Acórdão Starbucks (Processos Apensos T-760/15 e T-636/16): da Aplicação do Princípio da Plena Concorrência como Critério para Verificação da Existência de Vantagem Econômica no Regime de Auxílios de Estado da União Europeia

Starbucks Ruling (Joint Cases T-760/15 e T-636/16): the Application of the Arm’s Length Principle as a Criterion for Assessing Economic Advantage under European Union State Aid Law

Patrícia Estácio de Lima Corrêa

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal. Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção. Mestre em Direito Internacional e Europeu pela Universidade Católica Portuguesa. Advogada. E-mail: pelcorrea@yahoo.com.

Recebido em: 2-9-2021 – Aprovado em: 9-2-2022

https://doi.org/10.46801/2595-7155-rdtia-n10-4

Resumo

Este trabalho aborda a questão da aplicação do princípio da plena concorrência – tal como entendido pela Comissão no caso Starbucks –, como parâmetro para análise da existência de vantagem econômica de uma medida que pode ser enquadrada como auxílio de Estado no âmbito da União Europeia (UE). Leva em consideração o fato de que o referido princípio, tal como aplicado pela Comissão, não se encontra positivado no direito europeu e não possui, de fato, substância material. Por fim, foram brevemente colocadas possíveis consequências negativas da aplicação dessa noção do princípio da plena concorrência mesmo nos casos em que os Estados-membros possuem legislação interna sobre a matéria.

Palavras-chave: União Europeia, auxílios de Estado, preços de transferência, princípio da plena concorrência, vantagem econômica.

Abstract

This paper addresses the issue of the applicability of the arm’s length principle – as understood by the Commission in the Starbucks case –, as a criterion for assessing the existence of economic advantage of a measure that can constitute State Aid within European Union (EU). It takes into account the fact that the aforementioned principle, as applied by the Commission, is not established in the European legal framework and does not have material substance. Finally, some potential negative consequences deriving from the application of this notion where Member States have national legislation on the matter were briefly presented.

Keywords: European Union, state aid, individual aids, transfer pricing, arm’s length principle, economic advantage.

1. Introdução

Os auxílios de Estado são aqueles, nos termos do art. 107 do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE), “concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam [...]”. Ainda nos termos do mencionado artigo, referidos auxílios são considerados contrários ao mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-membros da UE, quando “falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções” (TFUE, 2016).

É possível concluir, da leitura atenta do referido dispositivo, que as vantagens concedidas mediante isenções ou reduções fiscais também podem constituir auxílios estatais, na medida em que, ao conceder um benefício de redução ou isenção de carga tributária, o Estado abre mão de receita.

A Comissão Europeia já explicitou o alcance do conceito de auxílio estatal nesse sentido: “Esta vantagem pode ser concedida através de uma redução da carga fiscal da empresa sob diversas formas [...]” (UE, 1998).

Assim, desde que presentes os requisitos previstos na legislação e na jurisprudência europeias, os benefícios fiscais concedidos pelos Estados podem ser considerados auxílios contrários à concorrência.

Em suma, os requisitos para a configuração de auxílio de Estado no âmbito europeu são os seguintes: origem estatal; vantagem à empresa beneficiária; caráter seletivo; capacidade de gerar impacto nas trocas entre os Estados-membros; e capacidade de distorcer a concorrência (SABBADINI, 2015)1.

Quanto ao requisito da vantagem – que não se encontra explicitamente citado no TFUE, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ) explicita que, para verificar sua existência, deve-se comparar a situação de concorrência no mercado comum antes e depois da concessão do auxílio (UE, TJ, 1974, Processo 173/73, § 36)2.

Assim, para apreciar se uma medida constitui auxílio de Estado, o TJ determina que deve se verificar “[...] se a empresa beneficiária obtém uma vantagem económica que não teria obtido em condições normais de mercado” (UE, TJ, 2010, T-163/05, § 35). A vantagem, nota-se, pode ser direta ou indireta (UE, TJ, 2011, C-403/10P, § 82).

