Regras de Subcapitalização e suas Distorções na Tributação da Renda

Thin Capitalization Rules and Distortions in Income Taxation

Davi Finotti Ferreira

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-graduando em Direito Tributário pelo Insper. Advogado em São Paulo. E-mail: dfinotti@vbso.com.br.

Diogo Olm Arantes Ferreira

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado em São Paulo. E-mail: dferreira@vbso.com.br.

Resumo

Este artigo procura tratar das regras brasileiras de subcapitalização e como a sua adoção interage com a noção constitucional de renda e com sua definição conferida pelo Código Tributário Nacional. Na medida em que as regras de subcapitalização estão baseadas em uma abordagem que faz uso de critérios quantitativos fixos e em presunções absolutas, procura-se examinar se a estrutura constitucional do Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas é devidamente observada. Como forma de viabilizar essa análise, são analisadas situações em que as tais regras, pela impossibilidade de prova em contrário da presunção de endividamento excessivo, abrem margem a distorções na tributação da renda.

Palavras-chave: regras de subcapitalização, imposto de renda de pessoas jurídicas, noção de renda.

Abstract

This article aims to analyze the Brazilian thin capitalization rules and how their adoption interacts with the definition of income according to the Brazilian Constitution and the Brazilian Tax Code. To the extent that the thin capitalization rules are based on an approach that uses fixed quantitative criteria and absolute presumptions, it is sought to examine whether the constitutional structure of Corporate Income Tax is duly observed. As a way of making this analysis viable, situations are analyzed in which such rules, due to the impossibility of proving the presumption of excessive indebtedness to be inadequate, lead to distortions in the taxation of income.

Keywords: thin capitalization rules, corporate income tax, definition of income.

1. Introdução

O financiamento das atividades empresariais a partir de instrumentos de capital (equity) ou de instrumentos de dívida (debt) é questão de grande relevância para as Administrações Fiscais de diversos países. Considerando que os sistemas tributários nacionais geralmente permitem a dedução de despesas com juros do lucro tributável das empresas, enquanto a distribuição de dividendos não implica diminuição da carga tributária (VANN, 1998, p. 64-67), a subcapitalização (thin capitalization) – isto é, o endividamento excessivo em relação ao capital de uma pessoa jurídica (SANTOS, 2011, p. 116) – pode representar estratégia de redução dos ônus fiscais (OCDE, 2012, p. 3).

Com o intuito de evitar o endividamento desproporcional e, por vezes, artificial de uma pessoa jurídica (XAVIER; EMERY, 2010, p. 7) como forma de economia tributária, os ordenamentos jurídicos de certos países passaram a impor limites à dedutibilidade dos juros pagos a estrangeiros.

No Brasil, as regras de subcapitalização foram introduzidas por meio da Medida Provisória n. 472/2009, posteriormente convertida na Lei n. 12.249/2010. Seguindo caminho semelhante ao das normas de preços de transferência, o legislador pátrio privilegiou o princípio da praticabilidade ao estabelecer limites fixos (e inquestionáveis) para dedutibilidade de juros com pessoas vinculadas no exterior, levando em consideração poucas variáveis (existência de participação societária do credor no devedor brasileiro, situação ou não do credor em jurisdições com tributação favorecida e volume de endividamento).

Desde a criação dessas novas regras, foram conduzidos diversos estudos pela doutrina pátria e, como consequência natural dessa investigação, questionamentos relacionados à validade jurídica das regras brasileiras de subcapitalização foram suscitados.

Neste trabalho, o que se pretende é contribuir para as discussões a respeito dos critérios e parâmetros legais para a determinação do que seria endividamento abusivo e de sua relação com a noção de renda. Tomando como referência o art. 24 da Lei n. 12.249/2010, que trata dos juros pagos a pessoa jurídica vinculada no exterior1, serão abordadas as distorções que as regras brasileiras de subcapitalização podem causar.

Como forma de tornar essa exposição minimamente concreta, serão analisadas em detalhes duas situações: (i) endividamento de pessoa jurídica brasileira, com “patrimônio líquido negativo” (passivo a descoberto), com pessoas vinculadas no exterior; e (ii) endividamento de pessoa jurídica brasileira com pessoa jurídica vinculada no exterior que não detenha participação societária expressiva da devedora.

2. Subcapitalização e a Lei n. 12.249/2010

2.1. Breves considerações sobre a experiência internacional

Conforme já explicado acima, a imposição de limites de dedutibilidade dos juros pagos estrangeiros tem por objetivo evitar o endividamento desproporcional de uma pessoa jurídica como forma de economizar tributos. Com o decorrer dos anos, os impactos tributários da subcapitalização tornaram-se pauta frequente na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sendo identificadas duas abordagens distintas para lidar com o endividamento considerado desproporcional ou abusivo (OCDE, 2012, p. 8).

Por um lado, é possível examinar o endividamento de uma pessoa jurídica e o volume das suas despesas financeiras com base nas práticas de mercado observadas entre partes independentes, criando-se assim regras que admitam a dedutibilidade de juros contratados em condições de arm’s length (OCDE, 2012, p. 8). Em virtude dessa característica, essa abordagem é conhecida como arm’s length approach.

Por outro, é possível comparar o endividamento de uma pessoa jurídica e, por exemplo, o seu capital social, tornando indedutíveis os juros referentes a dívidas que superem em determinado número de vezes o valor aplicado pelos sócios (OCDE, 2012, p. 8), com base em critérios de proporcionalidade preestabelecidos.

Nessa segunda abordagem, designada ratio approach, há evidente simplificação das regras de subcapitalização, ao passo que se pode dispensar a verificação de condições normais de mercado entre as partes contratantes2, identificando o endividamento abusivo a partir da utilização de ficções jurídicas ou presunções absolutas. No entanto, é de se considerar que a própria OCDE tem ressalvas quanto aos efeitos econômicos dessa abordagem3.

