitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar n. 105/2001 nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) n. 2.390/DF, n. 2.386/DF, n. 2.397/DF e n. 2.859/DF e no Recurso Extraordinário (RE) n. 601.314/SP.

A pesquisa se motiva pelo fato de que a troca de informações bancárias e fiscais de contribuintes entre países vem se tornando rotineira, na medida em que é utilizada como importante ferramenta global para evitar planejamentos tributários abusivos, a erosão da base tributária das nações3, bem como instrumento que contribui para desvendar atividades criminosas de terrorismo, narcotráfico, corrupção e lavagem de dinheiro4. Se por um lado o intercâmbio destas informações se revela cada vez mais uma valiosa ferramenta para os Estados, não se pode perder de vista que no Brasil estes mesmos dados são objeto de garantias constitucionais que lhes garantem a inviolabilidade e o sigilo. No âmbito do intercâmbio destas informações surge, portanto, o conflito entre o interesse dos Estados em obter os dados e o direito do cidadão à privacidade.

No que toca ao sistema legal doméstico, em 2016, quando o STF julgou os processos anteriormente citados, a questão do sigilo bancário se encaminhou pela possibilidade de o fisco obter, seja automaticamente, seja mediante requisição direta aos operadores do sistema financeiro, dados financeiros do contribuinte, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, na forma que estabeleceu a Lei Complementar n. 105/2001. Com a decisão, surge o questionamento: a troca de informações entre Brasil e os EUA, a pedido ou automaticamente, respeita as premissas e os limites impostos pelo STF para a obtenção dos dados financeiros dos usuários do sistema financeiro?

A possibilidade da não adequação da sistemática do Fatca em relação ao sigilo bancário brasileiro já foi aventada por Heloisa Estellita e Frederico Silva Bastos5, contudo, em momento anterior ao julgamento das mencionadas ações de controle concentrado de constitucionalidade, enquanto a corte ainda pendia para a orientação de que o acesso aos dados do contribuinte somente seria possível mediante ordem judicial, nos termos do julgado no Recurso Extraordinário n. 389.808/PR, Relator Ministro Marco Aurélio.

Iniciaremos com a análise da decisão do STF, visando dela extrair os principais argumentos e os seus desdobramentos que levaram à afirmação da constitucionalidade da sistemática no âmbito nacional. Após, será detalhada a forma pela qual a troca de informações a pedido e automática é realizada entre o Brasil e os EUA. Na sequência, os fundamentos e conclusões do STF servirão como base de comparação para a sistemática do intercâmbio de informação entre os países.

Frente o formato do artigo e seus limites, será dado enfoque maior quanto à forma pela qual o Brasil recebe as informações dos EUA. A forma pela qual o Brasil envia as informações aos EUA não será objeto de aprofundamento, pois exigiria uma análise de maior alcance a respeito da legislação americana, esforço que ultrapassa os limites do trabalho proposto.

2. Transparência fiscal e cooperação internacional

A mobilidade internacional do capital, efeito da globalização, levou países a um cenário de competição fiscal. Nações foram forçadas a readequar as suas bases tributárias para atrair o capital estrangeiro, deslocando o peso da tributação do capital para a tributação do trabalho e do consumo, bem como a reduzir alíquotas. Nesse cenário de competição, muitos Estados viram as suas contas deficitárias e se voltaram para a redução de despesas e de benefícios sociais como forma de ajustarem suas finanças internas6.

Em 1998, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou o relatório Harmful Tax Competition: an emerging global issue (Guerra Fiscal Predatória: uma questão global emergente – na tradução livre), que identificou problemas como a existência de paraísos fiscais e regimes de tributação privilegiada. No relatório, tanto paraíso fiscal quanto regime de tributação privilegiada são qualificados, entre outros, pela falta de troca de informações e pela falta de transparência7.

Com a identificação dos problemas, iniciaram-se esforços para eliminá-los ou, no mínimo, reduzi-los. No ano 2000, a OCDE publicou o relatório Improving access to bank information for tax purposes, no qual identificou que legislações domésticas acerca do sigilo bancário impediam ou dificultavam o atendimento de pedidos de cooperação internacionais relativos a tributos. O relatório foi publicado contendo a orientação de que os países da OCDE deveriam se adaptar para permitir que dados bancários de usuários do sistema financeiro pudessem ser acessados diretamente por autoridades fiscais8.

A iniciativa foi encapada pelo Grupo dos 20 (G20), que em declaração emitida na Cúpula de Londres, em 2009, chegou a anunciar que a era do sigilo bancário havia terminado9. Em parceria com a União Europeia, o G20 passou a promover um padrão internacional de troca de informações, discutido no âmbito do Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes. Os trabalhos do fórum foram direcionados a partir de núcleos como a disponibilidade da informação, do acesso adequado à informação e da existência de ferramentas para a troca destas informações10. Estas medidas teriam como objetivo impedir que sujeitos passivos possam espraiar ativos em várias jurisdições e, valendo-se do sigilo bancário, impeçam que outros Estados interessados deles tomem conhecimento11.

O Brasil formalmente adotou o padrão proposto pela OCDE e pelo G20 ao aderir à Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária12 bem como ao Automatic Exchange of Financial Information in Tax Matters (AEOI), que possibilitam a troca de informações entre as nações signatárias nas modalidades a pedido, automática e espontânea, além da fiscalização e assistência na cobrança de tributos. Além disso, o país também é cooperante no BEPS – Base Erosion and Profit Shifting da OCDE, programa que visa à adoção de medidas com o objetivo de evitar o esvaziamento das bases tributárias das nações mediante deslocamento de lucros para jurisdições de baixa tributação.

Além da adesão a estas iniciativas globais, o Brasil também firmou com os Estados Unidos da América os Acordos objeto do presente estudo. No Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos13 está contida a previsão do intercâmbio de informações entre os países na modalidade a pedido. Já no Acordo firmado entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do Fatca14 está prevista a troca automática e recíproca destas informações.

Este breve relato revela a crescente tendência mundial pela abertura e intercâmbio internacional de dados atinentes à alocação do patrimônio de sujeitos passivos ao redor do globo. Conforme dito em parágrafo anterior, este processo depende da existência de mecanismos para a obtenção e repasse destas informações.

3. O sigilo de dados no Brasil

A questão do sigilo de dados no Brasil é assunto presente em diplomas legais em muito anteriores à Constituição de 1988. Entrementes, para os pontos que interessam ao presente trabalho, a análise será realizada considerando-se o status conferido ao sigilo de dados no ordenamento jurídico pós-88. Na vigência da atual Constituição, o direito ao sigilo de dados (nele compreendidos o sigilo fiscal e o bancário) é entendido como desdobramento do direito à privacidade, sendo que ambos encontram previsão no art. 5º, incisos XII e X, respectivamente; topograficamente, o direito ao sigilo de dados encontra-se inserido no rol dos direitos e garantias individuais, aos quais a mesma Constituição confere o caráter de cláusula pétrea, nos termos do seu art. 6015.

Para André Ramos Tavares, esta previsão constitucional garantiria somente ao titular do direito a opção de divulgar ou não os seus dados e elementos íntimos da sua vida familiar, doméstica ou particular, resguardando da interferência de terceiros a sua intimidade, vida privada, honra, domicílio e outros16. Desta garantia, sobreveio no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que o direito individual ao sigilo de dados somente poderia ser afastado justificadamente e mediante ordem judicial17. Se a ordem de quebra do sigilo deve ser justificada, não deixaram de existir dúvidas a respeito de quando a quebra se justifica. Roberto Quiroga Mosquera aduz que uma justificativa adequada seria a presença indícios de descumprimento de dever legal18.

3.1. A estrutura legal brasileira que determina a abertura de dados ao Fisco

No Brasil, logo no início dos anos 2000 e na esteira das recomendações da OCDE elencadas no Capítulo 2, sobrevieram alterações na legislação de modo a franquear ao fisco o acesso direto aos dados bancários de usuários do sistema financeiro.

