O Princípio Arm’s Length e a Praticabilidade Tributária

The Arm’s Length Principle and Tax Practicability

Jersilene de Souza Moura

Procuradora da Fazenda Nacional, lotada na Coordenação-Geral de Assuntos Tributários. Mestranda em Direito pela FGV-SP e Mestre em Administração Pública pela EBAPE-FGV. E-mail: jersimoura@gmail.com.

Recebido em: 24-11-2023 – Aprovado em: 19-12-2023

https://doi.org/10.46801/2595-7155.12.4.2023.2442

Resumo

O presente trabalho analisa o princípio arm’s length, que sustenta e fundamenta todo o novo arcabouço jurídico dos preços de transferência implementado, no Brasil, pela Lei n. 14.596, de 14 de junho de 2023, em consonância com o padrão internacional de preços de transferência, apresentando posições doutrinárias sob sua aplicabilidade prática para, na sequência, apresentar aspectos relacionados à praticabilidade tributária, diante da nova legislação. Visando ter uma referência sobre a experiência internacional, o presente artigo apresenta também um comparativo sobre o princípio arm’s length no cenário internacional e aspectos de litigiosidade. Ao final, são trazidas algumas reflexões sobre a conciliação destes princípios.

Palavras-chave: preços de transferência, princípio arm’s length, praticabilidade.

Abstract

This paper analyzes the Arm’s Length principle, which sustains and underpins the entire new legal framework for transfer pricing, implemented in Brazil by Law 14.596, of June 14, 2023, in line with the international transfer pricing standard, bringing doctrinal positions under their practical applicability to, in sequence, present aspects related to the tax practicability, in face of the new legislation. Aiming to have a reference on the international experience, this article also presents a comparison on the arm’s length principle in the international scenario and aspects of litigation. At the end, some reflections on the conciliation of these principles are brought.

Keywords: transfer pricing, arm’s length principle, practicability.

1. Introdução

Uma nova disciplina de preços de transferência, alinhada ao Modelo OCDE, foi recentemente implementada por meio da Medida Provisória n. 1152, de 28 de dezembro de 2022, convertida na Lei n. 14.596, de 14 de junho de 2023, que altera a legislação do Imposto sobre a Renda das Pessoa Jurídicas – IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL para dispor sobre as regras de preços de transferência.

O princípio arm’s length alicerça todo o arcabouço jurídico da nova legislação de preços de transferência. Sua fundamentação baseia-se no tratamento tributário equivalente entre transações entre partes relacionadas da mesma forma que ocorreriam entre partes não relacionadas. Esse princípio é a base do padrão internacional de preços de transferência e serve de norte para a “escolha” do melhor método a ser aplicado.

Por sua vez, o princípio da praticabilidade tributária diz respeito à necessidade de normas tributárias terem sua exequibilidade e efetividade observadas, com regras dotadas de aplicação prática e/ou simplificação, de forma a viabilizar a arrecadação dos tributos.

Diante desses objetivos de, por um lado, aplicar-se o método mais apropriado para a consecução do arm’s length, o que permeia uma análise individual e, por vezes, subjetiva das transações entre partes relacionadas, e, de outro, viabilizar que o novo modelo de preços de transferência atenda a critérios de praticabilidade, o presente artigo visa examinar e verificar a possibilidade de conciliação desses dois princípios, dentro de um contexto tributário de excessiva litigância, como é o brasileiro.

Para tanto, abordamos os contornos do princípio arm’s length, trazendo seu conceito e opiniões doutrinárias quanto à sua aplicabilidade e efetividade. Na sequência, debruçamo-nos sobre o princípio da praticabilidade, analisando suas principais características.

A partir daí, e com base no arcabouço teórico levantado, ousamos suscitar algumas reflexões sobre a conciliação desses princípios, em uma tentativa de harmonizá-los para que, com isso, possamos alcançar uma maior justiça tributária.

O presente trabalho se utilizará de pesquisas na legislação, artigos, livros, guias e cursos sobre o tema, com aplicação dos métodos dedutivo e dialético de análise.

2. Do princípio arm’s length

Conforme já explicitamos, a base do princípio arm’s length é, em suma, conferir um tratamento tributário equivalente entre transações entre partes relacionadas e não relacionadas, de forma que a alocação dos lucros tributáveis seja feita em condições de mercado equivalentes àquela que seria efetuada entre partes independentes, num contexto normal de assunção de riscos e funções desempenhadas entre as empresas1.

A expressa previsão do princípio arm’s length, que direciona a aplicação do método mais adequado à sua consecução, pode ser extraída do art. 2º da Lei n. 14.596, de 14 de junho de 2023:

“Art. 2º Para fins de determinação da base de cálculo dos tributos de que trata o parágrafo único do art. 1º desta Lei, os termos e as condições de uma transação controlada serão estabelecidos de acordo com aqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis.”

Tal disposição visa alinhar o Brasil ao padrão internacional de preços de transferência, uma vez que, na legislação anterior, predominava uma maior simplicidade, que por vezes levava a casos de não tributação ou, ao revés, bitributação.

No novo modelo, busca-se aplicar o melhor método, considerando a transação realizada, que seja mais adequado para a consecução do almejado Arm’s Length Principle – ALP.

Em que pese esse desiderato seja fundado em uma adequação da base tributável mais consentânea com o princípio da capacidade contributiva, alocando entre os países um valor mais representativo de uma adequada tributação caso a transação fosse feita entre partes não relacionadas, esse propósito está longe de ser um consenso. Para alguns, o ALP se reverte de uma dificuldade intransponível em sua verificação prática; para outros, pode ter seu propósito ultrapassado no estágio atual da economia digital. Abordaremos aqui, de forma sucinta, esses posicionamentos.

Nas palavras de Messias (2021):

“A OCDE utilizou como parâmetro para a aplicação dos métodos de apuração de operações entre empresas vinculadas um princípio que levou o nome de arm’s length principle, cuja tradução significa ‘à distância de um braço’. Tal princípio, tido como consectário do princípio da igualdade, consiste em tratar as empresas vinculadas, pertencentes ao mesmo grupo multinacional, como se fossem independentes.

Neste aspecto, do ponto de vista fiscal, a licitude do transfer pricing está condicionada à comparação das operações transnacionais entre partes relacionadas com operações similares realizadas entre empresas que não possuem qualquer tipo de vinculação. A observação do arm’s length principle se dá se, e somente se, o preço de transferência estiver no mesmo patamar daquele praticado no mercado.