Mais recentemente, a dedutibilidade de despesas com juros foi objeto da Ação n. 4 do Projeto Base Erosion and Profit Shifting (BEPS). Nesse contexto, foram avaliadas formas de restringir a dedutibilidade de despesas com juros a partir da mensuração da atividade da pessoa jurídica devedora (por meio de seus lucros ou de seus ativos) (OCDE, 2015, p. 43).

Dentre as melhores práticas identificadas, o Relatório Final para a Ação n. 4 recomenda a limitação da dedutibilidade de despesas com juros baseadas em fixed ratio que toma como referência as deduções líquidas de juros e o lucro da pessoa jurídica devedora antes de juros, impostos, depreciação e amortização (em inglês, earnings before interest, taxes, depreciation and amortization – EBITDA). A proporção recomendada no Relatório Final deveria variar entre 10% e 30%, conforme as peculiaridades de cada país (OCDE, 2015, p. 47).

Como complemento a essa regra, a OCDE sugere a adoção de um group ratio que consideraria a proporção entre o endividamento do grupo econômico com terceiros e o EBITDA desse grupo (OCDE, 2015, p. 57-58). Caso a proporção de group ratio seja maior do que aquela verificada a partir do fixed ratio de cada entidade separadamente, seria admissível uma dedução adicional.

Cabe ressaltar que as práticas recomendadas no Relatório Final para a Ação n. 4 propõem-se a uma aplicação ampla, não se restringindo às dívidas criadas dentro de um mesmo grupo econômico. Conforme indicado no Relatório Final, o fixed ratio proposto seria aplicável para todas as entidades, incluindo aquelas em um grupo transnacional, em grupos presentes em um único país, ou mesmo entidades que não pertençam a grupo algum. Ou seja, o Relatório Final propõe restrição geral à dedutibilidade de juros, diferentemente das regras de subcapitalização, voltadas a situações específicas.

A opção pelo fixed ratio, conforme detalhado pelo Relatório Final, decorre da simplicidade na sua aplicação, tanto pelos contribuintes como pelas Administrações Tributárias de cada país4. Novamente, a OCDE não ignora que o fixed ratio approach no tocante a regras de subcapitalização não se atenta às peculiaridades de cada setor econômico ou da dinâmica das atividades de cada empresa5. A própria organização reconhece que os setores bancário e de seguros, por exemplo, mereceriam tratamento diferenciado em função de suas características (OCDE, 2015).

No entanto, a tentativa de estabelecer regras compatíveis com cada realidade econômica foi avaliada como sendo muito complexa. Dessa forma, manteve-se a recomendação do Relatório Final quanto à adoção de níveis fixos e objetivos de endividamento como forma de combater a erosão de bases tributárias6.

2.2. Contextualização no Brasil

Antes que se possa colocar em exame as disposições legais da Lei n. 12.249/2010 acerca da matéria, cabe breve referência ao contexto histórico e legislativo de criação dessas regras no Brasil.

Conforme delimitado por SANTI e CANADO (2011, p. 7), ponto relevante para a análise das regras brasileiras de subcapitalização é o julgamento do Caso Colgate pelo extinto Primeiro Conselho de Contribuintes, em 15 de junho de 20057.

Sem adentrar em maiores detalhes, o caso centrou-se em auto de infração baseado no entendimento das autoridades fiscais pela indedutibilidade de encargos financeiros incorridos por empresa brasileira com a sua controlada no exterior, em virtude do suposto não atendimento à condição de despesa necessária para a atividade, condição essa fixada no art. 47 da Lei n. 4.506/1964 para a dedutibilidade de despesas em geral.

Desconsiderando a fase em que se situava a jurisprudência administrativa sobre planejamento tributário e elisão fiscal (FAJERSZTAJN; SANTOS, 2014, p. 48-49), prevaleceu o entendimento de que o contribuinte seria livre para optar quer pelo capital de sócios quer por empréstimos com pessoas vinculadas, não havendo critério legal para definição da thin capitalization que justificasse a glosa das despesas financeiras. Nesse sentido, decidiu-se que a regra geral de dedutibilidade, pautada no critério da necessidade da despesa, não seria suficiente para lidar com a subcapitalização de empresas.

Todavia, em sede de Recurso Especial à Câmara Superior de Recursos Fiscais, o entendimento do Primeiro Conselho de Contribuintes foi reformado, mantendo-se o auto de infração com relação à exigência de IRPJ sob o argumento de que as despesas seriam desnecessárias8.

Apesar de seu desfecho, o julgamento do Caso Colgate em 2005 pode ser considerado importante marco referente à percepção da subcapitalização como questão de planejamento tributário para a qual as autoridades fiscais não dispunham de meios legais contundentes para fazer frente (SANTI; CANADO, 2011, p. 8), isto é, não havia uma norma antielisão especialmente criada para as situações de subcapitalização (PEREIRA, 2014, p. 339).

É necessário mencionar que já àquela época havia limites à dedutibilidade de juros pagos ou creditados a pessoas vinculadas – mas pela legislação de preços de transferência. Com efeito, o art. 22 da Lei n. 9.430/1996 considerava indedutível para fins de IRPJ o valor dos juros que excedesse a taxa Libor acrescida de 3% de spread, no caso de contratos que não fossem registrados no Banco Central9.

Referido dispositivo veio a ser alterado pela Lei n. 12.715/2012 e, posteriormente, pela Lei n. 12.766/2012. Em sua redação atual, estabelece as taxas a serem aplicadas para cada caso e delega ao Ministro da Fazenda a determinação de um spread – a soma dos dois percentuais será o limite da dedutibilidade de juros pagos a pessoas vinculadas10.