A Lei Complementar n. 105/2001 inseriu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de que a Receita Federal Brasileira – RFB tivesse acesso, independente de decisão judicial, a dados de usuários do sistema financeiro nacional. Para tanto, determinou que o Executivo Federal disciplinasse a periodicidade, os limites de valor e os critérios segundo os quais as instituições financeiras nacionais deveriam informar automaticamente à RFB operações financeiras realizadas por usuários de seus serviços, conforme art. 5º.

A prestação destas informações financeiras foi regulamentada pelo Poder Executivo por meio do Decreto n. 4.489/2002. Conforme o § 2º do art. 5º da Lei Complementar n. 105/2001 e art. 2º do Decreto n. 4.489/2002, a prestação sistêmica e periódica das informações bancárias à RFB é limitada aos montantes globais movimentados pelo titular perante a instituição financeira, sem quaisquer informações que permitam “identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados”. Nesta modalidade, as informações devem ser enviadas ao fisco independentemente de requisição ou da presença de indícios de evasão tributária e assemelhados.

Na eventualidade de as informações obtidas rotineiramente pela RFB evidenciarem falhas ou inconsistências frente às declarações prestadas pelo contribuinte ou indicarem no sentido do cometimento de ilícito fiscal, o § 4º do mesmo art. 5º da LC n. 105/2001 autoriza a autoridade administrativa a requisitar informações detalhadas diretamente à instituição financeira para a apuração das discrepâncias.

Embora o acesso sistêmico e rotineiro das informações financeiras de que trata o art. 5º da Lei Complementar n. 105/2001 tenha ficado restrito à autoridade fiscal Federal, a mesma LC n. 105/2001 também inseriu no ordenamento a possibilidade de as autoridades fiscais dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios requisitarem diretamente às instituições financeiras dados bancários de usuários dos seus serviços que fossem considerados indispensáveis no curso de processo de fiscalização tributária devidamente instaurado. Esta previsão está contida no art. 6º da Lei Complementar n. 105/2001. No âmbito federal, a disciplina da requisição, acesso e uso de tais dados foi estabelecida pelo Decreto n. 3.724/2001.

O quadro abaixo esquematiza as modalidades de acesso de dados franqueadas aos diferentes níveis de administração tributária nacional:

Quadro 01 – Modalidades de acesso de dados do sistema financeiro por diferentes níveis da administração tributária nacional prevista na LC n. 105/2001.

Sistemática

Previsão Legal

Disponibilizada para

Acesso periódico e automático a informações de usuários do sistema financeiro

Art. 5º da LC 105/2001

União Federal

Requisição de informações e documentos à instituição financeira caso detectadas inconsistências nas informações recebidas periodicamente

Art. 5º, § 4º, da LC 105/2001

União Federal

Requisição de informações e documentos à instituição financeira que sejam indispensáveis para a conclusão de procedimento fiscal em curso

Art. 6º da LC 105/2001

União Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios

Esta sistemática contida na LC n. 105/2001, embora abranja a prestação de informações de pessoas físicas ou jurídicas brasileiras por instituições financeiras que operem no Brasil, guarda relação de identidade com o que dispõem os Acordos firmados entre Brasil e Estados Unidos. No Acordo para a Implementação do Fatca encontramos disposições que preveem a troca periódica e sistemática de informações financeiras de usuários dos serviços dos sistemas financeiros brasileiro e americano, em semelhança ao que prevê o art. 5º da LC n. 105/2001, e no Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos está contida a possibilidade de solicitação de informações adicionais para propósitos tributários, sistemática semelhante àquela contida no art. 5º, § 4º e art. 6º da LC n. 105/2001.

Diante destes traços de semelhança, a identificação dos critérios, parâmetros e limitadoras que levaram o STF a afirmar a compatibilidade desta sistemática nacional de obtenção de dados de usuários do sistema financeiro pela administração tributária com o direito ao sigilo de dados bancário e fiscal do contribuinte é exercício útil para a verificação da compatibilidade da sistemática do intercâmbio internacional de dados entre Brasil e EUA com este mesmo direito ao sigilo de dados.

3.2. A ótica do Supremo Tribunal Federal

As mais recentes interpretações do STF acerca do tema do sigilo de dados frente à administração tributária no âmbito interno servirão como norte para análise da compatibilidade das disposições dos Acordos com o sistema de garantias constitucionais brasileiro. Neste sentido, as questões que foram analisadas pelo STF e que guardam relação com o tema ora em análise gravitam em torno de dispositivos da mencionada Lei Complementar n. 105/2001 e da sua consideração frente ao direito de sigilo de dados bancário e fiscal.

Tanto o art. 5º quanto o art. 6º da LC n. 105/2001 tiveram a sua constitucionalidade contestada perante o STF. O argumento central daqueles que alegavam a inconstitucionalidade dos dispositivos era de que, em síntese, a transferência de tais dados pelas instituições financeiras diretamente à administração tributária implicaria a quebra de sigilo de dados dos contribuintes, em violação ao comando constitucional da reserva de jurisdição contido no art. 5º, inc. XII, da Constituição Federal.

Nas primeiras manifestações acerca da constitucionalidade dos dispositivos que amparam a sistemática no âmbito nacional, o Supremo Tribunal Federal navegou de uma primeira afirmação de que a sistemática era constitucional, quando em 24 de novembro de 2010 se negou a referendar a Medida Cautelar na Ação Cautelar n. 33, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, e uma segunda afirmação, datada de 15 de dezembro de 2010, quando do julgamento do Recurso Extraordinário n. 389.808/PR, também de relatoria do Ministro Marco Aurélio, no sentido de que a prática seria inconstitucional, pois violaria o direito fundamental ao sigilo de dados bancários, que somente poderia ser afastado mediante ordem judicial e, mesmo assim, somente para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Finalmente, no ano de 2016, quando julgou de modo definitivo a questão nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADI n. 2.390/DF, n. 2.386/DF, n. 2.397/DF e n. 2.859/DF19 e no Recurso Extraordinário – RE n. 601.314/SP20, firmou o STF a tese de que tanto a prestação periódica de informações pelas instituições financeiras de dados dos seus usuários ao fisco federal (prevista no art. 5º da LC n. 105/2001) quanto a possibilidade de os agentes fiscais de todos os Entes da federação solicitarem o exame de dados de usuários detidos por instituições financeiras (prevista no art. 6º da LC n. 105/2001), seriam constitucionais.

Embora tenha sido vencedora a vertente que entendeu pela inexistência de quebra de sigilo, mas da mera transferência de uma obrigação de manutenção de sigilo bancário para sigilo fiscal, a linha majoritária do STF, capitaneada pelos votos dos Ministros Dias Toffoli, relator das ADIs, e Edson Fachin, relator RE, o fez expressamente ressaltando condicionantes e limitadoras ao poder de acesso e de uso dos dados pela autoridade da administração tributária contidas na própria Lei impugnada, tais como a exigência de processo administrativo instaurado para que Estados, Distrito Federal e Municípios fizessem o uso da ferramenta, a previsão de sanção funcional e criminal em caso de vazamento dos dados sigilosos obtidos por meio dos procedimentos então impugnados, entre outras. Estas limitadoras foram consideradas pela linha majoritária como o suporte, a garantia de que sobre os dados bancários não haveria propriamente uma quebra de sigilo, pelo contrário, deveriam ser mantidos em sigilo pela própria afirmação de que à administração tributária também seria vedada a sua divulgação.

A identificação destes aspectos destacados na decisão do STF como limitadores do direito de obtenção, utilização e de divulgação dos dados obtidos, que teriam por finalidade a garantia da preservação do sigilo sobre os dados, é necessária para que se verifique posteriormente se também o intercâmbio de informações entre Brasil e Estados Unidos contém semelhantes limitadoras que garantam a manutenção do sigilo sobre os dados transferidos ou se, caso não contenham, algum outro fundamento contido nas decisões do STF podem servir de suporte para a validação da sistemática prevista nos Acordos.

