Um Novo Standard de Abuso no Direito Fiscal Europeu?
A New Standard of Abuse in European Tax Law?
Michell Przepiorka
Mestrando em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT. Advogado. E-mail: przepiorka@tpa.adv.br.
Resumo
O presente artigo busca analisar a compatibilidade da norma geral antielisiva introduzida pela Diretiva que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia. Para tanto, será apresentado um breve resumo do standard que hoje é aplicado nos casos envolvendo abuso para julgamento no Tribunal de Justiça. A segunda seção será dedicada à apresentação da norma geral antiabuso introduzida pela ATAD, e as principais críticas de caráter geral. Nas seções seguintes cotejaremos as expressões utilizadas pela GAAR com a casuística tradicional do Tribunal.
Palavras-chave: abuso, União Europeia, ATAD.
Abstract
The present paper aims to analyze if the general anti-abuse rule set up by the Directive (EU) 2016/1164 laying down rules against tax avoidance practices is compatible with the case law of the European Court of Justice. Thus, we will present a brief resume of the actual standard that the European Court of Justice adopts in cases involving abuse. In the second section we will present the GAAR stablished in the ATAD and the main critics set towards it. Finally, in the following section, we will compare the wording of the GAAR with the ECJ Case Law.
Keywords: abuse, European Union, ATAD.
Introdução
O combate ao abuso não é um fenômeno que se iniciou na União Europeia após o lançamento do Projeto BEPS da OCDE, nem tampouco com a “Recomendação sobre Planejamentos Fiscais Agressivos de 06 de dezembro de 2012” da Comissão Europeia. O Tribunal de Justiça da União Europeia – TJUE já lida com casos envolvendo abuso em todas as áreas do direito há mais de 30 (trinta) anos, tendo utilizado esta noção pela primeira vez, segundo De Broe e Beckers (2017, p. 133), em 1974, quando do julgamento do caso Van Binsbergen (C-33/74)1, ainda que, naquela oportunidade, não tenha utilizado a expressão “abuso” (J. F. NOGUEIRA, 2009, p. 243).
Segundo Nogueira, seria possível concluir da análise do Tratado da Comunidade Europeia que a ideia de abuso se encontrava presente para evitar certas condutas atentatórias ao espírito de suas disposições, mas que “a dispersão e falta de coordenação das referidas disposições obstam a que se possa inferir da vigência, ab initio, de uma expressa proibição geral do abuso ou de práticas abusivas” (2009, p. 242).
Desta forma, nesse período, coube ao Tribunal de Justiça da União Europeia cunhar e refinar um conceito de abuso, aplicável de forma vinculante aos Estados-membros. Nas lições de Piantavigna, o surgimento de um conceito de abuso foi possível devido à incompletude do sistema comunitário, que permitiu a recepção de valores comuns aos Estados-membros, que acabaram sendo convertidos em direito vinculante a partir da atuação do Tribunal (2011, p. 134)2.
A recorrência de casos julgados na linha do decidido em Van Binsbergen levou alguns autores a defenderem a existência de um princípio geral3 de proibição do abuso no Direito Comunitário, em que pese a ausência de uma norma explícita em relação à matéria (PIANTAVIGNA, 2011, p. 134). Este também foi o posicionamento sustentado pelo Advogado Geral Maduro quando proferiu sua opinião no caso Halifax (C-255/02)4.
Apesar do reconhecimento de um princípio geral de proibição de abuso no Direito Comunitário, somente em Emsland-Stärke (Case C-110/99)5 é que o Tribunal começou a delimitar adequadamente os critérios que os Estados-membros deveriam utilizar quando avaliando comportamentos supostamente abusivos (DE BROE & BECKERS, 2017, p. 133).
O teste estabelecido neste precedente acabou sendo utilizado extensivamente pelo Tribunal, tendo sido referenciado inclusive nos casos Halifax e Cadbury Schwepps (C-196/04)6. (J. F. NOGUEIRA, 2009, p. 247 e ss), principais casos em matéria de abuso na seara do Direito Fiscal. O teste basicamente compreende um elemento subjetivo e um elemento objetivo.
Em Cadbury Schwepps esses elementos ficam claros no decorrer do acórdão. Lá define-se o elemento subjetivo como “a intenção de obter uma vantagem fiscal, que resulte de elementos objetivos, que pese embora o respeito formal dos requisitos previstos pelo direito comunitário”7.
No § 55º do Acórdão, define-se que o critério objetivo para determinar a validade de uma norma antiabuso seria verificar sua capacidade em “impedir comportamentos que consistam em criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade econômica, com o objetivo de eludir o imposto normalmente devido sobre os lucros gerados por atividades realizadas no território nacional”. Segundo explica Nogueira, este teste coteja a situação fática concreta ao objetivo perseguido pela regulamentação que se lhe pretende aplicar (2009, p. 249).
Nessa toada, pode-se afirmar que há um standard estabelecido no Tribunal de Justiça da União Europeia de combate ao abuso. Como resume Piantavigna:
“With regard to direct taxes, Cadbury Schweppes qualified the abuse-of-law practices as ‘wholly artificial arrangements’ aimed at circumventing domestic legislation. In this area, which is not tax-harmonized, the subjective element of abuse arises ‘in the intention to obtain a tax advantage’ and in ‘practices which have no purpose other than to escape the tax normally due on the profits generated by activities carried on in national territory’. National anti-abuse measures ‘must be excluded where, despite the existence of tax motives, the incorporation of a CFC reflects economic reality’. The finding of an actual establishment carrying on genuine economic activities in the host Member State ‘must be based on objective factors which are ascertainable by third parties with regard, in particular, to the extent to which the CFC physically exists in terms of premises, staff and equipment’. Accordingly, it is perfectly legitimate to take advantage of a more favourable tax regime in another Member State.” (PIANTAVIGNA, 2018, cap. 3)
As questões que se colocam então são as seguintes: o Tribunal de Justiça da União Europeia poderia controlar o conteúdo de cláusula geral antiabuso estabelecida pela União Europeia via Diretiva? O standard adotado pela Diretiva Antielisão Fiscal (doravante “ATAD”) está de acordo com o estabelecido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia no combate ao abuso?
Em relação à primeira pergunta, adotaremos como premissa a resposta positiva, uma vez que em Euro Park Service (C-14/16)8, o Tribunal julgou dispositivo da legislação francesa que transpunha uma cláusula prevista na Diretiva 90/434/CEE do Conselho, de 23 de julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, entradas de ativos e permutas de ações entre sociedades de Estados-membros diferentes.
Note-se que, apesar de a ATAD, a princípio, ser aplicável tanto a situações inteiramente domésticas quanto transnacionais9, o que a princípio a deixaria em linha com o direito primário10, e a diferenciaria de outras normas gerais antiabusivas (“GAAR”) introduzidas por outras Diretivas europeias, cujo escopo era limitado aos benefícios nelas regulados (MORENO, 2016, p. 143), as regras antielisivas na ATAD possuem um caráter de minimis, de sorte que os Estados-membros poderiam adotar normas mais severas que as previstas na Diretiva, correndo o risco de introduzir obstáculos ao mercado interno que poderiam ser considerados desproporcionais (DOURADO, 2016, 442).
Mas como bem pontua Vanistendael (2016, 11.3.1):
“The ECJ case law has made it clear, however, that the existence of national and agreement-based rules is no blank check for national tax administrations to apply their domestic anti-avoidance rules to cross-border flows of income in the same way as they apply them within their national tax jurisdictions. A uniform application of the directive on cross-border operations in the internal market requires that these national and agreement-based rules do not cross the red lines determined in the anti-avoidance decisions of the ECJ.” (Destaques nossos)
Nessa linha são também as lições de Szudoczky, que sustenta que os princípios gerais de Direito Comunitário são princípios fundamentais localizados ao nível de direito primário com status constitucionais aos quais o direito secundário deve se conformar11 (2014, 5.1.1).