O princípio arm’s length busca alcançar o valor da operação praticada entre pessoas relacionadas se estivessem negociando em condições de livre comércio. Busca-se a comentada conversão dos valores ‘reais de grupo’ para ‘reais de mercado’.”2

Para Gregório (2010), há um descompasso entre o próprio objetivo do arm’s length, que considera um mercado aberto de livre concorrência, e os objetivos almejados pelos grupos multinacionais que geralmente visam aproveitar a economia de escala por meio das transações intragrupos3.

Para Brauner (2008), o sistema baseado no ALP tem grande dificuldade de conformidade com altos custos na sua execução, além de ser muito impreciso, gerando, por vezes, desvantagens artificiais para o grupo4.

Sobre a aplicação do ALP na Economia Digital, trazemos aqui algumas considerações do ex-Ministro da Fazenda da Alemanha, Stefan Greil, extraídas do seu artigo The arm’s length principle in the 21st century – alive and kicking5?

O artigo levanta algumas reflexões sobre o papel do princípio arm’s length no estágio atual do comércio internacional, no qual a criação de valor para o usuário com a coleta de dados digitais fica em uma jurisdição fiscal bem diferente do local onde está fisicamente estabelecida a empresa que desenvolve uma atividade digital. Griel (2019) afirma que a comparabilidade entre as transações deve levar em conta diversos fatores: características do bem ou serviços, termos contratuais, funções, ajustes e riscos tomados pelas partes, condições econômicas do mercado e qualquer circunstância especial como a estratégia do negócio. E mais: que a comparação somente é possível se não houver diferença entre esses fatores ou se essa diferença puder ser ajustada para eliminar seus efeitos.

Na sequência, o autor enumera diversos pontos de vista sobre o ALP sendo que, para alguns, ele sequer existe na prática, já que o comportamento entre empresas relacionadas não poderia ser replicado, nas mesmas condições, entre empresas não relacionadas. Já para outros, ele é essencial como mecanismo de justiça fiscal no âmbito horizontal de tratamento igualitário entre empresas relacionadas e não relacionadas, e no âmbito vertical no sentido de que as rendas mais altas devem pagar mais impostos. Nesse ponto, ressalta ainda que é impossível mensurar e alocar corretamente os efeitos da economia de escala e sinergia do grupo empresarial. Em que pesem as dificuldades, o ALP vem sendo adotado como um padrão para alocação dos lucros nos preços de transferência na maioria dos países.

Todavia, de acordo com o citado artigo, na aplicação do referido princípio deve se dar a devida importância da criação de valor na alocação dos lucros entre empresas multinacionais relacionadas, levando-se em conta a contribuição de cada uma na criação desse valor. Assim, os resultados dos preços de transferência devem estar alinhados com a criação desse valor dentro das atividades primárias e secundárias necessárias para transformar a matéria-prima no produto final. Nesse aspecto, a OCDE destaca a importância de critérios econômicos sobre os contratuais (substância sobre a forma), afetando o regime diferente eventualmente estabelecido pelas empresas multinacionais.

Griel (2019) aborda a criação de valor dentro da literatura de gestão, fazendo a distinção entre o valor de uso e o valor de troca, sendo o primeiro relacionado à qualidade específica de um produto ou serviço conforme percebida pelos usuários de acordo com suas necessidades, de forma subjetiva. Já o valor de troca ocorre no momento do pagamento, quando a quantidade que o cliente se dispõe a pagar é influenciada por vários fatores. A captura do valor, por sua vez, é a capacidade de a empresa gerar lucro com as suas transações. Aborda também a importância do valor criado em cooperação com os consumidores em uma interação de longo prazo que abrange diversas fases da relação como codesign, coprodução, codistribuição, manutenção etc., que favorecem a inovação e reduzem as incertezas de aceitação.

De acordo com Griel (2019), a criação de valor é uma pré-condição para sua captura, sendo esta uma medida adequada para a tributação segundo o princípio da capacidade contributiva, mas que é afetada pela análise individual feita por cada país. O conceito de criação de valor teria alguns efeitos: primeiro, dá suporte à substância sobre a forma nos preços de transferência, com a observância real da conduta e situação econômica (funções desempenhadas, riscos assumidos e ativos utilizados), em vez de se confiar apenas nos arranjos formais. Segundo, considera a criação de valor além da mera atividade comercial, como inovações bem-sucedidas impulsionadas pelo consumidor ou pela tecnologia.

Griel (2019) aborda a criação de valor na economia digital e a importância da tecnologia da informação na formação de valor, contribuindo decisivamente para o incremento de vendas e oferecimento de bens e serviços personalizados aos consumidores. Nesse cenário, os Aplicication programming interfaces (API), que são um conjunto de definições de sub-rotina, comunicação, protocolos e ferramentas para a construção de um software, são fundamentais para o incremento do negócio e redução de custos, assim como as plataformas digitais que oferecem a possibilidade de interação direta entre consumidores e produtores, além dos dados coletados na internet (Big Data), que são considerados um ativo e produto em si mesmos, depois de selecionados e trabalhados.

Prosseguindo, ressalta que a alocação de valor e receita em um cenário de uso de inteligência artificial se torna um desafio para as administrações tributárias, pois cada vez mais as decisões são tomadas por algoritmos, e não por fatores de produção e funções desempenhadas por humanos, como acontece com o tradicional sistema de preços de transferência. “A maior automatização das atividades empresariais torna mais difícil justificar a alocação de lucros com base em fatores de alocação física.”6 Na mineração de dados, por exemplo, é um desafio identificar em qual parte do processo determinada pessoa jurídica está envolvida e qual o seu valor em atividades específicas em relação ao valor geral criado pela mineração, e mais difícil ainda é achar comparáveis para efeitos de preços de transferência. E a mesma situação vale para os ganhos de eficiência gerados pela tecnologia e o valor dos efeitos de rede que dificilmente serão identificáveis como realizados por esta ou aquela empresa do grupo.

Dentro do conceito de ALP proposto pelo OCDE, Griel (2019) enfoca que o princípio deve ser interpretado dentro das circunstâncias econômicas que circundam entidades relacionadas, ou seja, mesmo que se utilize a comparação da transação entre partes independentes, esta deve ser modelada pelas circunstâncias econômicas que delineiam transações entre partes relacionadas.