Essas regras trazidas pela legislação de preços de transferência não devem ser confundidas com as regras de subcapitalização, na medida em que estabelecem critérios de dedutibilidade relacionados diretamente ao cálculo do valor dos juros e não quanto à proporção do endividamento de uma pessoa jurídica com suas partes vinculadas.

Essa diferença é claramente observada no art. 24 da Lei n. 12.249/2010, o qual determina que os juros pagos a pessoas físicas ou jurídicas vinculadas “somente serão dedutíveis” quando: (i) for atendida a condição geral de dedutibilidade (art. 47 da Lei n. 4.506/1964); (ii) forem observados os limites de endividamento previstos em seus incisos; e, ainda (iii) forem atendidos os limites das regras de preços de transferência do art. 22 da Lei n. 9.430/1996.

2.3. As regras brasileiras de subcapitalização

Os incisos do art. 24 da Lei n. 12.249/2010 indicam limites de endividamento específicos para quatro hipóteses fáticas distintas.

A primeira hipótese refere-se aos casos em que a pessoa jurídica brasileira contrai um empréstimo com pessoa vinculada no exterior que participe do seu capital. Para essa hipótese, o valor do endividamento no momento da apuração dos juros não poderá ser superior a duas vezes o valor da participação da pessoa vinculada no patrimônio líquido da pessoa jurídica brasileira. Dessa forma, a fixed ratio entre debt e equity é 2:1.

Já a segunda hipótese envolve os casos em que há um endividamento com pessoa vinculada no exterior que não participe do capital social da devedora residente no Brasil. Nesse caso, o valor do endividamento, na ocasião em que apurados os juros, não poderá ser superior a duas vezes o valor do patrimônio líquido da pessoa jurídica brasileira. Nota-se que a razão definida pelo legislador também é de 2:1, posto que o valor do patrimônio líquido figura como denominador.

A terceira hipótese envolve a pluralidade de endividamentos. Para esse cenário, o valor do somatório dos endividamentos da pessoa jurídica brasileira com todas as pessoas vinculadas estrangeiras não poderá ser superior a duas vezes a soma dos valores das participações de todas as vinculadas no patrimônio líquido daquela. Novamente, a razão entre endividamento e patrimônio líquido é de 2:1.

Contudo, a terceira hipótese não pode ser aplicada a casos em que todas as dívidas são contraídas com pessoas vinculadas no exterior que não participem diretamente do capital da devedora brasileira. Não fosse essa exceção, qualquer despesa com juros seria indedutível, visto que o dobro da soma da participação das credoras na devedora – o limite para o endividamento – seria igual a zero.

Esse é exatamente o cenário abrangido pela quarta hipótese, que prevê limite de endividamento para fins da dedutibilidade de juros igual a duas vezes o valor do patrimônio líquido da pessoa jurídica brasileira (como os demais cenários, observando a razão 2:1).

Cabe mencionar que as regras de subcapitalização fazem remissão ao conceito de pessoa vinculada do art. 23 da Lei n. 9.430/1996, sendo necessário fazer breve referência às críticas de Xavier e Emery (2010, p. 10-11) e de Santos (2011, p. 121-122) quanto ao caminho adotado pelo legislador. Tendo em vista que as regras de preços de transferência lidam tanto com a transferência de bens e serviços como de propriedade intangível entre partes relacionadas (SCHOUERI, 2013, p. 9-11), faz sentido que sejam aplicáveis para determinar preços não só para casos em que há vínculo de natureza societária entre as partes, mas também quando se verificarem relações comerciais pertinentes, v.g., a exclusividade na compra de bens, serviços e direitos11.

Por mais que uma situação de vinculação como essa possa levar ao subfaturamento ou ao superfaturamento e à violação de condições arm’s length, por outro lado, não parecem, necessariamente, implicar o endividamento artificial ou deliberadamente desproporcional entre as partes (SANTOS, 2011, p. 121-122).

Ainda no contexto das quatro hipóteses apresentadas acima, o § 7º do art. 24 da Lei n. 12.249/2010 traz exceção às regras de subcapitalização, afastando a sua aplicação para operações de captação realizadas no exterior por instituições financeiras cujos recursos sejam utilizados em operações de repasse. Interessante notar que esse dispositivo não constava da redação original da MP n. 472/2009 e que representa a única hipótese da legislação de subcapitalização que efetivamente considera as peculiaridades atinentes a determinado setor econômico.

A ênfase do presente trabalho, como já ressalvado, é conferida às regras de subcapitalização previstas no art. 24 da Lei n. 12.249/2010 e resumidamente apresentadas acima. Cabe apenas mencionar que o art. 25 do mesmo diploma legal estabelece as regras de subcapitalização específicas para o caso de empréstimos contraídos com pessoa física ou jurídica domiciliada ou constituída em “país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado”. Seguindo tendência global12, o legislador brasileiro impôs limites específicos – e no mais alto grau de restrição, conforme estudo realizado pela OCDE (JOHANSSON; SKEIE; SORBE, 2017) – à dedutibilidade de encargos financeiros contraídos junto a estrangeiros em paraísos fiscais ou sujeitos a regimes fiscais privilegiados, independentemente da existência de vínculo societário entre estas pessoas e a empresa brasileira.

Em síntese, as regras brasileiras de subcapitalização fixam a proporção de endividamento que é considerado abusivo ou artificial para todas as pessoas jurídicas, indiscriminadamente e sem considerar as peculiaridades atinentes a cada setor econômico.

Conquanto haja exceção à aplicação da regra para o caso de instituições financeiras, o legislador optou por tratar da mesma maneira pessoas jurídicas em situações completamente distintas, o que por si só merecerá exame detalhado mais adiante.

