Novas Regras de Preços de Transferência: Reestruturação de Negócios e a Integralização de Capital em Bens e Direitos a Valor de Custo pelas Pessoas Físicas

New Transfer Pricing Rules: Business Restructuring and In-kind Capital Contribution at Cost Basis by Individuals

João Victor De Nadai Francisco

Mestrando em Direito Tributário Internacional pelo IBDT. Especialista em Direito Tributário Internacional pelo IBDT. Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas. E-mail: denadai.joao@gmail.com.

Recebido em: 30-8-2023 – Aprovado em: 4-12-2023

https://doi.org/10.46801/2595-7155.12.5.2023.2438

Resumo

O presente artigo visa abordar a aparente contrariedade entre as novas regras de preços de transferência, em especial, o dispositivo legal que trata das reestruturações de negócios (uma das inovações trazidas pela nova legislação promulgada com o objetivo de alinhar as regras nacionais ao Padrão OCDE) com a norma contida no art. 23 da Lei n. 9.249, de 1995, que autoriza às pessoas físicas a transferência de bens e direitos às pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, pelo valor de custo de aquisição.

Palavras-chave: preços de transferência, reestruturação de negócios, conferência de bens, Imposto de Renda da Pessoa Física, ganho de capital.

Abstract

This paper aims to debate the apparent conflict between the new transfer pricing rules, in particular, the legal provision that deals with business restructuring (one of the innovations brought by the new legislation enacted with the objective of aligning the Brazilian transfer pricing rules with the OECD Standard) with the content of Art. 23 of Law No. 9,249, of 1995, which authorizes individuals to transfer assets and rights to legal entities, as a capital contribution, at their cost of acquisition (e.g., at cost basis).

Keywords: transfer pricing, business restructuring, in-kind capital contribution, Individuals Income Tax, capital gains.

1. Introdução e delimitação do objeto de estudo

Imbuído pelo contexto do fortalecimento da cooperação com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (“OCDE”), o Brasil optou pela convergência de suas regras de preços de transferência para o padrão OCDE, pautado nas Diretrizes de Preços de Transferência da referida organização (“Guidelines”), cujos objetivos são: (i) garantir a base tributável às jurisdições envolvidas em transações internacionais e (ii) evitar a dupla tributação (OCDE, 2019).

Nesse sentido, o Poder Executivo editou a Medida Provisória n. 1.152, em 28 de dezembro de 2022 (“MP n. 1.152”), após longo e rigoroso processo de diagnóstico das virtudes e fragilidades das regras de preços de transferência até então vigentes1 e de avaliação das alternativas para convergência – total ou parcial – ao padrão OCDE (OCDE, 2023), processo este liderado pela Receita Federal do Brasil (“RFB”), em parceria com a própria OCDE e com apoio financeiro do Reino Unido, além da colaboração das administrações tributárias de outras jurisdições (Ibid.).

A MP n. 1.152, convertida na Lei n. 14.596, de 14 de junho de 2023 (“Lei n. 14.596”) adotou, nesse sentido, o padrão OCDE (ou padrão internacional de preços de transferência), baseado no separate entity approach, segundo o qual as entidades de um grupo multinacional devem ser tratadas como entidades separadas, devendo a tributação das transações intercompany observar o princípio arm’s length. Este último princípio, por sua vez, pauta-se na identificação do preço que teria sido praticado entre partes não relacionadas em transações similares, nas mesmas ou em condições semelhantes (Schoueri, 2013, p. 39).

Dentre as fragilidades da legislação até então vigente, apontou-se a ausência de regras específicas para lidar com as reestruturações de negócios, o que permitiria a transferência de lucros potenciais para outras jurisdições a partir da realocação de riscos, funções e ativos (OCDE, 2019) sem a devida compensação às entidades brasileiras titulares dos ativos, riscos e funções transferidos a partes relacionadas.

Configura-se reestruturação de negócios, para fins de aplicação das novas regras de preços de transferência, a mera transferência de ativos a uma parte relacionada2 da qual resulte transferência de lucro potencial.

A esse respeito, a Exposição de Motivos da MP n. 1.152 manifestou o expresso objetivo do Poder Executivo de ampliar o escopo objetivo das regras de preços de transferência (até então limitado) para abarcar qualquer relação comercial ou financeira estabelecida entre partes relacionadas, incluindo, dentre outras, as transações que tenham por objeto a alienação ou a transferência de quaisquer ativos, inclusive participações societárias (Brasil, 2022).

Este tipo específico de transação é de especial interesse para os fins almejados pelo presente artigo. Muito embora a Lei n. 9.430, de 1996 (“Lei n. 9.430”), tenha vigorado por mais de duas décadas, a aplicabilidade das regras de preços de transferência até então vigentes nas operações de transferência de participações societárias (e outros ativos fora do contexto das importações ou exportações de bens) a entidades domiciliadas no exterior era controversa, ora se defendendo a sua aplicabilidade teórica3, porém a inadequação dos métodos de comparação (Novaski, 2020, p. 64), ora se defendendo a sua inaplicabilidade (Bifano, Carvalho, 2012, p. 191), dado que, entre outros argumentos, o escopo objetivo das referidas regras estaria restrito às operações envolvendo exportação de bens e serviços (são sendo possível se cogitar em exportação de direitos).

Por outro lado, a promulgação da Lei n. 14.596 deve trazer nova luz à controvérsia, considerando a previsão específica em Lei (não contida na Lei n. 9.430) acerca da aplicabilidade das regras de preços de transferência às reestruturações de negócios, assim entendidas, inclusive, as transferências de ativos a partes relacionadas ou pessoas residentes ou domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP.

Não obstante a referida controvérsia, para os fins do presente artigo, assumiremos serem as novas regras de preços de transferência aplicáveis às transferências de quaisquer ativos, seja (i) pela literalidade do disposto no art. 26 da Lei n. 14.596 ao abranger transferências de ativos ou pela interpretação teleológica do referido dispositivo a partir da Exposição de Motivos da MP n. 1.152; ou (ii) no que se refere especificamente às participações societárias, pela possibilidade de enquadramento no conceito de ongoing concern indicado nas Guidelines da OCDE para se referir à transferência de unidades economicamente funcionais de negócio (OCDE, 2022), cuja transferência a partes relacionadas deve se pautar em preço arm’s length.

Além das hipóteses em que as transações são realizadas entre partes relacionadas, também são aplicáveis as regras de preços de transferência às transações efetuadas por pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil com qualquer entidade, ainda que parte não relacionada, que seja residente ou domiciliada em país que não tribute a renda ou que a tribute a alíquota máxima inferior a 17%4 (“jurisdição com tributação favorecida” – “JTF”) ou que seja beneficiária de regime fiscal privilegiado5 (“RFP”).