Tal raciocínio dificulta, ou até torna impossível, a análise de comparabilidade, mas o autor sustenta que mesmo sem ela é possível se atingir o ALP com base no conceito de criação de valor e princípios econômicos, o que se verifica no método profit split, que leva em consideração a contribuição dada por cada entidade associada participante na criação de valor e na subsequente divisão dos lucros. Para realizar essa análise de contribuição, é necessário um profundo conhecimento do negócio e do seu modelo, a criação do valor e a captura do valor, levando-se em consideração também aspectos tecnológicos, big data, mineração etc., transformando esses dados em informações sobre as quais incidirão as regras de preços de transferência para que se possa atingir o ALP. Assim, com o conceito de criação do valor, é possível se repensar o ALP incluindo, inclusive, a participação do usuário como cocriador de intangíveis que agregam valor e lucro para as empresas. Nas palavras de Griel:

“Seria necessário repensar a convenção internacional para assumir que os usuários são cocriadores de valor, uma vez que o objetivo original do ALP é tributar os lucros no país onde os recursos estão localizados e direcionados. A pedra angular para repensar foi lançada devido ao conceito de criação de valor.”7

Ao final, conclui o autor que o ALP é compatível com a economia do século XXI, mas ele precisa ser repassando para englobar o impacto dos novos meios de criação de valor de uma economia digital.

Assim, dentro desse contexto de se analisar o princípio arm’s length com uma visão voltada para o futuro, o que envolve diversas complexidades, há que se sopesar também aspectos da praticabilidade tributária.

3. Da praticabilidade tributária

3.1. Os contornos da praticabilidade tributária na academia, na doutrina e na jurisprudência

O conceito de praticabilidade pode ser extraído do dicionário como “característica, particularidade daquilo que é praticável; qualidade do que se pode praticar.”8 No Direito, a praticabilidade, ora aceita como princípio, ora como objetivo/função, traz em seu cerne a necessidade de se viabilizar a aplicação da legislação tributária.

Segundo o professor Schoueri, além da arrecadadora e da extrafiscal, existe a categoria simplificadora, que é “uma função das normas tributárias regida pelo princípio da praticabilidade, autorizando o aplicador da lei a adotar medidas globais, generalizantes, com a finalidade de simplificar o sistema tributário”9.

Nesse mesmo sentido, Saad traz que “a praticabilidade surge então com essa necessidade de possibilitar a aplicação da norma tributária em massa o que ocorre a partir da profusão de fatos econômicos cada vez mais dinâmicos e complexos, tendo como marco inicial a formação do estado moderno.” Adiante, arremata:

“Tornar, deste modo, as normas tributárias praticáveis, viabilizando sua aplicação eficiente e econômica em massa, implica simplificá-las, i.e., desprezar diferenças individuais no atingimento das mais diversas e complexas manifestações da capacidade contributiva, com a execução simplificadora da lei que institui o tributo, trazendo um custo de arrecadação proporcional ao produto arrecadado.”10

Dentro dessa necessidade de simplificação, sem se descuidar da observância de outros princípios constitucionais, notadamente o da capacidade contributiva, Saad defende que a praticabilidade precisa de um “caráter principiológico que permita ponderá-la com os demais princípios na resolução de conflitos sob pena de tornar inconstitucional qualquer tentativa de sua utilização”11.

A praticabilidade como princípio também é defendida por juristas de peso. Para Derzi (2021), “a praticabilidade é um princípio jurídico que não encontra formulação em norma escrita, mas se acha difuso no ordenamento”12.

Costa, por sua vez, defende que:

“Trata-se de autêntico princípio, e não simples regra jurídica, porque ostenta os traços característicos daquela espécie normativa: (i) elevado grau de generalidade e abstração, irradiando seus efeitos sobre múltiplas normas; e (ii) contempla valor considerado fundamental para a sociedade, qual seja, a viabilização do atingimento do interesse público objetivado nos atos estatais, no campo tributário. Assim, laborará na orientação dos agentes públicos acerca da interpretação e da aplicação a serem dadas a outras normas jurídicas tributárias.

O princípio da praticabilidade tributária constitui limite objetivo destinado à realização de diversos valores, podendo ser apresentado com a seguinte formulação: as leis tributárias devem ser exequíveis, propiciando o atingimento dos fins de interesse público por elas objetivado – quais sejam, o adequado cumprimento de seus comandos pelos administrados, de maneiras simples e eficiente, e a devida arrecadação dos tributos. Em consequência, os atos estatais de aplicação de tais leis – administrativos e jurisdicionais – ficam jungidos aos ditames da praticabilidade, de modo a não frustrar a finalidade pública estampada na lei.”13

As técnicas de praticabilidade ou simplificação podem se dar de várias maneiras na legislação tributária (SAAD, 2013):

a) indeterminabilidade como técnica legislativa, segundo a qual, propositadamente, o legislador se utiliza de conceitos abertos e indeterminados que possam abarcar diversas realidades sociais;

b) presunções e ficções, como se dá, por exemplo, com os signos de riqueza na hipótese de incidência e capacidade contributiva, considerando-os que os fatos escolhidos representam renda ou capital, ou com a substituição tributária para frente; e

c) padronização, tipificação ou regimes objetivos, pelos quais criam-se padrões predefinidos para facilitar sua aplicação em massa.

3.2. A complexidade e a praticabilidade do novo modelo de preços de transferência fundamentado no arm’s length

Algumas disposições da Lei n. 14.596/2023, corroboradas pela Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil n. 2161/202314, possuem regras que demandam um conhecimento aprofundado em negócio das empresas, economia, análise de riscos envolvidos, os quais irão exigir da autoridade fiscal e dos contribuintes um trabalho complexo de verificação e convencimento. Citam-se, como exemplos, os arts. 7º e 8º, que tratam do delineamento da transação controlada.

Pela nova legislação, o delineamento da transação controlada será efetuado com fundamento na análise dos fatos e das circunstâncias da transação e das evidências da conduta efetiva das partes, com vistas a identificar as relações comerciais e financeiras entre as partes relacionadas e as características economicamente relevantes associadas a essas relações, considerando os termos contratuais da transação, as funções desempenhadas pelas partes, as características específicas dos bens, direitos ou serviços, as circunstâncias econômicas das partes e do mercado em que operam, as estratégias de negócios e outras características consideradas economicamente relevantes (art. 7º), o que, por certo, demanda um estudo detalhado, com a necessidade de conhecimento do negócio da empresa e diversas condições econômicas.