3. Ficções jurídicas, presunções jurídicas e as regras de subcapitalização

Tendo superado a apresentação das regras brasileiras de subcapitalização, cabe agora verificar se sua preceituação normativa está fundada na utilização de uma presunção ou de uma ficção.

As presunções são ilações sobre aquilo que é observado no mundo dos fatos (BEVILÁQUA, 1940, p. 399-400), com base em experiências anteriores e raciocínio do intérprete, ou em comando legal. As presunções são comumente distinguidas pelo seu fundamento: podem ser simples, quando a conclusão decorre da própria liberdade de raciocínio e experiência do aplicador da lei, uma vez que este seja apresentado aos fatos; ou podem ser legais, quando a conclusão é fixada pelo legislador, ou seja, uma vez ocorridos determinados fatos, uma circunstância é imposta pelo legislador como presumidamente ocorrida (SCHOUERI, 2014, p. 99-100).

De acordo com os ensinamentos de Pontes de Miranda (2012, p. 581-586), as presunções legais podem ser absolutas (iuris et de iure), caso seja prova conclusiva que não pode ser afastada, ou relativas (iuris tantum), se for admitida prova em contrário. Ademais, haveria também as presunções mistas (probabilis), que admitiriam apenas alguns tipos de prova para contrariar a inferência realizada por meio de presunção.

Por outro lado, a ficção jurídica é comumente associada à negação da realidade, como se representasse a imposição de uma afirmação sabidamente falsa. Por certo, a ficção legal é forma de construção da realidade jurídica que não depende da realidade dos fatos, mas, como constata Schoueri (2014, p. 98), é simplesmente conexão entre a hipótese presente no antecedente de uma norma e o consequente de outra norma, cujo antecedente é diverso daquela. De forma simplificada, a ficção ocorre quando duas normas têm antecedentes diferentes e o consequente de uma é aplicado à outra.

A diferença entre as presunções absolutas e as ficções está em sua estrutura jurídica (SCHOUERI, 2014, p. 104). Enquanto nas presunções se comprova a ocorrência de um fato desconhecido com base em outro conhecido (“a presença do fato B é prova conclusiva do fato A”), as ficções consistem na simples aplicação de “hipótese à consequência legal firmada para outra situação” (“na presença do fato B, deve-se agir como se ocorresse o fato A”) (FULLER, 1967, p. 41 apud SCHOUERI, 2014, p. 104).

É possível argumentar que as regras de subcapitalização possuem natureza de ficção jurídica, partindo do pressuposto de que tais regras aplicam o consequente do descumprimento das normas gerais de dedutibilidade, previstas no art. 47 da Lei n. 4.506/1964, a um antecedente diverso (o endividamento excessivo da pessoa jurídica). Vale dizer, se uma pessoa jurídica cumpre as normas gerais de dedutibilidade, mas descumpre os limites de endividamento, terá a mesma consequência (indedutibilidade) do que uma pessoa jurídica que descumpre as normas gerais de dedutibilidade.

Por outro lado, é possível afirmar que as regras de subcapitalização possuem natureza de presunção absoluta. Isso porque o legislador parece presumir que, se descumpridos os limites de endividamento previstos nos arts. 24 e 25 da Lei n. 12.249/2010, a despesa não será necessária.

Nessa visão, não há imputação do consequente de uma norma ao antecedente de outra; simplesmente presume-se que o endividamento acima do limite estabelecido implica a desnecessidade da despesa – o consequente (indedutibilidade) decorre naturalmente do antecedente que se presume existir (descumprir os limites de dedutibilidade ou incorrer em despesa desnecessária) (VICENTINI, 2014, p. 143). Parece ser essa a natureza jurídica das regras brasileiras de subcapitalização, isto é, uma hipótese de presunção absoluta.

Contudo, para os fins da presente discussão, a distinção entre a natureza jurídica de ficção ou presunção absoluta não é essencial. Basta afastar a natureza de presunção relativa, na medida em que as atuais regras de subcapitalização não admitem, de maneira alguma, que o contribuinte demonstre que as dívidas que excedam os limites legais são necessárias no seu caso particular.

Essa impossibilidade de prova em contrário é de suma importância, já que o Direito Tributário está pautado na enunciação pelo legislador de fatos econômicos que revelam capacidade contributiva e que gerarão o dever de pagar tributos. Uma vez que a legislação assume a ocorrência de um fato passível de tributação independentemente da sua existência efetiva (seja por meio de uma ficção jurídica ou de presunção absoluta), dá-se margem a inconstitucionalidades, conforme será retomado adiante. É em razão disso que a concessão à praticabilidade não deve afastar a possibilidade de os contribuintes provarem que sua situação é distinta daquela presumida pela legislação (SCHOUERI et al., 2016, p. 208).

Conforme será exposto, é certo que a limitação da dedutibilidade de uma determinada despesa, a despeito de qualquer exame sobre a sua necessidade para a fonte geradora, afeta diretamente um dos elementos negativos que compõem a renda do contribuinte. As regras de subcapitalização têm o potencial de modificar a renda tal como delimitada a partir da estrutura constitucional e legal do Imposto de Renda, e dos princípios de Direito Tributário, em especial, a capacidade contributiva.

4. A definição de renda

4.1. Noção constitucional de renda

No art. 153, inciso III, da Constituição Federal, é conferida à União a competência para a instituição de imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. A estrutura constitucional da regra matriz de incidência desse tributo já permite identificar o seu critério material (CARVALHO, 2007, p. 267-270) como sendo o verbo “auferir” e o seu complemento “renda e proventos de qualquer natureza” (AMARO, 2011, p. 389).