O presente trabalho tem por objetivo responder à questão acima posta, cotejando os dispositivos estabelecidos na cláusula da Diretiva com o padrão estabelecido na jurisprudência do Tribunal, para, ao fim, verificarmos se a norma geral antiabuso prevista na ATAD está dentro do padrão de aceitabilidade até então adotado.
Para tanto, o presente artigo será dividido em quatro seções. Na primeira, apresentaremos a norma geral antiabuso prevista na ATAD (EU-GAAR) de forma geral e o contexto em que foi publicada. Nas seções seguintes, cotejaremos trechos específicos da EU-GAAR com a jurisprudência do Tribunal a fim de verificar se há compatibilidade ou em que medida seu texto deve ser interpretado para que se obtenha uma norma compatível com o direito primário tal qual interpretado pelo Tribunal.
1. A cláusula geral antielisiva europeia
A crise financeira de 2008, que se alastrou pelo mundo todo, direcionou a atenção dos governos e da opinião pública à necessidade de combater os planejamentos fiscais agressivos (PISTONE & SZUDOCZKY, 2016, p. 43). Nessa toada, a Comissão Europeia publicou a “Recomendação sobre Planejamentos Fiscais Agressivos de 06 de dezembro de 2012”, expondo sua vontade de combater planejamentos fiscais agressivos12, oportunidade em que já demonstrava a importância que delegava à norma geral antiabuso.
A divulgação dos planejamentos tributários adotados por empresas multinacionais impulsionou o combate à elisão fiscal em nível mundial, acarretando o lançamento do projeto Base Erosion and Profit Shifting (BEPS), em 2013, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a pedido do G-20 (BRAUNER, 2014, p. 10-12).
Perceba-se que, até o advento do projeto BEPS, não havia previsões de combate aos chamados planejamentos fiscais agressivos nem na legislação doméstica, nem no Direito Europeu (PISTONE & SZUDOCZKY, 2016, p. 46), o que faz sentido, uma vez que, se o Tribunal de Justiça da União Europeia se recusava a tomar qualquer medida quando disparidades implicam dupla tributação (ENGLMAIR, 2016, p. 87), por que tomaria medidas quando as disparidades implicam (dupla) não tributação?
Em que pese nossa opinião, Pistone e Szudoczky sustentam ser razoável o combate a tais planejamentos, uma vez que, por exemplo, “the prohibition of double deductions would generate an unintended double benefit within the internal Market and thus infringe the prohibition of double dips found in the interpretation of the fundamental freedoms by the CJEU in tax matters” (2016, p. 46).
A discussão relativa à pertinência deste combate acaba se esvaziando, até porque, como conclui Bizioli:
“This Recommendation signals an evident change in the order of priorities of the EU corporate tax policy. Until the end of the last century, the main objective of the Commission was ‘to ensure that EU company tax systems cater for the increased cross-border activity and modern organisational structures of companies’, whereas ‘tax fraud’, a particularly sensitive area for Value Added Tax (VAT), played only a subsidiary role. In other words, the goal for European corporate tax policy was to reduce the gaps between the taxation of cross-border and purely internal transactions and, in particular, eliminate (juridical and economic) double taxation within the Single Market. With the publication of the Communication on the promotion of ‘good governance’ in tax matters in 2009, the goals of tax transparency, exchange of information and fair tax competition have gained the same (political) dignity as the elimination of cross-border obstacles.” (2017, p. 167)
Nessa toada, importa que, em resposta ao projeto BEPS, a União Europeia apresentou, em 28 de janeiro de 2016, um pacote antielisão fiscal composto por quatro documentos: (a) uma recomendação relativa à aplicação de medidas contra práticas abusivas em matéria de convenções fiscais; (b) uma revisão da Diretiva relativa à Cooperação Administrativa; (c) uma comunicação sobre uma estratégia externa para uma tributação efetiva; e (d) uma proposta de Diretiva contra as Práticas de Elisão Fiscal13. Para Nogueira:
“Respecto a la nueva directiva anti-tax avoidance, hay un cambio paradigmático en el modo de legislar. Muchas de las normas específicas anti-abuso son ahora reconvertidas en normas dirigidas a situaciones de abuso. O sea, normas de aplicación ciega y automática, que no toman en consideración las circunstancias del caso concreto o permiten al contribuyente demostrar que, a pesar de la verificación de los requisitos de la norma (cuando sea prima facie discriminatoria o restrictiva), su conducta es válida, genuina y eventualmente tiene su base en motivos comerciales válidos.” (2016, p. 290)
Segundo Dourado (2016, p. 440-442), em que pese algumas provisões da ATAD irem além do resultado final alcançado no projeto BEPS, entre elas a EU-GAAR, por sua amplitude e vagueza, o pacote antielisão fiscal é bastante significativo por diversas razões, dentre as quais destacamos a importância em implementar as ações BEPS de forma regionalizada, o que estaria mais em linha com a aproximação holística do projeto. Essa Diretiva teria o objetivo de implementar as medidas propostas pelo projeto BEPS de forma coerente e coordenada, evitando a criação de novas disparidades e lacunas aproveitáveis pelos contribuintes, conforme se verifica em sua exposição de motivos.
Importa deixar marcada aqui a crítica de Bizioli quanto ao alcance da expressão “abuso”, se é que ainda se pode falar em “abuso” nesse caso, utilizada na União Europeia:
“Notwithstanding the different legal nature, structure and effects, the Commission and the EU law-maker use the two expressions as interchangeable or, perhaps better, the notion aggressive tax planning as comprehensive of tax abuse and tax avoidance. This approach was already made clear in the 2012 Commission recommendation on aggressive tax planning and has been reiterated in subsequent tax policy documents and, finally, in the ATAD. In particular, this tax policy and the ATAD plainly underscore the purpose of the EU not only to prevent the abuse of EU law and/or domestic tax law, but to close tax gaps and loopholes produced by the interplay amongst the different national tax jurisdictions. This objective is purported in the name of a fairer and efficient corporate tax system.” (2017, p. 171)
Com estes objetivos em mente, a proposta de Diretiva veiculava seis cláusulas, das quais três baseadas nas conclusões do projeto BEPS, quais sejam, regra de limitação dos juros, legislação relativa às sociedades estrangeiras controladas e medidas relacionadas a assimetrias híbridas, e três regras retiradas da antiga Proposta de Diretiva em Matéria Coletável Comum Consolidada do Imposto sobre as Sociedades, a saber, tributação à saída, cláusula de switch-over e a regra geral antiabuso (DOCCLO, 2017, p. 367).
A ATAD prevê em seu art. 6º uma cláusula geral antiabuso que em muito se aproxima da cláusula proposta pela Comissão, mas com ela não coincide:
Proposta |
Diretiva |
Artigo 7º Regra geral antiabuso
1. As montagens fictícias ou uma série delas realizada com o objetivo essencial de obter uma vantagem fiscal que anule o objeto ou a finalidade das disposições fiscais normalmente aplicáveis não são tomadas em consideração para efeitos do cálculo da carga fiscal das sociedades. Uma montagem pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.
2. Para efeitos do nº 1, considera-se uma montagem ou uma série de montagens como fictícia na medida em que não tenha sido estabelecida por motivos comerciais válidos que reflitam a realidade econômica.