Ademais, de acordo com os parágrafos desse mesmo artigo,

“no delineamento da transação controlada, serão consideradas as opções realisticamente disponíveis para cada uma das partes da transação controlada, de modo a avaliar a existência de outras opções que poderiam ter gerado condições mais vantajosas para qualquer uma das partes e que teriam sido adotadas caso a transação tivesse sido realizada entre partes não relacionadas, inclusive a não realização da transação.”

O art. 8º, por sua vez, dispõe que

“quando se concluir que partes não relacionadas, agindo em circunstâncias comparáveis e comportando-se de maneira comercialmente racional, consideradas as opções realisticamente disponíveis para cada uma das partes, não teriam realizado a transação controlada conforme havia sido delineada, tendo em vista a operação em sua totalidade, a transação ou a série de transações controladas poderá ser desconsiderada ou substituída por uma transação alternativa, com o objetivo de determinar os termos e as condições que seriam estabelecidos por partes não relacionadas em circunstâncias comparáveis e agindo de maneira comercialmente racional.”

Mas o que seriam as condições realisticamente disponíveis para cada uma das partes e um agir comercialmente racional? Por certo, as condições de mercado sofrem influxos de diversos fatores, que podem levar a uma aplicação subjetiva passível de questionamentos jurídicos.

Além desses dispositivos, há diversos outros com cunho de subjetividade e complexidade, como operações financeiras (art. 27), intangíveis (art. 19), reestruturação de negócios (art. 26) etc., que podem ter o mérito de dar um tratamento mais justo na alocação da base tributável e atender mais ao princípio da capacidade contributiva, mas certamente irão exigir dos atores dessa relação tributária um trabalho detalhado e complexo; e partindo-se do ponto, como veremos adiante, que a relação tributária no Brasil é mais antagônica que colaborativa, as referidas normas exigirão uma revisão de postura desses atores para evitar uma litigiosidade infindável.

Assim, os conceitos abertos podem tanto refletir aspectos de praticabilidade, tornando viável o exame caso a caso das transações envolvendo preços de transferência, como também, a depender do comportamento dos atores envolvidos, grandes discussões. Segue abaixo um quadro de como se deve dar a análise de comparabilidade das transações, extraído do curso de Preços de Transferência, ministrado pela Associação Brasileira de Direito Financeiro, no período de 17 de abril a 19 de junho de 2023, do qual participei:

graficoJersilene.jpg

Fonte: ABDF. Curso Preços de Transferência. Material de apoio.

Observa-se do quadro acima que as várias etapas que precedem a determinação do preço arm’s length se revestem de um profundo conhecimento do negócio da empresa, bem como de uma busca por comparáveis, que, no caso do Brasil, dada a novidade da aplicação do novo modelo, se mostrará mais difícil, o que pode levar a ajustes no preço com uma certa margem de subjetividade, a depender da interpretação dada, tanto pelo contribuinte quanto pela administração tributária, aos fatores peculiares existentes no Brasil que possam afetar os preços estabelecidos.

Ademais, por certo, o novo regime terá que mobilizar um número bem maior de auditores com conhecimentos transversais e, em que pese a notória capacidade desses profissionais, uma análise detalhada de cada uma das empresas, quanto às operações que envolvam preços de transferência, demanda tempo e dinheiro.

3.3. O problema da acentuada litigiosidade que caracteriza o contencioso tributário no Brasil e as técnicas simplificadoras trazidas pela Lei n. 14.596/2023

A acentuada litigiosidade no Brasil pode ser constatada pelo Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, por meio do qual foi produzida uma ampla pesquisa pelo Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Instituto Insper, visando identificar a interação entre o contencioso judicial e o administrativo, investigar se a formatação do sistema processual civil aplicado ao direito tributário contribui para a morosidade na apreciação de processos tributários pelo Poder Judiciário, identificar como o sistema de precedentes e os controles concentrado e difuso de constitucionalidade podem afetar a celeridade e a razoável duração do processo em julgamentos de matéria tributária assim como a modificação ou o aperfeiçoamento do sistema tributário e instrumentos de julgamento e identificar as possíveis causas e os incentivos ao litígio tributário judicial relacionados à complexidade do sistema tributário brasileiro15.

O referido estudo apresenta diversas tabelas que retratam o número expressivo de processos judiciais envolvendo o contencioso tributário, bem como algumas conclusões, da quais se destaca a Hipótese 8 – Complexidade da legislação tributária, na qual procurou-se verificar se há relação de causalidade entre os elevados estoques processuais e a complexidade da legislação tributária. Todavia, o estudo não conseguiu confirmar ou infirmar a hipótese, o que dependeria de novas pesquisas acadêmicas, “especialmente para que se defina uma variável cientificamente rigorosa para classificar os diferentes tributos de acordo com seu grau de complexidade”, mas ressaltou:

“Em termos percentuais, os cinco tributos ou temas tributários federais que mais demandaram consultas fiscais – um índice que expressa a dúvida dos contribuintes na interpretação da legislação –, desconsiderando-se os números de consultas reputadas ineficazes, foram: Cofins (12,18%), IRPJ e CSLL (9,25%), contribuições previdenciárias (8,68%), IRPF (4,36%) e Simples Nacional (2,94%).”16

O que se tem de concreto é o elevado número de processos, o que sugere a adoção de diversas recomendações no âmbito dos três Poderes, conforme apontou o estudo (p. 299/302).

Em que pese essa característica de acentuada litigiosidade que caracteriza o direito tributário no Brasil, o fato é que a Lei n. 14.596/2023 inovou ao trazer um processo especial de consulta (art. 38) que guarda certa semelhança com APA (Advance Pricing Arrangements)17, pelo qual os contribuintes poderão submeter suas dúvidas previamente à Receita Federal.

Ademais, o alinhamento do Brasil ao padrão internacional e ao arm’s length facilita o Mutual Agreement Procedure (MAP), que é uma disposição prevista em tratados internacionais para evitar a dupla tributação, assim como inconsistências de interpretação, sendo atualmente regulamentado pela Instrução Normativa RFB n. 1846, de 28 de novembro de 2018.