Nesse contexto de aplicação das regras de preços de transferência às transferências de ativos e participações societárias, também é de grande interesse a determinação das repercussões do referido art. 26 da Lei n. 14.596 em relação a outros dispositivos legais que tratam da tributação da renda no contexto de reorganizações societárias, os quais, em alguns casos, facultam ao contribuinte a efetivação das transações pelo valor de custo histórico dos ativos ou preveem regras de não reconhecimento do ganho de capital.

Nesse sentido, propõe-se investigar a aplicabilidade das novas regras de preços de transferência às hipóteses de transferências de ativos realizadas especificamente por pessoas físicas a título de integralização de capital de entidades residentes ou domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP, a partir do cotejo das referidas regras com a faculdade legal prevista no art. 23 da Lei n. 9.249, de 1995 (“Lei n. 9.249”) – dispositivo não revogado expressamente pela Lei n. 14.596, que permite que as pessoas físicas transfiram ativos a pessoas jurídicas, a título de integralização de seu capital, “pelo valor constante da respectiva declaração de bens”.

2. A aplicação das novas regras de preços de transferência às reestruturações de negócios

Nos termos do art. 26 da Lei n. 14.596, “são consideradas reestruturações de negócios as modificações nas relações comerciais ou financeiras entre partes relacionadas que resultem na transferência de lucro potencial [assim entendido aquele associado à transferência de funções, de ativos, de riscos ou de oportunidades de negócios] ou em benefícios ou prejuízos para qualquer uma das partes e que seriam remuneradas caso fossem efetuadas entre partes não relacionadas de acordo com o princípio” arm’s length.

Nas linhas introdutórias acima, descreveu-se brevemente a controvérsia acerca da aplicabilidade das regras de preços de transferência previstas pela Lei n. 9.430 às reestruturações de negócios, tendo restado consignado na Exposição de Motivos da Lei n. 14.596, nesse sentido, que aquelas não eram aplicáveis apropriadamente às transações “sofisticadas e complexas”, assim referidas àquelas que envolvem intangíveis e as próprias reestruturações de negócios. Como resultado, as regras brasileiras de preços de transferência não seriam aptas a capturar a renda gerada pelos modelos de negócios da atualidade (Brasil, 2022).

Considerando o alinhamento total pretendido pela nova legislação, as reestruturações de negócios não se restringem às hipóteses de reorganizações societárias previstas na legislação comercial, abrangendo qualquer situação que implique transferência de funções, ativos, riscos, oportunidades de negócios e atividades em que existam lucros potenciais vinculados. Nesse sentido, segundo as Guidelines da OCDE, a expressão reestruturação de negócios alcança a reorganização das relações financeiras ou comerciais entre partes relacionadas, o que inclui renegociações substanciais ou extinção dos arranjos jurídicos e econômicos mantidos pelas partes (OCDE, 2022, p. 358).

As Guidelines da OCDE descrevem uma variada gama de transações consideradas reestruturações de negócios (e.g., transferência de intangíveis para entidades centralizadoras de ativos de perfil semelhante, transações que tenham por objetivo racionalizar as atividades realizadas por determinada entidade, incluindo o seu completo encerramento, renegociação de arranjos contratuais de manufatura, distribuição, prestação de serviços etc.), as quais, comumente, visam ao atingimento de objetivos economicamente legítimos, como a maximização de sinergias entre entidades do grupo, aumento de eficiência da cadeia global de produção, aproveitamento de vantagens geográficas e de mercado de trabalho. Em determinadas situações, ressalta a OCDE, as reestruturações de negócios são necessárias para a própria preservação da lucratividade de entidades do grupo ou para a limitação de perdas (Ibid.).

Não são quaisquer reestruturações de negócios que devem desencadear a aplicação das regras de preços de transferência, mas apenas aquelas que resultem em transferência de lucros potenciais ou em benefícios ou prejuízos para qualquer uma das partes. Sob essa perspectiva, a aplicação das regras de preços de transferência para fins de determinação da compensação a que teria direito a parte que teve seu lucro potencial transferido depende da identificação de métodos adequados para tanto, sob pena de impraticabilidade. Não obstante, a dificuldade de identificação de um método adequado para a correta identificação do lucro potencial transferido em determinadas reestruturações de negócios, dadas as particularidades dos arranjos e ausência de comparáveis fidedignos, por exemplo, não deve obstar a aplicação das regras de preços de transferência no caso concreto (Ibid., p. 370), devendo as partes se valer, inclusive, de técnicas de avaliação aplicáveis para avaliação de negócios em operações de fusões e aquisições (Ibid., p. 382).

Para tanto, imprescindível o delineamento das transações que se inserem no bojo da reestruturação de negócios para que se identifique: (i) as relações comerciais ou financeiras objeto da reestruturação da qual tenha resultado transferência de valor entre partes relacionadas, (ii) se tais transações teriam sido praticadas fossem as partes não relacionadas (e a existência de outras opções realisticamente disponíveis), e, em caso negativo, (iii) os lucros potenciais que teriam sido auferidos pela parte prejudicada pela fixação de condições artificiais (Ibid., p. 361). De menor importância, nesse sentido, o fato de que a reestruturação de negócios tenha sido motivada por razões econômicas legítimas sob a perspectiva do grupo econômico, na medida em que o atendimento ao princípio arm’s length depende da comprovação de que a transação observou o referido princípio sob a perspectiva individual de cada uma das entidades envolvidas (Ibid.).

Por lucros potenciais entende-se, de acordo com o art. 26 da Lei n. 14.596, os lucros (ou perdas) associados à transferência de funções, de ativos, de riscos ou de oportunidades de negócios. Não é qualquer redução de expectativa de rentabilidade futura de uma entidade que deve ser compensada segundo a OCDE (Ibid., p. 371), mas apenas aquela decorrente de uma transferência de riscos, funções e/ou de um ativo valioso (transfer of something of value), entendido em acepção ampla, ainda que não reconhecido nas demonstrações financeiras da entidade, a qual seria objeto de compensação em uma transação entre partes não vinculadas para justificar o “sacrifício do lucro potencial” em benefício da outra parte (Ibid., p. 327).

As novas regras de preços de transferência determinam que, para fins de apuração da compensação pelo benefício obtido ou pelo prejuízo sofrido por qualquer das partes, sejam considerados (i) os custos suportados pela entidade transferidora, e (ii) a transferência do lucro potencial, a qual deverá abranger o valor que os itens transferidos têm em conjunto.

Digno de nota a aparente abrangência dos parâmetros utilizados pelas novas regras para mensuração do valor da compensação que seria devida à “entidade transferidora”, em especial no que se refere aos custos suportados como consequência da reestruturação.