3. Se as montagens ou uma série de montagens não forem tomadas em consideração de acordo com o nº 1, a carga fiscal é calculada com base na substância econômica em conformidade com a legislação nacional. |
Artigo 6º Regra geral antiabuso
1. Para efeitos do cálculo da matéria coletável das sociedades, os Estados-membros devem ignorar uma montagem ou série de montagens que, tendo sido posta em prática com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, não seja genuína tendo em conta todos os fatos e circunstâncias relevantes. Uma montagem pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.
2. Para efeitos do nº 1, considera-se que uma montagem ou série de montagens não é genuína na medida em que não seja posta em prática por razões comerciais válidas que reflitam a realidade econômica.
3. Caso as montagens ou série de montagens não sejam tomadas em consideração nos termos do nº 1, a coleta é calculada nos termos do direito nacional. |
Segundo relata Docclo (2017, p. 377-378):
“The Commission provided reasons for its proposal and stated that the GAAR was designed “‘within the Union’ to tackle ‘arrangements that are not genuine’. Bearing in mind the extended geographic scope of the rule, the phrase ‘within the Union’ obviously refers to the case law of the ECJ. The principle that the GAAR should apply to arrangements that are ‘wholly artificial’ or ‘non-genuine’ only was mentioned in the recitals of the proposal, but it is not so written in article 7 of the ATAD.
[…]
As the measure can hinder the fundamental freedoms, it was noted that it could only apply to wholly artificial situations and the alternative version was withdrawn. However, the Presidency noted that the proposal of 28 January 2016 concerned arrangements whose ‘essential purpose’ was a tax advantage, while the alternative version related to arrangements whose ‘main purpose’ was a tax advantage and that neither of these was limited to wholly artificial arrangements.
The Presidency also considered that, if the version of 28 January 2016 was to be retained, it should be regarded as a de minimis rule and should not prevent the Member States from adopting the alternative version. In addition, the ‘essential purpose’ approach did not preclude a stricter approach, i.e. ‘main purpose or one of the main purposes’.
Ultimately, the version inspired by the Parent-Subsidiary Directive (2011/96) was adopted. In order to keep the same pattern, it has not been provided for that the rule should only apply where the taxpayer intends to avoid taxes.”
Como se percebe, a redação final da cláusula geral antiabuso prevista na ATAD acabou sendo influenciada pela regra inserida na Diretiva n. 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades-mãe e sociedades afiliadas de Estados-membros diferentes (“Diretiva Mães e Filhas”), que, por sua volta, pautou-se na cláusula de Principal Purpose Test (PPT) prevista no Plano de Ação BEPS n. 6 (RIGAUT, 2016, p. 499), não se atendo à finalidade principal, mas agora ampliando seu alcance para cobrir também transações que tenham como uma das finalidades principais obter uma vantagem fiscal.
Essa extensão do alcance da UE-GAAR foi bem percebida pela doutrina ao apontar que esta ultrapassa o escopo objetivo ordinário das GAARs tradicionais, não se limitando a capturar expedientes totalmente artificiais, mas também operações que embora sigam a letra da lei, violem seu espírito. Isto porque a UE-GAAR, tal como prevista na ATAD, não combate o conceito tradicional de abuso, mas um conceito ampliado que cobriria lacunas legais, disparidades e esquemas com finalidade fiscal principal, mas a que frequentemente falte um nível razoável de substância econômica (CARRERO & SEARA, 2016, p. 215-216).
Apesar desse conceito ampliado em relação ao critério subjetivo, ao qual retornaremos na terceira seção, deve-se ter em consideração que GAAR prevista na ATAD tem seu escopo restrito ao imposto sobre sociedades, conforme se depreende da leitura conjunta de seus arts. 1º e 6º. E ainda há dúvidas quanto sua aplicabilidade às hipóteses de retenção na fonte. Como lembram De Broe e Beckers:
“Some Member States requested in the course of the negotiations that Article 6 make explicit reference to withholding taxes, so that such abuses would be caught by the GAAR. This would fill the gap left by the PSD GAAR with regard to third countries since the new Article 1(2) of the PSD only applies between EU Member States. However, as in some Member States, withholding taxes would be covered under corporate taxation but not in others, the delegations had different understandings of the scope of the GAAR and it was thus left up to national legislators to determine whether or not withholding taxes will be covered by the ATAD GAAR.” (2017, p. 141)
Como se percebe, mesmo introduzida via Diretiva, a GAAR ainda deixa margem para muitas dúvidas, até mesmo em relação ao seu escopo, deixando incertezas quanto à pertinência de sua introdução14 e até mesmo leves suspeitas de que a utilização deste instrumento se deu para parametrizar o combate ao abuso em todos os Estados-membros, até mesmo naqueles em que historicamente o combate ao abuso não esteve na agenda política fiscal.
Feitos esses comentários introdutórios, passamos, então à análise dos elementos constitutivos da cláusula geral antiabuso constante na ATAD, a começar pela expressão finalidade principal ou uma das finalidades principais.
2. Finalidade ou finalidades principais
Inicialmente, na jurisprudência mais relevante pertinente à tributação direta, o Tribunal de Justiça da União Europeia adotou como teste subjetivo em casos tratando de abuso que o arranjo ou série de arranjos tenha sido implementado com o objetivo principal de obter uma vantagem fiscal.
Em Cadbury Schwepps, o TJUE introduziu também em relação à fiscalidade direta que “tax motives are legal motives”, ou seja, a utilização de liberdades fundamentais com o objetivo de se obter uma vantagem fiscal não pode ser considerada um índice de abuso (J. F. NOGUEIRA, 2009, p. 271).
Como vimos na primeira seção, o Conselho Europeu decidiu por alterar a redação proposta para a GAAR, adotando a expressão “finalidade principal ou uma das finalidades principais”, invés da expressão finalidade principal proposta pela Comissão.
Segundo Rigaut, a proposta da Comissão baseada em um teste de objetivo principal, ao invés de um teste de objetivos principais, já era esperada pelo Conselho da União Europeia, haja vista que a primeira já havia colocado reservas legais às soluções introduzidas pelo Conselho quando da Reforma da Diretiva Mães e Filhas (2016, p. 500).
Assim a GAAR adotada pela ATAD, ao utilizar a expressão “finalidade principal ou uma das finalidades principais”, potencialmente estendeu o alcance do critério subjetivo a depender de como esta seja interpretada, estabelecendo um limite muito baixo para verificação de comportamentos abusivos de contribuintes (DE BROE & BECKERS, 2017, p. 141), o que estaria em desacordo com a interpretação que o Tribunal de Justiça deu ao Direito Primário.
Comentando provisão semelhante da Diretiva Fusões e Aquisições, Vanistendael afirma que adotar “um dos principais objetivos” significa que mesmo que existam razões ou objetivos válidos para a operação, mas essas sejam igualmente ou menos importante que a razão fiscal, os benefícios da Diretiva poderiam ser negados. Para o autor, tal critério está em claro conflito com o critério adotado em Cadbury Schwepps, haja vista que, na jurisprudência do Tribunal, não há necessidade de uma comparação entre razões fiscais e não fiscais (2016, 11.3.2. Existing EU anti-avoidance provisions in the directives).
Analisando a jurisprudência do Tribunal, Kemmeren conclui, em relação à Diretiva Fusões e Aquisições, que a expressão “um de seus objetivos principais” deve, como um reflexo do princípio geral de proibição ao abuso de direitos, ser interpretada no sentido de que o objetivo principal da transação é obter uma vantagem fiscal (2014, p. 192-193).
Em sentido contrário, Englisch sustenta que não é correto afirmar que cláusula nacional antiabuso que denegue os benefícios da Diretiva só seria aceitável nos casos em que a suposta operação abusiva é realizada somente, exclusivamente, com a finalidade de evasão fiscal, ainda que o art. 15 (1) da Diretiva explicitamente preveja que é suficiente verificar se uma das finalidades principais é a evasão fiscal (2014, 10.4.1).