Nesse contexto, a questão que se coloca é se o princípio da plena concorrência (PPC) pode ser utilizado como parâmetro para análise da afetação ou possível afetação da concorrência derivada de medida que pode ser enquadrada como auxílio de Estado, em que pese não estar expressamente incorporado ao direito europeu e mesmo nos casos em que os Estados-membros o hajam incorporado em suas legislações nacionais.

No caso Starbucks, o Tribunal Geral (TG) ratificou a noção de plena concorrência concebida pela Comissão Europeia para verificação do critério da vantagem econômica de medidas que podem constituir auxílios de Estado. Ocorre que o princípio da plena concorrência (PPC) aplicado pela Comissão não se encontra positivado no direito europeu e não possui, de fato, substância material, tendo sido concebido com base nas orientações gerais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – que não são vinculativas (LI, 2012, p. 78). De fato, a Comissão explicitou em suas razões que deve ser aplicada essa “noção” do princípio da plena concorrência ainda que os Estados-membros possuam legislação interna sobre a matéria – que é o caso da Holanda, cuja legislação interna estabelece o alcance e a interpretação das orientações sobre o princípio da plena concorrência da OCDE no âmbito holandês (UE, TG, 2019, T-760/15 e T-636/16, § 7).

Nesse contexto, analisou-se brevemente o regime dos auxílios de Estado no direito europeu da concorrência a fim de delinear as implicações da aplicação do PPC, tal como entendido pela Comissão – como um princípio geral, baseado nas orientações da OCDE e independente da incorporação ao direito interno –, como parâmetro para análise da existência de vantagem econômica de uma medida que pode ser enquadrada como auxílio de Estado, como foi feito no caso Starbucks.

2. Regime dos auxílios de Estado no direito europeu da concorrência

O regime dos auxílios de Estado no âmbito da UE é regulado pelos arts. 107 a 109 do TFUE. Os referidos auxílios são, em regra, considerados incompatíveis com o mercado interno, sendo considerados compatíveis, contudo, aqueles previstos no n. 2 do art. 107 e possivelmente compatíveis com os previstos no n. 3 do mesmo artigo.

O art. 108 do TFUE dispõe sobre os procedimentos a serem adotados pela Comissão, tanto com relação à supervisão e ao controle de novos auxílios – controle preventivo, quanto à supervisão e controle de auxílios já concedidos – controle permanente.

Com relação ao controle preventivo, destaca-se a chamada cláusula standstill prevista no n. 3 do art. 108, segundo a qual o Estado-membro deve aguardar a decisão da Comissão antes de conceder um auxílio (MATTHIAS-WERNER, 2006, p. 634).

Deriva da referida cláusula que um auxílio que tenha sido notificado por um Estado-membro à Comissão, mas concedido antes de sua decisão, pode ser considerado ilegal, ainda que materialmente compatível com o mercado interno (UE, TJ, 1990, C-354/90, §§ 16 e 17 e UE, TJ, 2003, C-261/01 e C-262/01, §§ 54 e 62).

Quanto à modalidade de controle permanente, da qual derivou o Acórdão Starbucks, refere-se que, sendo explicitamente prevista no texto do TFUE, foi desde sempre corroborada pela jurisprudência. De se notar a manifestação do TJ segundo a qual um auxílio concedido com base no silêncio da Comissão, que não deu resposta quanto à notificação prévia, não conduz à sua legalidade, tendo a Comissão competência para exercer o controle a posteriori mesmo não tendo exercido o controle a priori (UE, TJ, 1973, Processo 120/73, §§ 5º e 6º).

De fato, o Acórdão Starbucks decorreu do controle exercido ex post pela Comissão Europeia, dado que não foi notificada sobre a medida tomada pelo governo holandês, considerada como auxílio de Estado (UE, TG, 2019, T-760/15 e T-636/16, § 60).

Finalmente, antes da análise quanto à aplicabilidade do PPC para aferição do requisito da vantagem, cabe verificar se no caso Starbucks a medida tomada pelo governo holandês configura, de fato, auxílio de Estado.

2.1. Do enquadramento da medida tomada pelo governo holandês como auxílio de Estado nos termos do art. 107, n. 1, do TFUE

O caso Starbucks decorre de um acordo prévio sobre preços de transferência (APPT) celebrado entre as autoridades tributárias holandesas e a Starbucks Manufacturing Emea BV (SMBV), uma empresa do grupo econômico Starbucks estabelecida na Holanda.