Os principais argumentos contidos no conjunto das ações que contestavam a constitucionalidade dos dispositivos e que são relevantes para a análise proposta no presente foram assim condensados no voto do Relator das ADIs, Ministro Dias Toffoli:

i) A jurisprudência do STF indicava que seria vedado ao Poder Executivo determinar a quebra de sigilo bancário e fiscal de contribuinte;

ii) O sigilo de dados bancários e fiscais é direito reflexo do direito à privacidade, de caráter absoluto, e somente pode ser afastado mediante ordem judicial fundamentada;

iii) Haveria violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição caso o contribuinte somente pudesse acionar o Poder Judiciário após o acesso aos seus dados pela administração tributária;

iv) As normas impugnadas violariam o princípio da razoabilidade, pois não seriam medidas indispensáveis à fiscalização tributária;

v) Que embora fosse reconhecida a possibilidade de mitigação de direitos individuais frente ao interesse público, este último não se confunde com o interesse da Fazenda Pública, que não pode se sobrepor às garantias constitucionais de proteção das liberdades individuais;

vi) Que o intercâmbio automático de dados financeiros, mesmo sem a ocorrência de justa causa ou de indícios de irregularidades viola o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

No controle concentrado, a corrente majoritária no Tribunal rejeitou as alegações de inconstitucionalidade, com 08 (oito) votos a favor da constitucionalidade da norma contra 02 (dois) que a declaravam inconstitucional. Os votos pela constitucionalidade foram dos Ministros Dias Toffoli, Edson Fachin, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, sendo que os votos vencidos foram dos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.

Em relação aos argumentos que levaram o STF a firmar a posição pela constitucionalidade das normas, devemos iniciar constatando que a atual forma pela qual a corte exterioriza o seu entendimento, por meio de manifestações individuais de cada Ministro, dificulta a tarefa de precisar argumentos e conclusões que sejam comuns mesmo entre Ministros de uma vertente aparentemente convergente21. Não é incomum que Ministros partam de premissas diferentes e cheguem a conclusões idênticas. Em razão desse processo fragmentado de construção da decisão pelo STF, a identificação dos argumentos e conclusões comuns será feita a partir da aglutinação de ideias correlatas que possam ser entendidas como confluentes para a formação da posição vencedora, muito embora algumas posições individuais de cada Ministro possam conflitar com o entendimento global. Após identificados estes pontos comuns, servirão os mesmos como base de comparação para a sistemática do intercâmbio de dados entre Brasil e EUA.

3.2.1. Premissas do julgamento

Antes de ingressar na análise das razões específicas que levaram o STF a rejeitar a alegação de inconstitucionalidade das normas, pode-se notar na posição da corrente majoritária a exaltação de dois aspectos de fundo que justificariam a criação de instrumentos tais como o da abertura dos dados dos usuários do sistema ao financeiro à administração tributária.

O primeiro deles é relativo a um alegado dever fundamental de pagar tributo como corolário da adoção de um modelo de Estado Fiscal, para o qual a implementação de políticas públicas depende do financiamento estatal via tributação e no qual a tributação seria uma relevante ferramenta para a promoção de igualdade. O Relator Dias Toffoli chegou a afirmar que o dever de pagar tributo, baseado na ideia de solidariedade social, seria existente “pelo simples fato de o cidadão pertencer à sociedade, com a qual tem o dever de contribuir”. Considerações de idêntico sentido foram também realizadas pelos Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso. Para os Ministros, estas premissas justificam a existência de ferramentas para que o fisco pudesse combater a evasão fiscal e encontrariam previsão de implementação expressa no texto constitucional, no art. 145, § 1º.

O segundo aspecto de fundo que ganhou destaque foi o empreendimento de esforços globais, notadamente no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE e do G20, visando à implementação de medidas de transparência fiscal global que atenuem a sonegação fiscal, a alocação de patrimônio em jurisdições de baixa tributação, o financiamento do crime organizado e organizações terroristas e outros, inclusive mediante tratados internacionais já subscritos pelo Brasil. Este aspecto foi especialmente ressaltado pelos Relatores Dias Toffoli e Edson Fachin, bem como no voto do Ministro Luís Roberto Barroso. O Ministro Dias Toffoli afirmou que o Brasil, seguindo a tendência mundial, já havia firmado vários tratados e compromissos internacionais para a implementação de medidas atinentes à transparência fiscal e ao intercâmbio de informações financeiras entre nações, sendo que a eventual declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos então impugnados ocasionaria a impossibilidade de o país cumprir com os compromissos internacionais assumidos. O Ministro Edson Fachin também trouxe em seu voto tais argumentos, concluindo que o Brasil tem se esforçado para se integrar à corrente mundial de transparência fiscal, destacando, neste aspecto, a própria adesão do país ao Fatca. O Ministro Luís Roberto Barroso ressaltou que nesta corrente de transparência fiscal internacional o Brasil já havia firmado acordos com Reino Unido, Ilhas Bermudas, Uruguai, Ilhas Cayman, Guernsey e Jersey, bem como com os Estados Unidos da América.

Tais considerações acerca dos esforços empreendidos ao redor do globo e seus reflexos no Brasil em prol da transparência fiscal internacional, embora não tenham sido levantadas como argumentos para confirmar a constitucionalidade de uma sistemática específica de troca de dados entre o Brasil e outra nação, indicam que a corte já manifesta uma tendência de aceitação da prática, sobretudo se considerarmos que a sistemática de obtenção de informações financeiras no âmbito interno, então em julgamento, foi até mesmo considerada como ferramenta fundamental para que o país pudesse cumprir os acordos de intercâmbio internacional de dados já assumidos. Este adiantamento de posição pode se tornar especialmente relevante para a análise proposta em capítulo seguinte, quando as conclusões extraídas deste julgado do STF forem analisadas frente à sistemática vigente para o intercâmbio de dados entre Brasil e Estados Unidos, especialmente para a análise de eventuais situações em que a troca de informações não se adeque definitivamente ao que decidiu o STF, mas também não seja manifestamente contrária às conclusões da corte.

3.2.2. As razões específicas

No tocante ao ponto central então em julgamento, se haveria ou não quebra do sigilo de dados do usuário do sistema financeiro e se essa prática seria compatível com o direito ao sigilo previsto na Constituição, das manifestações dos Ministros que formaram a maioria pela constitucionalidade da sistemática do intercâmbio de dados no âmbito nacional, foi possível identificar 04 (quatro) grandes núcleos argumentativos que, em maior ou menor grau, se relacionam entre si. São eles:

i) A inexistência de um direito fundamental absoluto ao sigilo sobre dados bancários;

ii) A inexistência de quebra de sigilo bancário sobre os dados transmitidos ao fisco;

iii) A obtenção e utilização dos dados financeiros pela administração tributária não pode ser feita indiscriminadamente e exige um procedimento específico que garanta direitos ao sujeito passivo e a não divulgação dos dados para terceiros estranhos à atividade de fiscalizatória;

iv) A já existente obrigatoriedade de declaração da universalidade de bens e direitos e de outras informações sensíveis do contribuinte ao fisco.

Os núcleos acima serão concisamente analisados individualmente para que seja possível a identificação das cláusulas dispositivas contidas em cada um.

3.2.2.1. A inexistência de direito absoluto ao sigilo de dados bancários

A ideia de que o direito ao sigilo de dados bancários seria um direito individual absoluto, pois integrante daqueles direitos da personalidade e da intimidade do cidadão previstos na Constituição, e que somente poderia ser afastado mediante ordem judicial, foi definitivamente afastada pela maioria dos Ministros votantes. Para esta maioria, o direito ao sigilo de dados bancários pode ser moldado pela legislação infraconstitucional de modo a sofrer limitações, sobretudo quando em conflito com outros interesses legítimos, dentre eles o interesse do Estado em obter financiamento para as suas políticas públicas22, o combate à lavagem de dinheiro, terrorismo, tráfico de drogas e outros. Para tal corrente, a possibilidade de limitação do sigilo de dados encontraria previsão no próprio texto constitucional que, no art. 145, § 1º, garante à administração tributária a instituição de meios para tributar o contribuinte conforme a sua capacidade contributiva.

Além desta previsão constitucional no âmbito doméstico e conforme já dito anteriormente, afirmou-se a existência de um movimento mundial pós-crise de 2008 para a abertura e troca das informações bancárias e fiscais dos contribuintes internamente e entre países, sendo que a sistemática então em julgamento seria uma importante ferramenta para viabilizar tais objetivos.