A mesma discussão foi levantada pela doutrina quando a cláusula antiabusiva contida na Diretiva Mães e Filhas foi reformada com a publicação da Diretiva (UE) 2015/121 do Conselho, de 27 de janeiro de 2015, que altera a Diretiva 2011/96/UE relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades-mães e sociedades afiliadas de Estados-membros diferentes.
Já em 2015, Debelva e Luts firmaram posicionamento quanto à necessidade de a expressão “uma das finalidades” ser interpretada restritivamente como a finalidade principal ou predominante. Não bastasse a similaridade da cláusula com a prevista na Diretiva Fusões e Aquisições, o que atrairia a jurisprudência do Tribunal de Justiça, para os autores a amplitude da cláusula antiabuso acaba indo contra o próprio objeto e propósito da norma:
“Prima facie, it seems that the PSD’s anti-abuse rule uses a very low (subjective) abuse threshold by merely requiring that ‘one of the main purposes’ be obtaining a PSD benefit. In the authors’ opinion, this is fundamentally unacceptable. The PSD was concluded to create a level playing field between domestic and intra-EU groupings of undertakings by removing tax obstacles existing in the internal market. By abolishing international juridical double taxation of profit distributions between companies of different Member States, the PSD thus aims to foster transactions (i.e. the grouping of undertakings of different Member States) that would not have occurred, absent the PSD. In light thereof, it seems ambiguous to deny the benefits of the PSD merely because a taxpayer relied on those benefits in making business decisions. Moreover, as taxes are one of the most important business expenses, any reasonable and diligent business needs to take into account the tax effect of its business decisions. As a result, the authors concede that a more sensible subjective test would be whether an arrangement was solely or at least predominantly inspired by obtaining the PSD’s benefits. Stated otherwise, PSD benefits should be granted even if the obtaining thereof was ‘one of the main purposes’, provided a genuine economic objective is being pursued.” (2015, p. 225)
Meussen concorda com este posicionamento, na medida em que ele satisfaria tanto o combate ao comportamento abusivo, quanto o direito dos contribuintes de escolher o sistema fiscal que lhe é mais favorável desde que estabeleçam suas operações com um motivo econômico (2016, 18.4).
Importante aqui trazer a voz contrária de Weber que, apesar de admitir que o teste de finalidade principal da diretiva desvia do teste de expediente puramente artificial estabelecido pelo Tribunal, contesta os efeitos práticos da diferença textual entre eles, na medida em que para se verificar a existência de um expediente puramente artificial deve haver: (a) uma vantagem fiscal; (b) o conflito com o objeto das liberdades fundamentais, (c) a intenção do contribuinte obter aquela vantagem fiscal; e (d) a artificialidade do arranjo. Na jurisprudência do Tribunal um arranjo pode ser considerado um abuso quando é artificial no todo ou em parte, na medida em que a existência de razões econômicas válidas para uma parte da transação não removeria a intenção abusiva para a outra parte (2016, p. 110)15.
Não nos parece correta a conclusão do autor, pois, ainda que sigamos seu raciocínio, o teste de expediente puramente artificial somente permitiria reconhecer o abuso em relação à transação em que não se verificou razão econômica válida, reconstituindo a realidade, enquanto o teste de finalidade principal, tal como posto, implicaria o reconhecimento de abuso de toda a transação, ainda que em todas as fases existisse razão econômica válida, pelo mero fato de também existir a razão fiscal.
Aqui, entretanto, deve ser levantada uma questão: apesar da semelhança textual, é possível equiparar a GAAR prevista na ATAD à GAAR prevista na Diretiva Mães e Filhas, que a inspirou? A pergunta se justifica porque, enquanto a GAAR contida na Diretiva Mães e Filhas se põe para negar os benefícios ali contidos, a GAAR prevista na ATAD tem um escopo mais amplo aplicando-se de forma geral ao imposto de renda sobre as sociedades, e a diferença importa, quando pensamos, por exemplo, em Zwijnenburg (C-352/08)16, que será mais bem visto abaixo.
Não se pode esquecer também que apesar do caráter pretensamente de minimis da cláusula, a doutrina levanta dúvidas quanto à possibilidade de os Estados-membros conseguirem estabelecer uma norma geral antiabuso mais restrita que a prevista na ATAD (WEBER, 2016, p. 103), o que importaria para saber se se trata de ramo totalmente harmonizado ou não, e, portanto, o grau de controle do direito secundário em cotejo com o direito primário pelo Tribunal, pois como recordam De Broe e Beckers:
“It is indeed settled case law that ‘any national measure in an area which has been the subject of exhaustive harmonisation at the level of the European Union must be assessed in the light of the provisions of that harmonising measure, and not in the light of the provisions of primary law’. As mentioned (supra section 4.1) although the provisions of the ATAD concern minimum (and thus not exhaustive) harmonization, it is questionable whether Member States can in fact provide for stricter national measures when implementing the ATAD GAAR. Thus, one could argue that Article 6 ATAD provides for exhaustive harmonization, at least for cross-border situations. If that submission is correct, the ECJ can only assess the national GAAR in light of the text of Article 6 ATAD and not in light of (more favourable case law issued under) primary law.” (2017, p. 142)
Apesar da questão posta, entendemos que as conclusões pertinentes à GAAR da Diretiva Mães e Filhas são aplicáveis à da ATAD, a uma, porque a própria Diretiva se declara de minimis em seu art. 3º e, a duas, porque a Diretiva faz inúmeras referências ao direito doméstico, de sorte que não há como se assumir sua completude.
Por esses motivos, parece ser possível concluir que o Tribunal também interpretará a expressão finalidade principal ou uma das finalidades principais contida na EU-GAAR de forma restritiva.
3. Vantagem fiscal que frustre o objeto ou finalidade do direito fiscal aplicável
A cláusula antiabusiva pressupõe que o contribuinte tenha obtido uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável. Ou seja, não é qualquer vantagem fiscal que dispara a aplicação da GAAR. Como bem recorda Nogueira, “várias dessas vantagens fiscais são a mera consequência do exercício de uma liberade fundamental – e o mero exercício de uma liberdade conferida pelo direito originário não pode nunca ser classificada como um abuso” (2009, p. 275). E não poderia ser diferente, haja vista que o Tribunal de Justiça recorrentemente decidiu que os contribuintes têm direito a estabelecer seus negócios no sistema fiscal que lhe é mais favorável17.
Além disso, a vantagem fiscal deve frustrar o objetivo ou a finalidade da norma aplicável. O primeiro passo é, portanto, a identificação do escopo da norma aplicável. As Cortes podem se utilizar de interpretação teleológica para definir o escopo e o objeto do direito abusado, bem como a extensão da norma comunitária (PIANTAVIGNA, 2011, p. 142), o que nem sempre é uma tarefa fácil, especialmente quando não há registros ou documentos preparátorios da lei ou da Diretiva, ou nos casos em que estes são ambíguos ou incertos (DE BROE e BECKERS, 2017, 142).