Primeiramente, cabe trazer à baila o conceito de preços de transferência que, de uma maneira simples e objetiva, podem ser definidos como aqueles praticados em transações entre empresas associadas (WITTENDORFF, 2010, p. 3).

Os APPTs, por sua vez, constituem acordos que “determinam, antes de transações controladas, um conjunto de critérios apropriados [...] para a determinação dos preços de transferência para tais transações durante um período de tempo” (OCDE, 2017, tradução livre).

No entendimento da Comissão Europeia, o referido APPT preencheu todos os requisitos de auxílio de Estado.

A origem estatal foi determinada tendo em conta que o APPT (com imprecisões de cálculos, no entendimento da Comissão) foi aceito pelo governo holandês e gerou redução da carga tributária da SMBV, ocasionando perda de receita estatal.

Quanto ao requisito da capacidade de gerar impacto nas trocas entre os Estados-membros, a Comissão entendeu estar ele presente no caso, sobretudo por considerar que a SMBV é parte de um grupo econômico com atuação mundial que opera em todos os Estados-membros.

Já a capacidade de distorcer a concorrência, no entendimento da Comissão, decorreu do fato de que o APPT reduziu a carga tributária que a SMBV teria que suportar se não houvesse sido celebrado o acordo, fortalecendo a sua posição financeira.

O ponto controvertido repousa justamente sobre a caracterização do terceiro requisito, o da “vantagem seletiva”, como foi denominado. Nota-se que no caso em tela os requisitos da vantagem e da seletividade foram tratados pela Comissão de maneira unitária, em que pese serem comumente tratados de maneira distinta pela doutrina3.

Quanto à aglutinação dos dois requisitos, a Comissão invocou Acórdão do TJ segundo o qual, apesar de ter considerado a vantagem e a seletividade como critérios distintos, ressaltou que, nos casos de auxílios individuais, a vantagem econômica permitira, a princípio, presumir a existência do critério da seletividade (EU, TJ, 2015, C-15/14 P, § 60).

A Comissão entendeu que a vantagem seletiva restou configurada na medida em que o APPT gerou uma redução da carga fiscal da SMBV na Holanda em comparação com aquela que teria que suportar segundo o regime tributário geral holandês e em comparação com empresas independentes [em contraposição à sua condição de empresa integrante de um grupo econômico].

A Comissão utilizou três critérios para a verificação da presença do referido requisito: identificação do sistema de referência, ou seja, o regime normal aplicável ao beneficiário da medida fiscal; o afastamento da medida fiscal do sistema de referência na medida em que diferencia sujeitos em situação jurídica e factual comparável; e, por fim, a justificação da medida, pois se ela realmente constituir uma exceção ao sistema de referência, o Estado-membro deve comprovar que é justificada pela natureza ou regime geral do sistema de referência.

Entendeu a Comissão que, no caso, estavam presentes todos os critérios necessários à caracterização do requisito da “vantagem seletiva”. Em sua decisão, afirmou que o auxílio é caracterizado pelo APPT, por endossar uma metodologia para determinar o lucro tributável na Holanda pelas atividades que a SMBV executa no âmbito do grupo Starbucks, que são tributadas pelo sistema geral holandês (UE, Comissão, 2015, Decisão (UE) 2017/502, § 254).

2.2. Notas acerca dos preços de transferência

Preços de transferência, de uma maneira simples e objetiva, podem ser definidos como aqueles praticados em transações entre empresas associadas (WITTENDORFF, 2010, p. 3).

As empresas associadas, em especial as multinacionais, parecem ser uma única empresa e atuam, idealmente, como uma unidade econômica com objetivo comum. Por tal razão, os preços de transferência entre empresas associadas não resultam de negociação entre partes com interesses econômicos contrapostos, e o quanto os preços de transferência impactam os negócios de uma multinacional depende de vários fatores, tais como sistemas internos de avaliação de performance e lucratividade, a organização estrutural e as regulações públicas concernentes. Além disso, geralmente as empresas individuais de um grupo econômico são tributadas individualmente de acordo com a legislação interna de cada país (WITTENDORFF, 2010, p. 5).