Segundo a OCDE (Ibid., p. 384-385), nesse sentido, não se deve presumir que todas as reestruturações de negócios (em especial aquelas que implicam encerramento ou renegociação substancial de contratos, arranjos negociais ou atividades) exigirão compensação ou indenização a uma das partes, que dependerá, para tanto, dos fatos e circunstâncias de cada caso, do correto delineamento dos arranjos anteriores e posteriores à reestruturação e às opções realisticamente disponíveis às partes. Após o correto delineamento das transações, deve-se considerar se (i) a legislação comercial ou contratos firmados entre as partes embasaria o direito de indenização da parte que suportou custos como consequência da reestruturação; (ii) qual das partes deveria suportar tais custos.

Apesar da ausência de critérios objetivos para delimitação dos parâmetros indicados pela legislação para mensuração da compensação devida à entidade que teve seu lucro potencial sacrificado como consequência da reestruturação de negócios, não se deve perder de vistas que a sua determinação deve se pautar no princípio arm’s length, ou seja, não podem as autoridades fiscais exigir uma compensação que difira daquela que seria estabelecida entre partes não relacionadas em transações comparáveis.

2.A. Aplicação das regras de preços de transferência às pessoas físicas

A Lei n. 14.596 estabelece, em seu primeiro artigo, que a referida Lei dispõe sobre regras de preços de transferência relativas ao Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (“IRPJ”) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (“CSLL”), sendo aplicável para fins de determinação da base de cálculo dos referidos tributos devidos pelas pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil que realizem transações controladas com partes relacionadas no exterior (i.e., o art. 1º define o objeto e o âmbito de aplicação da Lei n. 14.596).

Não obstante e em linha com as disposições previstas na Lei n. 9.430, as novas regras de preços de transferência também são aplicáveis às transações efetuadas por pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil com qualquer entidade, ainda que parte não relacionada, residente ou domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP, nos termos dos arts. 24 e 24-A da Lei n. 9.430, com redação dada pelo art. 40 da Lei n. 14.596, inclusive no caso de se tratar de reestruturação de negócios.

Interessante notar que, em sua redação original, o art. 24 da Lei n. 9.430 elucidava as consequências decorrentes da aplicação das regras de preços de transferência às transações realizadas pelas pessoas físicas residentes no País, dispondo, quanto à aquisição de bens ou direitos provenientes do exterior e alienação de bens ou direitos a adquirentes domiciliados no exterior, que (i) o valor apurado em decorrência da aplicação de um dos métodos de comparação seria considerado custo de aquisição para efeito de apuração de ganho de capital na alienação do bem ou direito (objeto de “importação”); e que (ii) o preço relativo ao bem ou direito alienado, para efeito de apuração de ganho de capital, seria aquele apurado em conformidade com os métodos previstos para as operações de exportação (cf. § 2º do referido dispositivo).

Muito embora a Lei n. 14.596 tenha revogado o § 2º do art. 24 da Lei n. 9.430, é razoável concluir que a aplicação das novas regras de transferências às transações realizadas pelas pessoas físicas resultaria em consequências semelhantes àquelas exemplificativamente previstas pelo dispositivo revogado (e.g., a alienação de ativos por preço inferior àquele que teria sido contrato em operação não controlada deverá resultar em ajuste do preço para fins de apuração de ganho de capital da pessoa física), sem prejuízo de todo o novo arcabouço de regras aplicáveis para fins de delineamento das transações, análise de comparabilidade e seleção do método mais apropriado.

Dada a inclusão das transações realizadas por pessoas físicas com qualquer entidade residente ou domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP ao escopo objetivo das novas regras de preços de transferência, deve-se investigar o alcance do termo transação e a possível contrariedade da referida regra com outros dispositivos da legislação.

3. O fato gerador do Imposto de Renda e a integralização de bens e direitos ao capital das pessoas jurídicas

Sem prejuízo dos intensos debates travados em âmbito doutrinário acerca da existência ou não de um conceito constitucional de renda, fato é que a Constituição Federal (“CF”) atribuiu à Lei Complementar a competência para definição do fato gerador dos impostos6.

No que se refere ao Imposto de Renda, o seu fato gerador é definido pelo art. 43 do Código Tributário Nacional (“CTN”), lei ordinária recepcionada pela CF com status de Lei Complementar (Schoueri, 2017, p. 99), segundo o qual o referido imposto tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: (i) da renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; e (ii) de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no item anterior.

Em que pese a existência de alguma divergência doutrinária acerca do tema, observa-se que o CTN autoriza a tributação tanto da “renda-produto” quanto da “renda-acréscimo”7 (SCHOUERI, 2010, p. 47). Para tanto, no entanto, a renda deve estar disponível (disponibilidade esta qualificada pelo CTN como jurídica ou econômica), devendo, para que se considere como tal, possibilitar ao contribuinte o seu emprego, uso ou fruição, inclusive para pagamento do imposto (SCHOUERI, 2017, p. 238).

Extrai-se da definição da hipótese de incidência do Imposto de Renda a adoção, pelo legislador complementar, do princípio da realização da renda (Ibid.). Na condição de mandamento de otimização do conceito de renda, o princípio da realização tem como fim último concretizar a capacidade contributiva, a qual se manifesta com maior segurança e confiabilidade nas trocas realizadas em mercado (Haddad, 2019, p. 370-371).

Nesse sentido, citando Bulhões Pedreira, Fernandes e Coviello Filho afirmam que não são tributáveis pelo imposto de renda os lucros potenciais, assim entendidos aqueles apurados entre a diferença entre o valor de mercado de um ativo e o seu custo de aquisição, mas apenas os lucros efetivos, ou seja, (i) aqueles que se convertam em direito que acresça ao patrimônio; (ii) mediante troca em mercado; (iii) após o cumprimento das obrigações assumidas no âmbito da troca em mercado realizada; e (iv) desde que tal direito seja mensurável (2023, p. 11).

Informado pelo princípio da realização ou por questões de praticabilidade – considerando as incertezas que envolvem a adoção de um sistema de tributação baseado na mera valorização de ativos, o legislador tem optado pela postergação do reconhecimento de ganhos e perdas em algumas operações tipicamente realizadas no contexto de reorganizações societárias, seja naquelas em que se verifica (i) sucessão patrimonial a título universal sem solução de continuidade ou, ainda que tal sucessão patrimonial não se verifique na realidade, (ii) há alguma continuidade em termos de titularidade e exploração, direta ou indireta, dos ativos objeto da operação (Haddad, 2019, p. 379-380).

Polizelli se refere à segunda hipótese acima como continuidade da situação patrimonial, comumente associadas às reorganizações societárias (e.g., integralização de capital ou sua redução em bens), as quais não teriam o condão de gerar descontinuidade sob a perspectiva do sócio e do ativo, por exemplo, contribuído ao capital de uma pessoa jurídica, de modo que aquele, ainda que indiretamente, continua a integrar o seu patrimônio, traduzido, não obstante, em participação societária (2012, p. 329).