Nesse sentido, vantagem fiscal alheia à finalidade da norma não é suficiente para disparar a norma geral antiabuso. Como observam Debelva e Luts:
“In Zwijnenburg (Case C-352/08), the ECJ submitted that the benefits of the Directive ‘may not be withheld from a taxpayer who has sought, by way of a legal stratagem […] to avoid the levying of a tax […], where that tax does not come within the scope of application of that directive’ (emphasis added). Following Zwijnenburg, one might argue that the anti-abuse rule of the PSD should also not apply where the taxpayer can sustain that his transaction was inspired by tax motives that are in no way related to obtaining the tax benefits of the PSD. The latter tax motives may be found in the domestic law(s) of the state(s) concerned, other EU tax directives or tax treaties.” (2015, p. 226)
Para De Broe e Beckers, a ausência de registro ou qualquer histórico dos motivos pelos quais a legislação foi desenvolvida ou a alteração do contexto fático-economico, a ponto de desvirtuar a norma, também impossibilitaria a aplicação da norma antiabuso, haja vista a impossibilidade de se estabelecer o parâmetro do que se deve considerar abusivo ou a por este se encontrar defasado (2017, p. 142).
Em relação às Diretivas, o Tribunal18 indica que seu objeto ou finalidade pode ser buscado na exposição de motivos da própria Diretiva. Adotado esse indicativo, e analisando a proposta apresentada pela Comissão19, como a exposição de motivos da ATAD20, teríamos que necessariamente aplicá-la em linha com as diretrizes do TJUE.
Importante notar, como o fizeram Navarro, Parada e Schwars, que, embora textualmente semelhantes, o objetivo e a finalidade da GAAR, da Diretiva e da GAAR da ATAD não são os mesmos:
“As far as the intended tax advantage is concerned, it is necessary analysing whether this advantage ‘defeats the object or purpose of the otherwise applicable tax provisions’. The wording of the Proposal at hand differs considerably from the one under the Parent Subsidiary Directive. Whereas the test within the GAAR of the Parent-Subsidiary Directive requires an investigation into the motives of the Directive itself and is aimed to analyse whether the intent of the EU legislator would be frustrated if the tax advantage were granted under the given circumstances, the GAAR of the Proposal for an Anti-avoidance Directive clearly refers to Member States’ national tax legislation. In this sense, it is important to bear in mind that frequently, corporate tax rules do not have any noticeable purpose other than raising revenue. The lack of a purposive element attached to a given rule implies that the analysis posed in the GAAR under scrutiny would become senseless in these cases, unless one reaches the unsound conclusion that to best comply with the purpose of these rules, i.e., raising revenue, a taxpayer should adopt the most burdensome alternative to conduct business.” (2016, p. 124-125)
Por fim, é importante lembrar que a competência para verificar qual o objeto e a finalidade depende da norma em análise, ou seja, tratando-se de legislação doméstica, caberá ao tribunal doméstico, ao passo que em se tratado de legislação primária ou secundária europeia (ou lei cuja matéria é disciplinada por meio de diretiva), será do Tribunal de Justiça da União Europeia (DE BROE & BECKERS, 2017, p. 143).
Isto causa uma grande dificuldade no controle e aplicação da norma geral antiabuso, pois o TJUE poderá controlar a princípio a norma nacional que tenha transposto a GAAR da ATAD, mas não poderá verificar qual o objeto e a finalidade da norma que está sendo circundada, que a princípio fugirá a seu escopo, a menos que haja harmonização do direito fiscal das sociedades.
4. Razões econômicas válidas: ônus da prova
O art. 6º, § 2º, dispõe que: “Para efeitos do nº 1, considera-se que uma montagem ou série de montagens não é genuína na medida em que não seja posta em prática por razões comerciais válidas que reflitam a realidade econômica”.
Até agora vimos que para a cláusula geral antiabuso ser acionada, é necessário um arranjo ou série de arranjos postos em causa com o principal objetivo de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade da legislação pertinente, aqui entendido como o combate a arranjos sem razão econômica válida.
Esta seção será dedicada à definição do que se entende por razão econômica válida, focando também no ônus da prova. A expressão carrega o mesmo sentido que o TJUE atribuiu à expressão “expediente puramente artificial”, a qual, entretanto, é desprovida de densidade normativa per se (J. F. NOGUEIRA, 2009, p. 276). Weber resume a evolução da expressão realidade econômica na jurisprudência do Tribunal de Justiça, vejamos:
“With regard to the term economic reality, an anthology from the case law shows the following:
– In Cadbury Schweppes, the objective elements on the basis of which interested parties can prove that an economic reality physically exists were in terms of premises, staff and equipment[21].
– In the Thin Cap GLO case, this was any commercial justification that there may have been for that arrangement[22].
– In Weald Leasing, a lease price which was ‘unusually low’[23].
– In RBS Deutschland, the CJ found it important whether there were arm’s-length transactions or whether there were transactions between parties who were legally unconnected and that they were carried out in the context of normal commercial operations[24].
– In Part Services, it was important if the transaction could only be considered ‘economically unprofitable’[25].
– In SICES, transactions may not a priori be regarded as being devoid of economic and commercial justification; abuse could be the case when there is no question of any commercial risk; if the profit margin is insignificant or prices lower than the market price[26].
– In Emsland-Starke, if there were legal, personal and commercial links and if there was collusion[27].”
Nessa linha, Docclo sustenta que quando se toma em conta o Direito da União Europeia, a expressão “expediente não genuíno” não pode ultrapassar o significado atribuído à “expediente totalmente artificial”28. Ressalte-se aqui que as razões econômicas devem ser preponderantes à razão fiscal29.
Importa ressaltar que a razão subjetiva é objetivada, na medida em que deve ser demonstrada a partir de fatos e circunstâncias (WEBER, 2016, p. 114), e a Diretiva evidencia em sua exposição de motivos, especificamente em relação às regras relativas a sociedades estrangeiras controladas, mas não vemos por que não aplicar o raciocínio à norma geral antiabuso, que “é importante que as administrações fiscais e os contribuintes cooperem na recolha dos fatos e circunstâncias relevantes para determinar se deverá ser aplicável a regra de exclusão”.
Aqui importa registrar a posição de Valderrama em crítica à regra PPT, mas que se aplica em todas as linhas à GAAR prevista na ATAD:
“The first problem is the unbalanced burden of proof between tax administrations and taxpayers. The tax administration must only have reasonable grounds to conclude that, having reviewed all of the relevant facts and circumstances, one of the principal purposes of the action undertaken is to obtain a treaty benefit. However, a taxpayer must establish that the granting of a benefit was in accordance with the object and purpose of the relevant treaty provision. The use of a ‘reasonable’ criterion as opposed to an ‘established’ criterion gives rise to a higher burden for the taxpayer in favour of the tax administrations.” (2018, p. 166)
Importa ressaltar que, em matéria tributária, normalmente se atribui ao contribuinte o ônus de provar se este atende às condições que legalmente lhe autorizam a obter a vantagem fiscal pretendida (SCHAPER, 2014, p. 221). Em sentido contrário, De Broe sustenta que o ônus da prova de que se está diante de um caso de evasão fiscal resta sobre os ombros das autoridades fiscais, que devem demonstrar que sua legislação nacional está sendo contornada sob a proteção de uma liberdade fundamental ou que os benefícios da diretiva estão sendo indevidamente requisitados (2007, 4.1).
Verdade é que o TJUE inclusive cogitou o artifício a presunções refutáveis. Nessa linha, Nogueira extrai de Leur Bloem (C-28/95)30 que seria possível criar uma presunção baseada na ausência de motivos economicamente válidos, desde que tais cláusulas: “(a) (não fossem) automáticas, i.e. assentes em critérios gerais e abstratos e que excluíssem automaticamente determinadas categorias de sujeitos ou de situações; (b) impossibilitassem um controlo casuístico; (c) negassem um controle jurisdicional posterior” (2009, p. 260).
Meussen lembra, porém, que em SGI (311/08)31 o TJUE decidiu ser proporcional que o ônus inicial fosse atribuído às autoridades administrativas, que deveriam demonstrar com base em elementos objetivos e verificáveis que a transação ou elementos da transação representam um expediente artificial (MEUSSEN, 1.3. Burden of proof and European tax law, 2013).