Os grupos econômicos preocupam-se com o lucro gerado pelo grupo como um todo, e não por suas subsidiárias, então podem adotar qualquer preço nas transações internas do grupo. Nesse contexto, os preços de transferência podem ser utilizados para acumular seus lucros subjacentes em jurisdições de tributação reduzida [os chamados “paraísos fiscais”] e retirá-los de jurisdições de alta tributação, possibilitando a redução da carga tributária e o aumento do lucro líquido do grupo econômico como um todo (SOLOVYOVA, 2019, p. 5).

Já os APPTs são acordos que determinam, antes de transações controladas, um conjunto de critérios apropriados para a determinação dos preços de transferência durante um período de tempo” (OCDE, 2017, p. 26). Constituem um acordo jurídico vinculativo entre a autoridade fiscal e o contribuinte que confere segurança jurídica a esse último de que suas políticas e procedimentos de transferência de preços respeitam o critério da plena concorrência (LI; PAISEY, 2005, p. 107).

O PPC, por sua vez, estabelece que as empresas associadas devem realizar suas transações controladas pelo mesmo preço que seria aplicado no mercado entre empresas independentes (WITTENDORFF, 2010, p. 7). Ou seja, um grupo econômico deve aplicar, nas transações entre as empresas que o compõem, preços compatíveis com aqueles que são ou seriam praticados entre empresas independentes em condições comparáveis [ou seja, em condições de concorrência] (TREIDLER, 2019, p. 3). É expressamente previsto como regra para alocação de lucros entre empresas associdadas nos arts. 7º, n. 2 e 9º, n. 1, da Convenção Modelo da OCDE.

Do ponto de vista da política de tributação, a adoção do PPC almeja resguardar a igualdade tributária e a neutralidade entre empresas associdas e empresas independentes. Ocorre que, em geral, a tributação direta não está harmonizada no âmbito da UE, cabendo, portanto, a cada Estado-membro determinar os critérios de repartição de seus poderes tributários internamente (UE, TJ, C-194/06, § 32).

Tais poderes significam que os Estados-membros são livres para escolherem as normas para alocação de receita entre empresas associadas para fins tributários, desde que em obediência ao direito da UE. Não existe norma europeia que os obrigue a coordenarem o uso da mesma norma de alocação para prevenir dupla tributção: isso significa que o TFUE não impede a utilização do PPC como uma norma de alocação no direito doméstico (WITTENDORFF, 2010, p. 258).

No entanto, deve ser respeitado o princípio da não discriminação. O princípio da plena concorrência deve ser aplicado, portanto, de maneira igual para transações internas e transfronteiriças (UE, TJ, 2006, C-524/04, conclusões do Advogado-Geral, § 44).

No caso Starbucks, a Holanda levanta, dentre outros argumentos, o de que a Comissão não podia ter utilizado um princípio da plena concorrência que não está expressamente contemplado no direito europeu e, com isso, afastar preceitos da legislação interna holandesa. A Comissão, por outro lado, alega que a aplicação do princípio em causa decorre da sua análise, pelo art. 107 do TFUE, independentemente da incorporação deste princípio ao sistema jurídico nacional.

O TG concluiu pela admissibilidade da aplicação do PPC tal como entendido pela Comissão, no sentido de que, como a autoridade nacional, ao concluir o APPT, aceitou certos preços de transferência para transações intragrupo, a Comissão tem o poder de fiscalizar se esses preços correspondem àqueles que seriam praticados em condições de mercado.

2.3. Da aplicação das regras de auxílio de Estado às decisões fiscais prévias no âmbito da tributação internacional

O acórdão em causa confirma o entendimento da Comissão de que o regime de auxílios de Estado é aplicável às decisões fiscais prévias. De fato, a Comissão é favorável à concessão de decisões fiscais prévias (tax rulings) – tal como a que deu origem ao caso Starbucks –, no entanto, explicita que devem respeitar as regras em matéria de auxílios de Estado (UE, Comissão, Comunicação sobre a noção de auxílio estatal nos termos do art. 107, n. 1, do TFUE, §§ 169-170).