Como um dos maiores riscos está em aceitar um fundamento por aparentar demasiadamente óbvio (BECKER, 2013, p. 12), é de grande relevância pontuar que o uso do termo “renda” pela Constituição possui importância nuclear na estrutura jurídica do Imposto de Renda, de forma a ser necessário, para fins do presente estudo, tratar da significância que deve ser conferida a esse termo, apesar da sua grande indeterminação.

Segundo observa Oliveira (2008, p. 107-181), o constituinte identificou um sinal de capacidade contributiva a partir da utilização de um conceito econômico técnico, sendo preciso reconhecer conteúdo semântico mínimo que o vincula ao conceito jurídico de renda.

Nessa perspectiva, é possível recorrer ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, observado no julgamento do Recurso Extraordinário n. 117.887, no qual ficou assentado, sem adentrar profundamente a sua ratio decidendi, que “renda e provento de qualquer natureza” indicam, necessariamente, acréscimo patrimonial13.

Desse modo, é certo dizer que a Constituição fornece um parâmetro para a construção de uma noção14 jurídica de renda. Sendo assim, não poderá ser considerado renda simplesmente aquilo que a lei defina como tal (SCHOUERI, 2010, p. 244).

Não cabe aqui adentrar às discussões referentes à adoção pela Constituição da noção de renda-acréscimo ou de renda-produto, esta entendida como o “fruto periódico de uma fonte” (SCHOUERI, 2010, p. 243). Basta, a esse respeito, recorrer ao recorte realizado pelo legislador complementar, que segundo o art. 146, inciso III, alínea “a”, da Carta Magna, confere à lei complementar a definição do fato gerador dos tributos.

4.2. A definição legal de renda

Em cumprimento a esse papel, o CTN define que o fato gerador do Imposto de Renda é aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica “I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos” e “II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior” (OLIVEIRA, 2008, p. 177). Assim, não basta que haja acréscimo; é também preciso disponibilidade jurídica ou econômica deste.

E quanto a esses elementos, são de grande utilidade as lições de Machado (2012), para quem, em apertada síntese, a disponibilidade econômica está relacionada à possibilidade material de dispor da riqueza, à realização do rendimento (SOUSA, 1975, p. 10 apud MACHADO, 2012, p. 61), enquanto a disponibilidade jurídica caracteriza-se pela aquisição de título jurídico que permita fazer jus à renda realizada.

Diante desse contexto, é preciso pontuar que as noções de renda e disponibilidade não são pertinentes apenas para o critério material da hipótese de incidência tributária, mas para a base de cálculo do Imposto de Renda. Sem esquecer da necessidade de haver acréscimo patrimonial na tributação das pessoas jurídicas, a base de cálculo desse tributo não é referida como renda, mas como lucro (PEDREIRA, 1969, p. 1-2). Neste trabalho, cabe apenas tratar do lucro real, isto é, o lucro líquido contábil ajustado pelas adições e exclusões previstas na legislação15, já que eventual indedutibilidade de juros pagos ou creditados não afetaria contribuintes sujeitos ao lucro presumido ou arbitrado.

Segundo Schoueri (2010, p. 253), o lucro real é uma das formas de apuração da renda de uma pessoa jurídica. A exemplo do lucro contábil, o lucro real decorre do somatório de receitas diminuído de despesas. Contudo, nem todas as receitas e despesas reconhecidas pela Contabilidade serão consideradas para a apuração do lucro real. Ou seja, a percepção sobre o que é acréscimo patrimonial para fins jurídicos é distinta daquela verificada a partir da Contabilidade.

Do lado das despesas, a legislação tributária se pauta na sua necessidade para a atividade da empresa, partindo, inclusive, de preceitos contábeis e econômicos relacionados ao juízo de que uma despesa é realizada com a finalidade de obtenção de uma receita (IUDÍCIBUS et al., 2010, p. 66). Seguindo essa acepção, a lei somente reputa dedutíveis para fins da apuração do lucro real as despesas que são necessárias para a obtenção de receitas da atividade da empresa e, em última análise, para que se tenha acréscimo patrimonial.

4.3. A noção de renda e as regras de subcapitalização

Conquanto crie o seu próprio conceito de lucro, o Direito Tributário estará sempre buscando um parâmetro ideal de tributação a partir de índices de riqueza (NOGUEIRA, 1987, p. 7-12). Não faria sentido – e violaria a Constituição – instituir tributo para hipótese em que não há manifestação de capacidade contributiva. Ademais, não obstante a legislação desenvolva conceito próprio, estará a todo o momento limitada pela materialidade do IRPJ arquitetada pela Constituição e pelo CTN, que, como já exposto, têm o acréscimo patrimonial e a disponibilidade jurídica e econômica em seu cerne.

Sem alongar as digressões a respeito do tema, é necessário agora aproximar as considerações expostas acima acerca da noção de renda às regras brasileiras de subcapitalização.

Como já tratado, as regras de subcapitalização consistem de uma presunção absoluta que considera desnecessária qualquer despesa de juros decorrente de dívidas contraídas pela pessoa jurídica brasileira em desacordo com os critérios fixados nos arts. 24 e 25 da Lei n. 12.249/2010, independentemente da verificação concreta da necessidade dessa despesa para a manutenção da fonte geradora. Consequentemente, não atendidos os critérios das regras de subcapitalização, tem-se como indedutíveis as correspondentes despesas com juros.

Nesse momento, são de grande importância as conclusões de Schoueri (2013, p. 12) a respeito da validade de ajustes ao lucro contábil, ainda que elaboradas em vista das regras de preços de transferência. Para esse autor, a constitucionalidade e compatibilidade de um ajuste com a noção de renda dependerá de sua serventia para reparar distorções no lucro contábil e permitir a tributação da renda efetivamente auferida pela pessoa jurídica. Em outras palavras, os ajustes realizados ao lucro contábil devem ter como objetivo a correção de distorções que o afastem de uma percepção mais apurada da riqueza da pessoa jurídica conforme as determinações legais.