Neste núcleo, portanto, foi firmado o consenso de que o sigilo de dados bancários não é absoluto e pode sofrer limitações infraconstitucionais quando: (i) dificultar ou impossibilitar a tarefa de identificação da capacidade contributiva do contribuinte; (ii) a informação transmitida for de interesse para o combate à evasão tributária, sonegação fiscal, organizações criminosas e afins.

3.2.2.2. A inexistência de quebra de sigilo

Outro cerne argumentativo estabelecido pela posição majoritária dos Ministros foi de que na sistemática dos arts. 5º e 6º da Lei Complementar n. 105/2001 não haveria a quebra do sigilo bancário propriamente dita, mas somente a transferência dos dados financeiros do usuário, previamente acobertados pelo sigilo bancário, para a administração tributária, que, por sua vez, também passaria a ser obrigada a manter sigilo fiscal sobre as informações obtidas.

Para concluir pela mera transferência do sigilo, de bancário para fiscal, ao invés da efetiva quebra, os Ministros ressaltaram que a quebra do sigilo de dados somente ocorreria se as informações recebidas fossem divulgadas pela administração tributária, e não meramente por ela recebidas e mantidas somente ao acesso de servidores responsáveis pela atividade de fiscalização. Se embasaram em previsões expressas contidas no § 5º do art. 5º e no parágrafo único do art. 6º da LC n. 105/2001, bem como no art. 198 do Código Tributário Nacional, no sentido de que as informações recebidas deveriam ser conservadas em sigilo, sem que fossem divulgadas a terceiros.

Coligado à impossibilidade de divulgação dos dados financeiros obtidos pela autoridade fiscal a fim de garantir a manutenção do sigilo sobre as informações, foi alçado como relevante aspecto a reforçar o caráter restrito dos dados a previsão legal de que comete crime e falta funcional o servidor público que incorrer na divulgação das informações sob a sua guarda, bem como que pode ser responsabilizado pessoal e diretamente pelos danos dela decorrente, a teor dos arts. 10 e 11 da LC n. 105/2001.

Neste núcleo, portanto, ficou contida a ideia de que não se considera afetado o sigilo sobre os dados bancários obtidos uma vez que: (i) a legislação prevê expressamente que é vedado que a administração tributária realize a sua divulgação a terceiros estranhos ao processo de fiscalização tributária; (ii) o servidor público que não observar o mandando de manutenção de sigilo sobre as informações obtidas comete crime e pode ser pessoalmente responsabilizado pelos danos daí decorrentes.

3.2.2.3. A necessidade de processo administrativo e de garantias de manutenção do sigilo sobre os dados

O terceiro aspecto que os Ministros deram especial atenção foi em relação à necessidade de um processo administrativo devidamente instaurado para que o agente administrativo pudesse ter acesso às informações detalhadas sobre a movimentação financeira do usuário do serviço financeiro, na sistemática prevista no art. 5º, § 4º e no art. 6º da LC n. 105/2001.

Merece destaque que a existência de processo administrativo não foi entendida como condição aplicável ao procedimento de informação periódica e automática pelas instituições financeiras previsto no caput do art. 5º da LC n. 105/2001, à disposição somente da autoridade fiscal federal. Conforme detalhou o Ministro Dias Toffoli em debates quando do julgamento, as informações obtidas por meio da troca periódica são apenas genéricas e superficiais, sendo que somente quando destas informações genéricas fossem detectadas falhas, incorreções ou omissões, deveria ser o processo administrativo aberto para que fosse possível a requisição de dados detalhados para uma apuração mais acurada.

Por outro lado, para que tanto a União quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pudessem requisitar dados financeiros detalhados dos contribuintes, estabeleceram os Ministros que é condição inafastável a existência de processo administrativo instaurado.

No âmbito federal a questão da necessidade de processo administrativo instaurado e da garantia dos direitos de defesa do contribuinte já havia sido resolvida pela própria regulamentação do art. 6º da LC n. 105/2001 pelo Decreto Federal n. 3.724/2001, que já previa expressamente que a requisição de informações somente poderia ocorrer dentro de processo administrativo e com as garantias previstas na Lei n. 9.784/1999, que regulamenta o processo administrativo federal.

A preocupação de deixar expresso no julgado a exigência de processo administrativo ocorreu justamente pelo fato de que além da União, também Estados, Distrito Federal e Municípios poderiam fazer uso da ferramenta prevista no art. 6º da LC n. 105/2001. Este fato, de que mais de 5.000 (cinco mil) entes da federação pudessem ter acesso a dados financeiros de usuários do sistema bancário, levou o STF a acolher sugestão posta no voto do Ministro Roberto Barroso para expressamente consignar que a utilização da ferramenta por Estados, Distrito Federal e Municípios somente poderia ocorrer após estes regulamentarem a sistemática de forma análoga à do Decreto Federal n. 3.724/2001 e com as mesmas garantias previstas na Lei n. 9.784/1999, observando, ainda, as seguintes garantias consignadas no voto do Relator Ministro Dias Toffoli:

“i) pertinência temática entre as informações bancárias requeridas na forma do art. 6º da LC nº 105/01 e o tributo objeto de cobrança no processo administrativo instaurado;

ii) prévia notificação do contribuinte quanto à instauração do processo (leia-se, o contribuinte deverá ser notificado da existência do processo administrativo previamente à requisição das informações sobre sua movimentação financeira) e relativamente a todos os demais atos;

iii) submissão do pedido de acesso a um superior hierárquico do agente fiscal requerente;

iv) existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso, de modo que torne possível identificar as pessoas que tiverem acesso aos dados sigilosos, inclusive para efeito de responsabilização na hipótese de abusos;

v) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios;

vi) amplo acesso do contribuinte aos autos, garantindo-lhe a extração de cópias de quaisquer documentos e decisões, de maneira a permitir que possa exercer a todo tempo o controle jurisdicional dos atos da administração, segundo atualmente dispõe a Lei 9.784/1999.”

Neste núcleo argumentativo, portanto, ficou assentado que (i) a requisição de dados detalhados do usuário do sistema financeiro pela administração tributária de todos os entes da federação só pode ser realizada em processo administrativo devidamente instaurado e desde que (i.i) as informações requisitadas guardem pertinência temática com o tributo sob fiscalização; (i.ii) a notificação do contribuinte após a instauração do procedimento administrativo e antes da requisição das informações, bem como de todos os demais atos do processo; (i.iii) haja a “submissão do pedido de acesso a superior hierárquico do agente fiscal requerente”; (i.iv) feita mediante sistema que assegure a segurança dos dados, mediante registro de acessos que tornem possível a identificação dos agentes que acessaram os dados sigilosos, inclusive para fins de responsabilização; (i.v) sejam “estabelecidos mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios”; e (i.vi) seja garantido ao contribuinte amplo acesso aos autos.

3.2.2.4. A já existente obrigatoriedade de informar ao fisco federal

Por último, um dos argumentos utilizados para confirmar a constitucionalidade dos dispositivos impugnados refere-se ao fato de que os contribuintes já são obrigados a informar à RFB anualmente o seu conjunto de bens e direitos, bem como outras informações sensíveis – tais como a existência de dependentes, pagamento de pensões alimentícias, ser portador de doenças graves e outras. Dito isto, não haveria desproporcionalidade em franquear ao fisco, independentemente de ordem judicial, acesso a informações que, a priori, já deveriam ter sido levadas ao seu conhecimento por meio de declarações dos contribuintes. Nas palavras do Ministro Dias Toffoli:

“se a Receita Federal já detém o conjunto maior, que corresponde à declaração do conjunto total de nossos bens, por que ela não poderia ter acesso – também sem autorização judicial e desde que ‘respeitados os direitos individuais’ – ao conjunto menor?”

Em igual sentido o Ministro Roberto Barroso destacou que a obrigação imposta pela LC n. 105/2001 às instituições financeiras “é a de entrega daquelas informações que voluntariamente o contribuinte deveria ter fornecido e não forneceu”, argumento que foi reforçado pelo Ministro Teori Zavascki ao dizer que estas informações não são diferentes daquelas que retratam o dia 31 de dezembro e que o contribuinte já está obrigado a declarar para fins de tributação.