A Comissão adota esta posição em favor da aplicação das regras de auxílio de Estado a acordos de tributação internacional desde, pelo menos, 1998 (UE, Comissão, 1998, §§ 10;21). No entanto, a aplicação dessas regras às decisões fiscais concedidas por meio de APPTs celebrados entre as autoridades tributárias e as empresas multinacionais encontra certa crítica na doutrina.

Luja, no âmbito da arbitragem tributária internacional, defende que a necessidade de qualquer vantagem tributária seletiva imputável a um Estado-membro continua a ser requisito e limite à aplicação das regras dos auxílios de Estado e que nenhuma seletividade pode ser encontrada em determinações individuais divergentes que as decisões fiscais contemplam sobre o que deve ser tributado e o que deve ser excluído de tributação (LUJA, 2014, p. 353).

Rossi-Maccanico, concordando com o entendimento esposado por Luja, ressalta que no caso Gibraltar, no exame de um sistema de tributação corporativa, a Corte determinou que a seletividade não se limita necessariamente a derrogações ou exceções à aplicação normal de um sistema tributário, mas também inclui exclusões ou situações nas quais o escopo de um sistema tributário é injustificadamente restrito e exclui de tributação empresas que, razoavelmente, seriam tributadas (ROSSI-MACCANICO, 2015, p. 372).

Por fim, tendo sido estabelecida a aplicabilidade das regras de auxílio de Estado às decisões fiscais prévias, importa referir o entendimento da Comissão segundo o qual decisões fiscais que determinam metodologia de fixação de preços de transferência para determinação dos lucros tributáveis de uma empresa associada – tais como aquela do caso Starbucks –, devem resultar numa aproximação dos resultados que seriam obtidos em situação de concorrência por empresas independentes, “em sintonia com o princípio da plena concorrência [...]” (UE, Comissão, Comunicação sobre a noção de auxílio estatal nos termos do art. 107, n. 1, do TFUE, § 171).

3. breve relato do acórdão Starbucks

O caso Starbucks decorre de um Acordo Prévio sobre Preços de Transferência (APPT) celebrado entre as autoridades tributárias holandesas e a SMBV, uma empresa do grupo econômico Starbucks estabelecida na Holanda.

Tal caso é emblemático pois foi o primeiro4 em que o TG confirmou que o PPC pode ser utilizado como critério para verificação da existência de vantagem econômica no regime de auxílios de Estado da União Europeia no âmbito de um APPT (ILIOPOULOS, 2017, p. 270).

Além disso, também é importante pois confirmou a competência da Comissão para investigar APPTs celebrados pelos Estado-membros e se tais acordos prévios constituem auxílios de estado. Nesse contexto, também indicou que o ônus da prova é da Comissão, que deve provar que os APPTs acarretam redução da carga tributária e, consequentemente, conferem uma vantagem à parte beneficiária.

3.1. Sinopse dos argumentos da Comissão

No entendimento da Comissão, o APPT celebrado entre as autoridades tributárias holandesas e a SMBV preencheu todos os requisitos de auxílio de Estado.

A origem estatal foi determinada tendo em conta que o APPT (com imprecisões, no entendimento da Comissão) foi aceito pelo governo holandês e gerou redução da carga tributária da SMBV ocasionando, portanto, perda de receita estatal.

Quanto ao requisito da capacidade de gerar impacto nas trocas entre os Estados-membros, a Comissão entendeu presente considerando que a SMBV é parte de um grupo econômico com atuação mundial que opera em todos eles.

Já a capacidade de distorcer a concorrência, no entendimento da Comissão, decorreu do fato de que o APPT reduziu a carga tributária que a SMBV teria que suportar se não houvesse sido celebrado o acordo, fortalecendo a sua posição financeira.

O ponto controvertido repousa justamente sobre a caracterização do terceiro requisito, o da “vantagem seletiva”, como foi denominado. A Comissão entendeu que se configurou na medida em que o APPT gerou uma redução da carga fiscal da SMBV na Holanda em comparação com aquela que teria que suportar segundo o regime tributário geral holandês e em comparação com empresas independentes [em contraposição à sua condição de empresa integrante de um grupo econômico].