Ainda segundo o referido autor, a continuidade da situação patrimonial foi reconhecida pelo legislador pátrio na hipótese de integralização de capital de pessoas jurídicas por pessoas físicas, facultando-se a estas a transferência, sem realização de ganho tributável, de bens e direitos ao capital social de pessoas jurídicas por seu valor de custo histórico, conforme constante da Ficha de Bens e Direitos da Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física8 (Ibid., p. 330).

Nesse sentido, “reconhece-se que a realização não se completa em situações de continuidade”, justificando-se a postergação do “evento crítico da realização” em razão de “dificuldades de mensuração, baixa liquidez e, por conseguinte, uma mudança de posição patrimonial diminuta (ou nula) (Ibid., p. 367).

Não obstante a faculdade legal conferida às pessoas físicas para que transfiram bens e direitos às pessoas jurídicas em integralização de seu capital a valor de custo, seria discutível, no caso, a legalidade da exigência do imposto de renda na referida hipótese, à luz do art. 43 do CTN. Em amplo estudo doutrinário e jurisprudencial acerca do tema, Fernandes e Coviello Filho concluem que a conferência de bens e direitos ao capital das pessoas jurídicas não seria tributável pelo imposto de renda, considerando que, ainda que realizada a um valor superior ao custo do ativo transferido, não representaria acréscimo patrimonial efetivo, carecendo de um preço (efetiva troca em mercado) e se tratando de mera substituição de ativos (2023, p. 25-26).

Independentemente da discussão quanto à possibilidade de incidência do imposto de renda sobre ganhos apurados na transferência de bens e direitos pelas pessoas físicas ao capital de pessoas jurídicas, fato é que o art. 23 da Lei n. 9.249 faculta àquelas a transferência pelo valor de custo de aquisição dos referidos bens e direitos, postergando-se o reconhecimento do ganho de capital para fins tributários para o momento da alienação das ações ou quotas recebidas como contrapartida.

Considerando este contexto, pode-se cogitar uma possível incompatibilidade entre o permissivo legal conferido às pessoas físicas para que transferiram ativos às pessoas jurídicas pelo valor de custo de aquisição e as novas regras de preços de transferência, em especial, o disposto no art. 26 da Lei n. 14.596, ao menos nas hipóteses em que as pessoas jurídicas receptoras dos ativos conferidos ao seu capital sejam domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP.

4. Antinomias jurídicas aparentes e a inaplicabilidade das regras de preços de transferência na conferência de bens realizadas pelas pessoas físicas

Enquanto o art. 23 da Lei n. 9.249 permite a postergação do reconhecimento de ganhos de capital na transferência de bens e direitos às pessoas jurídicas em integralização de capital pelas pessoas físicas, o art. 26 da Lei n. 14.596 obriga o reconhecimento dos “lucros potenciais” associados à transferência de ativos entre partes relacionadas (ou, ainda que não relacionadas, por uma pessoa física a uma pessoa jurídica domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP), ao menos para fins de determinação da base de cálculo da tributação incidente sobre a renda.

Trata-se, nas palavras de Bobbio, de normas incompatíveis, considerando que, na aplicação do Direito ao caso concreto (e.g., na conferência de bens por pessoas físicas a pessoas jurídicas domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP), não podem ser ambas verdadeiras (2010, p. 243). São três, segundo o referido autor, as relações de incompatibilidade normativa (denominadas antinomias): (i) “entre uma norma que comanda fazer alguma coisa e uma norma que proíbe fazê-lo (contrariedade)”; (ii) “entre uma norma que comanda fazer e uma que permite não fazer (contrariedade)”; e (iii) entre uma norma que proíbe fazer e uma que permite fazer (contrariedade)” (Ibid., p. 243-244).

Bobbio complementa que, para que se possa afirmar se tratar de antinomia jurídica, necessário que as duas normas pertençam ao mesmo ordenamento jurídico e que tenham o mesmo âmbito de validade, o qual desdobra-se em temporal, espacial, pessoal e material, podendo, ainda, segundo a extensão do contraste existente entre as normas, ser “total-total” (em nenhuma hipótese uma das normas pode ser aplicada sem conflitar com a outra), “parcial-parcial” (as duas normas tem âmbito de validade parte igual e em parte diferente) e “total-parcial” (em que a primeira norma não pode ser em nenhum caso aplicada sem entrar em conflito com a segunda, mas a segunda possui âmbito de aplicação que não conflita com a primeira) (Ibid., p. 246-247).

A principal nota característica da antinomia jurídica é a produção de incerteza (neste caso, o cidadão não é capaz de prever com exatidão as consequências jurídicas da própria conduta – Ibid., p. 269), cuja correção é um imperativo, assumindo que todo ordenamento jurídico adota a feição de um sistema uno e coerente. Para correção das antinomias jurídicas, o intérprete deve se valer de critérios ou regras que possam auxiliar em sua resolução9 (regras de coerência), sendo tais, fundamentalmente (e que se mostraram consistentes ao longo do tempo, tendo, inclusive, sido adotados pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro10 – “LINDB”), (i) o critério cronológico11 (lex posterior), (ii) o critério hierárquico (lex superior), e (iii) o critério da especialidade12 (lex speciallis) (Ibid., p. 249-253).

Quanto ao terceiro critério, Bobbio define a lei especial como “aquela que derroga uma lei mais geral, ou seja, que subtrai a uma norma uma parte de sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diversa (contrária ou contraditória)” e complementa que, identificada pelo legislador uma situação que mereça tratamento distinto daquele previsto pela norma geral, a persistência desta “implicaria o tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diversas e, portanto, uma injustiça” (2010, p. 253). A aplicação do critério da especialidade não resulta em eliminação total de uma das normas incompatíveis, mas apenas de parte da norma geral que seja incompatível com a norma especial (Ibid., p. 254).

Em linha semelhante no que se refere à conceituação das antinomias jurídicas, Ferraz Júnior afirma que haverá contrariedade entre duas normas quando estas possuam “operadores opostos (uma permite, a outra proíbe) e os seus conteúdos (atos e omissões) sejam a negação interna um do outro (isto é, uma prescreve o ato, a outra, a omissão)” (1993, p. 188).

Tal contrariedade coloca o sujeito numa posição insustentável, porém, sendo possível a aplicação dos critérios para solução de conflitos (descritos anteriormente) a antinomia não restaria configurada (i.e., antinomias aparentes), que surgiria, consequentemente, apenas na hipótese de impossibilidade de sua solução pelos referidos critérios, as denominadas antinomias reais (Ibid., p. 189). O conflito entre os critérios seria solucionado pelos metacritérios (Ibid.).

Reitera-se que o critério da especialidade foi positivado pela LINDB no ordenamento jurídico brasileiro, assim como o metacritério aplicável à solução do conflito entre os critérios de especialidade e cronológico, segundo disposição expressa de seu art. 2º, § 2º, no sentido de que a lei nova que estabeleça disposições gerais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei [especial] anterior.