Ressalte-se que a regra geral de dedutibilidade do art. 47 da Lei n. 4.506/1964, enquanto é ferramenta de ajuste, também parece se sujeitar à mesma lógica, já que a utilização do critério da necessidade nada mais cumpre do que excluir as despesas que não forem pertinentes para a atividade econômica desenvolvida e para a manutenção da fonte produtiva, isto é, desnecessárias para a obtenção da disponibilidade jurídica ou econômica da renda da pessoa jurídica.

Igualmente, as regras de subcapitalização pretendem, na sua essência, identificar o verdadeiro fluxo de riquezas e tributar mais acertadamente a sua distribuição. Infelizmente, a adoção de um critério quantitativo rígido pelas regras brasileiras de subcapitalização não parece realizar esse objetivo. O problema não está no uso da presunção jurídica em si, mas na forma como o legislador ignorou o dinamismo das práticas comerciais e não se guiou por qualquer parâmetro de arm’s length.

Apesar de aceita pela OCDE em razão da sua praticabilidade, não é possível ignorar ser essa uma das reconhecidas desvantagens do fixed ratio approach – abordagem adotada pela legislação brasileira. Em benefício de uma regra simples e de fácil aplicação, restringe-se a dedutibilidade de juros com base em um critério fixo e quantitativo descolado das peculiaridades do setor econômico do contribuinte ou das particularidades de sua atividade (OCDE, 2015, p. 43).

Contudo, da perspectiva da legislação brasileira, muito mais do que uma mera desvantagem, há violação à noção básica de renda enquanto acréscimo patrimonial, na medida em que se impõe indedutibilidade de despesas com base em critério estanque, não isonômico, e sem maior preocupação sobre a identificação adequada de um signo-presuntivo de riqueza.

Ora, se é imposta restrição à dedutibilidade de uma despesa necessária para a geração de receitas pelo contribuinte, o que se estará tributando não é acréscimo patrimonial. Somente considerando todos os elementos positivos e negativos que contribuem para a geração de resultado é que haverá efetivamente apuração da renda do contribuinte (POLIZELLI, 2014, p. 154-155).

Ademais, contribuem para a violação à noção de renda o fato de o legislador pátrio não ter garantido aos contribuintes a possibilidade de demonstrar que os seus níveis de endividamento cumpririam com condições arm’s length, fazendo prova em contrário de sua presumida artificialidade ou desproporcionalidade, e, com ainda mais intensidade, o fato de a legislação tratar com o mesmo critério – a mesma razão de endividamento – pessoas jurídicas de setores econômicos distintos, ressalvada a previsão específica para as instituições financeiras.

Com efeito, as considerações acima podem aplicar-se a qualquer situação abrangida pelas regras de subcapitalização da legislação brasileira. Ainda assim, será tratada a seguir uma situação específica que revela a forma como as regras de subcapitalização baseadas em critérios rígidos e gerais violam a noção constitucional de renda e a definição de renda trazida pelo CTN.

5. Distorções práticas na tributação da renda decorrentes das regras de subcapitalização

Como mencionado, a ênfase do presente trabalho reside nas regras de subcapitalização previstas no art. 24 da Lei n. 12.249/2010, aplicável aos casos de endividamento com pessoas jurídicas vinculadas no exterior que não se situem em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado. Como já detalhado acima, referido dispositivo legal estabelece os seguintes limites à dedutibilidade de juros, a depender do caso:

i) A credora vinculada no exterior tem participação societária na devedora brasileira: duas vezes o valor da participação da vinculada no patrimônio líquido da devedora brasileira (art. 24, inciso I).

ii) A credora vinculada no exterior não tem participação societária na devedora brasileira: duas vezes o valor do patrimônio líquido da devedora brasileira (art. 24, inciso II).

iii) Há endividamento com mais de uma credora vinculada no exterior, havendo ao menos uma credora que detenha participação societária na devedora: somatório dos endividamentos deve ter valor máximo de duas vezes o valor conjunto da participação das credoras vinculadas no patrimônio líquido da devedora, além de cada endividamento individualmente ter que observar os limites dos cenários (i) e (ii) acima. (art. 24, III)

iv) Há endividamento com mais de uma credora vinculada no exterior, mas nenhuma tem participação societária na devedora: somatório dos endividamentos deve ter valor máximo de duas vezes o valor do patrimônio líquido da devedora (art. 24, §§ 5º e 6º).

Conforme já demonstrado, a adoção de limites fixos de endividamento a todos os contribuintes, sem considerar situações em que o endividamento será necessário em maior ou menor grau (em função de setor de atividade, localização, estágio de maturidade da empresa etc.) (VICENTINI, 2014, p. 147), contraria a noção de renda enquanto acréscimo patrimonial e, consequentemente, fere a Constituição Federal e o art. 43 do CTN.

Ademais, vale cogitar duas situações em que a violação à noção de renda mostra-se ainda mais clara: (i) recursos concedidos por pessoa vinculada a pessoa jurídica brasileira que apresente “patrimônio líquido negativo” (passivo a descoberto); e (ii) recursos concedidos a pessoa jurídica brasileira por pessoa jurídica vinculada que não detenha participação societária expressiva desta.

Tratando da situação descrita no item (i) acima, vale mencionar a crítica tecida por Vicentini (2014, p. 147) quanto à indedutibilidade absoluta dos juros decorrentes de empréstimos entre empresas com patrimônio líquido negativo e suas vinculadas no exterior.

Tratando-se de endividamento com pessoa vinculada que, no entanto, não detenha participação societária na devedora brasileira, o fixed ratio adotado pela legislação brasileira toma como parâmetro o dobro do patrimônio líquido da devedora. Por consequência, fala-se em indedutibilidade absoluta dos juros visto que o limite de endividamento, por leitura simples das normas referidas acima, seria zero (VICENTINI, 2014, p. 148).