Quanto a este aspecto, salienta-se que o sistema holandês não diferencia empresas independentes de empresas que fazem parte de grupos econômicos para fins de tributação sobre o rendimento (UE, Comissão, 2015, Decisão (UE) 2017/502,, §§ 236;244;251). Por tal razão, a Comissão entendeu que os preços de transferência acordados entre o governo holandês e a SMBV deveriam obedecer ao PPC, pelo que as transações realizadas entre as empresas do grupo Starbucks deveriam ser precificadas como se fossem realizadas entre empresas independentes, ou seja, em condições de mercado, o que evitaria o tratamento diferenciado entre empresas individuais e controladas diante da mesma norma (de tributação sobre o rendimento das pessoas jurídicas).

Nesse passo, a Comissão utilizou três critérios consagrados pela jurisprudência (UE, TJ, 2011, C-78/08 e C-80/08, § 49 e C-20/15 P e UE, TJ, 2016, C-21/15 P, § 57) para a verificação da presença de uma vantagem seletiva: identificação do sistema de referência, ou seja, o regime normal aplicável ao beneficiário da medida fiscal [no caso, o sistema de tributação holandês]; o afastamento da medida fiscal do sistema de referência na medida em que diferencia sujeitos em situação jurídica e factual comparável [tratamento diferenciado da SMBV como empresa controlada e as empresas independentes]; e, por fim, se a medida realmente constituir uma exceção ao sistema de referência, o EM deve comprovar que é justificada pela natureza ou regime geral do sistema de referência [o que entendeu não ter acontecido].

Concluiu a Comissão, portanto, pela presença de todos os critérios necessários à caracterização do requisito da “vantagem seletiva”. Em sua decisão, afirmou que o auxílio é caracterizado pelo APPT, por endossar uma metodologia para determinar o lucro tributável na Holanda pelas atividades que a SMBV executa no âmbito do grupo Starbucks, que são tributadas pelo sistema geral holandês (UE, Comissão, 2015, Decisão (UE) 2017/502, §§ 254).

3.2. Conclusões do Tribunal Geral

Primeiramente, destaca-se que o TG validou a sistemática de aglutinação dos critérios da vantagem e da seletividade utilizada pela Comissão, entendendo que não é, por si só, incorreta, desde que que ambos sejam analisados isoladamente. No entanto, abordou o critério da vantagem em primeiro lugar para, só então, na presença desse requisito, passar à análise da existência da seletividade.

Quanto ao tratamento semelhante entre empresas independentes e empresas que fazem parte de grupos econômicos, o TG também validou a conclusão da Comissão de que quando a lei nacional não as distingue para fins de tributação, isso significa que tem por finalidade tributá-las da mesma forma, pelo que entendeu o TG ter a Comissão acertado ao comparar a carga tributária da SMBV com a de empresas independentes em situação comparável. Além disso, ratificou a aplicação do PPC para determinar se uma empresa integrada estava sendo beneficiada por medida fiscal que determina seus preços de transferência no âmbito do art. 107, n. 1, do TFUE.

No entanto, concluiu que a mera desconformidade metodológica do APPT não leva necessariamente à redução da carga tributária da SMBV, não bastando, portanto, para confirmar a presença da vantagem econômica. Seria necessário demonstrar que os erros metodológicos levaram à redução do lucro tributável da SMBV em relação a empresas em situação fática comparável. Só assim restaria caracterizada a existência de vantagem econômica indicativa de auxílio de Estado tal como previsto no art. 107 do TFUE.

O TG, concluindo que a Comissão não logrou demonstrar que a SMBV obteve vantagem, não passou à análise específica da seletividade.

4. Conclusões

Parece-nos que a Corte está cada vez mais direcionada no sentido de incorporar, em seus julgados, uma “noção europeia” do PPC baseada nas orientações da OCDE.

Não só a Corte em seus julgados, mas também as instituições europeias vêm incorporando uma noção de plena concorrência na legislação, como ilustra a Diretiva n. 2016/1164, do Conselho, em seu art. 8º, n. 2.