Neste último núcleo argumentativo, portanto, ficou estabelecido que a sistemática de prestação de informações bancárias ao fisco diretamente pelas instituições financeiras não é inconstitucional pois (i) preexiste a obrigação de o contribuinte declarar o seu conjunto de bens e direitos ao fisco.

4. A estrutura normativa do intercâmbio de dados entre Brasil e Estados Unidos da América

Na linha da tendência mundial de abertura de dados financeiros e tributários entre nações, exposta em capítulo anterior, entre os Governos do Brasil e dos Estados Unidos da América – EUA destacam-se dois acordos bilaterais para o intercâmbio de informações relativas a tributos e demais informações relevantes para o combate à sonegação fiscal, ocultação de patrimônio e práticas criminosas correlatas.

O primeiro deles é o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos (Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos), firmado em Brasília, em 20 de março de 2007 e promulgado pelo Decreto n. 8.003, de 15 de maio de 2013. O acordo veio a dar o suporte para a sistemática do intercâmbio de informações com fins tributários entre os países e institui e disciplina a troca a pedido de “informações que possam ser pertinentes para a determinação, lançamento, execução ou cobrança de tributos [...] ou para a investigação ou instauração de processo relativo a questões tributárias de natureza criminal”.23 Por este Acordo, tanto o Brasil quanto os EUA podem solicitar bilateralmente informações com propósitos de fiscalização tributária ou investigação de crimes tributários relacionados a tributos federais de cada uma das partes.

Além da troca a pedido, já no Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos as duas nações manifestaram que a partilha de dados poderia ocorrer por outras formas acordadas pelas autoridades competentes, com a intenção de implementar o “intercâmbio de informações que promovam o uso mais eficaz possível das informações”24.

Apesar de firmado entre as nações no ano de 2007, o Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos somente veio a ser promulgado em 2013, após pressão da comunidade internacional e a aprovação do Foreign Account Tax Compliance Act (Fatca) (Lei de Conformidade Tributária de Contas Estrangeiras, na tradução livre) pelos EUA, no ano de 2010.25 O Fatca, que entrou em vigor em 2013, é um instrumento legal americano resultado de uma política agressiva de combate à evasão fiscal por pessoas físicas e empresas norte-americanas que estabelece que instituições financeiras e não financeiras de todo o mundo devem relatar periodicamente ao Internal Revenue Service (IRS) informações financeiras de cidadãos, empresas e corporações situados fora dos EUA26 acima de determinado valor.

Se em um primeiro momento o Fatca despertou dúvidas acerca da viabilidade da sua implementação, sobretudo em relação à sua exequibilidade e o grau de coercibilidade que exerceria fora do território dos EUA, a pressão exercida pelo poder econômico americano e as pesadas sanções às instituições financeiras não aderentes nele previstas, como a possibilidade de retenção de 30% sobre os pagamentos a receber de fontes dos EUA, obrigaram países e instituições financeiras estrangeiras a ele se adequarem.

Primeiramente, o ato transferiu às instituições privadas os custos de compliance, com a obrigação de a ele se adequarem para o cumprimento das regras nele dispostas27. Ante a complexidade da norma, ao alto custo de adequação individual por parte das instituições financeiras, bem como de dúvidas acerca da sua capacidade de cumprimento isolado de todas as suas exigências, vários países firmaram acordos com os EUA mediante os quais a colheita e a transferência das informações seriam feitas por um órgão centralizador, para então serem enviadas ao IRS. É o caso do Brasil, que centraliza a transmissão e o recebimento destes dados por meio da Receita Federal do Brasil.

A adesão do Brasil ao Fatca é objeto do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do Fatca (Acordo para a Implementação do Fatca), firmado em Brasília, em 23 de setembro de 2014, e promulgado pelo Decreto n. 8.506, de 24 de agosto de 2015.

Feita esta breve introdução, a seguir será detalhada a estrutura e os procedimentos definidos em ambos os acordos para o intercâmbio de dados entre o Brasil e os EUA. Ambos, em especial o mais recente, para a implementação do Fatca, são consideravelmente complexos e trazem regras e sub-regras que demandariam grande esforço – e espaço – para esclarecimento detalhado. Em se considerando o limitado escopo do presente artigo, serão mais bem detalhados nos tópicos a seguir somente aqueles aspectos que sejam relevantes para o confronto com a posição do STF detalhada no capítulo anterior.

4.1. A troca de dados no âmbito do acordo para o intercâmbio de informações relativas a tributos

O Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos institui e disciplina a troca a pedido de “informações que possam ser pertinentes para a determinação, lançamento, execução ou cobrança de tributos [...] ou para a investigação ou instauração de processo relativo a questões tributárias de natureza criminal”28 entre o Brasil e os EUA. O Acordo exclui expressamente a possibilidade de pedido de informações referentes a tributos estaduais ou municipais29.

O Acordo confere o direito de solicitação de informações bastante abrangentes. Por ele, o país requerente – “Parte requerente” –, quando impedido de obter informações por meio próprio em razão de dificuldades desproporcionais, poderá solicitar ao outro país – “Parte requerida” – que lhe transmita informações acerca de pessoas, sociedades ou qualquer grupo ou conjunto de pessoas30, independentemente de serem residentes ou nacionais de qualquer uma das partes31, inclusive mediante a análise de livros, documentos, registros e outros elementos materiais, a formulação de perguntas ao depoente objeto da solicitação, informações e registros de posse de bancos, instituições financeiras e outros.

Em todos os casos o país requerente deverá identificar o contribuinte cuja responsabilidade está em análise, especificar a natureza das informações requeridas e o período a que se referem, além de expor os motivos que levaram ao requerimento e porque as informações podem ser pertinentes tributariamente.32

O art. VIII do Acordo contém a previsão de confidencialidade sobre as informações intercambiadas e indica que a utilização dos dados obtidos pelo país requerente é bastante restrita. Conforme consta no dispositivo, o manuseio das informações poderá ser realizado tão somente por pessoa ou autoridade envolvida com a atividade de lançamento ou cobrança de tributo, mediante a instauração de processo administrativo e apenas para os propósitos de lançamento e cobrança de tributos federais da parte requerente. Há ainda a expressa proibição de revelação das informações para “nenhuma outra pessoa, entidade, autoridade ou qualquer outra jurisdição” sem que o país requerido com ela consinta.

No âmbito interno do Brasil, além destas disposições do Acordo, o Decreto n. 3.724/2001 estabelece que o “intercâmbio de informações, com fundamento em tratados, acordos ou convênios internacionais, para fins de arrecadação e fiscalização de tributos” somente poderá ser realizado quando “houver procedimento de fiscalização em curso”33, bem como que as informações obtidas serão resguardadas em sigilo fiscal, com rigoroso controle de acesso34. Dentre outras garantias, o Decreto também prevê a necessidade de expedição de intimação ao sujeito passivo antes da Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) para que apresente as informações financeiras solicitadas35. Esta exigência de procedimento fiscal em curso para a requisição das informações atrai também a aplicação dos ditames da Lei n. 9.784/1999, que dispõe sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, o que também garante ao fiscalizado o direito de ser intimado de todas as decisões e diligências do processo.

Por fim, há no Decreto n. 3.724/2001 a previsão de penalização administrativa, com possibilidade de demissão, sem prejuízo de outras sanções civis e penais cabíveis, do servidor público que violar o dever de manutenção de sigilo sobre as informações obtidas na forma regulamentada no Decreto36.

4.2. O intercâmbio dos dados no âmbito do acordo para a implementação do Fatca

A segunda modalidade de intercâmbio de informações para fins tributários entre Brasil e os EUA é aquela prevista no Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do Fatca. O Acordo firmado entre os países foi do Modelo 1A recíproco, isto é, ambos os países transmitirão reciprocamente e em periodicidade anual informações a respeito de titularidade de contas nele especificadas.