No que concerne ao escopo do presente artigo, é possível afirmar que o conteúdo do art. 23 da Lei n. 9.249 e o do art. 26 da Lei n. 14.596 estão em parcial contrariedade, ambas as normas possuindo, no entanto, âmbito de aplicação que não contrariam uma à outra nas hipóteses em que, por exemplo:

i) uma pessoa física residente no Brasil esteja conferindo bens ao capital de uma pessoa jurídica também domiciliada no País ou que não seja domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP – hipótese que seria aplicável apenas o art. 23 da Lei n. 9.249, sem se cogitar a aplicação das regras de preços de transferência;

ii) uma pessoa física residente no Brasil esteja firmando contrato de compra e venda de ativos com uma pessoa jurídica domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP – hipótese em que não se cogita a aplicação do art. 23 da Lei n. 9.249 (considerando que esta trata tão somente de hipótese de conferência de bens), sendo aplicáveis, no entanto, as regras de preços de transferência; e

iii) uma pessoa jurídica domiciliada no Brasil esteja conferindo bens ao capital de outra pessoa jurídica domiciliada no exterior, ainda que estas, anteriormente à operação, não sejam partes vinculadas no caso desta última ser domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP – hipótese em que o art. 23 da Lei n. 9.249 não poderia ser invocado, sendo em princípio aplicáveis as regras de preços de transferência13.

Por outro lado, a contrariedade pode existir na hipótese em que uma pessoa física esteja conferindo bens e direitos ao capital de uma pessoa jurídica domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP, devendo o intérprete se valor dos critérios normativos para solucionar a aparente contrariedade entre o art. 23 da Lei n. 9.249, que a autoriza a transferir bens e direitos às pessoas jurídicas pelo seu valor de custo de aquisição, e o art. 26 da Lei n. 14.596, que a obrigaria a reconhecer, para fins tributários, os lucros potenciais transferidos à contraparte sem a devida remuneração.

Embora a Lei n. 14.596, sob a perspectiva cronológica, seja posterior à Lei n. 9.249, o critério cronológico não seria suficiente para solucionar o conflito entre as normas, pois, nos termos da LINDB e como já se teve a oportunidade de mencionar, a lei nova que estabeleça disposições gerais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei [especial] anterior.

O conflito, portanto, deve ser resolvido sob a perspectiva do critério da especialidade.

No que se refere ao escopo subjetivo das normas, ambas são aplicáveis às transações realizadas por pessoas físicas, embora, no caso das regras de preços de transferência, estas sejam aplicáveis apenas nas hipóteses em que a contraparte seja domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP.

Este aspecto específico, i.e., as regras de preços de transferência são aplicáveis às pessoas físicas apenas quando suas contrapartes pessoas jurídicas são domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP, poderia fazer com que o intérprete tendesse à prevalência das regras de preços de transferência em relação ao art. 23 da Lei n. 9.249, porém, como se verá adiante, a aplicação do critério da especialidade a partir da análise dos escopos objetivos das referidas normas leva a uma conclusão diversa. Não obstante, relevante destacar que o fim subjetivo das regras de preços de transferência (a partir do prisma de interpretação teleológica das referidas regras) consiste no combate à elisão fiscal internacional, que não se confunde com a figura do abuso de direito (Moreira, 2021, p. 148). Apesar de lícita a elisão fiscal internacional, conclui Moreira, esta pode ser indesejável por erodir a base tributável dos Estados e por implicar violação ao princípio da igualdade (Ibid.).

Considerando esse contexto, atente-se que a conferência de bens e direitos ao capital de uma pessoa jurídica estrangeira por uma pessoa física não tem o condão de representar risco de erosão das bases tributáveis do País, seja porque (i) no caso de os ativos transferidos estarem localizados no Brasil, a legislação prevê tributação na fonte sobre os ganhos de capitais apurados em uma eventual alienação de tais ativos pela entidade estrangeira alienante14; ou (ii) no caso de ativos transferidos estarem localizados no exterior, o sócio pessoa física residente no Brasil está sujeito à tributação da renda em bases universais, de modo que os lucros que lhe forem distribuídos (inclusive aqueles decorrentes da alienação dos ativos que haviam sido transferidos para à pessoa jurídica estrangeira) ficarão sujeitos ao imposto de renda no Brasil15.

Neste último caso, poder-se-ia cogitar sobre a possibilidade de diferimento da tributação no País dos lucros apurados por uma pessoa jurídica domiciliada no exterior enquanto não efetivamente distribuídos ao sócio pessoa física. Não obstante, não se identifica no escopo objetivo ou subjetivo das regras de preços de transferência o combate ao diferimento fiscal de lucros obtidos por meio de entidades domiciliadas no exterior, sendo esse um dos objetivos que ensejam a adoção das regras de tributação em bases universais16 (ou, na experiência internacional, as Controlled Foreign Corporation rules – “CFC rules”).

Ainda que não se possa ignorar um risco residual de a pessoa física contribuir ativos localizados no exterior ao capital de uma estrutura jurídica também domiciliada no exterior e, posteriormente, deixar de ser residente fiscal no Brasil para, então, realizar o ganho de capital na condição de não residente, tal situação excepcional (vez que demanda o cumprimento de uma série de obrigações fiscais acessórias para sua formalização e, especialmente, uma transferência física e permanente de domicílio, sob pena de a saída fiscal poder ser questionada pelas autoridades fiscais), não poderia servir para justificar a prevalência das regras de preços de transferência em relação ao art. 23 da Lei n. 9.249, à luz do princípio da proporcionalidade17. Esta situação, dada sua excepcionalidade, poderia ser objeto de uma SAAR (modelada dentro dos parâmetros do art. 43 do CTN)18.

Pode-se afirmar, nesse sentido, que não seria coerente, a partir de uma interpretação teleológica da legislação, a prevalência das regras de preços de transferência em relação à norma prevista no art. 23 da Lei n. 9.249 tão somente em razão de a contraparte na transação ser domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP. Deve-se ponderar, consequentemente, a aplicação do critério da especialidade em relação ao escopo objetivo das referidas regras.

4.A. O art. 23 da Lei n. 9.249 é norma especial em relação ao art. 26 da Lei n. 14.596

Como detalhado na Seção 2 do presente artigo, o art. 26 da Lei n. 14.596 é potencialmente aplicável nas transações que envolvam transferências de funções, de ativos, de riscos ou de oportunidades de negócios, realizadas entre partes relacionadas ou entre pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil e contrapartes domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP, desde que delas resulte transferência de lucros potenciais (ou em benefícios ou prejuízos para qualquer uma das partes).