De outra banda, ainda que tenha o princípio arm’s length como diretiva central do novo modelo de preços de transferência, a Lei n. 14.596/2023 trouxe algumas disposições, a depender de regulamentação futura, visando a simplificar as regras em relação às hipóteses por ela discriminadas de maneira não exaustiva, eis o que dispõe o seu art. 37:

“Art. 37. A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil poderá estabelecer regramentos específicos para disciplinar a aplicação do princípio previsto no art. 2º desta Lei a determinadas situações, especialmente para:

I – simplificar a aplicação das etapas da análise de comparabilidade prevista no art. 9º, inclusive para dispensar ou simplificar a apresentação da documentação de que trata o art. 34 desta Lei;

II – fornecer orientação adicional em relação a transações específicas, incluídos transações com intangíveis, contratos de compartilhamento de custos, reestruturação de negócios, acordos de gestão centralizada de tesouraria e outras transações financeiras; e

III – prever o tratamento para situações em que as informações disponíveis a respeito da transação controlada, da parte relacionada ou de comparáveis sejam limitadas, de modo a assegurar a aplicação adequada do disposto nesta Lei.”

Tais disposições objetivam tornar mais simples as regras de preços de transferência de forma que se possibilite uma maior rapidez e eficiência na sua aplicação. Saad ressalta que

“O princípio da praticabilidade irá exigir do legislador tributário a elaboração de leis de aplicação e execução seja eficazes e eficientes, ou seja, as normas tributárias deverão permitir: a arrecadação, fiscalização e controle dos tributos, de maneira a evitar tanto a investigação exaustiva de casos isolados, com fulcro na redução de custos, como a dispensa de se obter provas difíceis ou mesmo impossíveis da ocorrência do fato gerador em cada caso individualmente considerado.”18

De certa forma, as disposições de simplificação trazidas pela Lei n. 14.596/2023 parecem ter esse desiderato, em que pese exista um risco de flexibilização do princípio arm’s length em sua aplicação, eis que as regras de cunho mais objetivo e com margens fixas podem deixar de representar os reais contornos da transação efetuada, afastando-se de um efetivo arm’s length.

3.4. A experiência internacional quanto à litigiosidade na aplicação do princípio arm’s length

Visando compreender melhor os problemas de litigiosidade que podem advir com a aplicação do princípio arm’s length, o presente trabalho traz um levantamento de litigiosidade de alguns países quanto à aderência de sua legislação ao padrão OCDE, e grau de litigiosidade. Os dados foram obtidos no Guia Prático Global do Chambers and Partners sobre Preços de Transferência, que contempla a análise de 22 países, dos quais selecionamos oito, por figurarem entre as 15 economias mais representativas no mundo. Assim, faremos o comparativo internacional entre os Estados Unidos, o Reino Unido, o Canadá, o Brasil, a Itália, a Índia, a Coreia do Sul e o México.19

Primeiro, sob o aspecto de aderência com as Diretrizes de Preços de Transferência e ao Arm’s Length Principle – ALP, temos o seguinte cenário:

País

Alinhamento à OCDE e ao ALP

Brasil

Alinhamento a partir da Lei n. 14.596/2023, mas com uma definição mais ampla de partes relacionadas.

Canadá

Amplamente alinhado.

ALP codificado em lei na subseção 247 do ITA.

Índia

Alinhamento parcial com as regras da OCDE, incluindo ampla estrutura de documentação e análise de comparabilidade. Previsão nos regulamentos do ALP.

Itália

Alinhamento às regras e ao ALP.

México

Alinhamento parcial, com algumas divergências, como hierarquia para aplicação de métodos. Previsão do ALP.

Coreia do Sul

Como país membro da OCDE, possui alinhamento com suas diretrizes e previsão do ALP.

Reino Unido

Alinhamento às regras e ao ALP.

Estados Unidos

Alinhamento, com algumas peculiaridades, como uma abordagem mais ampla para evitar e resolver litígios e aspectos de reestruturação empresariais. Quanto ao ALP, também há certas peculiaridades como nos acordos de partilha de custos, regidos pela Seção 1.482-7, que observam o regulamento, e não necessariamente o ALP.

Fonte: criação própria com base no Guia Prático Global do Chambers and Partners sobre Preços de Transferência (https://practiceguides.chambers.com/practice-guides/transfer-pricing-2023).

Do comparativo acima, observa-se que, ressalvadas algumas peculiaridades, todos os países citados observam o padrão OCDE de preços de transferência e o ALP. Agora, resta saber quais implicações essa observância gera quanto ao aspecto de litigiosidade administrativa e judicial.

Sob o primeiro aspecto, analisaremos os países quanto à previsão de Acordos Antecipados de Preços (os denominados Advanced Pricing Agreement – APAs), safe harbours, que são disposições mais simples aplicáveis a determinada categoria de contribuintes ou transações, e processo administrativo. Feita essa análise, passaremos para um comparativo acerca do processo judicial, da transparência e da confiabilidade.

País

Previsão APA

Safe harbours

Processo administrativo

Brasil

Existe previsão de APA na nova na Lei n. 14.596/2023 a depender de regulamentação futura.

Há possibilidade de instituição futura, conforme autoriza a Lei n. 14.596/2023.

Direito de contestar administrativamente e possibilidade de autorregular a sua situação, sem que lhe seja aplicada multa, de acordo com o que prevê a Lei n. 14.596/2023.

Canadá

Tem programa APA há bastante tempo, sendo um acordo voluntário entre fisco e contribuinte, inclusive para pequenas empresas. Pode ser unilateral ou multilateral (MAP). Dura cerca de três a cinco anos

Não emprega, nem endossa safe harbours. Embora haja certas garantias de empréstimo fornecidas pela matriz que tenham aspectos de safe harbours.

Processo de auditoria demorado e invasivo, gerando uma carta proposta que é submetida ao contribuinte, que terá 30 dias para responder. Cabe recurso administrativo e, sendo o contribuinte uma empresa grande, precisa pagar metade do imposto devido. A grande maioria das disputas se resolvem no processo administrativo.

Índia

Tem programa APA unilateral, bilateral ou multilateral. Dura até nove anos.

Existem regras de safe harbours para algumas transações.

O contribuinte pode contestar os ajustes de preços de transferência recorrendo ao Painel de Resolução de Disputas ou ao Comissário do Imposto de Renda, cabendo recurso ainda a

o Tribunal de Apelação do Imposto de Renda.