No Brasil, a captação das informações fornecidas pelas instituições obrigadas a observar o Fatca é feita pela RFB, por meio da obrigação acessória “e-Financeira”, instituída pela Instrução Normativa n. RFB 1.571, de 2 de julho de 2015, que, substituindo a anterior Declaração de Informações sobre Movimentação Financeira (Dimof), já foi elaborada de modo a viabilizar a obtenção das informações requeridas pelo Acordo internacional. Após a obtenção dos dados, o intercâmbio é realizado diretamente entre a RFB e o IRS.

Em relação às informações objeto do Acordo, o Fatca impõe às instituições financeiras brasileiras a obrigação de reportar informações de contas controladas por pessoas físicas ou jurídicas dos EUA, ou detidas por entidade que não seja norte-americana, mas que sejam controladas por pessoa dos EUA37, tais como os dados cadastrais das pessoas físicas ou jurídicas específicas dos EUA, inclusive com o número de identificação no padrão americano (U.S. TIN), o valor da conta no final do ano civil, o montante total bruto de juros, dividendos e outras receitas relativas a ativos custodiados na conta durante o ano e outras.38 Já as instituições financeiras americanas estão obrigadas a prestar informações acerca de contas de indivíduos residentes no Brasil39, constando nome, endereço, CPF/CNPJ brasileiro, valor bruto de juros, dividendos e de outras fontes pagos ou creditados na conta40.

Conforme se vê, as informações objeto da troca de informações na sistemática do Fatca são, de certo modo, genéricas, em semelhança à sistemática do art. 5º da LC n. 105/2001, restringindo-se a saldos e montantes brutos, não se aprofundando em dados como, por exemplo, a identidade das fontes pagadoras.

Em relação à confidencialidade dos dados objetos do intercâmbio, o Acordo para a Implementação do Fatca reitera expressamente que também são aplicáveis todas as proteções previstas no Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos41, já detalhado no tópico anterior. Isto é, o manuseio das informações ficará reservado para pessoa ou autoridade envolvida com a atividade de lançamento ou cobrança de tributo e apenas para este propósito, valendo, também, a expressa proibição de revelação das informações para “nenhuma outra pessoa, entidade, autoridade ou qualquer outra jurisdição”42.

5. Análise da compatibilidade da sistemática de intercâmbio de dados entre Brasil e Estados Unidos da América com o sigilo de dados na visão do STF

Estabelecidas tanto as premissas a respeito do sigilo de dados na ótica do STF e identificados os procedimentos atinentes ao processo de troca de informações financeiras entre Brasil e os EUA, a análise passa a ser então no sentido da verificação da adequação das rotinas previstas no Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos e no Acordo para a Implementação do Fatca às premissas e limitadoras fixadas pela Suprema Corte a fim de extrair a conclusão se o intercâmbio internacional destes dados respeita a garantia de sigilo de dados.

Pelas limitações do estudo e por entendermos que a análise mais relevante no âmbito limitado deste trabalho seja acerca da recepção de dados pela autoridade brasileira, por envolver dados de cidadãos e empresas brasileiras no exterior que serão internalizados para fins tributários, a análise será focada neste ponto.

Dito isto, para facilitar a compreensão das conclusões, serão expostos quadros em que tanto as premissas quanto os fundamentos extraídos dos acórdãos do STF serão expostos como parâmetro para que as sistemáticas de ambos os Acordos sejam a elas confrontadas. Após a exposição dos quadros, serão realizados comentários para expor os motivos que levam ao entendimento pela compatibilidade ou a incompatibilidade entre o entendimento do STF e os Acordos.

5.1. A recepção de dados americanos pela autoridade tributária brasileira

Por se tratar de procedimento em que a autoridade brasileira figura no polo de recebedora da informação, ao qual o STF deu destaque como a ponta garantidora da manutenção do sigilo sobre os dados recebidos, muitas das análises combinarão, além das disposições dos Acordos, também limitações e condicionadoras constantes na legislação interna nacional.

O quadro abaixo analisa a relação de compatibilidade entre as Premissas43 adotadas na decisão do STF e a dos Acordos.

Quadro 02 – Análise da adequação entre as Premissas adotadas pelo STF e a recepção dos dados na sistemática dos Acordos

Razões do STF

Análise de correspondência e adequação

Premissas

Acordo de Tributos – troca a pedido

Acordo para o Fatca – troca automática

Compatibilidade com a tendência mundial de abertura de informações fiscais e financeiras entre nações

Compatível

Compatível

Compatibilidade com os ditames de um Estado Fiscal

Compatível

Compatível

Ambos os Acordos são compatíveis com a ideia de Estado Fiscal exposta pelo STF, na medida em que contribuem para o combate da evasão fiscal e a identificação da capacidade contributiva do cidadão. Também mostram compatibilidade com a tendência mundial de abertura de informações fiscais e financeiras entre países.

A seguir, o quadro que analisa a relação de compatibilidade entre o núcleo argumentativo em torno da inexistência de um direito absoluto ao sigilo de dados44 e as disposições dos Acordos.

Quadro 03 – Análise da adequação entre a alegação de inexistência de um direito absoluto ao sigilo de dados e a recepção dos dados na sistemática dos Acordos

Razões do STF

Análise de correspondência e adequação

1. Inexistência de sigilo absoluto de dados

Acordo de Tributos – troca a pedido

Acordo para o Fatca – troca automática

A informação transmitida possibilita ou facilita a tarefa arrecadatória

Compatível

Compatível

A informação transmitida tem por finalidade o combate à evasão tributária, à sonegação fiscal, a organizações criminosas e afins.

Compatível

Compatível

A sistemática dos Acordos também se mostra compatível com o que decidiu o STF em relação à possibilidade de mitigação do direito ao sigilo de dados bancários quando em conflito com a atividade arrecadatória e o combate à evasão fiscal, sonegação e outros, na medida em que torna possível a identificação de ativos existentes além das fronteiras nacionais que dificilmente seriam revelados sem o uso das ferramentas previstas nos Acordos.

No próximo quadro será analisada se a assertiva de que a transmissão dos dados para a autoridade tributária não implica quebra do sigilo de dados45 encontra respaldo na sistemática dos Acordos.

Quadro 04 – Análise da adequação entre a alegação de inexistência de quebra de sigilo de dados e a recepção dos dados na sistemática dos Acordos

Razões do STF

Análise de correspondência e adequação

2. Inexistência de quebra de sigilo

Acordo de Tributos – troca a pedido

Acordo para o Fatca – troca automática

Previsão de vedação de divulgação das informações a terceiros estranhos ao processo de fiscalização tributária

Compatível

Compatível

Previsão de responsabilização do agente que não observar o mandamento de manutenção do sigilo sobre as informações

Compatível

Compatível

Neste ponto, os Acordos também são compatíveis com o que decidiu o STF. Tanto o Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos quanto o Acordo para a Implementação do Fatca contêm cláusula que limita a utilização da informação tão somente por pessoa ou autoridade envolvida na atividade de lançamento e cobrança de tributo46. Em se considerando, ainda, que está em análise a recepção dos dados pela autoridade fiscal brasileira, também são aplicáveis todas as limitações da legislação brasileira acerca da utilização e divulgação das informações, inclusive no tocante à responsabilização do agente que infringir o mandamento de sigilo sobre os dados obtidos47. Essa conclusão torna desnecessária a análise da existência ou não, nos EUA, do direito ao sigilo sobre dados objeto de transmissão; sejam ou não os dados transmitidos acobertados por sigilo nos EUA, após a sua recepção no Brasil estarão acobertados pelo sigilo fiscal imposto pela legislação brasileira48.