De fato, como apontado pelo autor, trata-se de uma imposição exageradamente rigorosa e que atinge a empresa em um momento de presumida fragilidade (VICENTINI, 2014, p. 148). Cabe, aqui, já refutar eventual argumento de que as pessoas jurídicas vinculadas no exterior poderiam optar pela capitalização em detrimento do empréstimo: emprestar dinheiro a uma pessoa jurídica com patrimônio negativo pode ser arriscado (diga-se, risco de crédito), mas integralizar seu capital traz risco ainda maior em função de eventual responsabilização por inadimplências da empresa deficitária com terceiros.

Outra situação que ilustra o tratamento desigual e desproporcional decorrente da adoção dos limites fixos de endividamento pode ser resumida por meio do exemplo abaixo.

Imagine-se situação em que uma empresa brasileira (empresa A) toma empréstimo de uma vinculada no exterior (empresa B) que participa diretamente de seu capital, com somente uma cota (representando 0,1%). Esta mesma vinculada no exterior, contudo, detém o controle de outra pessoa jurídica no exterior (empresa C), que por sua vez detém as demais cotas da empresa A. Assuma-se, para este exemplo, que a empresa A possui patrimônio líquido de R$ 100, que o empréstimo tem o valor de R$ 150, que a empresa A não possui outras dívidas com pessoas vinculadas e que as empresas estrangeiras não estão situadas em país com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado.

Para facilitar a compreensão, o cenário proposto é ilustrado abaixo:

13601.png 

No cenário acima, a empresa B será considerada vinculada à empresa A por deter indiretamente seu controle, sendo necessário observar as regras de subcapitalização. Quando da verificação do limite de endividamento aplicável, uma interpretação literal das normas levaria à conclusão de que os juros decorrentes do empréstimo em questão teriam dedutibilidade extremamente baixa. Isso porque a empresa B possui participação direta na empresa A e os juros seriam dedutíveis somente até o dobro da participação da empresa B no patrimônio líquido da empresa A (no caso, o limite de endividamento seria de R$ 0,2).

Contudo, se analisado o cenário completo (e não somente a relação direta entre A e B), é de se observar que o suposto “excesso de endividamento” não ocorre, porquanto o capital de A é detido quase que integralmente por B (ainda que de forma indireta, por meio de C). Como as regras de subcapitalização estabelecem limites rígidos para hipóteses específicas, a dedutibilidade de juros observada no exemplo acima seria substancialmente maior se a empresa B fornecesse recursos à empresa C, que, por sua vez, concedesse empréstimo à empresa A. Veja-se esta situação na ilustração abaixo:

13610.png 

Nessa hipótese alternativa, os juros do empréstimo seriam dedutíveis porque o limite de endividamento de A seria de R$ 199,80. Nota-se visível incoerência nas normas de subcapitalização brasileiras: em dois cenários envolvendo uma mesma empresa, sem alteração de sua capitalização e sem considerar particularidades de seu setor de atuação ou de sua situação econômica presente (que poderia levar à necessidade de endividamento por motivos extratributários), a dedutibilidade dos juros decorrentes do empréstimo depende unicamente de qual vinculada figura como credora.

Por fim, cabe ainda notar que, como o contribuinte não poderia realizar prova em contrário a respeito da necessidade das dívidas contraídas, estaria impedido de explicar a razoabilidade de seu cenário e elidir a presunção de excesso de endividamento, sendo onerado com a indedutibilidade dos juros.

6. Conclusão

As regras de subcapitalização foram concebidas para evitar economia indevida de tributos por meio de endividamento excessivo das empresas por pessoas vinculadas, em detrimento de sua capitalização.

Idealmente, a análise de qual endividamento é excessivo deveria ser feita caso a caso. Para tanto, os ordenamentos jurídicos nacionais poderiam analisar se o endividamento de uma empresa está de acordo com as condições de mercado, usando como comparativo o endividamento de outras empresas de mesmo setor econômico e situação financeira com partes independentes (arm’s lenght approach).

Essa alternativa, no entanto, não é considerada exequível pelo Relatório Final da Ação n. 4 do Projeto BEPS, que opta pela adoção de limites fixos e objetivos para o endividamento das pessoas jurídicas em geral (fixed ratio approach). Da mesma forma em benefício da praticabilidade, o legislador brasileiro adotou metodologia baseada em limites fixos de endividamento em relação ao patrimônio líquido da devedora, considerando poucas variáveis e ignorando as particularidades da situação de cada contribuinte.

Mais grave é notar que a legislação brasileira não permite ao contribuinte provar a inexistência de excessividade em seu endividamento, tendo adotado, para aqueles que descumprem as regras de subcapitalização, presunção absoluta acerca da desnecessidade da despesa de juros e, consequentemente imposição de indedutibilidade.

Por essas razões, a sistemática adotada abre margem a distorções à tributação da renda, uma vez que considera desnecessárias (e, portanto, indedutíveis na apuração do lucro real e do resultado ajustado do exercício) despesas que podem não ser, sendo preciso que o contribuinte possa expor eventuais particularidades de seu caso que justifiquem a necessidade da despesa. As limitações do fixed approach apontadas pela OCDE, da perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro, colocam-se como verdadeiras inconstitucionalidades das regras de subcapitalização do art. 24 da Lei n. 12.249/2010.

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1 Não estão abrangidas por este artigo as pessoas jurídicas vinculadas no exterior que sejam constituídas em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado, às quais se aplicam as disposições do art. 25 da Lei n. 12.249/2010.