Itália

APA com possibilidade de definição prévia dos métodos e critérios a serem utilizados nos preços de transferência. Vincula as partes durante cinco anos. Taxa de 10 mil a 50 mil euros.

Previsão de safe harbours para serviços interempresas de baixo valor.

Não existe processo de controvérsia específico, seguindo as transações com preços de transferência as mesmas regras ordinárias do país, com possibilidade de recurso.

México

Permite APA, com oito meses para resposta. Taxa de 13.800 dólares. Válido por até três anos fiscais.

Previsão de safe harbours apenas para maquiladoras mexicanas (montagem).

Uma vez notificado de uma instrução de observação, o contribuinte tem 20 dias para solicitar um procedimento de acordo conclusivo. Há possibilidade de recurso administrativo perante o departamento jurídico

Coreia do Sul

Lançou seu programa de APA em 1995 e quase mil casos já foram analisados. Possui cobertura de cinco anos

Utiliza safe harbours para transações intragrupo de baixo valor agregado e operações com empréstimo.

Existe processo administrativo detalhado para garantir que os contribuintes sejam tratados de forma justa e consistente, com possibilidade de recurso para um dos três tribunais administrativos.

Reino Unido

Celebra APAs que podem abranger um período de até cinco anos.

Isenção da legislação sobre preços de transferência para pequenas e médias empresas, mas não existem safe harbours específicos.

Processo administrativo com possibilidade de recursos.

EUA

Tem um programa de APA robusto e bem desenvolvido, remontando ao início dos anos 1990. Com taxas de 113.500 dólares para APAs novos.

Possibilidade de utilização de safe harbours para situações específicas, notadamente custo de serviços.

Auditoria e recursos administrativos.

Fonte: criação própria com base no Guia Prático Global do Chambers and Partners sobre Preços de Transferência (https://practiceguides.chambers.com/practice-guides/transfer-pricing-2023).

Da tabela acima, constata-se que Advanced Pricing Agreement – APAs são largamente utilizados pelos países, havendo controvérsias quanto à utilização de safe harbours, os quais são mais aceitos para transações com baixo valor agregado. Verifica-se também que todos os países preveem processo administrativo com ampla defesa e recursos.

Traçada essa visão geral, sob o aspecto administrativo, seguiremos com a comparação dos países sob o aspecto judicial, trazendo suas principais características, as decisões judiciais mais relevantes e os aspectos de transparência e confidencialidade.

País

Processo judicial

Decisões mais relevantes

Transparência e confidencialidade

Brasil

Hoje bastante limitado, considerando a legislação com margens fixas. Pela nova Lei n. 14.596/2023, há possibilidade de aumento da litigiosidade.

RE n. 511.736/SP, que discutiu as regras de preços de transferência aplicáveis ao método de revenda menos o lucro até a promulgação da Lei n. 12.715/2012.

Com as regras atuais, não há informações sobre APAs e o uso dos chamados “Comparáveis secretos”.

Canadá

Limitado em razão de a maioria das disputas se resolver no âmbito administrativo.

General Electric Capital Canada Inc v R, 2010 FCA 344 – “apoio implícito” é um fator que uma parte independente pode considerar relevante no preço de uma taxa de garantia entre uma subsidiária residente no Canadá e sua controladora nos EUA.

GlaxoSmithKline Inc v R, 2012 SCC 52 (Suprema Corte do Canadá): sustentando que os tribunais devem considerar as “características economicamente relevantes” de empresas em condições de plena concorrência e não comerciais ao aplicar o princípio da plena concorrência.

Cameco v R, 2020 FCA 112 (Tribunal Federal de Apelações): sustentando que uma transação só pode estar sujeita a recaracterização se nenhuma parte independente tivesse celebrado essa transação ou série de transações.

Publica relatórios anuais a respeito das candidaturas ao programa APA de forma agregada.

Utiliza comparáveis secretos como método do último recurso.

Índia

Os regulamentos de preços de transferência foram introduzidos em 2001 e, desde então, surgiram muitos litígios.

Diversas decisões foram proferidas ao longo dos anos.

São publicados os APAs celebrados, mas não seu resultado final. É permitido o uso de “comparáveis secretos”. Os tribunais têm entendido que, se tais informações forem utilizadas, precisam ser compartilhadas com os outros contribuintes.

Itália

As questões são resolvidas majoritariamente fora dos tribunais.

Questão relevante sobre o ônus da prova, que, de acordo com o Supremo Tribunal Federal recai principalmente sobre o contribuinte, que tem que demonstrar que as condições aplicadas nas transações controladas observaram o ALP. Já o fisco precisa demonstrar as razões pelas quais o raciocínio do contribuinte não é válido.

Publica somente estatísticas e não as informações sobre os APAs realizados. Os comparáveis não são utilizados, sem divulgação aos contribuintes.

México

Poucos precedentes judiciais

Em agosto de 2013, o Tribunal Federal de Justiça Fiscal e Administrativa emitiu uma decisão isolada que estabeleceu que, de acordo com as Diretrizes sobre Preços de Transferência da OCDE, as autoridades fiscais podem ignorar a autocaracterização de uma transação realizada entre partes relacionadas e recaracterizá-la conforme sua substância econômica.

Não publica informações, nem estatísticas, embora a OCDE o faça em relação aos seus países membros. Podem ser utilizados comparáveis secretos específicos de cada caso.

Coreia do Sul

Poucos precedentes judiciais, sendo a maioria dos casos resolvidos no âmbito administrativo.

2019 Guhap 22561. Conceito de racionalidade comercial. O foco principal da disputa girou em torno de como as práticas prevalecentes no tratamento de empréstimos e juros na indústria de desenvolvimento de recursos naturais, e nas políticas públicas para fomentar essa indústria, afetarão a determinação do

Publica relatórios anuais dos APAs, detalhando os procedimentos. Permite a utilização de comparáveis secretos, apenas quando os documentos são incompletos.

conceito de racionalidade comercial.

Reino Unido

As questões são resolvidas majoritariamente no âmbito administrativo.

DSG Retail Ltd e outros v HMRC. Sobre a metodologia apropriada para um ajuste de preços de transferência. A decisão forneceu informações sobre o nível de comparabilidade necessário para apoiar a utilização de preços comparáveis não controlados.