O referido dispositivo, portanto, exige que os lucros potenciais transferidos, dentre outras hipóteses, decorram da transferência de ativos. Entende-se, por transferência, o ato de transferir uma propriedade ou bem a outrem ou o ato de transferir direitos a outrem, termo que é sinônimo de alienação.

Os termos transferência ou alienação podem comportar diversa gama de transações jurídicas tipicamente previstas pelo Direito que, ao fim e ao cabo, implicam transmissão da titularidade de um determinado bem ou direito a outrem, a título gratuito ou oneroso. Dentre as referidas transações, pode-se destacar a cessão ou promessa de cessão de direitos à aquisição de bens ou direitos, a compra e venda, a permuta, a adjudicação, a desapropriação, a dação em pagamento, a doação, a procuração em causa própria, a promessa de compra e venda etc.19

Ainda, também se enquadra como transação que configura alienação a transferência de bens e direitos a pessoas jurídicas a título de integralização de capital, conforme entendimento da RFB historicamente manifestado no Manual Perguntas e Respostas do Imposto de Renda da Pessoa Física20.

É possível concluir, neste ponto, que a conferência de bens e direitos ao capital das pessoas jurídicas é espécie do gênero transferência (sinônimo do termo alienação). Sendo espécie do gênero alienação, é seguro concluir que o art. 23 da Lei n. 9.249 regula situação específica (transferência de bens e direitos à título de integralização de capital), enquanto o art. 26 da Lei n. 14.596 regula a generalidade das situações que impliquem transferência/alienação de bens e direitos entre pessoa física residente no Brasil e contraparte domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP.

Por consequência, o critério da especialidade permite solucionar o aparente conflito entre as normas, de modo que, em se tratando o art. 26 da Lei n. 14.596 de norma geral (em relação à transferência de bens e direitos pelas pessoas físicas a contrapartes domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP), este não derrogou o art. 23 da Lei n. 9.249 no que se refere à conferência de bens e direitos ao capital de pessoas jurídicas domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP à título de integralização de capital, por esta última possuir escopo objetivo específico, o que a torna lex speciallis em relação à primeira.

Reforça o caráter de lei especial do art. 23 da Lei n. 9.249, conforme demonstrado na Seção 3 do presente trabalho, o fato de que a transação nele prevista reputa-se como hipótese de continuidade da situação patrimonial legalmente reconhecida e protegida pelo legislador que, em atenção ao princípio da realização da renda (dada a incompletude da realização diante da ausência de troca do ativo no mercado), permite a postergação do reconhecimento do ganho de capital para o momento da alienação das quotas ou ações recebidas em contrapartida à conferência.

Destaca-se que, historicamente, a relação de especialidade entre as regras de preços de transferência e o art. 23 da Lei n. 9.249 já vinha sendo aventada durante a vigência da Lei n. 9.430 para afastar a aplicação das primeiras na hipótese de conferência de bens e direitos ao capital de pessoas jurídicas domiciliadas no exterior, conforme anotado por Galhardo (2008, p. 336) e Novaski (2020, p. 114).

Nesse sentido, como também demonstrado a partir da definição de Bobbio, a lei especial prevalece em relação à lei geral, lhe subtraindo parte de seu conteúdo para submetê-lo a disciplina diversa por se tratar de situação que merece tratamento jurídico próprio e distinto daquele disciplinado pela lei geral, sob pena de se impor tratamento idêntico a pessoas que não estão em situação semelhante.

Em outros termos, a continuidade da situação patrimonial verificada na hipótese de integralização de bens ao capital de uma pessoa jurídica no exterior em relação ao bem conferido permite a concretização do princípio da realização em sua completude, sem prejuízo de a legislação tributária pátria conseguir alcançar eventuais ganhos potenciais que tenham sido transferidos à contraparte domiciliada no exterior (ainda que em JTF ou beneficiária de RFP) – seja no caso de os bens e direitos conferidos estarem localizados no Brasil, ou, ainda, porque o sócio pessoa física submete-se à tributação pelo Imposto de Renda em bases universais, não se necessitando invocar as regras de preços de transferência para proteção das bases tributárias do País nesta hipóteses específica.

5. Conclusões

1. O Poder Executivo editou a MP n. 1.152 após longo e rigoroso processo de diagnóstico das virtudes e fragilidades das regras de preços de transferência até então vigentes e de avaliação das alternativas para convergência – total ou parcial – ao padrão OCDE. Convertida a referida Medida Provisória na Lei n. 14.596, sacramentou-se a adoção, pelo País, do padrão OCDE, baseado no separate entity approach, segundo o qual as entidades de um grupo multinacional devem ser tratadas como entidades separadas, devendo a tributação das transações intercompany observar o princípio arm’s length.

2. Dentre as fragilidades da legislação até então vigente, apontou-se a ausência de regras específicas para lidar com as reestruturações de negócios, o que permitiria a transferência de lucros potenciais para outras jurisdições a partir da realocação de riscos, funções e ativos sem a devida compensação às entidades brasileiras titulares dos ativos, riscos e funções transferidos a partes relacionadas. Nesse sentido, a edição da Lei n. 14.596 deve trazer nova luz à controvérsia acerca da aplicabilidade das regras de preços de transferência às reestruturações societárias e de negócios, assim entendidas, inclusive, as transferências de ativos a partes relacionadas ou pessoas residentes ou domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP.

3. Dada a inclusão das transações realizadas por pessoas físicas com qualquer entidade residente ou domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP ao escopo objetivo das novas regras de preços de transferência, deve-se determinar o alcance do termo transação e a possível contrariedade da referida regra com outros dispositivos da legislação, notadamente o art. 23 da Lei n. 9.249, que faculta às pessoas físicas a transferência de bens e direitos às pessoas jurídicas, à título de integralização de capital, pelo valor de custo dos referidos bens e direitos.

4. Extrai-se da definição da hipótese de incidência do Imposto de Renda a adoção, pelo legislador complementar, do princípio da realização da renda. Na condição de mandamento de otimização do conceito de renda, o princípio da realização tem como fim último concretizar a capacidade contributiva, a qual se manifesta com maior segurança e confiabilidade nas trocas realizadas em mercado, conforme ensinam Schoueri e Haddad.

5. Informado pelo princípio da realização ou por questões de praticabilidade – considerando as incertezas que envolvem a adoção de um sistema de tributação baseado na mera valorização de ativos, o legislador tem optado pela postergação do reconhecimento de ganhos e perdas em algumas operações tipicamente realizadas no contexto de reorganizações societárias, seja naquelas em que se verifica (i) sucessão patrimonial a título universal sem solução de continuidade ou, ainda que tal sucessão patrimonial não se verifique na realidade, (ii) há alguma continuidade em termos de titularidade e exploração, direta ou indireta, dos ativos objeto da operação. Polizelli se refere à segunda hipótese acima como continuidade da situação patrimonial, comumente associada às reorganizações societárias (e.g., integralização de capital ou sua redução em bens), as quais não teriam o condão de gerar descontinuidade sob a perspectiva do sócio e do ativo, por exemplo, contribuído ao capital de uma pessoa jurídica, de modo que aquele, ainda que indiretamente, continua a integrar o seu patrimônio, traduzido, não obstante, em participação societária.