De sua parte Weber extrai de Cadbury Schwepps e Test Claimants a existência de três requerimentos que uma norma antiabuso que opere através de presunções deve preencher para que seja considerada válida:
“(1) An objective element which can be independently verified by a third party in order to determine whether the transaction in question represents, in whole or in part, a purely artificial arrangement, which do not reflect economic reality, with a view to escaping the tax normally due on the profits generated by activities carried out on national territory (legal presumption of abuse based on the objective abuse test).
(2) The taxpayer is given an opportunity, without being subject to undue administrative constraints, to provide evidence of any commercial justification that there may have been for that arrangement (proof to the contrary of the taxpayer based on the subjective abuse test).
(3) Where the consideration of those elements leads to the conclusion that the transaction in question represents a purely artificial arrangement without any underlying commercial justification, the recharacterization is limited to abuse situations (proportional combating of abuse).” (2013, 2.5.2.2. The lessons from these judgments considered further)
Quanto à utilização de presunções refutáveis, a nosso ver merece eco a contestação de De Broe, que já afirmava:
“However, Member States should not take matters too easily. Member States could be tempted to enact anti-avoidance rules that contain broad criteria establishing tax avoidance and feel that they are on the safe side as long as they permit taxpayers to rebut such presumptions of tax avoidance. Where the application of such general but rebuttable presumptions of tax avoidance place a significant and unreasonable burden of proof (or of compliance) on the taxpayer, there is a serious risk that such presumptions will fail to pass the proportionality test. The Community principle of effectiveness also requires that national rules of evidence should not render the exercise of Community rights impossible or excessively difficult in practice. Where rebuttable presumptions of tax avoidance are couched in such general terms that they render meaningless the burden of proof of tax avoidance on the part of the tax authorities and shift that burden almost automatically to the taxpayer, not very much remains of the requirement that the rule be specific and that the tax authorities prove on a case-by-case basis the presence of a tax avoidance scheme that frustrates the objectives of Community law.” (2007, 4.5. Rebuttable presumptions of tax avoidance, § 171)
A crítica é pertinente. Não podem as autoridades fiscais se eximirem de qualquer ônus, nem mesmo que seja o mínimo de provar o indício que dispara a presunção. Ainda mais quando a ATAD é imbuída pela noção de que contribuintes e autoridades administrativas devem trabalhar em conjunto para recolher informações pertinentes aos fatos e circunstâncias.
Assim, adotando esta premissa, parece-nos incorreto atribuir tão somente ao contribuinte o ônus de provar a existência de razões econômicas válidas, ainda mais caso se parta da redação da cláusula que combate arranjos em que uma das finalidades principais seja fiscal. Ou seja, atribuir-se-ia um ônus ao contribuinte para ao final simplesmente seus esforços probatórios serem ignorados, pois uma das finalidades é fiscal, o que acaba reforçando nossa conclusão de que a norma geral antiabuso deve ser interpretada no sentido de que não é uma das finalidades principais, mas a finalidade principal.
Conclusão
Após esta análise podemos tecer algumas conclusões quanto ao combate ao abuso na União Europeia. Primeiro, concordamos com Takano32, quando este afirma que não há razão pela qual a (dupla) não tributação seria juridicamente repreensível, ainda mais tendo em vista a jurisprudência do Tribunal de Justiça quanto à impossibilidade de sua atuação em casos em que o exercício paralelo da soberania fiscal leva à dupla tributação. Em outras palavras, se não há competência quando o exercício paralelo de jurisdição leva à dupla tributação, por que haveria quando leva a não tributação?
No entanto, a União Europeia se posicionou quanto ao combate ao abuso, compreendendo inclusive o que se convencionou chamar de Planejamento Tributário Agressivo e, nessa toada, emitiu norma geral que potencialmente conflita com o Direito Primário. O mero fato de se aplicar a transações domésticas e a transações transfronteiriças não impossibilita per se que exista uma ofensa ao direito primário. Isto porque a medida potencialmente causa restrições ao mercado único.
Como salienta Cordewener, é difícil entender porque Estados-membros poderiam introduzir regras baseadas na redação da GAAR quando o Tribunal de Justiça se posicionou pela invalidade de normas domésticas semelhantes emitidas no contexto de cláusula aberta anterior de Diretiva que permitia a formulação de cláusula geral antiabuso33.
Nessa linha, entendemos que a expressão finalidade principal ou uma das finalidades principais contidas na cláusula geral antiabuso da ATAD deve ser ou, ao menos, tende a ser interpretada restritivamente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, a exemplo do que se deu com a cláusula geral antiabuso contida na Diretiva Mães e Filhas. Esta conclusão se reforça quando analisamos o ônus da prova que se extrai da leitura do art. 6º, § 2º, pois não faria sentido atribuir ao contribuinte o ônus de provar a existência de razões econômicas válidas, se a existência de uma razão fiscal fosse o suficiente para disparar os efeitos da GAAR.
Até porque o direito secundário deve se curvar às normas de direito primário, cujo alcance é delimitado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no exercício de sua competência. Além disso, como aponta SZUDOCZKY, o controle do direito secundário pelo Tribunal exerce um papel fundamental na manutenção da distribuição vertical e horizontal de poderes na União Europeia (2014, 5.4. Overview).
A nosso ver, aplicam-se à GAAR da ATAD, as conclusões que Bundergaard et al. teceram em relação à GAAR prevista na Diretiva Mães e Filhas:
“Thus, in the authors’ view, the court’s decisions in Eqiom and Deister/Juhler confirm at least five things: (i) article 1(2) of the Parent-Subsidiary Directive (2011/96) reflects the general EU law principle that abuse of rights is prohibited, (ii) the burden of proof in a potential abusive situation cannot be solely placed on the taxpayer, (iii) the definition of abuse from Cadbury Schweppes still stands, (iv) this definition of abuse also applies with regard to the Parent-Subsidiary Directive (2011/96).” (2018, p. 136)
Especificamente em relação ao ônus da prova, entendemos que ele não deve ser colocado sobre os ombros dos contribuintes. A própria ATAD possui como orientação que contribuintes e autoridades administrativas devem trabalhar em conjunto na averiguação de fatos e circunstâncias. Assim, ainda que o Estado-membro se utilize de presunção refutável, esta deve seguir o parâmetro estabelecido pelo TJUE.
Não se pode olvidar que o expediente supostamente abusivo deve ser colocado em prática com o fim de se obter uma vantagem que frustre o objeto ou a finalidade da norma circundada. No âmbito de uma GAAR geral aplicável ao imposto sobre as sociedades é difícil identificar qual seria esse objeto e finalidade. Afinal muitas regras fiscais servem ao único propósito de arrecadar, significa dizer, a norma deveria ser aplicada para evitar diminuição na arrecadação? Esta conclusão não parece fazer sentido e tampouco seguir em linha com a jurisprudência do Tribunal quanto à possibilidade de o contribuinte estabelecer seus negócios de acordo com o sistema fiscal que lhe seja mais favorável.
A nosso ver, então, é mister concluir que apesar da tentativa do Conselho da União Europeia em alterar via Diretiva o padrão de abuso historicamente estabelecido pelo Tribunal de Justiça, nos parece que as dificuldades de ordem prática, bem como a necessidade de se respeitar o Direito Comunitário Primário, implicarão a interpretação da GAAR estabelecida na ATAD em linha com as decisões proferidas pelo Tribunal em relação à matéria.
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1 NL: ECJ, 3 Dec. 1974, Case 33/74, Johannes Henricus Maria van Binsbergen v. Bestuur van de Bedrijfsvereniging voor de Metaalnijverheid. ECJ Case Law IBFD. § 13.