BlackRock Holdco 5, LLC contra HMRC. Discute se juros sobre a dívida intragrupo devem ser dedutíveis de impostos no Reino Unido. O julgado concluiu que os empréstimos diferiam do padrão arm’s length, na medida em que não teriam sido celebrados entre partes independentes.

Não publica os APAs, nem utiliza comparáveis secretos.

EUA

Contribuintes e governo podem recorrer ao Judiciário, existindo diversos precedentes relevantes.

3M Co & Subs v Comissário (2023 (Tribunal Tributário dos EUA) – ainda ativo): o regulamento do Tesouro que trata das restrições ao pagamento estrangeiro é válido.

The Coca-Cola Co v Commissioner (2020 (Tribunal Tributário dos EUA) – ainda ativo): permitiu que o contribuinte compensasse com suas obrigações de royalties os valores pagos historicamente como dividendos em cumprimento de um método de precificação previamente acordado entre o contribuinte e o IRS.

Amazon.com, Inc v Commissioner (2017 (Tribunal Tributário dos EUA); 2019 (9º Circuito)): o Tribunal Tributário decidiu que a aplicação do método de renda pelo IRS para definir o preço de uma aquisição de compartilhamento de custos era arbitrária, caprichosa ou irracional.

Publica relatório anual do programa APA.

O IRS nas auditorias fornece ao contribuinte relatório escrito que divulga quaisquer dados usados como comparáveis, nos quais foi baseado o ajustamento.

Fonte: criação própria com base no Guia Prático Global do Chambers and Partners sobre Preços de Transferência (https://practiceguides.chambers.com/practice-guides/transfer-pricing-2023).

Sob o aspecto de litigiosidade judicial, observa-se do comparativo acima efetuado que a maioria dos países resolve suas divergências no âmbito administrativo, à exceção da Índia. No aspecto de transparência e confidencialidade, a maioria apresenta aos contribuintes os dados comparáveis secretos eventualmente utilizados, possibilitando-lhes a ampla defesa.

Pode-se concluir do estudo comparado que o Brasil está se adequando à legislação internacional que majoritariamente segue o padrão OCDE de preços de transferência e a observância do princípio arm’s length.

Sob a possibilidade de incremento da litigiosidade, observa-se que os países disciplinam de forma detalhada seus processos administrativos, o que minimiza a possibilidade de incremento da litigiosidade judicial.

Ademais, essa solução também atende a um enfoque prático, notadamente pelo fato de as regras de preços de transferência exigirem a compreensão de aspectos técnicos que perpassam, para além do jurídico, o conhecimento de panoramas econômicos, contábeis e negociais próprios de cada tipo de empresa.

4. Conciliação de princípios e justiça tributária

Conforme pontua Saad, a tributação deixou de ser apenas fonte de receita, “mas revelou-se no Estado Democrático de Direito como um instrumento de realização de justiça, ao perquirir a igualdade material e não apenas formal, com a redistribuição de riquezas”20.

Por outro lado, e como apontado no item 3.3, a excessiva litigiosidade que reina, via de regra do direito tributário, demanda uma necessidade de tornar mais simples as regras. Nas palavras de Costa: “Tornar mais simples os sistemas tributários constitui, mesmo, um dos grandes objetivos da fiscalidade de nossos dias, já que, por razões várias, os ordenamentos fiscais se têm convertido em realidades cada vez mais complexas”21.

Comprometida com o atendimento do princípio arm’s length e da prevalência da substância sobre a forma, previu a Lei n. 14.596/2023 mecanismos de facilitação, ainda dependentes de regulamentação, a fim de tornar as regras de preços de transferência mais simples, seja pela criação de safe harbours, seja pela possibilidade de uma interlocução antecipada com os contribuintes, pelo novo procedimento de consulta.

Percebe-se, assim, que o legislador busca conciliar o princípio arm’s length com o princípio da praticabilidade tributária, de forma a tornar menos litigioso o novo padrão de preços de transferência.

Acreditamos que tal mecanismo irá funcionar à medida que os contribuintes entenderem que tais regras são necessárias e não causam uma situação anti-isonômica e/ou contrária à Constituição, o que levaria a um incremento da litigiosidade anteriormente analisada.

A análise funcional (riscos e funções) proposta pelo novo modelo de preços de transferência visando à consecução dos arm’s length precisará de uma boa dose de praticabilidade para que a verificação das transações não demande um tempo excessivo que comprometa a eficiência do novo modelo, sendo fundamental que as empresas forneçam os documentos necessários e que a autoridade tributária esteja preparada para analisá-los com celeridade.

Para tanto, e levando-se em consideração a experiência de outros países que aplicam as regras de preços de transferência e o princípio arm’s length há bastante tempo, a construção de uma boa relação fisco/contribuinte, baseada na confiança e na transparência, com um processo administrativo bem desenhado, para evitar que a discussão precise chegar ao Judiciário, parece ser um bom caminho a fim de que o princípio arm’s length seja aplicado sem prejuízo da praticabilidade tributária.

5. Conclusão

O presente artigo buscou analisar questões relacionadas ao princípio arm’s length em face do princípio da praticabilidade tributária, abordando conceitos jurídicos que permeiam os referidos princípios, bem como as regras previstas na Lei n. 14.596/2023, que buscam facilitar a relação fisco/contribuinte, no que tange ao novo modelo de preços de transferência por ela estabelecido.

Sem trazer conclusões taxativas, mesmo porque dependerão de diversos fatores, durante a implementação do novo regime de preços de transferência, o presente artigo teve por objetivo suscitar reflexões quanto à necessidade de uma relação mais colaborativa entre fisco e contribuinte para que o novo modelo de preços de transferência efetivamente alcance o arm’s length, sem uma litigiosidade excessiva, atendendo também, assim, ao princípio da praticabilidade.

Conforme visto, há disposições que buscam essa conformidade, calcadas em informações fidedignas, boa-fé, além da possibilidade de um diálogo mais próximo, com o novo procedimento de consulta, que dependerá de uma mudança comportamental, tanto das empresas envolvidas quanto da Receita Federal.

De acordo com experiências internacionais comparadas no presente artigo, verifica-se que há uma tendência de resolver as questões envolvendo preços de transferência no âmbito administrativo, possibilitando que as partes dialoguem amplamente sob os aspectos técnicos e econômicos envolvidos.