A Comissão afirma que o PPC faz parte da apreciação de medidas concedidas a empresas de um grupo nos termos do art. 107, n. 1, do TFUE, independentemente de incorporação pelo EM do referido princípio em seu ordenamento jurídico interno (UE, Comissão, Comunicação sobre a noção de auxílio estatal nos termos do art. 107, n. 1, do TFUE, § 172).

O problema, parece-nos, reside no fato de que presumir a existência de um PPC “europeu”, mesmo quando exista legislação interna sobre o assunto em determinado EM, pode gerar tratamento diferenciado entre transações realizadas entre empesas de um grupo econômico dentro das fronteiras desse EM e transações transfronteiriças. Nas palavras de Kemmeren, tal abordagem não contribui para o estabelecimento de um “level playing field”, na medida em que transações transnacionais sofram maior carga tributária se seguido o entendimento da Comissão. Isso violaria a neutralidade na tributação internacional, assim como o princípio da capacidade contributiva, pois empresas na mesma situação seriam tratadas de maneira diferente [consoante as transações realizadas a nível interno ou externo] (KEMMEREN, 2017, p. 157).

Além disso, a abordagem de adotar uma noção de PPC que não se encontra prevista em legislação pode gerar insegurança jurídica, pela falta de definição objetiva do seu conteúdo e alcance e também pela possibilidade de alterações mais frequentes, tendo em conta que o princípio da plena concorrência no âmbito da OCDE decorre de instrumentos de soft law (não vinculativos), sujeitos a alterações de modo mais fácil do que alterações legislativas de instrumentos de hard law (vinculativos).

Parece-nos, por fim, que essa abordagem adotada pela Comissão e corroborada pelo TG – tanto no caso Starbucks quanto no caso Fiat (T-755/15 e T-759/15) – pode dificultar a tarefa dos grupos econômicos de estabelecer os preços de transferência entre suas empresas associadas no contexto internacional. Isso também dificulta a tarefa dos EM, que ficam inviabilizados de utilizar sua legislação interna como parâmetro para a definição da tributação direta dos grupos econômicos instalados em seus territórios.

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UE. TJ. Acórdão Estado Belga e Eugene van Calster, Felix Cleeren/Estado belga e Openbaar Slachthuis NV, de 21 de outubro de 2003 (Processos apensos C-261/01 e C-262/01, §§ 54 e 62).

UE. TJ. Acórdão Estado Francês, de 21 de novembro de 1990 (Processo C-354/90, §§ 16 e 17).

UE. TJ. Acórdão Gebr. Lorenz, GmbH/República Federal da Alemanha, de 11 de dezembro de 1973 (Processo 120/73, §§ 5 e 6).

UE. TJ. Acórdão Holanda/Orange European Smallcap Fund NV (Processo C-194/06).

UE. TJ. Acórdão Itália/Comissão, de 2 de julho de 1974 (Processo 173/73, § 36).

UE. TJ. Acórdão Mediaset SpA/Comissão Europeia, de 28 de julho de 2011 (Processo C-403/10P, § 82).

UE. TJ. Acórdão Ministero dell’Economia e delle Finanze/ Paint Graphos Soc. coop. arl, de 8 de setembro de 2011 (Processos apensos C-78/08 e C-80/08) § 49; Acórdão Comissão/Banco Santander SA et al., de 21 de dezembro de 2016 (Processos apensos C-20/15 P e C-21/15 P).

UE. TJ. Conclusões do Advogado-Geral L. A. Geelhoed, de 29 de junho de 2006 no caso Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation/Commissioners of Inland Revenue, § 44 (Processo C-524/04).

WITTENDORFF, Jens. Transfer pricing and the arm’s length principle in international tax law. Holanda: Wolters Kluwer, 2010.

1 Note-se que o autor trata separadamente dos requisitos da vantagem e da seletividade.

2 “[...] para aplicação do artigo 92º, nº 1, é necessário obviamente partir da situação concorrencial existente no mercado comum antes da adopção da medida em causa.”

3 Vide referência n. 1 deste trabalho.

4 Juntamente com o caso Fiat, no qual o TG confirmou a decisão da Comissão de que o APPT celebrado entre as autoridades tributárias de Luxemburgo e a Fiat constitui auxílio de Estado.