2 “Instead, the genesis of abuse concept in Community Law was possible because of the incomplete nature of this original system, which is not auto-sufficient compared with the national ones. So, values, models, and legal concepts are interchanged among Member States’ systems (horizontal sense) and between them and the Community system (vertical sense). In an indirect way, domestic laws contribute to the establishment of Community system, without violating the principle of uniformity. This ‘soft law’, represented by common values, is transformed by the ECJ into ‘hard law’, through judicial principles, expression of shared ideals, which become binding for Member States even in legal areas not ruled by Community Law.”
3 “General principles of EU law can be defined as fundamental propositions of law of some importance from which concrete rules derive and their function is basically threefold, i.e. (1) a ‘gap-filling’ function to ensure – through the ECJ – the autonomy and coherence of the EU legal system, (2) an aid to interpretation of EU law and national law falling within the scope of EU law, and (3) a grounds for judicial review of the legality of secondary EU law and the compatibility of national law transposing secondary EU law.” (DE BROE & BECKERS, 2017, p. 136)
4 UK: ECJ, 21 Feb. 2006, Case C-255/02, Halifax plc, Leeds Permanent Development Services Ltd, County Wide Property Investments Ltd v. Commissioners of Customs & Excise, BUPA Hospitals Ltd, Goldsborough Developments Ltd v. Commissioners of Customs and Excise and University of Huddersfield Higher Education Corporation v. Commissioners of Customs and Excise. ECJ Case Law IBFD.
5 DE: ECJ, 14 Dec. 2000, Case C-110/99, Emsland-Stärke GmbH v. Hauptzollamt Hamburg-Jonas. ECJ Case Law IBFD, §§ 52-53.
6 UK: ECJ, 12 Sept. 2006, Case C-196/04, Cadbury Schweppes plc, Cadbury Schweppes Overseas Ltd v. Commissioners of Inland Revenue. ECJ Case Law IBFD.
7 Cit., nota 6, § 64.
8 FR: ECJ, 8 Mar. 2017, Case C-14/16, Euro Park Service. ECJ Case Law IBFD.
9 “Art. 1º A presente diretiva é aplicável aos contribuintes sujeitos ao imposto sobre as sociedades num ou mais Estados-membros, incluindo os estabelecimentos estáveis situados num ou mais Estados-membros de entidades residentes para efeitos fiscais num país terceiro.”
10 “In the EU law terminology, it is commonplace to distinguish ‘primary’ and ‘secondary’ EU law. Primary EU law originates directly from the Member States as the ’constituent authority’ of the EU’s legal order. Thus, this term covers the founding Treaties of the European Union, namely the Treaty on the European Union (‘TEU’) and the Treaty on the Functioning of the European Union (‘TFEU’ or ‘Treaty’) (hereinafter jointly also referred to as the ‘Treaties’ or the ‘founding Treaties’). These two Treaties are the most important sources of EU primary law and they have the same legal value. The Charter of Fundamental Rights of the European Union (hereinafter also referred to as ‘Charter’) albeit not incorporated in the text of the Treaties has the same legal value as the Treaties as expressly confirmed by Article 6(1) first subparagraph TEU. Consequently, the Charter also forms part of primary EU Law. The Treaty establishing the European Atomic Energy Community is the founding treaty of one of the three original Communities, which, not having been repealed by the Lisbon Treaty, is still in force and constitutes primary EU law. Furthermore, the treaties amending and supplementing the founding Treaties also qualify as primary EU law. Primary law also extends to the provisions agreed upon by the Member States and the states acceding to the European Union, i.e. the Accession Treaties and the Acts of Accession.
[…]
In contrast to primary law, acts adopted by the EU institutions are normally called ‘secondary’ (or ‘derived’) EU law, as the power to adopt these acts is derived from and based on primary EU law, in particular, the legal basis provisions included in the founding Treaties.
The basic typology of secondary EU law is set out in Article 288 TFEU. According to the first subparagraph of this provision [t]o exercise the Union’s competences, the institutions shall adopt regulations, directives, decisions, recommendations and opinions.’ Strictly speaking, recommendations and opinions are not legal acts resulting in enforceable obligations on third parties, as they do not have binding force. Therefore, they rather fall under the umbrella of ‘soft law’. The list of legal instruments included in Article 288 TFEU is far from being complete, as there are many other forms of acts that the EU institutions and bodies use to carry out their tasks and competences.” (SZUDOCZKY, 2014, 2.1 e 2.2).
11 “On the basis of the analysis above, we can observe some general tendencies as to how the Court approaches the interaction of these various norms of Union law. First, it is apparent that the intensity of the scrutiny of secondary law differs when the Court reviews secondary law on substantive grounds, on the one hand, and procedural grounds, on the other. The Court is much more willing to engage in the review of secondary law on procedural grounds than on substantive grounds. This is proven simply by the volume of the case law concerning the two types of review. Cases dealing with challenges to the legal basis of Union legislation considerably outweigh the cases where secondary law has been challenged on its compatibility with the general principles of EU law, fundamental rights or the Treaty freedoms. If we also take into account the number of successful challenges in the latter cases, the suspicion that the Court refrains from exercising effective substantive scrutiny over Union legislation inevitably arises. Second, the scrutiny of general (legislative) acts and individual (administrative) acts of the Union institutions seem to differ, as administrative acts are more frequently annulled by the Court on the ground of infringing substantive standards than legislative acts. However, more recently, the Court seems to have intensified the substantive review of legislative Union acts (Joined Cases C-92/09 and C-93/09 Schecke, Case C-236/09 Test Achats). This may have to do with the Charter’s gaining binding force with the Lisbon Treaty, which not only increased the visibility of human rights under EU law but may have also reinforced the Court in its role as a constitutional court entrusted to ensure respect for human rights by Union legislation. Despite this recent trend, the Court’s track record as a constitutional court supposed to counterbalance the Union’s political institutions can certainly be improved. For example, when scrutinizing secondary legislation, the Court still seems to be hesitant to effectively enforce primary law norms of an economic nature. As a result, currently the discretion of the Union legislature seems to be more limited by classic fundamental rights (i.e. political, civil or due process rights) and general principles than fundamental rights of an economic nature or, for that matter, the Treaty freedoms. Furthermore, even if the Court has become more active in enforcing substantive standards vis-à-vis secondary law, it still seeks to avoid, as far as possible, the need for declaring non-conforming secondary law invalid. Instead of invalidation, it applies various techniques – predominantly consistent interpretation of secondary law with primary law (Joined Cases C-402/07 and C-432/07 Sturgeon) – to ensure the prevalence of the higher ranking primary law norm while, at the same time, maintaining the validity of secondary law. Admittedly, with this technique the Court can successfully avoid the impression of interfering with the institutional balance within the Union, however, the excessive use of it may lead to unpredictability in the application of positive law.” (SZUDOCZKY, 2014, 5.4)
12 A recomendação definia em sua exposição de motivos o que seria considerado planejamento fiscal agressivo: “Aggressive tax planning consists in taking advantage of the technicalities of a tax system or of mismatches between two or more tax systems for the purpose of reducing tax liability. Aggressive tax planning can take a multitude of forms. Its consequences include double deductions (e.g. the same loss is deducted both in the state of source and residence) and double non-taxation (e.g. income which is not taxed in the source state is exempt in the state of residence).”