Portanto, com o novo modelo, o diálogo, a transparência e a boa-fé serão vitais para seu bom funcionamento. Almeja-se que a nova legislação seja um divisor de águas dessa relação cercada hoje de muita litigiosidade e pouca praticabilidade.

6. Bibliografia

ABDF. Associação Brasileira de Direito Financeiro. Curso de Preços de Transferência, realizado no período de 17 de abril a 19 de junho de 2023, com carga horária de 30 horas. Disponível em: https://cursos.abdf.com.br/96604-precos-de-transferencia.

BRASIL. Lei n. 14.596, de 14 de junho de 2023. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14596.htm. Acesso em: 7 jul. 2023.

BRAUNER, Yariv. Value in the eye of the beholder: the valuation of intangibles for transfer pricing purposes. 28 Virginia Tax Rev. 79 (forthcoming 2008). Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1105893. Acesso em: 11 jul. 2023.

CHAMBERS AND PARTNERS. Transfer Pricing 2023. Disponível em: https://practiceguides.chambers.com/practice-guides/transfer-pricing-2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa. Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa. Brasília: CNJ, 2022.

COSTA, Regina Helena. Praticabilidade e justiça tributária: exequibilidade de lei tributária e direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007.

CUNHA, Carlos Renato. Praticabilidade tributária: eficiência, segurança jurídica e igualdade sob uma perspectiva semiótica. Tese apresentada ao Curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Direito do Estado. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/64181. Acesso em: 7 jul. 2023.

DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021.

GREGÓRIO, Ricardo Marozzi. Arm’s length e praticabilidade nos preços de transferência [doi:10.11606/T.2.2010.tde-26092011-133745]. São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2010. Tese de Doutorado em Direito Econômico e Financeiro.

GREIL, Stefan. The arm’s length principle in the 21st century – alive and kicking? (September 5, 2019). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3379092 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3379092. Acesso em: 11 jul. 2023.

MESSIAS, A. Luiz Batista (2021). Preços de transferência no planejamento tributário internacional: perspectiva sob a ótica da teoria das provas. Revista Direito Tributário Internacional Atual vol. 9. Disponível em: https://doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n9-1.

OECD (2022). OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2022. Paris: OECD Publishing. Disponível em: https://doi.org/10.1787/0e655865-en.

RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Instrução Normativa RFB n. 1846, de 28 de novembro de 2018. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?naoPublicado=&idAto=96895. Acesso em: 10 jul. 2023.

RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Receita Federal abre consulta pública sobre Instrução Normativa RFB que estabelece as regras de Preços de Transferência. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2023/julho/receita-federal-abre-consulta-publica-sobre-instrucao-normativa-rfb-que-estabelece-as-regras-de-precos-de-transferencia. Acesso em: 7 jul. 2023.

SAAD, Sergio Sydionir. Simplificação e praticabilidade no direito tributário. Universidade de São Paulo, 2013. Dissertação de Mestrado. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2133/tde-09122014-131759/publico/Sergio_Sydionir_Saad_Simplificacao_praticabilidade.pdf.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

1 OECD (2022). OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2022. Paris: OECD Publishing.

2 MESSIAS, Adriano Luiz Batista. Preços de transferência no planejamento tributário internacional – perspectiva sob a ótica da teoria das provas. Revista Direito Tributário Internacional Atual vol. 9, ano 5. São Paulo: IBDT, 1º semestre 2021, p. 36-70.

3 GREGÓRIO, Ricardo Marozzi. Arm’s length e praticabilidade nos preços de transferência [doi:10.11606/T.2.2010.tde-26092011-133745]. São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2010. Tese de Doutorado em Direito Econômico e Financeiro.

4 BRAUNER, Yariv. Value in the eye of the beholder: the valuation of intangibles for transfer pricing purposes. 28 Virginia Tax Rev. 79 (forthcoming 2008). Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1105893. Acesso em: 11 jul. 2023.

5 GREIL, Stefan. The arm’s length principle in the 21st century – alive and kicking? (September 5, 2019). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3379092 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3379092.

6 Tradução livre do trecho: “The increased automation of business activities makes it harder to justify the allocation of profits based on physical allocation factors.” (GREIL, Stefan. The arm’s length principle in the 21st century – alive and kicking? (September 5, 2019). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3379092 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3379092, p. 20)

7 Tradução livre do trecho: “One would have to re-think the international convention in order to assume that users are value co-creators as the original purpose of the ALP is to tax profits in the country where resources are located and directed. The cornerstone for re-thinking has been laid due to the value creation concept.” (GREIL, Stefan. The arm’s length principle in the 21st century – alive and kicking? (September 5, 2019). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3379092 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3379092, p. 36)

8 Dicio, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2023. Disponível em: https://www.dicio.com.br/praticabilidade/.

9 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 32.

10 SAAD, Sergio Sydionir. Simplificação e praticabilidade no direito tributário. Universidade de São Paulo, 2013. Dissertação de Mestrado, p. 33.

11 SAAD, Sergio Sydionir. Simplificação e praticabilidade no direito tributário. Universidade de São Paulo, 2013. Dissertação de Mestrado, p. 33.

12 DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 147.

13 COSTA, Regina Helena. Praticabilidade e justiça tributária: exequibilidade de lei tributária e direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 389/390.

14 Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=133782.

15 Conselho Nacional de Justiça. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa. Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa. Brasília: CNJ, 2022, p. 19.

16 Conselho Nacional de Justiça. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa. Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa. Brasília: CNJ, 2022, p. 289.

17 OECD (2022). OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2022. Paris: OECD Publishing. Disponível em: https://doi.org/10.1787/0e655865-en. Advance pricing arrangements, p. 213/223.

18 SAAD, Sergio Sydionir. Simplificação e praticabilidade no direito tributário. Universidade de São Paulo, 2013. Dissertação de Mestrado. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2133/tde-09122014-131759/publico/Sergio_Sydionir_Saad_Simplificacao_praticabilidade.pdf, p. 46.

19 Chambers and Partners. Transfer Pricing 2023. Disponível em: https://practiceguides.chambers.com/practice-guides/transfer-pricing-2023.

20 SAAD, Sergio Sydionir. Simplificação e praticabilidade no direito tributário. Universidade de São Paulo, 2013. Dissertação de Mestrado, p. 27.

21 COSTA, Regina Helena. Praticabilidade e justiça tributária: exequibilidade de lei tributária e direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 19.