O quadro abaixo confronta a assertiva do STF de que a transmissão dos dados detalhados somente pode ser realizada em processo administrativo instaurado e ainda respeitando determinadas garantias49 com o que preveem os Acordos. É de se ressaltar que determinadas ressalvas feitas pelo STF foram excluídas no caso da troca automática e sistêmica de informações, sendo esta a razão pela qual alguns pontos da comparação em relação ao Acordo para o Fatca – que também prevê a troca automática e sistemática de informações – contém a expressão “não se aplica”.50

Quadro 05 – Análise da adequação entre a assertiva da necessidade de processo administrativo e a recepção dos dados na sistemática dos Acordos

Razões do STF

Análise de correspondência e adequação

3. Necessidade de processo administrativo e manutenção de sigilo sobre os dados

Acordo de Tributos – troca a pedido

Acordo para o Fatca – troca automática

Há pertinência temática entre as informações transmitidas e o tributo objeto de cobrança

Compatível

Não se aplica

O fiscalizado é notificado após a instauração do procedimento administrativo e antes da transmissão das informações

Compatível

Não se aplica

O fiscalizado é notificado dos demais atos do processo

Compatível

Não se aplica

O pedido de acesso é submetido a superior hierárquico do agente fiscal requerente

Compatível

Não se aplica

O intercâmbio é feito mediante sistema que assegure a segurança sobre os dados transmitidos, mediante registro de acesso que possibilitem a identificação dos agentes que acessaram

Compatível

Compatível

Previsão de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios

Compatível

Compatível

Amplo acesso aos autos pelo fiscalizado

Compatível

Não se aplica

Tais condicionadoras fixadas na decisão do STF são satisfatoriamente atendidas pelos Acordos e atual legislação em vigor no Brasil. No caso da troca a pedido, os requisitos são atendidos, pois (i) há pertinência temática entre o tributo objeto de cobrança, visto que a solicitação deverá ser justificada em relação a algum tributo federal do Brasil51; (ii) o fiscalizado deve ser intimado para apresentar as informações solicitadas após a instauração do procedimento administrativo e antes de enviado o pedido para os EUA52; (iii) a Lei do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal garante a intimação do interessado de todos os atos decisórios e diligências no curso do processo53; (iv) o pedido somente pode ser realizado por ocupante de cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal54 e transmitido para os EUA pela autoridade competente brasileira, definida no Acordo como o Ministro da Fazenda ou o Secretário da RFB55; (v) há rígido controle de transmissão, de acesso e de utilização dos dados intercambiados56; (vi) existe previsão de mecanismos de apuração e de penalização dos agentes por eventuais desvios de utilização dos dados57; e, por fim, (vii) também a Lei do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal garante ao fiscalizado amplo acesso aos autos do processo administrativo.58

No caso da troca automática no âmbito do Fatca, conforme dito em parágrafo anterior, a maior parte das limitadoras não são aplicáveis, pois em se tratando de um processo automatizado e sistêmico o STF afastou a exigência de processo administrativo. Entretanto, também se verifica a compatibilidade da sistemática no que toca à presença de sistema que garanta a segurança sobre a transmissão dos dados, visto que troca é feita eletronicamente e diretamente entre a RFB e o IRS, bem como que também são aplicáveis os mecanismos de apuração e de penalização do agente responsável pelo mau uso da informação recebida previstos na legislação brasileira, conforme destacado anteriormente.

A seguir, o quadro que analisa a correspondência entre a afirmada já existência da obrigatoriedade da declaração das informações objeto de intercâmbio ao fisco59 em relação ao que dispõem os Acordos.

Quadro 06 – Análise da adequação entre a assertiva da obrigatoriedade prévia de declaração das informações ao fisco e a recepção dos dados na sistemática dos Acordos

Razões do STF

Análise de correspondência e adequação

4. A já existente obrigatoriedade de informar ao fisco federal

Acordo de Tributos – troca a pedido

Acordo para o Fatca – troca automática

Preexistência da obrigação legal de declaração de patrimônio à autoridade tributária

Compatível, com ressalvas

Compatível

Em relação ao último fundamento extraído da decisão do STF, a sistemática prevista nos Acordos é, em maior parte, com ele compatível, mas algumas ressalvas devem ser feitas. No caso da troca automática do âmbito do Fatca há compatibilidade, visto que o Brasil somente receberá dados de pessoa residente no Brasil60, sendo que a obrigatoriedade de declaração de saldos mantidos em instituições financeiras no exterior para residentes no Brasil já é prevista em Lei61.

As ressalvas devem ser feitas em relação à troca a pedido, com amparo no Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos; isto porque tal Acordo não limita a possibilidade de que a autoridade brasileira solicite aos EUA somente dados de residentes no Brasil, mas de pessoas que podem ou não ser residentes no Brasil ou que tenham ou não nacionalidade brasileira62. Disto decorre que a autoridade brasileira poderá solicitar informações acerca de não residentes ou não nacionais que, a princípio, não estariam obrigadas a prestar ao fisco brasileiro declarações acerca de seu patrimônio, atividades e outros, possibilidade que destoa da linha argumentativa do STF. Entretanto, há que se dizer que o próprio Acordo contém instrumentos que mitigam essa incompatibilidade, como a necessidade de que a autoridade brasileira justifique as razões que a levam a requerer a informação e porque entende que a informação seria pertinente para a cobrança de tributos federais brasileiros63; ou seja, mesmo que sejam solicitadas informações de não residentes ou não nacionais, a solicitação deverá objetivar a cobrança de tributo federal brasileiro, o que indica a preexistência de um dever instrumental de que essa operação deveria ter sido declarada ao fisco brasileiro, com isso satisfazendo o que o STF decidiu.

Da análise feita, conclui-se que o processo de recepção dos dados financeiros dos EUA pela autoridade fiscal brasileira respeita, com apenas algumas pequenas ressalvas, as condicionantes e limitadoras balizadas pelo STF nos julgamentos.

6. Conclusão

A análise realizada revelou que os aspectos extraídos da decisão do STF acerca da constitucionalidade da transmissão ao fisco, no âmbito interno, de dados de usuários do sistema financeiro em relação ao direito ao sigilo de dados bancários são majoritariamente compatíveis com os direitos e garantias previstos na sistemática de intercâmbio internacional de dados para fins tributários atualmente vigente entre Brasil e os EUA.

Em relação ao recebimento dos dados pela autoridade fiscal brasileira, tanto na modalidade a pedido quanto na automática, realizada no âmbito do Fatca, a compatibilidade entre as premissas e limitadoras fixadas pelo STF com o que preveem o Acordo e a legislação interna brasileira é plena. Em relação à troca a pedido, também são respeitadas as garantias e limitadoras atinentes ao processo administrativo fiscal, em virtude da previsão de que o procedimento para intercâmbio internacional de dados deve seguir as mesmas normas que norteiam a atividade no âmbito nacional.

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1 Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, firmado em Brasília, em 20 de março de 2007 e promulgado pelo Decreto n. 8.003, de 15 de maio de 2013.

2 Acordo firmado entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do Fatca, firmado em Brasília, em 23 de setembro de 2014, e promulgado pelo Decreto n. 8.506, de 24 de agosto de 2015.

3 STELLITA, Heloisa; BASTOS, Frederico Silva. O intercâmbio de informações tributárias e a cooperação internacional no Brasil. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de et al. (coord.). Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao professor Isaias Coelho. 1. ed. São Paulo: FISCOSoft, 2013.

4 XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

5 STELLITA, Heloisa; BASTOS, Frederico Silva. O intercâmbio de informações tributárias e a cooperação internacional no Brasil. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de et al. (coord.). Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao professor Isaias Coelho. 1. ed. São Paulo: FISCOSoft, 2013, p. 484.

6 AVI-YONAH, Reuven. Globalization, tax competition and the fiscal crisis of the Welfare State. Harvard Law Review v. 113, 1999-2000, p. 1573-1676.

7 AVI-YONAH, Reuven. The OECD harmful tax competition report: a retrospective after a decade. Brook. J. Int’l L. 34, no. 3, 2009, p. 783-95. Disponível em: http://repository.law.umich.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1037&context=articles. Acesso em: 06 jul. 2022.

8 AVI-YONAH, Reuven. The OECD harmful tax competition report: a retrospective after a decade. Brook. J. Int’l L. 34, no. 3, 2009. Disponível em: http://repository.law.umich.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1037&context=articles. Acesso em: 06 jul. 2022.

9 OCDE. The era of bank secrecy is over: the G20/OECD process is delivering results. 26.10.2011. Disponível em: https://www.oecd.org/ctp/exchange-of-tax-information/48996146.pdf. Acesso em: 06 jul. 2022.