6. A continuidade da situação patrimonial foi reconhecida pelo legislador pátrio na hipótese de integralização de capital de pessoas jurídicas por pessoas físicas, facultando-se a estas a transferência, sem realização de ganho tributável, de bens e direitos ao capital social de pessoas jurídicas por seu valor de custo histórico, conforme constante da Ficha de Bens e Direitos da DIRPF. Nesse sentido, “reconhece-se que a realização não se completa em situações de continuidade”, justificando-se a postergação do “evento crítico da realização” em razão de “dificuldades de mensuração, baixa liquidez e, por conseguinte, uma mudança de posição patrimonial diminuta (ou nula), conforme leciona Polizelli.

7. Enquanto o art. 23 da Lei n. 9.249 permite a postergação do reconhecimento de ganhos de capital na transferência de bens e direitos às pessoas jurídicas em integralização de capital pelas pessoas físicas, o art. 26 da Lei n. 14.596 obriga o reconhecimento dos “lucros potenciais” associados à transferência de ativos entre partes relacionadas (ou, ainda que não relacionadas, por uma pessoa física a uma pessoa jurídica domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP), ao menos para fins de determinação da base de cálculo da tributação incidente sobre a renda.

8. Trata-se, nas palavras de Bobbio, de normas incompatíveis (hipótese de antinomia), considerando que, na aplicação do Direito ao caso concreto (e.g., na conferência de bens por pessoas físicas a pessoas jurídicas domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP), não podem ser ambas verdadeiras.

9. A principal nota característica da antinomia jurídica é a produção de incerteza, cuja correção é um imperativo, assumindo que todo ordenamento jurídico adota a feição de um sistema uno e coerente. Para correção das antinomias jurídicas, o intérprete deve se valer de critérios ou regras que possam auxiliar em sua resolução (regras de coerência), sendo tais, fundamentalmente, (i) o critério cronológico (lex posterior), (ii) o critério hierárquico (lex superior), e (iii) o critério da especialidade (lex speciallis). Quanto ao terceiro critério, Bobbio define a lei especial como “aquela que derroga uma lei mais geral, ou seja, que subtrai a uma norma uma parte de sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diversa (contrária ou contraditória)” e complementa que, identificada pelo legislador uma situação que mereça tratamento distinto daquele previsto pela norma geral, a persistência desta “implicaria o tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diversas e, portanto, uma injustiça”.

10. O critério da especialidade foi positivado pela LINDB no ordenamento jurídico brasileiro, assim como o metacritério aplicável à solução do conflito entre os critérios de especialidade e cronológico, segundo disposição expressa de seu art. 2º, § 2º, no sentido de que a lei nova que estabeleça disposições gerais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei [especial] anterior.

11. É possível afirmar que o conteúdo do art. 23 da Lei n. 9.249 e o do art. 26 da Lei n. 14.596 estão em parcial contrariedade, ambas as normas possuindo, no entanto, âmbito de aplicação que não contrariam uma à outra. Por outro lado, a contrariedade pode existir na hipótese em que uma pessoa física esteja conferindo bens e direitos ao capital de uma pessoa jurídica domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP, devendo o intérprete se valor dos critérios normativos para solucionar a aparente contrariedade entre os referidos dispositivos.

12. Embora a Lei n. 14.596, sob a perspectiva cronológica, seja posterior à Lei n. 9.249, o critério cronológico não seria suficiente para solucionar o conflito entre as normas, pois, nos termos da LINDB, a lei nova que estabeleça disposições gerais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei [especial] anterior.

13. No que se refere ao escopo subjetivo das normas, ambas são aplicáveis às transações realizadas por pessoas físicas, embora, no caso das regras de preços de transferência, estas sejam aplicáveis apenas nas hipóteses em que a contraparte seja domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP. Este aspecto específico, i.e., as regras de preços de transferência são aplicáveis às pessoas físicas apenas quando suas contrapartes pessoas jurídicas são domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP, poderia fazer com que o intérprete tendesse à prevalência das regras de preços de transferência em relação ao art. 23 da Lei n. 9.249, porém, a aplicação do critério da especialidade a partir da análise dos escopos objetivos das referidas normas leva a uma conclusão diversa.

14. Pode-se afirmar, nesse sentido, que não seria coerente, a partir de uma interpretação teleológica da legislação, a prevalência das regras de preços de transferência em relação à norma prevista no art. 23 da Lei n. 9.249 tão somente em razão de a contraparte na transação ser domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP. Deve-se ponderar, consequentemente, a aplicação do critério da especialidade em relação ao escopo objetivo das referidas regras.

15. Os termos transferência ou alienação podem comportar diversa gama de transações jurídicas tipicamente previstas pelo Direito que, ao fim e ao cabo, implicam transmissão da titularidade de um determinado bem ou direito a outrem, a título gratuito ou oneroso. É possível concluir, neste ponto, que a conferência de bens e direitos ao capital das pessoas jurídicas é espécie do gênero transferência. Sendo espécie do gênero alienação, é seguro concluir que o art. 23 da Lei n. 9.249 regula situação específica (transferência de bens e direitos à título de integralização de capital), enquanto o art. 26 da Lei n. 14.596 regula a generalidade das situações que impliquem transferência/alienação de bens e direitos entre pessoa física residente no Brasil e contraparte domiciliada em JTF ou beneficiária de RFP.

16. O critério da especialidade permite solucionar o aparente conflito entre as normas, de modo que, em se tratando o art. 26 da Lei n. 14.596 de norma geral (em relação à transferência de bens e direitos pelas pessoas físicas a contrapartes domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP), este não derrogou o art. 23 da Lei n. 9.249 no que se refere à conferência de bens e direitos ao capital de pessoas jurídicas domiciliadas em JTF ou beneficiárias de RFP à título de integralização de capital, por esta última possuir escopo objetivo específico, o que a torna lex speciallis em relação à primeira.

17. Reforça o caráter de lei especial do art. 23 da Lei n. 9.249 o fato de que a transação nele prevista reputa-se como hipótese de continuidade da situação patrimonial legalmente reconhecida e protegida pelo legislador que, em atenção ao princípio da realização da renda (dada a incompletude da realização diante da ausência de troca do ativo no mercado), permite a postergação do reconhecimento do ganho de capital para o momento da alienação das quotas ou ações recebidas em contrapartida à conferência. Nesse sentido, como demonstrado a partir da definição de Bobbio, a lei especial prevalece em relação à lei geral, lhe subtraindo parte de seu conteúdo para submetê-lo a disciplina diversa por se tratar de situação que merece tratamento jurídico próprio e distinto daquele disciplinado pela lei geral, sob pena de se impor tratamento idêntico a pessoas que não estão em situação semelhante.