13 Disponível em: <http://www.consilium.europa.eu/pt/policies/anti-tax-avoidance-package/>.
14 “As a result of these references to national law, one may question how the Proposal intends to establish a uniform GAAR within the European Member States. First, Member States already imposing a GAAR may presumably not be deprived of the right to continue using their existing provisions in the usual manner including the degree to which they normally counter abusive tax practices. Second, even if all Member States would decide to adopt a provision adapting as far as possible the wording of the Proposal at hand, there is no consistent concept of abuse in the field of direct taxes within European law respectively among European Member States, on which Member States could rely, and there are still a number of linguistic disparities across the various official languages of the EU, which makes it difficult to elaborate common standards. It is unclear why the Commission is insisting anyhow to implement a GAAR although it is aware of these practical problems.” (NAVARRO, PARADA, & SCHWARZ, 2016, p. 125)
15 No original: “The wholly artificial arrangement test would appear to be stricter in the sense that it would seem to follow from this that where a taxpayer also has another intention for a certain arrangement (for example, a business intention) there is no question of a wholly artificial arrangement; whereas under the main purpose test, having another reason still places a taxpayer under the common anti-abuse rule. Nevertheless, the question here is if there really is a difference. It must be pointed out, namely, that under the case law of the CJ, when an arrangement forms an artificial arrangement ‘in whole or in part’, there can be a matter of abuse. It would appear to follow from this that the existence of a business reason for one part of a transaction does not remove the abuse intention for the other part. Part of the transaction (a certain step) can also be ‘wholly artificial’. In other words: there can also be a matter of abuse under the wholly artificial arrangement test when in addition there are also non-fiscal reasons (for another part of the transaction). That is the same as under the main purpose test.”
16 NL: ECJ, 20 May 2010, Case C-352/08, Modehuis A. Zwijnenburg BV v. Staatssecretaris van Financiën. ECJ Case Law IBFD.
17 Halifax cit., nota 4, § 73.
18 NL: ECJ, 17 July 1997, Case C-28/95, A. Leur-Bloem v. Inspecteur der Belastingdienst/Ondernemingen Amsterdam 2, § 45. ECJ Case Law IBFD.
19 A regra geral antiabuso destina-se a colmatar as lacunas que possam existir nas regras antiabuso específicas contra a elisão fiscal vigentes num determinado país. Conferiria às autoridades o poder de recusar aos contribuintes o benefício de regimes fiscais abusivos. Em conformidade com o acervo, a regra geral antiabuso proposta visa refletir os testes de artificialidade do TJUE quando estes sejam aplicados no interior da União.
20 “(11) As regras gerais antiabuso estão presentes nos sistemas fiscais para combater práticas fiscais abusivas que ainda não tenham sido objeto de disposições específicas. As regras gerais antiabuso têm, portanto, a função de colmatar lacunas, o que não deverá prejudicar a aplicabilidade de regras antiabuso específicas. Na União, as regras gerais antiabuso deverão ser aplicadas a montagens que não sejam genuínas, caso contrário, o contribuinte deverá dispor do direito de optar pela estrutura mais vantajosa do ponto de vista fiscal para as suas atividades comerciais. Além disso, é importante garantir que as regras gerais antiabuso são uniformemente aplicáveis em situações nacionais, no interior da União e em relação a países terceiros, para que o seu âmbito e os resultados da sua aplicação não sejam diferentes em situações nacionais e transfronteiras. Os Estados-membros não deverão ser impedidos de aplicar sanções caso sejam aplicáveis as regras gerais antiabuso. Ao avaliar se uma montagem deverá ser considerada não genuína, poderá ser dada aos Estados-membros a possibilidade de analisarem todas as razões econômicas válidas, incluindo as atividades financeiras.”
21 Cadbury Schweppes cit., nota 6, § 67.
22 UK: ECJ, 13 Mar. 2007, Case C-524/04, Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation v. Commissioners of Inland Revenue. ECJ Case Law IBFD, § 82.
23 UK: ECJ, 22 Dec. 2010, Case C-103/09, The Commissioners for Her Majesty’s Revenue & Customs v Weald Leasing Limited. ECJ Case Law IBFD.
24 UK: ECJ, 22 Dec. 2010, Case C-277/09, The Commissioners for Her Majesty’s Revenue & Customs v. RBS Deutschland Holdings GmbH. ECJ Case Law IBFD, §§ 50 e 51.
25 IT: ECJ, 21 Feb. 2008, Case C-425/06, Part Service, Ministero dell’Economia e delle Finanze, formerly Ministero delle Finanze v. Part Service Srl, company in liquidation, formerly Italservice Srl. ECJ Case Law IBFD, § 57.
26 IT: ECJ, 13 Mar. 2014, case C-155/13, Società Italiana Commercio e Servizi srl (SICES) and Others v Agenzia Dogane Ufficio delle Dogane di Venezia, §§ 38-39.
27 Emsland-Stärke cit., nota 5, § 59.
28 “All valid economic reasons, including financial activities should be taken into consideration in evaluating whether an arrangement should be regarded as non-genuine. Nothing precludes the Member States from providing for stricter anti-abuse rules. The Member States may also provide for penalties with regard to non-genuine arrangements. In situations that fall outside the scope of EU law, these may be stricter than those of the ATAD. However, in dealing with arrangements involving third countries, the Member States cannot hinder the free movement of capital. In contrast, in dealing with EU situations, the ECJ has decided that anti-abuse rules may only be justified if they are aimed at purely artificial transactions. In the context of EU law, the term ‘non-genuine arrangement’ cannot, therefore, be extended.” (DOCCLO, 2017, p. 378)
29 “This genuine economic objective, on the other hand, should be substantive and not of a superficial nature. Compare in this respect the Foggia case (Case C-321/05), where the court refers to a situation ‘where it seems clear that, having regard to the magnitude of the anticipated tax benefit, that is, more than EUR 2 million, the saving made by the group concerned in terms of cost structure is quite marginal’.”
30 NL: ECJ, 17 July 1997, Case C-28/95, A. Leur-Bloem v. Inspecteur der Belastingdienst/Ondernemingen Amsterdam 2. ECJ Case Law IBFD.
31 BE: ECJ, 21 Jan. 2010, Case C-311/08, Société de Gestion Industrielle SA (SGI) v. Belgian State. ECJ Case Law IBFD.
32 Não é claro, na visão deste autor, a razão pela qual o fenômeno da “dupla não tributação” seria, por si, juridicamente repreensível, ainda mais fora do contexto de um acordo internacional, em que se presume que as partes negociaram a exata dimensão de sua jurisdição e de sua competência tributária sem que buscassem uma exoneração ao contribuinte. A “dupla não tributação”, enquanto fenômeno decorrente de assimetrias na aplicação das legislações domésticas de diferentes países em situações internacionais, resultado do caráter subótimo das regras e da incapacidade das normas antielisivas existentes coibi-la, parece estar relacionada a preocupações mais políticas e econômicas do que, propriamente, jurídicas. Enquanto fenômeno que decorre da conformação – formal e substancial – do contribuinte às legislações tributárias dos Estados envolvidos, situando-se na mais estrita legalidade e fora do campo do abuso, a nosso ver é bastante questionável a sua repreensão, à míngua de normas antielisivas específicas que apontem, normativamente, a opção de política fiscal de uma determinada jurisdição para coibi-la (TAKANO, 2017, p. 39).
33 “it would be difficult to understand why Member States should be allowed to introduce a certain anti-abuse rule in their domestic systems through the detour of an EU directive if they were not entitled to make use of the same rule under an ‘opening clause’ in the same directive, read together with primary law (in particular, the Treaty freedoms). This should also be taken into account by the EU institutions when discussing whether a common minimum GAAR similar to the one in the Parent-Subsidiary Directive be inserted into the Interest and Royalties Directive, and the same goes for the discussion of the relaunched CC (C)TB project (or, beyond direct taxation, for the idea of a Financial Transaction Tax (FTT).” (CORDEWENER, 2017, p. 65-66)