10 SCHOUERI, Luís Eduardo; BARBOSA, Mateus Calicchio. Da antítese do sigilo à simplicidade do sistema tributário: os desafios da transparência fiscal internacional. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de et al. (coord.). Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao professor Isaias Coelho. 1. ed. São Paulo: FISCOSoft, 2013, p. 497-523.

11 SCHOUERI, Luís Eduardo; BARBOSA, Mateus Calicchio. Da antítese do sigilo à simplicidade do sistema tributário: os desafios da transparência fiscal internacional. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de et al. (coord.). Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao professor Isaias Coelho. 1. ed. São Paulo: FISCOSoft, 2013.

12 Firmada em 3 de novembro de 2011 e promulgada pelo Decreto n. 8.842, de 29 de agosto de 2016.

13 Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, firmado em Brasília, em 20 de março de 2007 e promulgado pelo Decreto n. 8.003, de 15 de maio de 2013.

14 Acordo firmado entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do Fatca, firmado em Brasília, em 23 de setembro de 2014, e promulgado pelo Decreto n. 8.506, de 24 de agosto de 2015.

15 SCHOUERI, Luís Eduardo; BARBOSA, Mateus Calicchio. Da antítese do sigilo à simplicidade do sistema tributário: os desafios da transparência fiscal internacional, p. 507.

16 TAVARES, André Ramos. Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 530-531.

17 Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 22.801. Rel. Min. Menezes Direito. Tribunal Pleno. DJe 14.03.2009. Acórdão disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=515133. Acesso em: 25 jun. 2022.

18 MOSQUERA, Roberto Quiroga. Direito monetário e tributação da moeda. São Paulo: Dialética, 2006, p. 267-268.

19 Rel. Min. Dias Toffoli. Julgamento em 17 e 18.02.2016.

20 Rel. Min. Edson Fachin. Julgamento em 17 e 18.02.2016.

21 Acerca desta característica da Corte já escreveu Julia Wand-Del-Rey Cani, pesquisadora da FGV Direito Rio. CANI, Julia Wand-Del-Rey. Supremo: um tribunal (só) de teses? O respeito aos precedentes. São Paulo, 13.07.2016. Disponível em: http://jota.info/colunas/supra/supremo-um-tribunal-de-teses-13072016. Acesso em: 25 jun. 2022.

22 Esse raciocínio foi conduzido em estreita relação com a premissa do Estado Fiscal, solidariedade e igualdade a que se fez menção anteriormente.

23 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. I.

24 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. X.

25 STELLITA, Heloisa; BASTOS, Frederico Silva. O intercâmbio de informações tributárias e a cooperação internacional no Brasil. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de et al. (coord.). Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao professor Isaias Coelho. 1. ed. São Paulo: FISCOSoft, 2013, p. 485.

26 STELLITA, Heloisa; BASTOS, Frederico Silva. O intercâmbio de informações tributárias e a cooperação internacional no Brasil. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de et al. (coord.). Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao professor Isaias Coelho. 1. ed. São Paulo: FISCOSoft, 2013, p. 477.

27 FARIA, Wilson Rodrigues de; ROCHA, Alessandra M. Gonsales. O combate à evasão fiscal – como Fatca pode afetar as instituições brasileiras. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais n. 59. São Paulo: RT, 2013, p. 388.

28 O art. I do Acordo discrimina os tributos aos quais o acordo se aplica, tais como, no caso dos EUA, imposto federal sobre a renda, heranças e doações, imposto federal sobre o consumo e outros; e no caso do Brasil, imposto de renda da pessoa física e da pessoa jurídica, imposto sobre produtos industrializados, contribuição social sobre o lucro líquido, entre outros.

29 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. III, § 4.

30 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. IV, § 1.

31 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. II. Há que se considerar que apesar da ampla margem em relação às pessoas que podem ser objeto do requerimento de informações, há de estar presente ao menos algum elemento de conexão com o país solicitante que o justifique, sejam subjetivos (nacionalidade ou residência) ou objetivos (local da fonte de produção, do pagamento da renda, do exercício da atividade e outros). Sobre elementos de conexão, ver XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 6. ed. atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 251 e ss.

32 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. V, § 4.

33 Decreto n. 3.724, de 10 de janeiro de 2001, art. 2º, § 5º, cumulado com art. 3º, XII.

34 Decreto n. 3.724, de 10 de janeiro de 2001, art. 7º, caput e parágrafos.

35 Decreto n. 3.724, de 10 de janeiro de 2001, art. 4º, § 2º.

36 Cf. Nota 33, arts. 8º e 9º.

37 Acordo para a Implementação do Fatca, art. 1, “cc”.

38 Acordo para a Implementação do Fatca, art. 2, § 2.

39 Acordo para a Implementação do Fatca, art. 1, bb.

40 Acordo para a Implementação do Fatca, art. 2, § 2, b.

41 Acordo para a Implementação do Fatca, art. 3, § 7.

42 Limitações constantes no art. VIII do Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos.

43 Capítulo 3.2.1 do trabalho.

44 Capítulo 3.2.2.1 do trabalho.

45 Capítulo 3.2.2.2 do trabalho.

46 Conforme exposto nos Capítulos 4.1 e 4.2 do trabalho. No caso do Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, a vedação está inserida no art. VIII; as mesmas limitações de confidencialidade constantes no referido Acordo valem para as informações obtidas através do Acordo para a Implementação do Fatca, por previsão do art. 3, § 7 deste último.

47 Também conforme exposto no Capítulo 4.1 do trabalho, as limitações de utilização dos dados pela autoridade fiscal brasileira são aquelas constantes do Decreto n. 3.724/2001, e compreendem a manutenção do sigilo fiscal sobre os dados, controle de acesso sobre os mesmos e a penalização administrativa (sem prejuízo de eventuais sanções cíveis e criminais) do servidor que violar o dever de sigilo.

48 Caso as informações fossem acobertadas por sigilo nos EUA e a legislação brasileira não garantisse o sigilo fiscal sobre os dados recebidos, estaríamos diante de um possível caso de incompatibilidade.

49 Capítulo 3.2.2.3 do trabalho.

50 Esta ressalva foi abordada no Capítulo 3.2.2.3 do trabalho. Segundo voto do Relator das ADIs, Ministro Dias Toffoli, a exigência de processo administrativo instaurado e de intimações dos contribuintes seria desnecessária na sistemática da prestação automática e sistemática de informações pelas instituições financeiras prevista no art. 5º da LC n. 105/2001, pois além de as informações serem genéricas, a exigência destes procedimentos prévios simplesmente inviabilizaria a sistemática. Dito isto, conforme detalhado no Capítulo 4.2, também as informações intercambiadas no âmbito do Fatca são genéricas e ocorrem automática e sistemicamente, fato que justifica o paralelo.

51 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. V, § 4, “d” e art. III, § 1, “b”.

52 Decreto n. 3.724/2001, art. 4º, § 2º.

53 Lei n. 9.784/1999, art. 26.

54 Decreto n. 3.724/2001, art. 4º cumulado com art. 2º.

55 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. V, § 1, cumulado com art. IV, § 1.

56 Decreto n. 3.724/2001, arts. 7º e seguintes.

57 Decreto n. 3.724/2001, arts. 8º, 9º, 10 e 11.

58 Lei n. 9.784/1999, art. 3º.

59 Capítulo 3.2.2.4 do trabalho.

60 Acordo para a Implementação do Fatca, art. 1, “bb” e art. 2, § 2, b), (1). Vide capítulo 4.2.

61 No caso de pessoas físicas, há obrigação legal de informar os saldos na declaração de ajuste anual do Imposto de Renda, conforme previsto no art. 25, § 4º da Lei n. 9.250/1995. Para pessoas jurídicas, via de regra a tributação nacional ocorrerá pela sistemática do lucro real e os saldos mantidos no exterior também deverão ser informados nas respectivas declarações de Imposto de Renda, conforme previsto nos arts. 27 e 25 da Lei n. 9.249/1995.

62 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. II.

63 Acordo para o Intercâmbio de Informações Relativas a Tributos, art. V, § 4, “d” e art. III, § 1, “b”.