2 A despeito dessa tendência, não se desconhece a possibilidade de conciliação do princípio arm’s length com as regras de subcapitalização do tipo ratio approach (OCDE, 2012, p. 8-9).

3 Nesse sentido, são apontadas “desvantagens” relacionadas ao fato de o fixed ratio approach não considerar as práticas e situações específicas do mercado, por exemplo (OCDE, 2012, p. 12).

4 Conforme indicado no Relatório Final: “the key advantage of a fixed ratio rule is that it is relatively simple for companies to apply and tax administrations do administer” (OCDE, 2015, p. 49).

5 “On the other hand, a fixed ratio rule does not take into account the fact that groups operating in different sectors may require different amounts of leverage, and even within a sector groups may adopt different funding strategies for non-tax reasons.” (OCDE, 2015, p. 49)

6 O Relatório Final para a Ação n. 4 prevê exceções que podem ser adotadas para harmonizar e otimizar a aplicação de regras que limitem a dedutibilidade de despesas com juros. Este trabalho, no entanto, não é oportunidade adequada para tratar dessa questão.

7 “Decadência – Não decorridos cinco anos da data da ocorrência do fato gerador, legítima a atuação do fisco em efetuar o lançamento de ofício. Mandado de procedimento fiscal. Nulidade da CSLL. Descabimento. Conforme art. 9º da Portaria SRF 3007/2001, se as irregularidades apuradas constituem, ao mesmo tempo, infrações à legislação da CSLL e à legislação do IRPJ, e os elementos de prova são os mesmos, considera-se a CSLL incluída no procedimento de fiscalização acobertado pelo MPF relativo ao IRPJ, independentemente de menção expressa. Erro Na Apuração Da Matéria Tributável – Demonstradas inconsistências contidas na apuração da matéria tributável, impõe-se corrigi-las e excluir a parcela da exigência correspondente. Empréstimos contrários no exterior com controlada – dedutibilidade dos encargos – Tendo em vista (1) a inexistência de regras referente a indedutibilidade por subcapitalização, (2) a efetividade do empréstimo contraído, (3) a natureza de mera condução do repasse do valor para operações instantâneas no Uruguai (em benefício do vendedor de participação societária e não do comprador, ora recorrente, (4) a possibilidade jurídica do empréstimo, bem como (5) a tributação dos valores dos encargos creditados ou pagos ao exterior, há de se admitir a dedutibilidade dos encargos com variações passivas e juros. Recurso voluntário provido.” (Acórdão n. 101-95014, Primeiro Conselho de Contribuintes, Rel. Sandra Maria Faroni, j. 15.06.2005)

8 “Despesas não necessárias. Caracterizam-se como desnecessárias e, portanto, indedutíveis do Lucro Real, as despesas de juros e variações cambiais relativas a empréstimo efetuado por meio de um contrato de mútuo, em que a mutuante é sócia-quotista que detém 99,99% do capital social da mutuária e dispunha de recursos para integralizar o capital.” (Acórdão n. 9101-00287, Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF, Rel. Adriana Gomes Rego, j. 24.08.2009)

9 Em sua redação original, o art. 22 assim previa:

“Art. 22. Os juros pagos ou creditados a pessoa vinculada, quando decorrentes de contrato não registrado no Banco Central do Brasil, somente serão dedutíveis para fins de determinação do lucro real até o montante que não exceda ao valor calculado com base na taxa Libor, para depósitos em dólares dos Estados Unidos da América pelo prazo de seis meses, acrescida de três por cento anuais a título de spread, proporcionalizados em função do período a que se referirem os juros.”

10 Desde as alterações da Lei n. 12.766/2012, a redação desse dispositivo legal é a seguinte:

“Art. 22. Os juros pagos ou creditados a pessoa vinculada somente serão dedutíveis para fins de determinação do lucro real até o montante que não exceda ao valor calculado com base em taxa determinada conforme este artigo acrescida de margem percentual a título de spread, a ser definida por ato do Ministro de Estado da Fazenda com base na média de mercado, proporcionalizados em função do período a que se referirem os juros.”

11 Referida previsão consta do inciso X do art. 23 da Lei n. 9.430/1996, no qual se lê:

“Art. 23. Para efeito dos arts. 18 a 22, será considerada vinculada à pessoa jurídica domiciliada no Brasil: [...]

X – a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, em relação à qual a pessoa jurídica domiciliada no Brasil goze de exclusividade, como agente, distribuidora ou concessionária, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos.”

12 Conforme é possível constatar em diversos relatórios e publicações vinculadas à OCDE, a erosão de bases tributárias e o profit shifting permitidos a partir de estruturas envolvendo paraísos fiscais são alvo de diversos projetos e medidas voltadas ao seu combate (OCDE, 2009).

13 Nesse sentido, em seu voto, o Ministro Carlos Velloso pondera que: “não me parece possível a afirmativa no sentido de que possa existir renda ou provento sem que haja acréscimo patrimonial”. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=206951>. Acesso em: 3 ago. 2015.

14 Cabe esclarecer a opção pela utilização da expressão “noção de renda” em detrimento de outras utilizadas comumente, como “conceito de renda”. Não é o propósito deste trabalho investigar se a Constituição Federal, ao referir-se à “renda e proventos de qualquer natureza” como forma de atribuição de competência tributária, utilizou-se de um conceito ou de um tipo. Ainda que essa distinção seja relevante, fato é que a Constituição Federal procurou exprimir um conteúdo mínimo de significância (conceitual ou tipológico), que é identificado de forma relativamente homogênea pela doutrina nacional. Sendo assim, com o objetivo de não incorrer em equívoco terminológico, utiliza-se a noção constitucional de renda para referir o núcleo semântico que pode ser extraído do texto constitucional.

15 Nesse sentido, o art. 6º do Decreto-lei n. 1.598/1977.