18. A continuidade da situação patrimonial verificada na hipótese de integralização de bens ao capital de uma pessoa jurídica no exterior em relação ao bem conferido permite a concretização do princípio da realização em sua completude, sem prejuízo de a legislação tributária pátria conseguir alcançar eventuais ganhos potenciais que tenham sido transferidos à contraparte domiciliada no exterior (ainda que em JTF ou beneficiária de RFP) – seja no caso de os bens e direitos conferidos estarem localizados no Brasil, ou, ainda, porque o sócio pessoa física submete-se à tributação pelo Imposto de Renda em bases universais, não se necessitando invocar as regras de preços de transferência para proteção das bases tributárias do País nesta hipóteses específica.

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1 Que afastavam, segundo a própria Exposição de Motivos da MP n. 1.152, a legislação brasileira do princípio arm’s length, prejudicando a realização de negócios e investimentos no País, a arrecadação tributária e a boa relação com as administrações tributárias de outras jurisdições.

2 Conforme definição prevista no art. 4º da referida Lei:

“Art. 4º Considera-se que as partes são relacionadas quando no mínimo uma delas estiver sujeita à influência, exercida direta ou indiretamente por outra parte, que possa levar ao estabelecimento de termos e de condições em suas transações que divirjam daqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis.

§ 1º São consideradas partes relacionadas, sem prejuízo de outras hipóteses que se enquadrem no disposto no caput deste artigo:

I – o controlador e as suas controladas;

II – a entidade e a sua unidade de negócios, quando esta for tratada como contribuinte separado para fins de apuração de tributação sobre a renda, incluídas a matriz e as suas filiais;

III – as coligadas;

IV – as entidades incluídas nas demonstrações financeiras consolidadas ou que seriam incluídas caso o controlador final do grupo multinacional de que façam parte preparasse tais demonstrações se o seu capital fosse negociado nos mercados de valores mobiliários de sua jurisdição de residência;

V – as entidades, quando uma delas possuir o direito de receber, direta ou indiretamente, no mínimo 25% (vinte e cinco por cento) dos lucros da outra ou de seus ativos em caso de liquidação;

VI – as entidades que estiverem, direta ou indiretamente, sob controle comum ou em que o mesmo sócio, acionista ou titular detiver 20% (vinte por cento) ou mais do capital social de cada uma;

VII – as entidades em que os mesmos sócios ou acionistas, ou os seus cônjuges, companheiros, parentes, consanguíneos ou afins, até o terceiro grau, detiverem no mínimo 20% (vinte por cento) do capital social de cada uma; e

VIII – a entidade e a pessoa natural que for cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, até o terceiro grau, de conselheiro, de diretor ou de controlador daquela entidade.”

3 Nesse sentido, a RFB, no âmbito do Perguntas e Respostas da Pessoa Jurídica expressamente manifestou o seu entendimento na linha de que as regras de preços de transferência são aplicáveis às operações que envolvam transferência de participação societária, nas hipóteses em que as transações sejam realizadas com partes vinculadas residentes ou domiciliadas no exterior ou com pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas em JTF ou beneficiária de RFP.

4 Cf. art. 24 da Lei n. 9.430, de 1996, com redação dada pelo art. 40 da Lei n. 14.596.

5 Cf. art. 24-A da Lei n. 9.430, de 1996, com redação dada pelo art. 40 da Lei n. 14.596.

6 Cf. art. 146, inc. III, “a”, da CF.

7 Vide entendimento em sentido contrário de Brandao Machado (Machado, 1994, p. 113).

8 Cf. art. 23 da Lei n. 9.249.

9 A doutrina especializada também costuma se referir às antinomias jurídicas de segundo grau, assim definido o conflito dos critérios utilizados para solução das antinomias. Para os fins ora pretendidos, o presente trabalho focará na aplicação do critério da especialidade para solução da aparente antinomia existente entre o art. 23 da Lei n. 9.249 e o art. 26 da Lei n. 14.596. Não obstante, seria possível se cogitar em conflito entre o critério da especialidade e o critério cronológico (na hipótese em que uma norma especial seria incompatível com uma norma geral posterior). Neste caso, prevalece a norma especial anterior (lex posterior generalis non derogat priori specialli).

10 Decreto-lei n. 4.657, de 1942.

11 “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”, cf. art. 2º, § 1º, da LINDB.

12 “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”, cf. art. 2º, § 2º, da LINDB.

13 Sem prejuízo da possibilidade de se discutir se uma pessoa jurídica também não poderia conferir bens e direitos ao capital de outra pessoa jurídica por seu valor contábil, discussão esta que foge ao escopo do presente artigo.

14 Cf. art. 26 da Lei n. 10.833, de 2003.

15 Cf. art. 3º, § 4º, da Lei n. 7.713, de 1988.

16 Verifica-se, na experiência legislativa brasileira, a tentativa de instituição das CFC rules para pessoas físicas residentes no Brasil ao menos em três oportunidades distintas: (i) Medida Provisória n. 627, de 2013, convertida na Lei n. 12.973, de 2014, após a exclusão das referidas regras no âmbito do debate legislativo; (ii) Projeto de Lei n. 2.337, de 2021, aprovado pela Câmara dos Deputados após a exclusão, dentre outros dispositivos, das referidas regras – ainda pendente de apreciação pelo Senado Federal; (iii) Medida Provisória n. 1.171, de 2023, que, até a conclusão do presente trabalho, ainda está em tramitação no Congresso Nacional.

17 Por inadequação do meio utilizado para combate a uma situação excepcionalíssima e vedação ao excesso imposto pela proporcionalidade em sentido estrito.

18 À semelhança da previsão contida no art. 27 da Lei n. 12.249, de 2010, segundo a qual a transferência do domicílio fiscal da pessoa física residente e domiciliada no Brasil para JTF ou RFP somente terá seus efeitos reconhecidos a partir da data em que o contribuinte comprove: (i) ser residente de fato naquele país ou dependência; ou (ii) sujeitar-se a imposto sobre a totalidade dos rendimentos do trabalho e do capital, bem como o efetivo pagamento desse imposto.

19 Tais operações são elencadas, exemplificativamente, pelo art. 3º, § 3º, da Lei n. 7.713, de 1998, para indicar as situações que importam alienação de bens ou direitos para fins de desencadear a apuração dos ganhos de capitais tributáveis pelo imposto de renda da pessoa física.

20 Vide Pergunta de n. 581 da edição 2023 do referido Manual, disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/perguntas-e-respostas/dirpf/pr-irpf-2023/view. Acesso em: 23 jul. 2023.